Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1743/16.2T8BJA.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
CRÉDITO BANCÁRIO
Data do Acordão: 06/27/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O crédito, em relação ao avalista, constitui-se no momento em que presta o seu aval. A partir de então associa-se à situação cambiária daquele a favor do qual deu a sua garantia.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1743/16.2T8BJA.E1

Tribunal Judicial da Comarca de Beja
Juízo Central Cível e Criminal de Beja – Juiz 3


I. Relatório
Caixa Geral de Depósitos, S.A., com sede na Av. (…), 63, 1000-300 Lisboa, instaurou acção declarativa constitutiva, a seguir a forma única do processo comum, contra (…) e esposa, (…), residentes na Rua (…), nº. 8-A, Beja, e (…) e esposa, (…), residentes na Rua (…), nº. 7-A, r/c, Esqº., também na cidade de Beja, pedindo a final que fosse “decretada a ineficácia em relação à Autora do acto de doação referido em 18.º da petição, devendo ainda ser ordenado ao 3.º e 4.ª RR. a restituição dos identificados bens imóveis, com o consequente cancelamento do registo efectuado a seu favor, de modo a que a Autora se possa pagar à custa desses bens”.
Em fundamento alegou, em síntese, ser credora da sociedade (…), Filhos, Lda. por via de contrato de mútuo com a mesma celebrado em 20 de Junho de 2011, afiançado pelos 1.ºs RR, e ainda de financiamento titulado por livrança emitida em 30 de Agosto do mesmo ano, subscrita pelos mesmos RR na qualidade de avalistas.
Mais alegou que a sociedade devedora foi declarada insolvente em 19/6/2013, tendo sido apreendidos para a massa bens de valor muito inferior ao dos créditos reclamados, o que determinou a demandante a instaurar acção executiva contra os fiadores e avalistas, a qual corre termos na secção cível da instância local do Tribunal Judicial da comarca de Beja. No âmbito da execução só foi possível proceder à penhora de direitos de usufruto, uma vez que os 1.ºs RR haviam doado ao 3.º R., seu filho, a nua propriedade dos imóveis identificados, assim impossibilitando a demandante de satisfazer, ainda que parcialmente, o seu crédito, o que os RR doadores bem sabiam.
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Regularmente citados contestaram os RR em peça única, na qual contestaram a anterioridade do crédito, que é requisito da impugnação pauliana, e bem assim o respectivo montante.
Mais alegaram não terem tido qualquer intenção de impedir a satisfação dos créditos da ré, já que os 1.º e 2.ª RR nada sabiam da vida da sociedade devedora, tendo tido em vista apenas e só transmitIr para o filho a propriedade dos bens em causa, herança da Té mulher, considerando o estado de saúde do R. marido, que foi operado 3 vezes ao coração e ainda a um tumor na próstata.
Invocaram finalmente abuso de direito por parte da demandante, que juntou todos os financiamentos concedidos às sociedades do grupo num só, exigindo a responsabilização pessoal dos 1.º e 2.º RR, bem sabendo que a ré mulher nada tinha a ver com as empresas ou com os financiamentos concedidos, sendo certo que não leram nem percepcionaram as cláusulas do contrato, designadamente as que se referiam à fiança, dada a confiança que depositavam nas pessoas envolvidas, por tudo devendo ser absolvidos.
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A autora respondeu à matéria das excepções, cuja improcedência defendeu, assinalando o facto do 1.º R ser administrador da sociedade avalizada e afiançada, da qual o 3.º R era sócio, bem como a circunstância de só decorridos 5 anos sobre a data da subscrição dos contratos terem invocado desconhecimento do respectivo conteúdo.
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Dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, prosseguindo os autos com delimitação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Teve lugar audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença, que julgou a acção procedente e, em consequência, declarou ineficazes em relação à Autora Caixa Geral de Depósitos, S.A. as doações realizadas pelos Réus (…) e (…) a favor do Réu (…), casado com a Ré (…), relativamente aos seguintes imóveis, podendo a Autora executá-los no património do donatário até ao limite da quantia objecto da execução sob o n.º 964/13.4TBBJA, da Comarca de Beja - Inst. Local - Secção Cível - J2:
a) Fracção autónoma designada pela letra “V”, correspondente ao terceiro andar direito Nascente Leste, do Prédio Urbano em regime de propriedade horizontal, sito em Armação de Pera, Edifício (…), Rua D. (…), freguesia de Armação de Pera, concelho de Silves, descrito na conservatória do registo predial de Silves com o n.º (…)/19850115, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…);
b) ½ do prédio urbano denominado Quinta das (…), situado na freguesia de Nossa Senhora das Neves, concelho de Beja, descrito na conservatória do registo predial de Beja com o número (…)/20071029, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…);
c) Prédio urbano sito em Beja, na Rua S. (…), n.º 8-A, freguesia de Beja (São João Baptista), concelho de Beja, descrito na conservatória do registo predial de Beja com o número (…)/19870223, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) da actual união de freguesias de Beja (Santiago Maior e São João Baptista).

Inconformados, apelou o 1.º R e, tendo desenvolvido nas alegações que apresentou os fundamentos da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
1.ª Ao abrigo do preceituado nos nºs 1 e 2 do art. 662º do CPC, conforme melhor explanado nos pontos 1º a 10º das presentes alegações, deverá ser alterada a matéria de facto dada como provada na douta Sentença recorrida, devendo ser considerados como provados os factos julgados não provados sob as als. a), b) e c), devendo ser julgado não provada a factualidade do ponto M);
2.ª Constitui requisito geral da procedência da impugnação pauliana que seja o crédito anterior ao ato ou, sendo posterior, ter sido aquele realizado dolosamente e com o fim de impedir a satisfação do futuro credor (al. a) do art. 610.º do CC);
3.ª Está em causa nos presentes autos, ato (escritura pública) de doação com reserva de usufruto referente a três imóveis celebrada em 11/11/2011,
4.ª O contrato na origem dos presentes autos foi celebrado em 20 de Junho de 2011, figurando os dois primeiros Réus como fiadores, o qual estava a ser cumprido pela sociedade mutuária à data da doação;
5.ª Não existindo incumprimento do contrato, não existia um crédito da ora Recorrida sobre aqueles, mas quanto muito, uma mera garantia do pagamento do seu crédito;
6.ª Razão pela qual apenas estaria demonstrado o requisito da procedência da impugnação pauliana, caso se tivesse demonstrado que os atos foram realizados dolosamente e com o fim de impedir a satisfação do futuro credor, a ora Recorrida;
7.ª Atento tudo o exposto a propósito da peticionada alteração da matéria de facto, a escritura celebrada não o foi com qualquer intenção de impedir a satisfação dos eventuais créditos da ora Autora, mas apenas com o intuito de transmitir para o herdeiro, filho, a nua propriedade dos bens em causa, que provinham dos pais da esposa do ora Recorrente, por ser essa vontade dos doadores.
8.ª Ao entender estarem verificados os requisitos da impugnação pauliana, a douta Sentença ora recorrida preconizou um erróneo julgamento da matéria de facto e uma incorreta interpretação das normas jurídicas aplicáveis, não podendo permanecer na ordem jurídica.
Com os transcritos fundamentos requereu que, na procedência do recurso, fosse revogada a sentença recorrida e decretada a improcedência da acção.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões a decidir:
i. Da impugnação da matéria de facto;
ii. Da anterioridade do crédito da impugnante.
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i. Da impugnação da matéria de facto
O Recorrente diz terem sido mal julgados os factos dados como não provados sob as als. a), b) e c), pretendendo ainda a inversão da decisão quanto ao facto vertido em M) dos factos provados, que pretende ter resultado não provada.
Está em causa a seguinte factualidade:
Factos não provados:
a) Por ter sido operado três vezes ao coração e a um tumor na próstata, o 1º Réu pretendeu resolver em vida a sua sucessão;
b) O 1.º R Réu não exercia a gerência de facto da aludida sociedade, limitando-se a assinar “de cruz” toda a documentação que lhe fosse apresentada;
c) Os 1.º e 2.ª RR desconheciam a real situação financeira da sociedade.

Al. M) dos factos provados:
Ao doar os imóveis supra identificados ao 3º R, pretenderam os 1º e 2ª RR impedir que tais bens pudessem responder pela dívida em causa.

No que se refere à transcrita factualidade, defende o impugnante que, ao invés do decidido, os factos discriminados de a) a c) resultaram provados, apelando para tanto ao testemunho prestado pelo antigo trabalhador da sociedade (…), Filhos, para a qual trabalhou durante mais de 25 anos e até ao seu encerramento. Inversamente, sustenta que o Tribunal “a quo” convenceu-se da realidade da matéria vertida em M) com base no testemunho de (…), que, todavia, deveria ter sido nesta parte desconsiderado.
A título prévio cabe referir que com a impugnação que ora se aprecia pretende o recorrente que se conclua não terem doadores e donatário actuado com má-fé. Sucede, porém, que tratando-se, conforme é o caso, de acto gratuito, e conforme expressa cristalinamente o art.º 612.º do CC, a impugnação procede, ainda que o devedor e o terceiro agissem de boa-fé pelo que, em bom rigor, tal matéria não releva para os autos.
De todo o modo, com respeito pela prova produzida, afirma-se em antecipação que inexiste fundamento para a pretendida alteração.
Analisados os testemunhos em causa – e inexiste razão para desconsiderar as declarações de (…), amigo de longa data dos 1.ºs RR – a verdade é que, para além de uma genérica afirmação no sentido do R. (…) não ter grande intervenção na gestão da sociedade, entregue a um seu irmão, a verdade é que não revelaram conhecimento consistente sobre aquilo que o mesmo R. saberia ou não da situação económica da sociedade. E a este respeito não temos dúvida em concluir, tal como o M.mº juiz concluiu, que sabia, e foi precisamente por isso que celebrou os negócios dos autos. Tal inferência é perfeitamente legítima quando se considere que, sendo verdade que o 1.º R marido enfrentou problemas de saúde com gravidade, surgindo as doenças do coração e da próstata “quase ao mesmo tempo”, ambas as testemunhas situaram tais acontecimentos há não menos de 10 anos, pelo que fica por explicar o “timing” escolhido para as doações. Mas a escolha já se compreende quando se tiver em atenção que Dezembro foi o último mês em que a sociedade cumpriu as suas obrigações para com a exequente, o que resulta do mapa de fls. 82, tendo as doações sido efectuadas no mês de Novembro. Depois, tendo o casal dois filhos, a tratar-se de uma partilha em vida, conforme foi alegado, mal se compreende que só um deles surja beneficiado. Finalmente, e retomando o testemunho do amigo (…) “O senhor doutor é juiz, sabe perfeitamente como é que estas coisas se processam e o que aqui houve foi um cuidado de tentar…”. Diz o recorrente que se trata apenas de um juízo opinativo; admite-se que assim seja, mas traduz com perfeição a conclusão para que apontam as regras da experiência comum, aparecendo assim como perfeitamente sustentada a presunção judiciária que suporta o facto vertido em M) – (art.ºs 349.º a 351.º do CC).
Improcede, pelo exposto, a impugnação deduzida.
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II. Fundamentação
De facto
Imodificada, é a seguinte a factualidade a ter em consideração:
1. No âmbito da sua actividade e com data de 20 de Junho de 2011, a A. celebrou com a sociedade "(…) e Filhos, Lda." na qualidade de mutuária, e o 1.ª R., (…) e a 2.ª R. (…), na qualidade de “fiadores solidários e principais pagadores”, um contrato de mútuo, nos termos do qual foi lançado no dia 29.06.2011 na conta n.º (…) aberta na agência da A. em Beja, em nome da mutuária, o valor de € 620.565,00 – seiscentos e vinte mil, quinhentos e sessenta e cinco euros, conforme doc. de fls. 29 a 33, cujo teor quanto ao mais se dá por reproduzido.
2. Também no âmbito da mesma actividade, a A. aceitou uma proposta de Financiamento por Livrança apresentada pela empresa (…) e Filhos, Lda., sendo portadora de uma livrança (objecto de desconto comercial) com o número (…), com data de emissão de 30.08.2011 e data de vencimento de 30.11.2011, no valor de € 17.100,00 (dezassete mil e cem euros), na qual figura como subscritora a empresa atrás identificada e avalistas os 1.º e 2.ª RR., (…) e (…), e ainda (…) e (…).
3. Aos 1º e 2ª RR foi dado a conhecer e explicado o alcance e âmbito dos documentos que assinaram.
4. A sociedade (…) e Filhos, Lda. foi declarada insolvente em 19.06.2013 no âmbito do Proc. nº 561/13.4TBBJA que ainda corre termos junto da Sec. Cível – J1 da Instância Local do Tribunal da Comarca de Beja.
5. No âmbito do processo identificado em 4 foram apreendidos bens para a massa insolvente, aos quais foi atribuído um valor total de € 7.000,00 (sete mil euros).
6. Nesse mesmo processo foi proferida sentença que julgou reconhecidos créditos que ascendem a um valor total de € 1.226.640,36 (um milhão, duzentos e vinte e seis mil, seiscentos e quarenta euros e trinta e seis cêntimos).
7. Com base nos títulos referidos em 1 e 2, a Autora intentou em 13.08.2013 contra o 1.º e 2.ª RR., e ainda contra (…) e (…), uma acção executiva para pagamento da quantia de € 22.291,36 (vinte e dois mil, duzentos e noventa e um euros e trinta e seis cêntimos) acrescida dos respectivos juros vincendos e imposto devido até efectivo e integral pagamento, acção esta alvo de cumulação sucessiva em 09.10.2013 para pagamento da quantia de € 732.257,13 (setecentos e trinta e dois mil, duzentos e cinquenta e sete euros e treze cêntimos) acrescida dos respectivos juros vincendos e imposto devido até efectivo e integral pagamento, a qual se encontra a correr termos sob o n.º 964/13.4TBBJA, da Comarca de Beja - Inst. Local - Secção Cível - J2.
8. A liquidação da empresa insolvente resultou num saldo de € 11.624,47, ainda não rateado.
9. Na execução pendente, apenas foi possível penhorar direitos de usufruto, metades de bens imóveis com um VPT de € 12.877,34 e € 1.644,44, um saldo bancário no valor de € 2.217,21, e penhoras de duas reformas, que equivalem actualmente à entrega de um valor mensal de € 982,38.
10. O valor global em dívida à A. ascende a € 1.000.000,00 (um milhão de euros).
11. A A. apenas obteve ressarcimento no valor de cerca de € 40.000,00 (quarenta mil euros).
12. Em 11 de Novembro de 2011 o 1.º R. e a 2.ª R. doaram ao 3.º R., seu filho, casado com a 4.ª R., com reserva de usufruto, e sem dispensa de colação os seguintes bens:
a) Fracção autónoma designada pela letra “V”, correspondente ao terceiro andar direito nascente leste, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito em Armação de Pêra, Edifício (…), Rua D. (…), freguesia de Armação de Pêra, concelho de Silves, descrito na conservatória do registo predial de Silves com o n.º (…)/19850115, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…);
b) ½ do prédio urbano denominado Quinta das (…), situado na freguesia de Nossa Senhora das Neves, concelho de Beja, descrito na conservatória do registo predial de Beja com o número (…)/20071029, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…);
c) prédio urbano sito em Beja, na Rua S. (…), n.º 8-A, freguesia de Beja (São João Baptista), concelho de Beja, descrito na conservatória do registo predial de Beja com o número (…)/19870223, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) da actual união de freguesias de Beja (Santiago Maior e São João Baptista).
13. Ao doar os imóveis supra identificados ao 3.º R, pretenderam os 1º e 2ª RR impedir que tais bens pudessem responder pela dívida em causa.
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Factos Não Provados:
a) Por ter sido operado três vezes ao coração e a um tumor na próstata, o 1º R pretendeu resolver em vida a sua sucessão;
b) O 1º R não exercia a gerência de facto da aludida sociedade, limitando-se a assinar “de cruz” toda a documentação que lhe fosse apresentada;
c) O 1º e 2ª RR desconheciam a real situação financeira daquela sociedade.
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De Direito
Dos pressupostos da impugnação pauliana: a anterioridade do crédito
Nos termos do artigo 610.º do Código Civil[1] “Os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial e não sejam de natureza pessoal, podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as circunstâncias seguintes:
a) Ser o crédito anterior ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
b) Resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade.”.
A impugnação pauliana é um meio conservatório de garantia patrimonial e, sendo distinto da acção anulatória (ainda que à acção pauliana não obste a nulidade do negócio, solução consagrada no art.º 615.º), o negócio impugnado não enferma, via de regra, de qualquer vício genético sendo, em si mesmo, válido e eficaz. Daí que, procedendo a acção pauliana, e ao invés do que ocorre na sequência da declaração de nulidade, os bens não regressam ao património do devedor, referindo o n.º 1 do artigo 616.º que a execução ocorre “no património do obrigado à restituição”, reconhecendo-se ainda no art.º 818.º que os bens pertencem a um terceiro.
De todo o modo, a despeito da validade do acto, verificados os pressupostos que enuncia, através da impugnação pauliana permite a lei o constrangimento do direito do adquirente em ordem a satisfazer o interesse do credor tutelado, mas apenas na medida do interesse deste.
Estão em causa, consoante expressa o transcrito art.º 610.º, actos dos quais resulte diminuição da garantia patrimonial do crédito, exceptuados os de natureza pessoal, sendo requisitos gerais de procedência: a anterioridade do crédito (isto atendendo a que, razoavelmente, os credores só poderão contar com os bens existentes no património do devedor à data da constituição do seu crédito) ou, tratando-se de acto anterior, quando se prove que foi realizado dolosamente com o fim de impedir o direito do futuro credor[2] (vide al. a); e que do acto tenha resultado para o credor a impossibilidade de facto de satisfazer integralmente o seu crédito mediante execução, ou o agravamento dessa impossibilidade, tendo por referência a data do acto impugnado (al. b).
Segundo prescreve o n.º 1 do art.º 612.º, tratando-se de acto oneroso a impugnação pauliana só o atinge no caso de ambas as partes terem agido de má-fé; sendo o acto gratuito, a impugnação procede, ainda que um e outro tenham agido de boa-fé.
No caso dos autos está em causa um acto gratuito[3], o que não vem questionado, daqui decorrendo, pois, a dispensa do requisito da má-fé, tal como se considerou na decisão apelada.
Sustenta todavia o recorrente que não está demonstrada a anterioridade do crédito, uma vez que à data em que foram celebrados os negócios não se registava incumprimento da sociedade, logo, a apelada não era titular de qualquer crédito, mas apenas de uma garantia. Tal entendimento, porém, não tem suporte legal, porquanto, conforme vem sendo consistentemente entendido, estando em causa avales prestados, a data relevante é a da prestação do aval. Assim decidiu o STJ em acórdão de 12 de Março de 2015, proc. nº 4023/11.6/TCLRS.L1.S, também disponível em www.dgsi.pt no qual se sintetizou que “O crédito, em relação ao avalista, constitui-se no momento em que presta o seu aval. A partir de então associa-se à situação cambiária daquele a favor do qual deu a sua garantia.”[4]. E outro tanto deve ser entendido no que respeita à fiança[5], ficando o fiador vinculado ao cumprimento da obrigação afiançada desde a data da constituição desta, tanto mais que, como é o caso, foi prestada com expressa renúncia ao privilégio da excussão prévia, assumindo-se os fiadores como principais pagadores, respondendo portanto não só em condições idênticas à sociedade garantida, mas também a par desta (cf. art.ºs 634.º e 638.º, a contrario”).
Finalmente, e no que respeita à exigência legal que do acto resulte a impossibilidade do credor obter a integral satisfação do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade, resulta evidente dos pontos 9, 10 e 11, pelo que nada há a censurar à sentença recorrida.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível em julgar improcedente o recurso, mantendo a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.
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Évora, 27 de Junho de 2019
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho Santos
José Manuel Barata
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[1] Diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[2] Estão em causa as situações ditas de fraude pré-ordenada, em que o devedor, para obter o crédito, faz dolosamente crer ao credor que certos bens por ele alienados ou onerados ainda pertencem ao seu património, como bens livres de quaisquer encargos – vd. Prof. A. Varela, “Das obrigações em geral”, vol. II, 4.ª ed., pág. 439.
[3] Doação, segundo a noção que nos é dada pelo art.º 940.º do CC, é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente. Não existindo qualquer contrapartida do acto, que importa sacrifício económicos apenas para o doador, a doação (ainda que com encargos) é, sem dúvida, um acto gratuito (cf. Menezes Leitão, Direito das Obrigações”, vol. iii, 4.ª ed., pág. 175).
[4] O mesmo entendimento é referido no aresto do STJ de 27/4/2017, no processo 1297/14.4 T8STB.P1, no qual, estando embora uma situação diferente, se deixou referido que “Nessa data [quando a livrança foi subscrita e avalizada pelo A e 1º R.] nasceu a obrigação cambiária da sociedade subscritora da livrança e dos avalistas para com o Banco, portador da livrança” e novamente nos acórdãos do STJ de 13/9/2018, no processo 2622/15.1 T8SNT.P1.S2 e 4/6/2019, processo 65/15.0 T8BJA.E1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[5] A fiança, como se sabe, “implica que haja um segundo património, o património de um terceiro (fiador), que vai, conjuntamente com o património do devedor, responder pelo pagamento da dívida. Deste modo, acresce à garantia patrimonial que incide sobre os bens do devedor uma outra garantia patrimonial sobre os bens do fiador; o credor passa a ter como garantia de cumprimento dois patrimónios: o do devedor e o do fiador” (“Garantias do Cumprimento” (estudo teórico-prático), Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, pág. 29.