Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1001/04.5TBABT-D.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: CAUSA PREJUDICIAL
IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE
INCUMPRIMENTO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
Data do Acordão: 02/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A ação de impugnação da paternidade não constitui causa prejudicial do incidente de incumprimento para efetivação da prestação de alimentos a favor do menor cuja paternidade é impugnada.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1001/04.5TBABT-D.E1

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório
1. A Digna Procuradora da República instaurou incidente de incumprimento, para efetivação da prestação de alimentos, a favor do menor (…), nascido a 4/10/2003, filho de (…) e de (…).
Alegou que por sentença de 4/3/2009, transitada em julgado, o pai do menor ficou obrigado a pagar mensalmente a quantia de € 150,00, atualizável de acordo com a taxa de inflação, a título de alimentos devidos ao menor, alimentos que o progenitor não pagou, encontrando-se em dívida a quantia de € 17.986,76.
Requereu a notificação da entidade empregadora do requerido para proceder mensalmente ao desconto do salário deste da quantia de € 167,77, a título de alimentos vincendos e da quantia de € 100,00 até perfazer o montante dos alimentos vencidos.
Pronunciou-se o Requerido argumentando que não é pai do menor, que se propõe instaurar ação de impugnação de paternidade e que se mostram prescritas as prestações vencidas há mais de cinco anos.
Requereu a suspensão dos autos pelo prazo de cento e vinte dias, com vista a propor a ação de impugnação de paternidade e “realizar perícia que elucide se é pai devedor, ou não é nem pai, nem devedor”.

2. Seguiu-se a prolação de decisão que depois de considerar inexistir “a relação de prejudicialidade imposta pelo artº 272º, nº 1, do CPC” e inexistir “fundamento para ordenar a requerida suspensão dos presentes autos, sendo tal por isso indeferido”, dispôs assim:
“Face ao exposto, decido:
Declarar o incumprimento pelo requerido (…) dos alimentos devidos a seu filho (…) desde Agosto de 2009 até Fevereiro de 2019, no valor global de € 17.986,76 (dezassete mil, novecentos e oitenta e seis euros e setenta e seis cêntimos).

3. Recurso
O Requerido recorre da decisão, na parte em que julgou inexistir fundamento para ordenar a suspensão dos autos, e conclui assim a motivação do recurso:
1ª A ação de impugnação é uma ação de simples apreciação sob a forma negativa, já que, é proposta para se obter a declaração de inexistência dum direito ou dum facto, enquanto que as ações constitutivas tem por fim autorizar uma mudança na ordem jurídica existente.
2ª Ao passo que aquela reconhece ou aprecia uma situação pré-existente, a ação constitutiva cria uma situação nova.
3ª Por isso "...os efeitos da sentença proferida na ação declarativa de simples apreciação se produzem ex tunc, enquanto os da sentença proferida na ação constitutiva se produzem ex nunc".
4ª "A prestação de alimentos e o dever jurídico de a realizar surge por virtude da filiação".
5° Faltando o vínculo da filiação não há lugar a prestação alimentar, porque o fundamento do pagamento desta nunca existiu.
6° Provado que a paternidade biológica não coincide com a legalmente presumida tal implica "... a extinção da execução onde se pretendia obter o cumprimento coercivo da obrigação alimentícia, ainda que limitada as prestações vencidas antes do trânsito em julgado da sentença que julgou procedente a ação de impugnação de paternidade".
7ª Assim existe a prejudicialidade invocada pelo Recorrente,
Pelo Que,
8ª Devera ser suspensa a ação executiva até trânsito em julgado da ação de impugnação da perfilhação.
9ª A douta decisão recorrida violou o disposto no n.º 1 do art. 272.º do CPC.
Justiça”.
Respondeu o Ministério Público defendendo a confirmação da decisão recorrida.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso.
Considerando as conclusões da motivação do recurso e sendo estas que delimitam o seu objeto, importa decidir se a propositura de uma ação de impugnação da paternidade constitui causa prejudicial do incidente de incumprimento, para efetivação da prestação de alimentos, a favor do menor cuja paternidade é impugnada.

III. Fundamentação.
1. Factos.
A decisão recorrida julgou provados os seguintes factos:
1. (…), nascido a 04.10.2003, natural da freguesia de (…), do concelho de Abrantes, é filho de (…), residente na Av. (…), nº 527, em Abrantes e de (…), residente na Tapada da (…), nº 18, no Sardoal.
2. O menor (…) reside com a mãe a cuja guarda e cuidados imediatos foi confiado mediante sentença de 13.05.2005 no âmbito do processo de RPP à margem referenciado, com o nº l00l/04.5TBABT, do extinto 1º Juízo do Tribunal Judicial de Abrantes, tendo sido fixada já no Apenso "A" e mediante sentença de 04.03.2009 uma prestação de alimentos a pagar pelo pai, no montante mensal de € 150,00, com atualização anual de acordo com a taxa de inflação e a entregar pelo pai até ao dia 8 de cada mês.
3. Não pagou o pai as pensões de alimentos em referência aos meses de Abril a Julho de 2009, num total de € 600,00, conforme sentença condenatória proferida a 09.07.2009, no Apenso "B".
4. E, não pagou o pai as prestações vencidas deste então até a data de entrada em juízo dos presentes autos sendo a atualização a cada ano, em função da taxa de inflação nos preços ao consumidor verificada no ano anterior, publicada pelo INE, temos os seguintes valores:
a. Ano de 2009- meses de Agosto a Dezembro = 5x€150,00 = € 750,00;
b. Ano de 2010:
Meses de Janeiro a Abril=4x€150,00= € 600,00
Atualização em Maio de 2010/ (inflação verificada em 2009/-0,8%= € 148,80; Meses de Maio a Dezembro = € 148,08 x 8 = € 1190,40
c. Ano de 2011:
Meses de Janeiro a Abril=4x€148,80 = € 595,20
Atualização em Maio de 2011/ (inflação verificada em 2010/+1,4% = € 150,88; Meses de Maio a Dezembro = € 150,88x8 = € 1207,06
d. Ano de 2012:
Meses de Janeiro a Abril=4x€150,88 = € 603,52
Atualização em Maio de 2012: (inflação verificada em 2011/+3,7%= € 156,37; Meses de Maio a Dezembro = € 156,37x8 = € 1251,03
e. Ano de 2013:
Meses de Janeiro a Abril=4x€156,37 = € 625,48
Atualização em Maio de 2013: (inflação verificada em 2012/+2,8%= € 160,74; Meses de Maio a Dezembro=€160,74x8 = € 1285,98
f. Ano de 2014:
Meses de Janeiro a Abril=4x€160,74 = € 642,96
Atualização em Maio de 2014: (inflação verificada em 2013/+0,3% = € 161,22; Meses de Maio a Dezembro = € 161,22x8 = € 1289,77
g. Ano de 2015:
Meses de Janeiro a Abril=4x161,22€ = € 644,88
Atualização em Maio de 2015: (inflação verificada em 2014/-0,3% = € 160,74; Meses de Maio a Dezembro = € 160,74x8 = € 1285,98
h. Ano de 2016:
Meses de Janeiro a Abril = 4x€160,74 = € 642,96
Atualização em Maio de 2016: (inflação verificada em 2015/+0,5% = € 161,54; Meses de Maio a Dezembro=€161,54x8= € 1292,34
i. Ano de 2017:
Meses de Janeiro a Abril = 4x€161,54 = € 646,16
Atualização em Maio de 2017: (inflação verificada em 2016/+0,6% = € 162,50; Meses de Maio a Dezembro = €162,50x8 = € 1300,07
j. Ano de 2018:
Meses de Janeiro a Abril = 4x€162,50 = € 650,00
Atualização em Maio de 2018: (inflação verificada em 2017/+1,4% = € 164,77; Meses de Maio a Dezembro = €164,77x8 = € 1318,2
k. Ano de 2019:
Mês de Janeiro = € 164,77
(Atualização em futura em Maio de 2019: inflação verificada em 2018/+1,03% = € 166,46).
5. O total em dívida em referência a é de € 17.986,76 (dezassete mil e novecentos e oitenta e seis euros e setenta e seis cêntimos).
6. O requerido não consta como trabalhador ativo na base de dados da Segurança Social.
Por se mostrar provado por documento importa ainda considerar que:
Em 18/3/2019, (…) instaurou ação de impugnação de paternidade pedindo a final que se declare que não é pai biológico de (…).

2. Direito
2.1. Se a propositura de uma ação de impugnação da paternidade constitui causa prejudicial do incidente de incumprimento, para efetivação da prestação de alimentos, a favor do menor cuja paternidade é impugnada.
A decisão recorrida concluiu pela inexistência da relação de prejudicialidade imposta pelo artº 272º, nº 1, do CPC, entre a ação de impugnação de paternidade e o presente procedimento e declinou a pretensão do ora Recorrente destinada a suspender os autos “pelo prazo de 120 dias, para propor a ação” de impugnação de paternidade.
O Recorrente diverge argumentando, em resumo, que “faltando o vínculo da filiação não há lugar a prestação alimentar, porque o fundamento do pagamento desta nunca existiu”, razão pela qual a ação de impugnação de paternidade constitui causa prejudicial da (presente) ação executiva e esta deve ser suspensa.
Segundo o artº 272º, nº 1, do CPC, o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.
A suspensão da instância, por pendência de causa prejudicial, supõe assim a pendência de duas causas: a causa a suspender e a causa prejudicial e como tal não se configura – não pode ser deferida – nos casos em que a causa prejudicial ainda não se mostra pendente, como é o caso da suspensão ser requerida com vista à sua propositura.
No caso, a suspensão foi requerida com vista à propositura da ação de impugnação de paternidade, causa alegadamente prejudicial da causa documentada nos autos e, assim, a requerida suspensão não tem por fundamento a pendência de uma causa prejudicial, mas tão só o declarado propósito da sua instauração; com vista à propositura da causa pendente não há fundamento para decretar a suspensão e tanto bastaria para julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão recorrida.
Posteriormente ao requerimento em que pediu a suspensão, o ora Recorrente veio propor ação de impugnação de paternidade relativamente ao menor (…) a favor de quem corre o presente incidente de incumprimento para efetivação da prestação de alimentos, importando aferir da prejudicialidade de causas com recurso a este novo elemento, uma vez que também a decisão recorrida parece ter laborado no pressuposto da pendência da ação de impugnação da paternidade.
Como ensina Alberto dos Reis, “uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão da primeira pode destruir o fundamento ou razão de ser da segunda” e seguindo o mesmo Mestre, “a razão de ser da suspensão por pendência de causa prejudicial é a economia e coerência de julgamentos” [Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. III, p. 268 e 272].
Por aplicação desta doutrina, a jurisprudência tem considerado que “a suspensão da instância por causa prejudicial depende de nesta se discutir questão cuja decisão pode destruir o fundamento ou razão de ser daquela” e que “o critério por que o juiz deve orientar-se (…) é evitar, mediante a suspensão da instância, a possibilidade de a mesma questão vir a ser objeto de decisões desencontradas ou incoerentes” [Cfr. respetivamente Ac. STJ de 28/2/75, BMJ, 244º - 239 e Ac.RP de 27/4/73, BMJ, 227º-221, cujos sumários se mostram anotados por Abílio Neto, CPC, anotado, 14ª ed. pág. 333].
O presente incidente destina-se à efetivação da prestação de alimentos devidos a crianças (art.º 48º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8/9), é uma providência destina à realização coativa de uma obrigação, ou seja, é uma ação executiva na aceção do nº 4 do artº 10º do CPC, tal como, aliás, o Recorrente a qualifica [cclª 8ª].
E sendo um procedimento de cariz executivo não visa declarar o direito mas executá-lo o que significa que, no presente incidente, não se discute se os alimentos são, ou não, devidos ao menor, se se verificam, ou não, os pressupostos da obrigação de indemnizar, esta discussão está ultrapassada pela decisão que se visa efetivar, qual seja, a sentença de 04.03.2009 que fixou ao Recorrente a obrigação de contribuir, mensalmente, com a quantia de € 150,00, atualizável, a título de alimentos devidos ao menor (ponto 2 dos factos provados).
Com esta explicação surge, a nosso ver, claro que inexiste qualquer possibilidade de desencontro ou incoerência entre a decisão a proferir na ação de investigação de paternidade e as providências a tomar na presente ação com vista à realização coativa do direito a alimentos do menor, uma vez que o direito (a alimentos) se encontra declarado e o presente procedimento destina-se, tão só, a executá-lo.
“A ação executiva não pode ser suspensa com fundamento na pendência de causa prejudicial, pois, não tendo por fim a decisão duma causa e pressupondo o título a existência da obrigação exequenda, não pode nela verificar-se a relação de dependência exigida pelo preceito” [Lebre de Freitas, CPC anotado, vol. 1º, 4ª edição, pág. 552.
Termos em que se concluiu não constituir a ação de impugnação da paternidade causa prejudicial do incidente de incumprimento para efetivação da prestação de alimentos a favor do menor cuja paternidade é impugnada.
Improcede o recurso, restando confirmar a decisão recorrida.

2.2. Custas.
Vencido no recurso, incumbe ao Recorrente pagar as custas (artº 527º, nº 1, do CPC).

Sumário (da responsabilidade do relator – artº 663º, nº 7, do CPC):
(…)

IV. Dispositivo.
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Évora, 13/2/2020
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho