Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
834/16.4T8BJA-F.E1
Relator: MATA RIBEIRO
Descritores: INSOLVÊNCIA
CREDOR HIPOTECÁRIO
ADJUDICAÇÃO
CAUÇÃO
Data do Acordão: 09/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
1. No âmbito de alienação de bens em processo de insolvência, a proposta apresentada por credor garantido tendo em vista a aquisição do bem a vender, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projetada ou ao valor base fixado, deve ser acompanhada de caução, por meio de um cheque visado, no valor de 20% do montante da proposta, como o impõe artº 164º n.º 4 do CIRE, por ser uma formalidade não dispensável, de cumprimento obrigatório.
2. Perante o não cumprimento de tal formalidade a proposta não deve ser aceite.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

No processo de insolvência de AA, no âmbito da tramitação inerente à venda de bens, foi apresentada à Administradora da Insolvência (AI) por BB uma proposta para aquisição de um imóvel constante das massa insolvente, pelo valor de € 20 250,00 (valor superior ao valor mínimo fixado para aceitação das propostas) a qual fez acompanhar de cheque visado no valor de 4% do preço proposto.
Foi dado conhecimento apela AI ao credor hipotecário CC S.A. que se pronunciou contra a aceitação da proposta, tendo nessa sequência apresentado, em 07/04/2017, o pedido de adjudicação do imóvel, para pagamento parcial do seu crédito, pelo valor de € 23 800,00, correspondente ao valor base fixado, não fazendo acompanhar o pedido de adjudicação de cheque visado ou de garantia bancária, solicitando, apenas, que lhe fosse indicado o IBAN da Massa Insolvente a fim de posteriormente proceder à transferência de 20% do valor da proposta.
A AI não aceitou “a proposta de adjudicação do imóvel apresentada pela CC, SA por a mesma não cumprir os requisitos de aceitação e validade consignados no artº 164º do CIRE disposição legal ao abrigo da qual a referida proposta foi apresentada segundo o qual: “A proposta prevista no número anterior só é eficaz se for acompanhada, como caução, de um cheque visado à ordem da massa insolvente, no valor de 20% do montante da proposta…
Inconformado o credor hipotecário apresentou em 30/05/2017 um requerimento ao juiz do processo no sentido de este considerar válida e aceite a proposta de adjudicação formulada, devendo ser ordenada a notificação da AI para disponibilização do NIB/IBAN a fim de proceder à transferência do valor respeitante à caução, ou caso assim não se entenda, que seja admitido a emissão de cheque à ordem da massa insolvente.
Sobre este requerimento incidiu despacho proferido em 21/05/2018, que indeferiu o requerido “por falta de fundamento legal.”

Irresignado com tal decisão, veio o credor CC dela interpor recurso, tenho apresentado alegações e nelas concluindo por formular as seguintes conclusões:
I – A Credora Hipotecária, pronunciou-se contra uma proposta de aquisição do imóvel apreendido a favor da massa insolvente, por um terceiro, no montante de € 20.250,00, apresentando proposta por valor superior no valor de € 23.800,00, tendo esta requerido à Senhora Administradora de Insolvência que indicasse o IBAN da massa insolvente para que se procedesse à transferência dos 20% do valor da proposta.
II – A Senhora Administradora de Insolvência recusou a proposta da Credora Reclamante, de valor superior à proposta de terceiro, em cerca de € 2.000,00, tendo esta requerido ao Tribunal que revogasse tal decisão.
III – O despacho recorrido veio manter a decisão da Senhora Administradora de Insolvência fazendo uma interpretação literal e desadequada do disposto no artigo 164º do CIRE.
IV – Com efeito, os Tribunais devem fazer uma interpretação da lei adequada aos tempos em que se inserem, sendo que atualmente o uso de cheque caiu em desuso.
V – Doutro passo a decisão da Senhora Administradora prejudica claramente a massa insolvente, na medida em que a proposta da Credora Hipotecária era superior à proposta de terceiro em cerca de € 2.000,00.
VI – Acresce que, tanto os credores que em sede de rateio irão receber um valor inferior aquele que poderiam receber, bem como os próprios Insolvente que vêm o seu património ser vendido por um valor que poderia ser superior.
VII – Por outro lado, a revogação do despacho recorrido não constituiu qualquer prejuízo para o terceiro proponente na medida em que não se realizou ainda a escritura de compra e venda.

Cumpre decidir
O objeto do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso (artºs 635º n.º 4, 639º n.º 1 e 608º n.º 2 ex vi do artº 663º n.º 2 todos do CPC).

Assim, a questão posta à consideração do tribunal, é a de saber se existiu violação do disposto no artº 164º n.º 4 do CIRE, quando, em sede de venda, não foi aceite a proposta de adjudicação, de maior valor, apresentada por credor garantido, pelo facto de não ter sido junto, com a proposta, a caução correspondente a 20% do montante proposto.

Com vista à apreciação e conhecimento do recurso, há que ter em conta o factualismo supra descrito no Relatório, que nos dispensamos de transcrever de novo.
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Conhecendo da questão
Insurge-se a recorrente pelo facto de o Julgador a quo não ter aceite como válida a proposta de adjudicação que apresentou, por tal proposta não ter sido acompanhada de cheque visado, caucionando o montante correspondente a 20% do valor proposto, uma vez que se propunha liquidar tal montante através de transferência bancária, donde resulta que no seu entendimento a apresentação da caução não pode ser entendida como condição de admissibilidade ou de rejeição da proposta apresentada.
Dispõe o artigo 164º do CIRE, sob a epígrafe “modalidades de alienação” o seguinte:
1 - O administrador da insolvência procede à alienação dos bens preferencialmente através de venda em leilão eletrónico, podendo, de forma justificada, optar por qualquer das modalidades admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente.
2 - O credor com garantia real sobre o bem a alienar é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação, e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada.
3 - Se, no prazo de uma semana, ou posteriormente mas em tempo útil, o credor garantido propuser a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projetada ou ao valor base fixado, o administrador da insolvência, se não aceitar a proposta, fica obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior.
4 - A proposta prevista no número anterior só é eficaz se for acompanhada, como caução, de um cheque visado à ordem da massa insolvente, no valor de 20 % do montante da proposta, aplicando-se, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 824.º e 825.º do Código de Processo Civil.
5 - Se o bem tiver sido dado em garantia de dívida de terceiro ainda não exigível pela qual o insolvente não responda pessoalmente, a alienação pode ter lugar com essa oneração, exceto se tal prejudicar a satisfação de crédito, com garantia prevalecente, já exigível ou relativamente ao qual se verifique aquela responsabilidade pessoal.
6 - À venda de imóvel, ou de fração de imóvel, em que tenha sido feita, ou esteja em curso de edificação, uma construção urbana, é aplicável o disposto no n.º 6 do artigo 833.º do Código de Processo Civil, não só quando tenha lugar por negociação particular como quando assuma a forma de venda direta.
Dispõe por sua vez o n.º 1 do artº 824º do CPC, epigrafado de caução e depósito do preço, que “os proponentes devem juntar obrigatoriamente com a sua proposta, como caução, um cheque visado, à ordem do agente de execução ou, nos casos em que as diligências de execução são realizados por oficial de justiça, do secretário, no montante correspondente a 5% do valor anunciado ou garantia bancária no mesmo valor".
Questão com similitude com a presente embora no âmbito de um processo executivo (não de processo insolvencial) em que se punha em causa a (in)validade de proposta de aquisição, à qual não fora junta a caução a que alude a lei foi apreciada e decidida neste Tribunal da Relação no âmbito do processo Apelação n.º 2512/10.9TBSTR-E.E1 cujo acórdão de 10/03/2016 foi, também, relatado, pelo ora relator, pelo que iremos seguir de perto o que já aí se deixou consignado sobre a problemática em causa, embora com as necessárias adaptações ao caso concreto.
Conforme também emerge da apreciação feita no âmbito da apelação 2206/04.4TBFAF-D.G1[1], tendo em conta a legislação antecedente ao NCPC, mas que no essencial previa também o oferecimento de caução nos mesmos moldes no momento da apresentação da proposta, embora o montante a caucionar até fosse superior (20%) ao atualmente previsto no âmbito do processo executivo (cfr. artº 897º n.º 1 do VCPC) sendo que o legislador no CIRE, conforme decorre do n.º 4 do artº 188º para as propostas efetuadas pelo credor garantido, manteve a percentagem de 20% do valor da proposta.
Neste aludido acórdão fez-se constar:
Nesta matéria rege o art. 897º do C. P. Civil, o qual, na redação introduzida pela Reforma do Código de Processo Civil 1995/1996, estabelecia que “Aceite alguma proposta (…) , é o proponente notificado para, no prazo de 15 dias, depositar na Caixa Geral de Depósitos o preço devido, com a cominação prevista no artigo seguinte”.
Mas a verdade é que, como escreve Lebre de Freitas “a frequência da apresentação de propostas aceites, mas não seguidas do depósito determinado, levou de novo a alterar a lei”.
Por isso, com o DL nº 38/2003, de 8 de Março, o referido artigo passou a estabelecer, no seu nº 1, que “os proponentes devem juntar à sua proposta, como caução, um cheque visado, à ordem do solicitador de execução, ou na sua falta, da secretaria, no montante correspondente a 20% do valor base dos bens, ou garantia bancária no mesmo valor”. E, no seu nº 2, que “Aceite alguma proposta, é o proponente, ou preferente, notificado para, no prazo de 15 dias, depositar numa instituição de crédito, à ordem do solicitador de execução, ou na sua falta, da secretaria, a totalidade ou a parte do preço em falta, com a cominação prevista no artigo seguinte”. Vê-se, assim, como ensina o referido professor, que o “DL 38/2003, desdobrando em dois números o artigo anterior, passou a exigir, no n° 1, a entrega dum cheque visado no valor correspondente a 20% do valor base dos bens (art. 886-A-2b) ou uma garantia bancária no mesmo valor e a referir, no n° 2, que o depósito a fazer nos 15 dias subsequentes (...) é em parte ou na totalidade consoante a opção (cheque ou garantia) tomada", salientado que “o cheque visado constitui, ao mesmo tempo, à semelhança do sinal do contrato-promessa (art.440º CC e 244º-2CC) garantia do preço e, para o proponente aceite, início do seu pagamento, a ter em conta no cálculo de remanescente a depositar”.
No mesmo sentido, escreve Lopes do Rego, que “o nº 1 reinstitui a exigência de prestação imediata, pelo proponente (ou preferente) de uma garantia pecuniária, que assegure a seriedade na consumação da proposta apresentada (que a reforma de 1995/96 havia eliminado).
Assim sendo, manifesto se torna concluir, que, na venda realizada no âmbito da execução ou na insolvência, para os preferentes ou para os credores garantidos que se disponham a adquirir o bem em venda, a prestação de caução, através da entrega de cheque visado, é condição de admissibilidade da validade da proposta apresentada. Ou seja, a proposta só é eficaz quando seja acompanhada, como caução, de um cheque visado, à ordem da massa insolvente”.[2]
Ora, não tendo o proponente credor garantido CC, feito acompanhar a sua proposta, da caução a que alude o art.º 164º n.º 4 do CIRE - cfr. também artº 824º, nº1 do C. P. Civil, não pode a sua proposta ser aceite como válida.
No mesmo sentido pugnam Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo,[3] fazendo notar que caso o proponente não tenha oferecido a caução por um dos meios previstos no n.º 1 do artº 824º do CPC - cheque visado ou garantia bancária - a sua proposta não deverá ser aceite, mesmo que de valor superior ao valor mínimo anunciado, por não respeitar as formalidades legais sendo que no caso da venda em processo de insolvência o modo de prestar a caução ainda é mais restritivo já que o legislador, não desconhecendo a realidade do nosso ordenamento jurídico atinente, apenas alude ao cheque visado e não, também, à garantia bancária.
Também, no Manual de Boas Práticas editado pela Câmara dos Solicitadores é afirmado a fls. 19 que a apresentação (juntamente com a proposta) da caução mostra-se assim um requisito indispensável, não devendo assim ser aceite qualquer proposta que a não apresente...
Por seu turno Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro[4] são perentórios em afirmar que no âmbito da venda executiva, embora se mantendo o regime já estabelecido no VCPC, a formulação dada ao artº 824º do NCPC alteração da redação, com a introdução do advérbio obrigatoriamente, apenas reforça a ideia de que não se trata de uma formalidade dispensável, mas sim de um requisito de cumprimento obrigatório.
Das posições enunciadas decorre que o oferecimento da caução, quando da apresentação da proposta é uma formalidade não dispensável impondo-se a sua obrigatoriedade para que o ato de formalização da apresentação de proposta se tenha por regular.
No caso dos autos cabia ao AI, que estava encarregado da venda, verificar a regularidade das propostas, não lhe sendo permitido pactuar com irregularidades, ou seja, com o não cumprimento duma formalidade que a lei tem por indispensável, por impor a obrigatoriedade do seu cumprimento.
Por outro lado, também, não faz sentido, sendo a prestação imediata de caução através de cheque visado um requisito de eficácia da proposta, defender que quer o AI, quer o Juiz, como propugna o recorrente, deviam, perante a falta da caução, proceder a notificação do proponente, em falta, até por ser uma instituição de crédito dando-lhe prazo para proceder à transferência pretendida do montante inerente ao valor da caução. Aliás até pelo facto do proponente ser uma instituição de crédito é que se lhe exigiria que tivesse apresentado logo a caução com o requerimento, por certamente nem ter dificuldade na prestação imediata.
E não se diga que se deve fazer uma interpretação “atualista” da lei porque o uso de cheque caiu em desuso, uma vez que o legislador não podia desconhecer essa realidade, quando ao longo dos tempos foi fazendo atualizações, quer no CPC, quer no CIRE, a última das quais neste código em 30/06/2017 (Dec. Lei 79/2017) na qual se reformulou designadamente a redação do n.º 4 do artº 164º, sem que tivesse havido modificação do modo fixado para a prestação de caução, donde parece evidente que o legislador quis efetivamente manter como meio adequado a apresentação de cheque visado.
Temos assim, para nós que não existiu no âmbito da decisão impugnada, violação do disposto no 164º n.º 4 do CIRE, bem como do artº 824º do CPC, por parte do Julgador a quo.
Nestes temos, irrelevam as conclusões apresentadas pelo apelante sendo de julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão recorrida.
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Para efeitos do n.º 7 do artº 663º do Cód. Processo Civil, em conclusão:
1 – A obrigação de junção de caução, pelo meio consignado, imposta pelo artº 164º n.º 4 do CIRE à proposta de adjudicação, tal como também resulta do disposto no artº 824º n.º 1 do CPC é uma formalidade não dispensável, de cumprimento obrigatório, pelo que a proposta não deve ser aceite se não vier acompanhada da caução.

DECISÂO
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, em consequência, manter a decisão impugnada.
Custas pelo apelante.

Évora, 13 de setembro de 2018
Mata Ribeiro
Sílvio Teixeira de Sousa
Manuel Bargado

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[1] - Acórdão de 30/06/2009, disponível em www.dgsi.pt
[2] - v. Carvalho Fernandes e João Labareda in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, 653; Luís Menezes Leitão in Direito da Insolvência, 4ª edição, 257;
[3] - In A Ação Executiva Anotada e Comentada, 2015, 533.
[4] - In Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2014, vol. II, 362.