Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
187/13.2TBMRA.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
TRACTOR AGRÍCOLA
Data do Acordão: 01/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. Um tractor agrícola, por ser necessária a obtenção de uma licença habilitadora da sua condução, constitui veículo terrestre a motor abrangido pela obrigação de segurar prevista no artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º 291/2007.
2. Ocorrendo o acidente quando o tractor não desempenhava exclusivamente a sua função agrícola, sendo também utilizado na sua função acessória de transporte rodoviário, não se mostra excluída a responsabilidade da Seguradora nos termos do artigo 4.º, n.º 4, do mesmo diploma.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo Central Cível e Criminal de Beja, em acções apensas propostas por (…) e Unidade Local de Saúde do (…), E.P.E., contra Seguradoras (…), S.A., foi proferida sentença condenando a Ré a pagar:
- ao A. (…) a quantia de € 25.029,55, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a citação;
- à A. Unidade Local de Saúde a quantia de € 7.912,91, acrescida de juros contados pela mesma forma.

Da sentença vem interposto recurso pela Ré, a qual conclui:
1. O presente recurso visa submeter à apreciação do Tribunal Superior tanto a matéria de facto, como a matéria de direito, considerada pela Douta Sentença de que se recorre.
2. Entende a ora Recorrente que a MMº Juiz do Tribunal “a quo” apreciou de forma incorrecta a prova produzida.
3. Do depoimento das testemunhas (…) e (…) ficou devidamente demonstrado que quando o atropelamento ocorreu o Recorrido encontrava-se deitado, a ocupar parcialmente o caminho vicinal.
4. O facto provado 21 deveria ter a seguinte redacção “Nesse momento o autor encontrava-se deitado debaixo de uma oliveira existente no local, ocupando parcialmente o caminho vicinal por onde circulava o tractor.”
5. Do depoimento das testemunhas (…) e (…), resultou claro que ficou devidamente demonstrado que, atento o sentido de marcha do tractor, entre este e o Recorrido (…) encontrava-se parado um veículo, pelo que a Recorrente considera que ao elenco dos factos provados, deve ser adicionado um facto provado nº 23 com a seguinte redacção “Atento o sentido de marcha do tractor, entre este e o local onde o Recorrido estava deitado, encontrava-se imobilizada uma carrinha.”
6. Através da apólice de seguro nº (…) a Recorrente assumiu tão só e apenas a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação decorrentes da circulação do veículo tractor agrícola, estando excluído do âmbito da apólice supra referida os riscos inerentes às funções agrícolas do referido tractor.
7. Dos factos provados resulta, sem margem para dúvidas que o sinistro em causa nos presentes autos ocorreu quando o tractor encontrava-se em laboração.
8. O sinistro encontra-se excluído do âmbito das garantias do contrato de seguro celebrado, e como tal não pode a Recorrente ser condenada em nenhum dos pedidos formulados por ambos os Recorridos.
9. Se analisarmos o comportamento do Recorrido (…) verificamos que um homem médico, colocado na exacta posição em que se encontrava o Recorrido, nunca se deitaria num terreno agrícola, ainda para mais a ocupar parcialmente o caminho vicinal, ainda para cima num local em que a sua presença se tornava absolutamente imperceptível para qualquer condutor que circulasse no mesmo sentido que o tractor.
10. No que concerne a conduta da testemunha (…), condutor do tractor, importa referir que não ficou provado qualquer facto que permita concluir que este actuou com culpa. Aliás, ficaram provados factos que permitem afastar a culpa deste na produção do sinistro.
11. Assim sendo, é patente que um homem médio colocado na exacta posição do condutor do tractor actuaria exactamente da mesma forma que este.
12. A culpa pela ocorrência do sinistro é claramente do Recorrido (…), não tendo o condutor do tractor qualquer culpa pela ocorrência do mesmo.
13. Cumpre também referir que, mesmo que se considere que a resposta dada à matéria de facto não merece qualquer reparo, o que apenas se admite por mera hipótese de raciocínio, sempre se dirá que, mesmo nesse caso, a responsabilidade pela ocorrência do presente sinistro continua a caber em exclusivo ao Recorrido (…).
14. Mesmo que se considere que existe uma divisão de culpas pela ocorrência do sinistro, como decidido pela Mmª Juiz do douto Tribunal a quo, o que apenas se admite por mera hipótese de raciocínio, sempre se dirá que, esta divisão de culpas afasta a responsabilidade objectiva do condutor do tractor.
15. Não tem aplicação nos presentes autos a doutrina defendida pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão de 04/10/2007.
16. Seguindo o raciocínio elaborado pela Mmª Juiz, o qual apenas se aceita por mera hipótese de raciocínio, sempre se dirá que existindo uma concorrência de culpas, o que apenas se aceita por mera hipótese de raciocínio, resulta claro que a conduta do Recorrido (…) foi mais preponderante para a eclosão do sinistro que a conduta do condutor do tractor, pelo que a culpa pelo sinistro deve reflectir esse facto, devendo ser fixada, numa proporção superior para o Recorrido (…) do que para o condutor do tractor.
17. A função dos juros moratórios é essencialmente indemnizatória do dano do lesado decorrente do atraso no cumprimento da obrigação pecuniária, pelo que importa determinar qual o momento considerado pelo julgador para fixar o quantum indemnizatório.
18. Entendeu-se que, quando, fazendo apelo ao critério actualizador prescrito no artigo 566º, nº 2, do Código Civil, o julgador fixar uma indemnização monetária aferida pelo valor que a moeda tem à data da decisão, não pode mandar acrescer a tal montante juros de mora desde a citação, por força do disposto na 2ª parte do nº 3 do artigo 805º, referido ao nº 1 do artigo 806º, ambos do mesmo Código.
19. Da interpretação do supra referido Acórdão Uniformizador de Jurisprudência resulta que não é necessário que a decisão proferida declare expressamente que os valores conferidos estão actualizados, pois é evidente que o teriam de estar, e nem de outro modo poderia ser, segundo o disposto no citado artigo 566º, nº 2, do Código Civil.
20. Assim sendo, considera a Recorrente, que nada sendo dito, relativamente à actualização ou à não actualização dos montantes arbitrados tem que se considerar que os montantes arbitrados estão actualizados à data em que é proferida a sentença e como tal os juros de mora têm que ser contabilizados desde a data da sentença e não desde a data da citação.
21. O Recorrido (…) não foi submetido a nenhuma perícia médica, pelo que os factos a considerar para a fixação do montante da indemnização a título de danos morais são apenas os elencados nos factos provados nºs 6 a 15.
22. Atendendo às circunstâncias do caso concreto e aos valores que vêm sendo fixados pela nossa jurisprudência, é impreterível concluir pela irrazoabilidade do montante fixado pela Mmª Juiz do douto Tribunal a quo.

O A. (…) respondeu no sentido da manutenção do decidido.
Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.

Da impugnação da matéria de facto:
Garantindo o sistema processual civil um duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, como previsto no art. 640.º do Código de Processo Civil, continua a vigorar o princípio da livre apreciação da prova por parte do juiz – artigo 607.º, n.º 5, do mesmo diploma, ao dispor que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.
Deste modo, a reapreciação da prova passa pela averiguação do modo de formação dessa “prudente convicção”, devendo aferir-se da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova[1].
Por outro lado, o art. 662.º do Código de Processo Civil permite à Relação alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Trata-se de uma evolução em relação ao art. 712.º da anterior lei processual civil, consagrando uma efectiva autonomia decisória dos Tribunais da Relação na reapreciação da matéria de facto, competindo-lhes formar a sua própria convicção, podendo, ainda, renovar os meios de prova e mesmo produzir novos meios de prova, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada em primeira instância.
Estando reunidos os critérios exigidos pelo art. 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, vejamos os concretos pontos de facto impugnados no recurso.
No que concerne ao ponto 21 da matéria provada, a primeira instância considerou demonstrado que “o A. encontrava-se deitado debaixo de uma oliveira existente no local.” Na sua impugnação, a Ré pretende que se considere provado, ainda, que o A. ocupava parcialmente o caminho vicinal por onde circulava o tractor, e de facto o seu condutor – a testemunha (…) – confirmou que já viu a vítima debaixo daquela máquina, com a perna esquerda colocada parcialmente no caminho por onde circulava. Ponderando que todas as testemunhas inquiridas a esse respeito concordaram que o acidente ocorreu quando o tractor circulava no caminho, em termos de lógica pode afirmar-se que parte do corpo da vítima deveria estar naquele local para ter ocorrido o atropelamento, pelo que se dará provimento a esta parte da impugnação, embora especificando a parte do corpo da vítima que ocupava a via.
Pretende a Ré, ainda, que se considere provado o estacionamento de uma carrinha entre o tractor e o local onde o A. estava deitado. Tal estacionamento foi confirmado pelo próprio A. e pelas testemunhas (…) e (…) – tratava-se da carrinha onde o A. se tinha feito transportar e este, depois de ter falado com a última destas testemunhas, tinha ido descansar para debaixo da oliveira, a alguns metros daquele veículo (cerca de 12 a 13 metros, como referiu a testemunha …). Será, pois, adicionado um ponto à matéria de facto com o seguinte teor: “Cerca de 12/13 metros antes do local onde o A. se encontrava deitado, atento o sentido de marcha do tractor, encontrava-se imobilizada uma carrinha.”
Em resumo, na procedência da impugnação da matéria de facto:
· altera-se o ponto 21 da matéria de facto provada, que passará a ter a seguinte redacção: “O A. encontrava-se deitado debaixo de uma oliveira existente no local, com parte da perna esquerda ocupando o caminho vicinal por onde circulava o tractor”;
· adiciona-se um ponto à matéria de facto (que será o n.º 22, passando o relativo às despesas da Unidade Local de Saúde para o n.º 23) com o seguinte teor: “Cerca de 12/13 metros antes do local onde o A. se encontrava deitado, atento o sentido de marcha do tractor, encontrava-se imobilizada uma carrinha.”

A matéria de facto a ponderar fica assim estabelecida:
1) No dia 13.03.2012, cerca das 14h00, ocorreu um acidente de viação no caminho denominado Estrada da (…), que entronca na EN 386, que liga Moura à Póvoa de São Miguel.
2) (…) é proprietário do tractor com a matrícula 01-(…)-32 e conduzia-o no referido local, com uma pá na dianteira, arrancando silvas e mato.
3) A visibilidade do condutor do tractor era reduzida, considerando que a pá que tinha à sua frente o impedia de ver o caminho, para além de cinquenta metros.
4) Quando estava a dar a volta ao tractor passou com o rodado sobre o corpo do A., com incidência sobre a perna esquerda e zona da bacia e lombar.
5) O condutor do tractor sabia que o A. se encontrava perto do local em que aquele estava.
6) Como consequência do acidente o A. sofreu fractura da tíbia, peróneo esquerdo, ossos da bacia, ramos púbico, asa esquerda do saco, apósife transversa da vértebra L5 e acetábulo esquerdo.
7) O A. foi transportado para o Centro de Saúde de Moura e daí para o Hospital José Joaquim Fernandes, em Beja.
8) Aí foi submetido a redução cruenta e osteossíntese, com cavilha T2 330.
9) Em 19.07.2012 o autor foi operado no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, devido a fractura da uretra, tecido membranoso/bulbar.
10) Foi efectuada uma uretroplastia, com anastomose primária, tendo o A. ficado com cateter púbico e uretral no pós-operatório.
11) Ficou algaliado e esteve em repouso absoluto durante quatro semanas, tendo retirado os agrafos em 30.07.2012.
12) Em 03.12.2012 voltou a ser operado à perna esquerda, tendo sido efectuada a remoção dos parafusos distais e osteotomia do peróneo.
13) O A. realizou diversos tratamentos médicos.
14) Sofreu dores físicas e ficou a claudicar da perna esquerda.
15) O A. sente-se angustiado, diminuído e constrangido.
16) Em consequência do acidente o A. despendeu a quantia de € 29,55 em deslocações.
17) Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º (…) a Ré assumiu a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação decorrentes da circulação do tractor acima identificado.
18) O acidente ocorreu num caminho vicinal, ladeado por oliveiras, situado num terreno agrícola, num local que dista cerca de 500 metros da Estrada Nacional.
19) No local não existe a demarcação de qualquer via destinada à circulação rodoviária.
20) No momento em que ocorreu o acidente o condutor do tractor encontrava-se a realizar trabalhos agrícolas.
21) O A. encontrava-se deitado debaixo de uma oliveira existente no local, com parte da perna esquerda ocupando o caminho vicinal por onde circulava o tractor.
22) Cerca de 12/13 metros antes do local onde o A. se encontrava deitado, atento o sentido de marcha do tractor, encontrava-se imobilizada uma carrinha.
23) Em consequência do acidente acima descrito, a Unidade Local de Saúde do (…), E.P.E., prestou ao A. os cuidados de saúde indicados na factura n.º (…), no valor de € 7.912,91.

APLICANDO O DIREITO
Da qualificação do sinistro como acidente automóvel
Argumenta a Ré que, tendo o sinistro ocorrido num caminho vicinal, com um tractor que realizava trabalhos agrícolas de arranque de silvas e matos, deve considerar-se que o mesmo está excluído da obrigação de seguro, nos termos do art. 4.º, n.º 4, do DL 291/2007, que aprovou o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
O Tribunal de Justiça da União Europeia vem produzindo jurisprudência a propósito de acidentes ocorridos com tractores agrícolas, embora ainda no âmbito da já revogada Directiva 72/166/CEE do Conselho, tendo decidido o seguinte:
- Acórdão VNUK, de 04.09.2014, Proc. C-162/13: “O art. 3.º n.º 1 da Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «circulação de veículos» nele previsto abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade com a função habitual desse veículo. Pode assim ser abrangida pelo referido conceito a manobra de um tractor com reboque no terreiro de uma quinta para colocar esse reboque num celeiro, como aconteceu no processo principal, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.”
- Acórdão Rodrigues de Andrade, de 28.11.2017, Proc. C-514/16, a reenvio prejudicial do Tribunal da Relação de Guimarães: “O art. 3.º n.º 1 da Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, deve ser interpretado no sentido de que não está abrangida pelo conceito de «circulação de veículos», referido nesta disposição, uma situação em que um tractor agrícola esteve envolvido num acidente quando a sua função principal, no momento em que este acidente ocorreu, não consistia em servir de meio de transporte, mas em gerar, como máquina de trabalho, a força motriz necessária para accionar a bomba de um pulverizador de herbicida.”
Actualmente, a matéria relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis encontra-se regulada pela Directiva n.º 2009/103/CE, de 16 de Setembro, continuando o respectivo art. 3.º, § 1.º, a impor aos Estados-Membros a adopção de todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro.
Em cumprimento desta Directiva, o art. 4.º, n.º 1, do DL 291/2007 impõe a obrigação de seguro a “toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal”, ressalvando o n.º 4 que tal obrigação “não se aplica às situações em que os veículos são utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais.”
Em consequência, todo o veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico deve possuir um seguro, apenas se ressalvando os veículos utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais. Tal implica que os veículos com utilização agrícola ou industrial, mas que também têm funções de circulação terrestre, para cuja condução é necessário um título específico, devem estar sujeitos à obrigação de seguro.
O art. 108.º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada estabelece uma distinção entre tractor agrícola ou florestal e máquina agrícola ou florestal, caracterizando o primeiro como “o veículo com motor de propulsão, de dois ou mais eixos, cuja função principal reside na potência de tracção, especialmente concebido para ser utilizado com reboques, alfaias ou outras máquinas destinadas a utilização agrícola ou florestal”, e o segundo como “o veículo com motor de propulsão, de dois ou mais eixos, destinado exclusivamente à execução de trabalhos agrícolas ou florestais, que só excepcionalmente transita na via pública.”
Por outro lado, o art. 124.º, n.º 3, do Código da Estrada, na versão em vigor ao tempo dos factos – a anterior às alterações introduzidas naquele diploma pelo DL 138/2012, de 5 de Julho – exigia a obtenção de licença para a condução de tractores agrícolas e florestais, imposição que actualmente continua a ser imposta pelo art. 7.º, n.º 1, do Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir, aprovado pelo referido DL 138/2012.
Pode-se, pois, concluir que o tractor agrícola que interveio nos autos, por ser necessária a obtenção de uma licença habilitadora da sua condução, constitui veículo terrestre a motor abrangido pela obrigação de segurar prevista no art. 4.º, n.º 1, do DL 291/2007, e terá sido nessa perspectiva que a Ré aceitou celebrar o contrato de seguro identificado nos autos, assumindo a responsabilidade emergente de acidentes de viação decorrentes da circulação do mencionado veículo.
Argumenta, porém, a Ré que no momento do acidente o tractor agrícola não era utilizado na sua função de transporte rodoviário ou de tracção por estrada, mas antes numa utilização meramente agrícola, de arranque de matos e silvas.
Se é certo que se demonstrou que essa actividade estava a ser desenvolvida pelo proprietário e condutor do veículo, também é bom de ver que tal arranque de matos e silvas não decorria no caminho vicinal onde ocorreu o acidente. Como resulta dos factos provados, o atropelamento ocorreu no caminho vicinal denominado Estrada da (…), ladeado por oliveiras e por onde circulavam outros veículos, entre eles a carrinha referida no ponto 22 do elenco fáctico – logo, a hipótese dos trabalhos de arranque de silvas e matos decorrerem em pleno caminho vicinal deve ser afastada.
Pode-se, pois, concluir que no exacto momento do atropelamento, o tractor não desempenhava exclusivamente a sua função agrícola, sendo também utilizado na sua função acessória de transporte rodoviário, pelo que, ao contrário do que sustenta a Ré, a sua responsabilidade não está excluída nos termos do art. 4.º, n.º 4, do DL 291/2007.
De resto, a jurisprudência vem reconhecendo que estão abarcados pelo regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel os acidentes em que intervêm tractores ou mesmo máquinas agrícolas ou industriais, determinando riscos causalmente ligados ao funcionamento do veículo enquanto tal – cfr. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2015, da Relação de Coimbra de 10.03.2015 (correctamente citado na decisão recorrida) e da Relação de Lisboa de 02.06.2016, todos publicados na base de dados da DGSI.
Improcede, pois, esta linha de impugnação da Ré.

Da responsabilidade pela produção do acidente
Entende a Ré que a culpa do atropelamento se ficou a dever exclusivamente ao A., por se ter deitado a dormir num terreno agrícola, ocupando parcialmente o caminho vicinal por onde transitava o tractor. No limite, a Ré admite uma concorrência de culpas entre a vítima e o segurado.
Pois bem, admitindo-se que está em causa uma via do domínio privado – caminho vicinal ladeado por oliveiras, num local distando 500 metros da Estrada Nacional – sendo ali aplicáveis as regras do Código da Estrada, na medida em que se trata de via aberta ao trânsito público (art. 2.º, n.º 2, deste diploma), o que é comprovado quer pelo trânsito do tractor, quer pela presença da carrinha estacionada a 12/13 metros do local onde ocorreu o atropelamento, importa ponderar que sobre o condutor impendia o dever de abster-se da prática de quaisquer actos susceptíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança (art. 11.º, n.º 2), e regular a velocidade do veículo, atendendo às condições do local, de modo a imobilizá-lo no espaço livre e visível à sua frente (art. 24.º, n.º 1).
Há a ponderar que no local não existem bermas ou passeios destinados ao trânsito de peões e nem sequer existe qualquer demarcação da via destinada à circulação rodoviária. E apesar de se tratar de um caminho vicinal, o condutor deveria assumir que a via era utilizada não apenas por si, mas ainda por outros veículos (a carrinha estacionada a alguns metros no local) e, pelo menos, pelo peão aqui A., cuja presença no local era conhecida do segurado. E também não se pode esquecer que a presença de um peão a dormir numa zona rural, à sombra de uma oliveira e ocupando parcialmente um caminho vicinal com a perna esquerda, não constitui propriamente uma autorização para não reduzir a velocidade, não desviar o veículo e atropelar o peão.
Note-se que não estamos perante um peão que inopinadamente invade a via. Estando o A. a dormir no local, pela normalidade das coisas tal facto ocorria já há algum tempo, podendo e devendo o condutor do tractor segurado na Ré aperceber-se atempadamente desse facto e tomar as medidas necessárias a evitar o atropelamento, parando, sinalizando a sua posição, ou desviando-se.
Não o fez, e os factos revelam que o condutor segurado na Ré circulava com a pá do tractor à sua frente, impedindo-o parcialmente de ver o caminho, o que terá motivado o acidente – assume-se que o atropelamento não foi malicioso, nem tal está alegado, pelo que o evento apenas se pode justificar pela circunstância do condutor não ter visibilidade para a sua frente, não avistando nem desviando-se de um peão a dormir há algum tempo no local, como certamente o faria se tomasse o cuidado básico de circular com a pá em posição de ver o caminho por onde circulava.
Conclui-se, pois, pela culpa do condutor do tractor agrícola seguro na Ré, pela violação das regras de cuidado na circulação rodoviária que lhe eram impostas pelos mencionados arts. 11.º, n.º 2 e 24.º, n.º 1, do Código da Estrada, tanto mais que a jurisprudência vem afirmando que a prova da inobservância de leis e regulamentos faz presumir a culpa na produção dos danos dela decorrentes, dispensando-se a prova em concreto da falta de diligência. Assim, havendo violação de uma regra estradal presume-se existir da parte do infractor negligência na condução e, logo, culpa na produção do acidente[2].
No que concerne ao A., não se lhe pode imputar culpa concorrente na produção do acidente.
Na verdade, desconhece-se o porquê da sua perna esquerda ocupar o caminho vicinal – não se sabe se quando adormeceu tal facto já acontecia, ou se se terá tratado de um acto involuntário ocorrido durante o sono. Para além de se ignorar se estamos perante um acto voluntário ou involuntário, também há a ponderar que se trata de um caminho vicinal distando 500 metros da Estrada Nacional, sem bermas ou passeios, e ladeado por oliveiras. A ruralidade e o isolamento do local levou o A. a ponderar que era um local apto a dormir à sombra da oliveira, e nada o levou a prever que um tractor iria passar-lhe por cima – e, em bom rigor, nem tal seria de prever, se o condutor segurado adoptasse as regras de cuidado básicas de circular verificando o espaço livre e visível à sua frente e desviando-se de todos os obstáculos.
Eis porque, embora por razões não totalmente coincidentes com a decisão recorrida, se conclui pela responsabilidade exclusiva da Ré pela reparação dos danos.

Da indemnização por danos não patrimoniais
Entende a Ré que o montante fixado na decisão recorrida a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos pelo A. (…) – € 25.000,00 – se revela irrazoável tendo em vista os valores os valores que têm vindo a ser fixados na jurisprudência.
A este propósito, e tendo em atenção serem aplicáveis critérios de equidade, como previsto no art. 496.º, n.º 3, primeira parte, do Código Civil, vejamos os padrões indemnizatórios seguidos recentemente pelo Supremo Tribunal de Justiça[3]:
· Acórdão de 07.07.2009, no Proc. 1145/05.6TAMAI.C1: adulto com 36 anos, amputação do membro inferior esquerdo, várias intervenções e tratamentos médicos, repercussões estéticas, claudicação por inadaptação à prótese, e quantum doloris de grau 6 – indemnização arbitrada por danos não patrimoniais: € 75.000,00;
· Acórdão de 04.06.2015, no Proc. 1166/10.7TBVCD.P1.S1: jovem de 17 anos, vários tratamentos médicos, intervenções e internamentos, alta mais de 4 anos depois do acidente, repercussões estéticas, quantum doloris de grau 6, e grave culpa da condutora do veículo causador do acidente – indemnização arbitrada por danos não patrimoniais: € 40.000,00;
· Acórdão de 21.01.2016, no Proc. 1021/11.3TBABT.E1.S1: jovem de 27 anos, múltiplos traumatismos, sequelas psicológicas, quantum doloris de grau 5, dano estético de 2 pontos; incapacidade parcial de 16 pontos, repercussão nas actividades desportivas e de lazer de grau 2, claudicação na marcha e rigidez da anca direita – indemnização arbitrada por danos não patrimoniais: € 50.000,00;
· Acórdão de 26.01.2016, no Proc. 2185/04.8TBOER.L1.S1: jovem de 20 anos, desportista, que ficou com várias cicatrizes em zonas visíveis e padeceu de acentuado grau de sofrimento (quantum doloris de grau 5) e relevante dano estético – indemnização arbitrada por danos não patrimoniais: € 45.000,00;
· Acórdão de 28.01.2016, no Proc. 7793/09.8T2SNT.L1.S1: quantum doloris de grau 5, sujeição a quatro operações, internamento por longos períodos, mais duas operações a que ainda teria de se sujeitar, vários tratamentos de reabilitação, dano estético de grau 4 – indemnização arbitrada por danos não patrimoniais: € 40.000,00;
· Acórdão de 17.03.2016, no Proc. 338/09.1TTVRL.P3.G1.S1: sinistrada com 36 anos de idade, deformação grave do pé direito, com amputação dos cinco dedos e do ante-pé, dificuldade na deslocação e uso de prótese para toda a vida, cicatrizes em 18% da superfície corporal e graves alterações psicológicas – indemnização arbitrada por danos não patrimoniais: € 50.000,00; e,
· Acórdão de 07.04.2016, no Proc. 237/13.2TCGMR.G1.S1: jovem de 22 anos de idade, défice funcional permanente de 8%, quantum doloris de grau 4, sequelas compatíveis com o exercício da actividade habitual mas implicando esforços suplementares, dano estético de grau 3, repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer de grau 1 e diversas sequelas psicológicas – indemnização arbitrada por danos não patrimoniais: € 50.000,00.
No caso dos autos, está provado que o A. sofreu as lesões descritas nos pontos 6 a 15 da matéria de facto, entre as quais múltiplas fracturas e ruptura da uretra, foi sujeito a diversas intervenções cirúrgicas e actualmente claudica da perna esquerda e sente-se angustiado, diminuído e constrangido.
Ponderando os estalões indemnizatórios utilizados pela jurisprudência, e não olvidando que a indemnização por danos não patrimoniais deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico[4], podendo mesmo afirmar-se a sua natureza sancionatória, entendemos que não se revela de todo excessiva a indemnização fixada a este título na primeira instância, pelo que esta parte do recurso da Ré também é desatendida.

Da atribuição de juros na indemnização por danos não patrimoniais
Dispondo o art. 566.º, n.º 2, do Código Civil que a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2002, de 9 de Maio, veio estabelecer doutrina no sentido dos juros de mora se vencerem a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação.
Na verdade, se os juros de mora contados desde a citação visam corrigir o desfasamento causado pela depreciação monetária na obrigação de cumprimento, a condenação no pagamento de juros desde tal data, quando o cálculo da indemnização é actualizado ao momento da prolação da decisão, constituiria uma duplicação por via do mesmo facto, o decurso do tempo, a que importa obviar[5].
Ora, na decisão recorrida fixaram-se os juros sobre a indemnização por danos não patrimoniais desde a data da citação, e nada aponta no sentido do cálculo daquele montante ter sido realizado com referência à dita data.
Visto que a indemnização por danos não patrimoniais deve ter por referência a data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal (que era a data da sentença), a decisão recorrida não podia atribuir juros a contar desde a citação, sob pena de incorrer na aludida duplicação por via do mesmo facto.
O recurso da Ré procede, pois, nesta última parte.

DECISÃO
Destarte, concede-se parcial provimento do recurso, na medida em que os juros de mora relativos à indemnização por danos não patrimoniais atribuídos ao A. António Bengalita serão contados apenas desde a data da sentença da primeira instância.
No mais, mantém-se a decisão recorrida.
Custas do recurso na proporção de 5/6 pela Ré e 1/6 pelo Autor (…).

Évora, 11 de Janeiro de 2018
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões

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[1] Cfr. o Acórdão da Relação de Guimarães de 04.02.2016, no Proc. 283/08.8TBCHV-A.G1, disponível em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: «Para que a decisão da 1.ª instância seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada na resposta que se deu à factualidade controvertida, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.»
De igual modo, cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.05.2016, no Proc. 1572/12.2TBABT.E1.S1, disponível na mesma base de dados, decidindo que «O Tribunal da Relação deve exercer um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição da matéria de facto e não um simples controlo sobre a forma como a 1.ª instância respondeu à matéria factual, limitando-se a intervir nos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, pois que só assim se assegurará o duplo grau de jurisdição, em matéria de facto, que a reforma processual de 1995 (DL n.º 329-A/95, de 12-12) visou assegurar e que o actual Código confirmou e reforçou.»
[2] Vide, por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.06.1999, no BMJ n.º 488, pág. 323.
[3] Todos os arestos citados estão publicados em www.dgsi.pt.
[4] Cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.03.2016, no Proc. 338/09.1TTVRL.P3.G1.S1, publicado em www.dgsi.pt.
[5] Neste sentido, vide os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13.01.2005, no Proc. 04B3378, e de 04.06.2015, no Proc. 1166/10.7TBVCD.P1.S1, publicados em www.dgsi.pt.