Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
463/16.2T8LAG.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: ACÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
CADUCIDADE
NORMAS DE CONFLITOS
LEI APLICÁVEL
Data do Acordão: 02/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
I - A acção de impugnação de paternidade, não é uma acção de (simples) apreciação negativa, mas uma acção constitutiva, através da qual se pretende introduzir uma mudança na ordem jurídica existente.
II - Significa isto que um requerimento intitulado “Réplica” apresentado em resposta a excepção de caducidade invocada na contestação, à face da lei processual civil vigente, não pode ter outro fundamento legal que não o exercício do contraditório, já que a réplica passou a ser admissível apenas nas situações previstas no artigo 584.º do CPC, deixando de ser configurada como articulado de resposta às excepções deduzidas, cujo lugar próprio o legislador da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, entendeu incluir na audiência prévia, na qual o juiz faculta às partes a possibilidade da discussão de facto e de direito, quando pretenda apreciar excepções dilatórias ou decidir no todo ou em parte do mérito da causa (artigo 591.º, n.º 1, alínea b), do CPC).
III - Devem considerar-se cumpridos os princípios do contraditório e da igualdade das partes, consagrados respectivamente nos artigos 3.º e 4.º do CPC, não apenas nas situações em que o juiz convida o autor para previamente à audiência prévia ou nesta, se pronunciar quanto às excepções deduzidas na contestação, mas também quando o autor toma a iniciativa de se pronunciar em requerimento autónomo, cujo desentranhamento não é determinado pelo juiz, situação em que, nova notificação para o mesmo efeito redundaria na prática de um acto inútil que o artigo 130.º da nossa lei processual proíbe.
IV - A lei pessoal aplicável à constituição da filiação nos termos do artigo 56.º do CC, é também a lei que rege a impugnação da paternidade e o prazo para a sua interposição, sendo o momento relevante para a determinar, o do nascimento do filho e não o da propositura da acção em que se pretende extinguir a filiação constituída, por estarmos em presença de uma conexão fixa.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 463/16.2T8LAG.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro[1]
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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I - RELATÓRIO
1. BB intentou contra CC e DD a presente acção de impugnação de paternidade, pedindo que por via da respectiva procedência seja excluída a sua paternidade em relação ao menor CC, devendo ser considerado apenas como filho de CC, ordenando-se a rectificação do registo de nascimento quanto à menção da paternidade e da avoenga paterna.
Em fundamento da sua pretensão invocou, em síntese, que:
A paternidade consignada no registo relativamente ao menor DD resultou da aplicação pelo Registo Civil de Chemerivtsi da presunção de paternidade, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 122.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Família da Ucrânia, em virtude de ser casado com a mãe do menor;
Porém, conforme resulta do teor do relatório de exame pericial realizado no Centro de Genética Médica e Diagnóstico Pré-Natal, sito na Rua do Campo Alegre nº. 1306, 4150-174 Porto, os senhores peritos concluíram, através do estudo de polimorfismos de ADN, que a probabilidade da paternidade do Autor, BB relativamente a DD é praticamente nula. Verifica-se, assim, que o menor, ora R. não é filho biológico do Autor;
O Autor tomou conhecimento dos factos e deixou de agir como pai do menor, logo que foi informado pela mãe, ora Ré, de que não era ele o pai biológico, tendo confirmado tal informação através da realização de teste de paternidade no ano de 2008;
No entanto, não se verificou a caducidade do direito de impugnar a paternidade porque o local de nascimento do menor foi na Ucrânia e este continua a ter apenas nacionalidade Ucraniana, sendo que, de acordo com o disposto no artigo 56.º do Código Civil Português, aplicar-se-á o Direito Ucraniano ao regime da constituição da Filiação, sendo que nos termos desta legislação, e mais concretamente, nos termos do n.º 3 do artigo 136.º do Código de Família da Ucrânia, a Filiação Paterna pode ser impugnada a todo o tempo até que a criança atinja a maioridade; e o Autor não reconhece o R. menor como seu filho, nem o trata como tal, desde que disso tem conhecimento.
2. Regularmente citados, ambos os RR. contestaram, alegando que o Autor sabia desde o período da gravidez ou, pelo menos desde 2008, que o menor não era seu filho biológico, invocando a caducidade do direito do A. impugnar a paternidade do menor DD, por ser aplicável ao caso a lei portuguesa, uma vez que A. e RR. residem em Portugal há cerca de 15 anos, e ambos os progenitores adquiriram a nacionalidade portuguesa, estando em curso o processo de aquisição da nacionalidade portuguesa por parte do menor.

3. Por requerimento apresentado em 28.02.2018, o A. veio «”à cautela” e nos termos do artº. 584º/2 do C.P.C. apresentar Réplica», qualificação que consta igualmente na página inicial.

4. Juntos aos autos os documentos relativos à aquisição da nacionalidade portuguesa por parte dos RR., e notificados às partes, a Senhora Juíza proferiu despacho saneador, julgando procedente a invocada excepção de caducidade, com a consequente absolvição dos Réus do pedido.

5. Inconformado, o autor apresentou o presente recurso de apelação, terminando com as seguintes conclusões:
«1. O douto tribunal a quo deveria ter determinado a notificação do A. para responder avulsamente à excepção de caducidade, ou convocado a audiência prévia nos termos do artigo 591.º n.º 1 al. b) do C.P.C., o que não fez.
2. No entanto, em 20 de Setembro de 2018, proferiu despacho saneador no qual apreciou e julgou procedente a excepção peremptória de caducidade, absolvendo os Réus do pedido, sem ter dado ao A. a oportunidade de exercer o direito ao contraditório (artigo 3º do CPC).
3. A violação do contraditório inclui-se na cláusula geral sobre as nulidades processuais nos termos previstos no artigo 195.º do C.P.C., com a consequente anulação dos termos processuais posteriores à mesma, designadamente da sentença recorrida, que deverá ser considerada nula.
4. Independentemente da nacionalidade actual das partes, está em causa uma relação jurídica (a filiação), constituída no âmbito de um ordenamento jurídico estrangeiro, devendo o douto Tribunal recorrer às regras de Direito Internacional Privado para determinar qual o Direito a aplicar.
5. O douto Tribunal a quo aplicou o Direito português quando devia ter aplicado o Direito Ucraniano; no caso em apreço estamos perante uma Impugnação de Paternidade; o instituto jurídico em causa é a “filiação”, ou seja, a lei competente é designada pelo artigo 56º do Código Civil, neste caso, pelo n.º 1 do referido artigo.
6. O que significa que, ao contrário do que, com o devido respeito, que é muito, erradamente, o Tribunal de 1.ª instância considerou, foi que a lei competente era designada pelo artigo 57º do Código Civil; no entanto, este artigo refere-se ao estatuto das “relações familiares”, e não ao instituto da “filiação”.
7. Ou seja, a lei aplicável ao estatuto da filiação (artigo 56º do Código Civil) é determinada por uma conexão fixa, visto tratar-se da constituição de uma relação jurídica cuja subsistência não poderá ser negada por uma lei posterior, ao passo que o estatuto a que se refere o artigo 57º do Código Civil, é determinado através de uma conexão móvel, porque está em causa uma situação jurídica actual e deve ser regida pela lei pessoal actual.
8. A correspondente regra de conflito do Código Civil da Ucrânia é o artigo 65º do referido código, sendo a lei aplicável ao estatuto da filiação determinada (tal como na lei portuguesa) por uma conexão fixa, que no caso concreto é a Lei Ucraniana.
8. Não pode, pois, o douto Tribunal a quo fazer tábua rasa das regras de Direito Internacional Privado, sendo ainda de notar, que Portugal é membro da Conferência de Haia de Direito Internacional Privado.
9. À data em que a acção foi proposta, o Réu DD tinha 16 anos de idade e nacionalidade ucraniana.
10. Ora, com a aplicação da Lei Ucraniana, não se verifica a excepção de caducidade julgada procedente na douta sentença; é que, perante a referida lei, e mais concretamente nos termos do n.º 3 do artigo 136º do Código de Família da Ucrânia, “a Filiação Paterna pode ser impugnada a todo o tempo até que a criança atinja a maioridade”.».

6. O Ministério Público apresentou contra-alegações, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

7. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[3], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, evidentemente sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, no caso em apreço, as únicas questões suscitadas são as de saber se a decisão recorrida enferma da invocada nulidade; e, em caso negativo, qual a lei nacional aplicável à situação em presença - se é a lei portuguesa, conforme considerou a primeira instância, ou a lei ucraniana, como pretende o Recorrente -, porquanto tal determina que esteja, ou não, verificada a caducidade do direito de impugnação da paternidade por parte do autor.
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III – Fundamentos
III.1. – De facto
Foram os seguintes os factos considerados assentes na decisão recorrida[4]:
1. O autor BB nasceu a 25.01.1978, na Ucrânia.
2. A ré CC nasceu a 02.02.1978, na Ucrânia.
3. Autor e ré contraíram entre si casamento no 21 de Setembro de 1996, na Ucrânia.
4. O réu DD nasceu a 16.01.2000, na Ucrânia.
5. O réu DD está registado desde 21 de Janeiro de 2000 como filho de BB e de CC.
6. Autor e réus residem em Portugal, mais concretamente, o autor reside na Rua …, nº …-A, em Lagos e os réus residem na Praça …, bloco …, …º dtº, em Lagos.
7. No processo n.º 1885/07.5TBPTM, foi regulado o exercício das responsabilidades parentais da criança DD.
8. Conforme resulta do teor do Relatório e exame pericial realizado no Centro de Genética Médica e Diagnóstico Pré-Natal, sito na Rua do Campo Alegre n.º 1306, Porto, os peritos concluíram, através do estudo de polimorfismos de ADN, que a probabilidade da paternidade do Autor, BB relativamente ao réu, DD é praticamente nula.
9. O resultado do exame é do conhecimento do autor pelo menos desde Julho de 2008, tendo-lhe sido remetida a decisão pelo referido Centro de Genética Médica e Diagnóstico Pré-Natal, por carta expedida a 01.07.2008.
10. Na data de 15 de Janeiro de 2010 foi decretado o divórcio entre autor e ré.
11. O autor BB identificou-se na petição inicial como titular do cartão de cidadão n.º 30050587 6 ZY3, válido até 07/08/2019.
12. A ré adquiriu a nacionalidade portuguesa por decisão de 23 de Abril de 2015, estando tal decisão registada desde 01.07.2015, e sendo-lhe fixado o nome em CC.
13. A presente acção deu entrada em juízo na data de 20.09.2016.
14. O Réu DD adquiriu a nacionalidade portuguesa, estando tal decisão registada desde 15.11.2017, sendo-lhe fixado o nome em DD.
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III.2. – O mérito do recurso
III.2.1. – Da nulidade
Invoca o Apelante que a sentença recorrida é nula por violação do princípio do contraditório, em virtude de ter sido proferida sem que o tribunal tivesse previamente determinado a notificação do A. para responder avulsamente à excepção de caducidade, ou convocado a audiência prévia nos termos do artigo 591.º n.º 1 al. b) do C.P.C.
Conforme já aduzimos no Acórdão deste Tribunal da Relação proferido em 30 de Novembro de 2016[5], o princípio do contraditório vertido no artigo 3.º, n.º 3 do CPC, e postulado pelo direito a um processo justo e equitativo que decorre do artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, é um princípio que o juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, salvos os casos de manifesta desnecessidade.
Note-se, pois, que a lei impõe que a desnecessidade seja manifesta, indicando portanto, que este princípio do contraditório deve ser cumprido mesmo quando possa apresentar-se aparentemente como desnecessária a audição, só podendo ser afastado relativamente a questões cuja decisão não tenha, ainda que reflexamente, qualquer repercussão sobre o desenvolvimento da instância e consequentemente sobre a decisão do litígio, ou mais evidentemente, naquelas que pela sua natureza não compreendam o contraditório prévio e que se encontram aliás ressalvadas no n.º 2 do indicado artigo.
Efectivamente, “[e]ste princípio é hoje entendido como a garantia dada à parte de participação efectiva na evolução da instância, tendo a possibilidade de influenciar todas as decisões e desenvolvimentos processuais com repercussão no objecto da causa[6]”.
Acresce que, este princípio do contraditório encontra-se intimamente ligado ao princípio da igualdade das partes previsto no artigo 4.º do CPC, derivando aquele deste. Por seu turno, “ambos os princípios, assim conexionados, derivam em última instância, do princípio do Estado de Direito”, encerrando “uma particular garantia de imparcialidade do tribunal perante as partes”[7].
Assim, é hoje uma evidência que, em qualquer instância, o Juiz não pode decidir questões de facto ou de direito, sem que a parte tenha tido previamente a possibilidade de sobre as mesmas se pronunciar.
Sabido é que, nas acções de valor superior a metade da alçada da Relação[8], como é o caso da presente, em face do disposto no artigo 591.º do CPC, o juiz convoca audiência prévia para facultar a discussão de facto ou de direito, quando tencione conhecer imediatamente do mérito da causa. Ora, da conjugação da alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º que dispõe nos termos referidos, com o artigo 592.º, e o n.º 1 do artigo 593.º, todos do CPC, que regem sobre a audiência prévia, a sua não realização e a possibilidade da respectiva dispensa, resulta claramente que a mesma é necessariamente convocada nos casos em que o juiz tencione conhecer no todo ou em parte do mérito da causa, já que, salvos os casos previstos no artigo 592.º do CPC, a sua dispensa só está prevista nas situações em que o processo haja de prosseguir.
Na verdade, a ideia da realização da audiência prévia quando o juiz pretenda decidir do mérito da causa no saneador, tem como escopo assegurar às partes o princípio do contraditório porquanto, tendo estas esgrimido nos articulados os argumentos de facto e de direito que entenderam aduzir em fundamento quer do direito de acção quer do direito de defesa, em regra no pressuposto de que os autos prosseguirão os respectivos termos até à audiência final, e pretendendo o julgador conhecer do mérito da causa, tem de facultar às partes a possibilidade de se pronunciarem.
De facto, quando tal omissão ocorre, e não é assegurado o exercício do contraditório, estamos perante omissão que pode ter influência no exame ou na decisão da causa, por não terem sido cabalmente assegurados os direitos de acção e defesa que a lei prevê. Assim, quando tal acontece, a nulidade processual encontra-se coberta por uma decisão judicial que admite recurso, sendo consumida pela nulidade da sentença por excesso de pronúncia, prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, porquanto, neste caso, o tribunal conhece de questão que ainda não podia conhecer, por outras palavras, “o tribunal não pode conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão”[9].
Na verdade, em tais circunstâncias a parte é confrontada com uma decisão, sem que lhe tenha sido proporcionada a oportunidade de exercer o contraditório e sem que tenha disposto da possibilidade de arguir qualquer nulidade processual por omissão de um acto legalmente devido, sendo a interposição de recurso o mecanismo apropriado para a sua impugnação (no mesmo sentido cfr. ABRANTES GERALDES, Recursos no NCPC, 3ª ed., pág. 25, e AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., pág. 52)»[10].
Revertendo o que vimos de dizer ao caso em presença, e verificando-se que não foi designada audiência prévia, nem o juiz determinou expressamente a notificação das partes para se pronunciarem, em princípio, estaríamos perante a comissão de tal nulidade.
Acontece, porém, que, conforme decorre do ponto 3 do relatório, por requerimento que logo qualificou como «Réplica», apresentado em 28.02.2018 o A. veio «”à cautela” e nos termos do artº. 584º/2 do C.P.C.», responder nesse “articulado” à invocada excepção de caducidade, reiterando que «apenas deixou de tratar o R. DD como seu filho a partir da data em que tomou conhecimento do resultado do teste de paternidade», e que «a lei aplicável é a lei Ucraniana, não devido ao facto de as partes serem ou não nacionais de tal Estado, mas sim porque o estabelecimento da filiação foi efectuado no âmbito da Lei Ucraniana».
Ora, a acção de impugnação de paternidade, não é uma acção de (simples) apreciação negativa. Ao invés, «a tutela impugnatória é realizada através de uma acção constitutiva, ou seja, através de uma acção que tem por finalidade introduzir uma mudança na ordem jurídica existente (cf. art. 10.º, n.º 3, al. c), nCPC) e na qual o demandante exerce um poder (normalmente, um direito potestativo)»[11]. Significa isto que aquele requerimento, à face da lei processual civil vigente, não pode ter outro fundamento legal que não o exercício do contraditório, já que a réplica passou a ser admissível apenas nas situações previstas no artigo 584.º do CPC, deixando de ser configurada como articulado de resposta às excepções deduzidas, cujo lugar próprio o legislador da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, entendeu incluir na audiência prévia, na qual o juiz faculta às partes a possibilidade da discussão de facto e de direito, quando pretenda apreciar excepções dilatórias ou decidir no todo ou em parte do mérito da causa (artigo 591.º, n.º 1, alínea b), do CPC).
Como vimos, na situação em presença, não tendo o juiz determinado o desentranhamento do indicado requerimento que «à cautela» o Autor apresentou e tendo-se este ali pronunciado expressamente quanto à excepção de caducidade que havia sido invocada pelos Réus, tanto de facto, como de direito, na sequência do que igualmente haviam feito os Réus no seu articulado, os princípios do contraditório e de igualdade das partes, foram plenamente assegurados.
Tanto assim é, que a jurisprudência tem vindo a entender estarem satisfeitas tais finalidades mesmo quando o juiz, no despacho de gestão inicial do processo a que se refere o artigo 590.º do CPC, usando os poderes de gestão processual que lhe estão cometidos no artigo 6.º, notifica as partes para se pronunciarem sobre a (des)necessidade de realização de audiência prévia, e concretamente os Autores para se pronunciarem sobre a matéria das excepções, previamente àquela, dispensando-a. Deste modo, o caso em apreço em nada difere deste, salvo quanto à iniciativa para o autor se pronunciar, não se vendo que o facto deste o ter feito sponte propria e não a convite do juiz, de algum modo diminua os seus direitos para se pronunciar sobre o que importaria à decisão da invocada excepção de caducidade.
Conclui-se, pois, que devem considerar-se cumpridos os princípios do contraditório e da igualdade das partes, consagrados respectivamente nos artigos 3.º e 4.º do CPC, não apenas nas situações em que o juiz convida o autor para previamente à audiência prévia ou nesta, se pronunciar quanto às excepções deduzidas na contestação, mas também quando o autor toma a iniciativa de se pronunciar em requerimento autónomo, cujo desentranhamento não é determinado pelo juiz, situação em que, nova notificação para o mesmo efeito redundaria na prática de um acto inútil que o artigo 130.º da nossa lei processual proíbe.
Acresce que, a decisão proferida não poderia igualmente ser qualificada como decisão-surpresa quando nos autos consta proferido previamente àquela e notificado às partes, para além de outros tendentes a solicitar documentação e legislação pertinente, o despacho proferido em 21.05.2018, com o seguinte teor:
«Considerando que a presente acção deu entrada em 20.09.2016 em juízo e que, à luz da lei portuguesa, no caso, do disposto no art. 57º, nº 1 do CC, “As relações pessoais entre pais e filhos são reguladas pela lei nacional comum dos pais e, na falta desta, pela lei da sua residência habitual comum (…)”, importa, antes de mais, apurar qual a lei aplicável.
Assim, caso autor e réus sejam todos de nacionalidade ucraniana, tendo em conta o disposto no art. 57º, n.º 1 CC será aplicável ao caso a lei nacional comum dos pais, no caso a lei ucraniana.
Aliás, de acordo com o autor, a lei aplicável é a lei ucraniana (pois tanto ele como os réus nasceram na Ucrânia, sendo o país onde casou com a ré), à luz da qual a “afiliação paterna pode ser impugnada, mas após o nascimento da criança e a menos que a criança não tenha atingido a maioridade” - art. 136º, n.º 5 Código de Família da Ucrânia;
Todavia, os réus em sede de contestação excepcionam, desde logo, invocando a aquisição de nacionalidade portuguesa, o que, conforme decorre dos documentos juntos a fls. 153 e 154), verifica-se ter ocorrido. No entanto, importa atender a que os efeitos dessa aquisição apenas se produzem a partir da data do registo dos actos ou facto de que dependam - art.12º da Lei da Nacionalidade.
Assim, se à data em que a presente acção em entrada em juízo a ré já tinha nacionalidade portuguesa, será discutível a aplicação da lei portuguesa (por ser aqui que residem), à luz da qual terá de se analisar se caducou o direito de acção para instaurar a presente acção pelo decurso do prazo previsto no art. 1842º, al. a) do CC».
Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, afigura-se-nos manifesto que improcede a nulidade arguida, cabendo antes apreciar-se da existência ou não de erro de julgamento quanto à lei aplicável ao caso vertente.
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III.2.2. – Da lei nacional aplicável
A questão a decidir na presente apelação, conforme acima enunciado, depende da prévia determinação da lei nacional aplicável à situação em presença.
Efectivamente, como na lei portuguesa a impugnação da paternidade presumida está sujeita a um prazo de caducidade menor do que aquele que se encontra previsto na lei ucraniana, sendo aplicável a lei portuguesa, como entendeu a primeira instância, aquele prazo já havia decorrido à data da entrada em juízo da presente acção, enquanto se a lei aplicável for a ucraniana, o autor, marido da mãe à data em que a criança nasceu, ainda se encontrava em tempo para impugnar a paternidade presumida quanto ao réu DD, que, então, não havia atingido a maioridade.
Enquadrando o caso em apreço no disposto no artigo 57.º, n.º 1, do Código Civil[12], de acordo com cuja estatuição “As relações pessoais entre pais e filhos são reguladas pela lei nacional comum dos pais e, na falta desta, pela lei da sua residência habitual comum (…)”, a julgadora considerou que «se autor e ré tivessem nacionalidade ucraniana, tendo em conta o disposto no art. 57º, n.º 1 CC, seria aplicável a lei nacional comum de ambos (dos pais), no caso, a lei ucraniana.
Todavia, a ré adquiriu a nacionalidade portuguesa antes da entrada em juízo da presente acção (20.09.2016), mais concretamente, por decisão de 23.04.2015, estando tal decisão registada desde 01.07.2015.
Ou seja, antes da entrada da presente acção em tribunal a ré já tinha nacionalidade portuguesa, pois que, de acordo com o art. 12º da Lei da Nacionalidade (Lei 37/81, de 03.10) “Os efeitos das alterações de nacionalidade só se produzem a partir da data do registo dos actos ou factos de que dependem”, no caso sub judice, esse registo verifica-se desde 01.07.2015 relativamente à ré e desde 15.11.2017 relativamente ao réu (datas dos respectivos registos de aquisição da nacionalidade).
Assim, sem qualquer dúvida, à data em que a presente acção em entrada em juízo a ré já tinha nacionalidade portuguesa.
Resulta, assim, do exposto que autor e ré têm nacionalidades distintas, pelo que, atento o disposto no at. 57º, n.º 1 CC, será aplicável a lei portuguesa, por ser em território nacional que autor e réu residem».
Salvo o devido respeito, afigura-se-nos que a decisão recorrida enferma de dois pressupostos errados.
O primeiro, que não tem consequências na decisão na perspectiva que foi adoptada pelo tribunal a quo, decorre de se ter considerado que o autor e a ré têm nacionalidades distintas, quando os autos evidenciam que o autor BB é titular do cartão de cidadão n.º 30050587 6 ZY3, válido até 07.08.2019. Ora, dispõe o artigo 2.º da Lei n.º 7/2007, de 5 de Fevereiro que “o cartão de cidadão é um documento autêntico que contém os dados de cada cidadão relevantes para a sua identificação e inclui o número de identificação civil, o número de identificação fiscal, o número de utente dos serviços de saúde e o número de identificação da segurança social”. Portanto, considerando também que antes da entrada em vigor da Portaria n.º 287/2017, de 28.09, a data de validade do cartão de cidadão era de 5 anos, ao autor foi atribuída a nacionalidade portuguesa, pelo menos antes de 07.08.2014[13].
Deste modo, tendo ainda presente que dos factos emerge que a ré CC adquiriu a nacionalidade portuguesa por decisão de 23.04.2015, tendo a mesma sido registada a 01.07.2015, e que a acção, contra cuja decisão o Apelante se insurge, foi proposta no dia 20.09.2016, havia que concluir que à data da propositura da acção ambos os progenitores tinham a mesma nacionalidade, no caso, a nacionalidade portuguesa e, por isso, se afirmou que, na perspectiva adoptada pela decisão recorrida, a lei aplicável seria igualmente a portuguesa.
Se deste pressuposto não decorreriam quaisquer consequências para o resultado a que se chegou quanto à lei aplicável, o mesmo não pode dizer-se no que tange ao segundo pressuposto errado, qual seja o referente ao preceito legal que rege a situação em presença.
Na realidade, tanto na decisão recorrida como nas contra-alegações se entendeu que o caso se enquadrava no disposto no artigo 57.º, n.º 1, do CC, e não no artigo 56.º, n.º 1, do CC, como considera o Apelante, porquanto, aduz o Ministério Público, que do confronto entre aqueles artigos «emergem dois momentos distintos entre si.
O primeiro centra-se na constituição da filiação per se e da lei aplicável a esse facto, neste caso o nascimento do réu.
O segundo reporta-se à lei aplicável a partir desse momento, isto é, a partir do nascimento completo e com vida e após o estabelecimento da filiação.
Estabelecida que está que a aquisição de nacionalidade portuguesa por parte do autor e ré antes da propositura da ação há que estabelecer a norma que dirime o conflito aplicável ao caso em concreto.
O artigo 56.º do Código Civil, e como referido supra, refere-se à constituição da filiação, não sendo questão controvertida no caso sub judice.
O apelante não pode querer fazer uso de dois regimes jurídicos, teleologicamente distantes entre si, e aproveitar o melhor dos dois.
Nestes termos, e porque esta matéria é regulada em primeiro lugar pela lei nacional comum a ambos os pais, não se poderá deixar de aplicar a lei portuguesa com as inerentes consequências que daí advêm, nomeadamente a procedência da exceção de caducidade prevista no artigo 1842.º, n.º 1, alínea a) do Código Civil».
Transcrevemos o aludido passo das contra-alegações porque nelas se encontra vertido o excerto do equívoco no raciocínio que terá inquinado a definição do estatuto pessoal aplicável, e que se revela na ideia de que a constituição da relação de filiação não está controvertida, quando é precisamente esse o cerne do caso em presença, como mais aprofundadamente referiremos, não sem antes voltarmos um pouco atrás na busca da que se nos afigura ser a adequada regulação da situação em apreço.
A distinção referida existe efectivamente mas o legislador foi claro: uma coisa é a constituição da relação de filiação, regida pelo artigo 56.º do CC, e outra diferente respeita ao conteúdo daquela relação, que se mostra regulado pelo artigo 57.º do CC, que rege sobre as relações entre pais e filhos.
Vejamos, então, com mais detalhe.
A situação de vida que importa à decisão sub judice pode resumir-se do seguinte modo:
O autor BB e a Ré CC nasceram ambos no ano de 1978, tendo casado no dia 21.09.1996, e levado ao registo o nascimento, em 16.01.2000, do Réu DD, que consta registado como sendo filho do casal, tudo tendo ocorrido na Ucrânia.
Em data não concretamente apurada mas seguramente situada antes da regulação do exercício das responsabilidades parentais da criança DD que teve lugar no processo acima identificado, o qual deu entrada em juízo no ano de 2007, este casal e o filho, todos com a nacionalidade ucraniana, vieram residir para Portugal, país onde todos permanecem a residir.
Pelo menos desde Julho de 2008, na sequência de um estudo de polimorfismos de ADN, o Autor teve conhecimento de que a probabilidade da sua paternidade relativamente ao Réu é praticamente nula, e em 15 de Janeiro de 2010 foi decretado o divórcio entre autor e ré.
Entretanto, todos adquiriram a nacionalidade portuguesa: o Autor e a Ré antes da entrada em juízo da presente acção, em 20.09.2016, e o Réu DD na pendência desta, ou seja, são actualmente todos cidadãos portugueses.
Portanto, a questão que se coloca é a de saber se a mudança de residência e a aquisição de nacionalidade portuguesa, com a decorrente sucessão do estatuto pessoal, tem ou não relevância na constituição da filiação, importando para o efeito determo-nos nas normas de conflito que regem sobre o âmbito e determinação da lei pessoal.
Diz-nos o artigo 25.º do Código Civil, que «o estado dos indivíduos, a capacidade das pessoas, as relações de família e as sucessões por morte são regulados pela lei pessoal dos respectivos sujeitos, salvas as restrições estabelecidas na presente secção».
Conforme refere FLORBELA DE ALMEIDA PIRES[14] «a lei pessoal, referida no artigo 25.º, mais não é do que a lei que respeita à pessoa entendendo-se que dela fazem parte as matérias ou questões que ali são referidas. Por essa razão a lei pessoal é correntemente identificada com o “estatuto pessoal”. A lei que vier a considerar-se aplicável às questões previstas no artigo 25.º (mas não apenas a estas) conferirá à pessoa o essencial do seu estatuto, acompanhando-a e não devendo, em princípio, modificar-se com a deslocação do sujeito para outras ordens jurídicas. Com efeito, mais do que atender às pretensões de regulação no âmbito de um determinado território, trata-se aqui de regular os aspectos atinentes ao sujeito, razão pela qual o elemento de conexão relevante na matéria há-de procurar-se de entre os que exprimem um vínculo de ligação permanente ou de pertença da pessoa a uma ordem jurídica».
Porém, adverte a autora, «no artigo 25.º esclarece-se, com efeitos gerais, quais as matérias que compõem o estatuto da pessoa ou seja, as que fazem parte da lei pessoal, não se definindo qual a lei a aplicar. Do exposto resultam duas conclusões: a primeira é a de que o artigo 25.º não é uma norma de conflitos completa, pois não indica qual a ordem jurídica competente através da eleição de um elemento de conexão, a segunda é a de que a lei pessoal, ou o estatuto pessoal, não pode definir-se pela conexão, mas sim pelo conjunto de matérias que essa mesma noção engloba». Assim, prossegue, «a aplicação do artigo 25.º deve fazer-se em coordenação com uma das disposições que concretamente determinam a lei aplicável às pessoas singulares (…). O n.º 1 do artigo 31.º que manda aplicar a lei da nacionalidade do indivíduo será, na maior parte dos casos, a disposição complementar das regras que se referem à lei pessoal».
Na espécie, para além dos já referidos preceitos, importa conjugá-los com o disposto nos artigos cuja interpretação constitui o cerne do litígio, começando pelo artigo 57.º, n.º 1, por ter sido, como vimos, o considerado aplicável na decisão recorrida, no pressuposto de que, estabelecida a filiação, a impugnação da paternidade é um problema das relações entre pais e filhos.
Na realidade, o preceito em causa regula as relações decorrentes da filiação que se encontra anteriormente estabelecida, nos termos do artigo 56.º. Por isso, não sofre dúvidas que o artigo 57.º se aplica ao conteúdo propriamente dito da relação jurídica de filiação que integra o âmbito de competência da lei reguladora das relações entre pais e filhos. «Depois de definir o direito material aplicável na regulamentação do estabelecimento e constituição da filiação natural, o legislador trata da mesma problemática na óptica da sua substância, ou seja, da determinação da lei material reguladora das relações entre pais e filhos (direitos e deveres que integram a relação de filiação propriamente dita)»[15].
Conforme ensina JOÃO BAPTISTA MACHADO[16], «esse conteúdo é constituído por um complexo de poderes e deveres – aqueles poderes e deveres que substancialmente decorrem do instituto do poder paternal. Compete, portanto, à lei reguladora das relações entre pais e filhos decidir desde logo sobre a atribuição do pátrio poder, a sua titularidade e exercício, sobre a exclusão ou inibição do poder paternal e sobre a sua extinção, assim como sobre os poderes e deveres que dele derivam. A essa lei serão, pois, deferidas as questões relativas à regência da pessoa do filho e à administração dos seus bens, assim como as respeitantes à representação do mesmo filho e ao usufruto legal dos pais sobre os bens dele».
Ora, a natureza da acção em presença não é irrelevante para a compreensão do seu correcto enquadramento no âmbito do artigo 56.º e não a respeito do conteúdo da relação de filiação. Como já tivemos oportunidade de assinalar a respeito da decisão da invocada nulidade, a acção de impugnação de paternidade, não é uma acção de (simples) apreciação negativa, mas uma acção constitutiva, através da qual se pretende introduzir uma mudança na ordem jurídica existente. Naturalmente que essa mudança não é no conteúdo da relação de filiação mas na sua própria existência, respeitando assim à sua constituição porque é a esse momento que os efeitos da pretendida alteração se vão reportar.
Este ilustre civilista faz notar a distinção esclarecendo que «ao passo que o estatuto das relações entre pais e filhos a que se refere o art. 57.º é determinado através duma conexão móvel, visto estar agora em causa o conteúdo duma situação jurídica pessoal e esse conteúdo dever ser regido pela lei pessoa actual, isto é, pela lei a que as pessoas se acham ligadas no momento em que têm de cumprir os deveres ou exercer os direitos decorrentes da situação jurídica pessoal de que são sujeito (…) a lei aplicável à constituição da filiação (art. 56.º) é determinada mediante uma conexão fixa, visto tratar-se aí da constituição duma relação jurídica».
Do excerto transcrito das contra-alegações do Ministério Público decorre o entendimento de que o artigo 56.º se aplica apenas à constituição da relação de filiação, conforme uma leitura apenas da sua letra pode inculcar. Portanto, como a impugnação da paternidade, a proceder, implicaria não a constituição mas a extinção da relação de filiação, não se aplicaria o disposto neste preceito. Se assim fosse, então a nossa questão não encontrava nele a respectiva solução.
Mas não é.
Por isso, importa atendermos ao que dispõe o artigo 56.º do CC a respeito da constituição da filiação.
Estabelece o n.º 1 do preceito que «à constituição da filiação é aplicável a lei pessoal do progenitor à data do estabelecimento da relação». Trata-se da regra geral, que de imediato é precisada pela regra especial relativa à constituição da filiação relativamente ao pai, nos casos - como o presente - em que se esteja estarmos perante filho de mulher casada. Nessa circunstância, a constituição da filiação é regulada pela lei nacional comum da mãe e do marido; havendo na falta desta lei pessoal comum do casal, uma cedência à lei da residência habitual comum dos cônjuges; e, só se esta conexão comum também faltar, se determinará a lei aplicável pela lei pessoal do filho.
Diz-nos ainda o Ilustre Professor que «é muito vasto o âmbito de matérias da competência da lei a determinar nos termos do art. 56.º. Cabe-lhe desde logo regular as modalidades da constituição da relação (por declaração, por reconhecimento, etc.), bem como os pressupostos de reconhecimento judicial e a aptidão para perfilhar (capacidade)….
Mas também lhe cabe regular os meios de prova e de impugnação da paternidade e da maternidade. (…) Pensamos que quanto às presunções legais, quanto à admissibilidade ou não de certos meios de prova e quanto ao valor probatório destes, deverá entender-se que são questões de fundo (decisoriae litis) da competência da lei designada através do artigo 56.º. Cabe igualmente a esta lei fixar os prazos em que devem ser instauradas a acção de reconhecimento judicial ou a investigação oficiosa, bem como determinar a legitimidade activa e passiva para as mesmas acções»[17].
Mas se dúvidas ainda existissem de que a lei aplicável à constituição da filiação é também aplicável à impugnação da paternidade, podemos igualmente louvar-nos no estudo de NUNO ASCENSÃO SILVA[18], que logo na introdução, quando explica que o trabalho visa abordar o problema do estabelecimento ou constituição da filiação no direito internacional privado português, em nota de rodapé esclarece que o conceito de “estabelecimento de filiação” não é unívoco, explicando seguidamente que pode significar a prova da filiação de uma criança em relação a certa pessoa «ou, então, significa a mudança de estado, como é o caso da impugnação da paternidade (artigo 1832.º e 1839.º do CC)». E, mais adiante, à pergunta que formula sobre «quais são então as normas compreendidas na categoria “estabelecimento da filiação”, responde «é também a lei designada nos termos do artigo 56.º do CC que regerá os meios de prova e o seu valor, as presunções, a impugnação da paternidade, os prazos das acções e a legitimidade. Apesar de aparentemente lhe poder ser dada natureza processual, e como tal, aplicável seria a lei do foro enquanto lex processualis, a verdade é que contendem com o fundo do direito, devendo, por isso, “pelo menos para o efeito de conflitos de leis no tempo e no espaço, considerar-se como pertinentes ao direito substantivo”».
Estabelecido que a lei pessoal aplicável à constituição da filiação nos termos do artigo 56.º do CC, é também a lei que rege a impugnação da paternidade e o prazo para a sua interposição, uma questão final se coloca, e que é a de saber qual é o momento relevante para a determinar, se o do nascimento do filho se o da propositura da acção em que se pretende extinguir a filiação constituída, já que no caso, a lei pessoal é a mesma para ambos os progenitores, consoante a data: aquando do nascimento tinham ambos a nacionalidade ucraniana e aquando da propositura da acção, ambos já tinham adquirido a nacionalidade portuguesa.
Do que já referimos, conjugado com o preceituado no artigo 56.º, n.º 3, do CC, obtemos a resposta, porque este expressamente refere que para os efeitos do número anterior, ou seja, para a constituição da filiação, com a abrangência já anteriormente aludida, atender-se-á ao momento do nascimento do filho, o que evidencia a citada referência de JOÃO BAPTISTA MACHADO à aplicação de uma conexão fixa.
Estamos, pois, em condições de concluir, diversamente do entendimento expresso na decisão recorrida, que a razão está do lado do Apelante, sendo de aplicar ao caso a lei ucraniana, que era a lei pessoal aplicável ao tempo de constituição da filiação e, por isso, é a aplicável à pretensão relativa à respectiva extinção por via da procedência da acção de impugnação da paternidade.
Assim sendo, em face do disposto no artigo 136.º do Código da Família da Ucrânia, de acordo com cuja estatuição «a filiação paterna pode ser impugnada a todo o tempo até que a criança atinja a maioridade», e tendo a acção de impugnação da paternidade sido proposta antes daquele momento temporal, a decretada excepção de caducidade do direito do autor, não se verifica, impondo-se consequentemente revogar a sentença recorrida, e determinar o prosseguimento dos autos, posto que, o ponto 8 da matéria considerada assente não é um facto mas um meio de prova do facto, e a admissão pelos réus do resultado do exame de ADN, recai sobre factos relativos a direitos indisponíveis, não admitindo confissão, conforme decorre dos preceituado nos artigos 354.º, alínea b) e 574.º, n.º 2, do CPC.
Ex abundantia, dir-se-á ainda que os princípios da ordem pública não obstam ao resultado decorrente da possibilidade de prosseguimento da acção em face da lei nacional aplicável, e do facto de já não ser possível fazê-lo por aplicação do prazo de caducidade de três anos que a lei portuguesa estabelece, isto porque, conforme é sabido, o que tem sido objecto de acesa controvérsia é precisamente a existência de prazos de caducidade para a determinação da verdade biológica, e não a situação oposta que se verifica no caso em apreço.
Procede, pois, a apelação.
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III.2.3. - Síntese conclusiva:
I - A acção de impugnação de paternidade, não é uma acção de (simples) apreciação negativa, mas uma acção constitutiva, através da qual se pretende introduzir uma mudança na ordem jurídica existente.
II - Significa isto que um requerimento intitulado “Réplica” apresentado em resposta a excepção de caducidade invocada na contestação, à face da lei processual civil vigente, não pode ter outro fundamento legal que não o exercício do contraditório, já que a réplica passou a ser admissível apenas nas situações previstas no artigo 584.º do CPC, deixando de ser configurada como articulado de resposta às excepções deduzidas, cujo lugar próprio o legislador da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, entendeu incluir na audiência prévia, na qual o juiz faculta às partes a possibilidade da discussão de facto e de direito, quando pretenda apreciar excepções dilatórias ou decidir no todo ou em parte do mérito da causa (artigo 591.º, n.º 1, alínea b), do CPC).
III - Devem considerar-se cumpridos os princípios do contraditório e da igualdade das partes, consagrados respectivamente nos artigos 3.º e 4.º do CPC, não apenas nas situações em que o juiz convida o autor para previamente à audiência prévia ou nesta, se pronunciar quanto às excepções deduzidas na contestação, mas também quando o autor toma a iniciativa de se pronunciar em requerimento autónomo, cujo desentranhamento não é determinado pelo juiz, situação em que, nova notificação para o mesmo efeito redundaria na prática de um acto inútil que o artigo 130.º da nossa lei processual proíbe.
IV - A lei pessoal aplicável à constituição da filiação nos termos do artigo 56.º do CC, é também a lei que rege a impugnação da paternidade e o prazo para a sua interposição, sendo o momento relevante para a determinar, o do nascimento do filho e não o da propositura da acção em que se pretende extinguir a filiação constituída, por estarmos em presença de uma conexão fixa.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em julgar procedente a presente Apelação, revogando a sentença recorrida e determinando o prosseguimento dos autos.
Sem tributação, atenta a isenção legalmente atribuída ao Ministério Público.
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Évora, 28 de Fevereiro de 2019
Albertina Pedroso [19]
Tomé Ramião
Francisco Xavier

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[1] Juízo de Família e Menores de Portimão, Juiz 3.
[2] Relatora: Albertina Pedroso;
1.º Adjunto: Tomé Ramião;
2.º Adjunto: Francisco Xavier.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC.
[4] Que ora se organizam pela sua ordem lógica e cronológica, aditando-se, ao abrigo do disposto nos artigos 607.º, n.º 4, e 663.º, n.º 2, do CPC, os factos relativos à identificação do autor na acção e à regulação do exercício das responsabilidades parentais.
[5] No processo n.º 1261/15.6T8PTM.E1, relatado pela ora Relatora e tendo como 1.º adjunto o ora 2.º adjunto, e reiterámos, designadamente nos acórdãos desta conferência, proferidos em 27.04.2017, no processo n.º 1416/15.3T8BJA.E1 e 22.11.2018, no processo n.º 82/16.3T8OLH.E1.
[6] Cfr. PAULO RAMOS DE FARIA e ANA LUÍSA LOUREIRO, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, Almedina 2014, pág. 31.
[7] Cfr. Ac. TC n.º 499/98, citado por LOPES DO REGO, in Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2ª ed., pág. 14.
[8] Em face do disposto no artigo 44.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ), em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é actualmente de 30 000,00€.
[9] Cfr. posição expressa por MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA neste sentido, no blog do IPPC. «Tal solução foi reforçada pelo mesmo processualista, em comentário ao Ac. da Rel. do Porto, de 02.03.15 (www.dgsi.pt), concluindo que “o proferimento de uma decisão-surpresa é um vício que afecta esta decisão (e não um vício de procedimento e, portanto, no sentido mais comum da expressão, uma nulidade processual)”. Com efeito, como aí se refere, até esse momento, “não há nenhum vício processual contra o qual a parte possa reagir”, e que “o vício que afecta uma decisão-surpresa é um vício que respeita ao conteúdo da decisão proferida; a decisão só é surpreendente porque se pronuncia sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes sobre a matéria” (em blogippc.blogspot.pt, em Post datado de 23.03.2015).
[10] Cfr. citando outro comentário do Ilustre processualista, inter alia o Acórdão do STJ, de 23-06-2016, proferido no processo n.º 1937/15.8T8BCL.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[11] Cfr. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, no blog do IPPC, Post de 17.03.2014, intitulado “Acções de apreciação negativa: o que são e o que não podem ser”.
[12] Doravante abreviadamente designado CC.
[13] Considerando que a concreta data da aquisição da nacionalidade portuguesa por banda do Autor não releva para a solutio do caso em apreço, não vimos necessidade de determinar a junção aos autos do assento de nascimento do autor, com tal averbamento.
[14] In Conflitos de Leis, Comentário aos artigos14.º a 65.º do Código Civil, Coimbra Editora, págs. 52 e 53.
[15] Nas palavras de JOSÉ JOÃO GONÇALVES DE PROENÇA, In Direito Internacional Privado (Parte Especial), Edições da Universidade Lusíada, 1999, pág. 73.
[16] In Lições de Direito Internacional Privado, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 1988, págs. 430 a 432. No mesmo sentido, LUIS DE LIMA PINHEIRO, in Direito Internacional Privado – Parte Especial (Direito de Conflitos), Almedina, Coimbra, 1999, pág. 275, sintetiza: «o domínio de aplicação da lei reguladora das relações entre pais e filhos abrange, no essencial, o poder paternal».
[17] No mesmo sentido, cfr. LUÍS DE LIMA PINHEIRO, ob. cit., pág. 274; JOSÉ JOÃO GONÇALVES DE PROENÇA, ob. cit. pág. 72, e ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, Direito Internacional Privado, Introdução, I Volume, AAFDL, Lisboa 2001, pág. 113.
[18] O ESTABELECIMENTO DA FILIAÇÃO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO PORTUGUÊS, in Boletim da Faculdade de Direito, vol. 69, 1993, págs. 647, 695 e 696, citando BAPTISTA MACHADO na parte assinalada.
[19] Texto elaborado e revisto pela Relatora.