Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
64/08.9IDSTB.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: PROCEDIMENTO CRIMINAL POR CRIMES FISCAIS
DECURSO DO PRAZO PRESCRICIONAL
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
COARGUIDOS NÃO IMPUGNANTES
Data do Acordão: 05/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: É de salientar o carácter individual do decurso dos prazos de prescrição do procedimento criminal, pois que, como princípio geral, a prescrição do procedimento criminal reveste - tem de revestir - natureza individual, aplicando-se e adaptando-se à específica situação de cada um dos arguidos no processo.
Na situação colocada neste processo, em que não estamos sequer perante um crime de comparticipação necessária, nada justifica a postergação do assinalado princípio geral (de individualidade na aplicação das regras relativas ao decurso dos prazos de prescrição do procedimento criminal).

In casu, tendo a impugnação sido feita estritamente pela arguida “BB”, e estando em discussão nessa impugnação questões não objetivamente atinentes ao arguido AA, a mesma não pode prejudicar este arguido, sob pena de, a entender-se o contrário, serem colocados em crise princípios e regras essenciais do direito penal e respetivo processo.

Em jeito de síntese: a impugnação judicial deduzida pela coarguida “BB” não constitui causa suspensiva da prescrição do procedimento criminal relativamente ao arguido AA, uma vez que este arguido é totalmente alheio a tal impugnação judicial.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - RELATÓRIO

Nos autos de instrução nº 64/08.9IDSTB, do Juízo de Instrução Criminal de Setúbal (Juiz 2), o Ministério Público veio interpor recurso do despacho de não pronúncia do arguido AA.

O Ministério Público extrai da motivação do recurso as seguintes (transcritas) conclusões:

“1ª - Normas violadas: artigos 21.º, n.º 4, 42.º, n.º 2, e 47.º, n.º 1, do RGIT.

2ª - O Acórdão de UJ 2/2011, do STJ, a ser aplicável, não o seria nunca ao presente recurso, o qual sustenta a posição assumida pelo Ministério Público durante o inquérito e o debate instrutório, sempre pugnando pela sujeição do arguido AA a julgamento, sem prejuízo da posição única assumida em resposta a recurso de mero despacho interlocutório.

3ª - Os textos das várias normas relativas à suspensão do processo tributário não distinguem entre arguidos impugnantes e arguidos não impugnantes.

4ª - A interpretação jurisprudencial que restringe a aplicação da suspensão do processo criminal fiscal aos coarguidos impugnantes parte de uma conceção excessivamente garantística, de um verdadeiro favor rei.

5ª - O pensamento legislativo não foi nunca o favor rei, mas a proteção da comunidade, a promoção de valores coletivos (sejam eles a verdade fiscal, o património do Estado, as funções sociais do Estado ou mesmo a autonomia intencional do Estado).

6ª - Os artigos 42.º, 2, e 47.º, 1, do RGIT, constituem uma derrogação do princípio geral da suficiência penal, estando o Ministério Público obrigado à suspensão do inquérito por causa prejudicial fiscal.

7ª - No caso do crime de fraude fiscal, o apuramento dos elementos essenciais do tipo objetivo, quais sejam a situação tributária e a concretização da vantagem indevidamente obtida, é feita não pelos Tribunais criminais, mas pelos Tribunais Administrativos e Fiscais.

8ª - A derrogação do princípio da suficiência do processo penal tem uma ratio legis objetiva, e são razões objetivas, sistemáticas, que presidirão à interpretação das normas em causa neste aresto.

9ª - Querer que um processo penal tributário seja “retalhado” em vários processos separados, tantos quantos os comparticipantes criminosos, é dificultar, para lá do razoável, a perseguição penal de crimes de fraude fiscal, que tão graves danos provocam ao Estado social, com consequências ao nível do princípio da igualdade e da imagem dos Tribunais e da aplicação da Justiça.

10ª - A imagem da Justiça, a confiança geral na capacidade de reposição da vigência normativa, depende não só, mas também, da viabilidade da repressão dos danosos crimes de fraude fiscal.

11ª - Nenhum arguido foi prejudicado pela impugnação da Valorset, pois a impugnação é um direito legítimo e a sua decisão esclarece e define o objeto deste processo criminal.

12ª - Consequentemente, deve o presente recurso ser julgado procedente, declarando-se que o procedimento criminal não prescreveu quanto ao coarguido AA e proferindo-se despacho de pronúncia quanto ao mesmo, como consta do libelo”.

*

O arguido respondeu ao recurso, concluindo tal resposta nos seguintes termos (em transcrição):

“a) Deve o recurso ser rejeitado, por falta de interesse em agir do MP.

b) Assim não se considerando, deve o recurso ser julgado improcedente.

c) E, se assim não for entendido e julgar-se o recurso procedente, deve revogar-se o despacho proferido e ordenar-se a prolação de decisão instrutória que aprecie, como questões prévias, as demais questões suscitadas pelo recorrido na instrução”.

*

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pronunciando-se pela procedência do recurso.

Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal.

Foram colhidos os vistos legais e foi realizada a conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso.

Uma única questão, em breve síntese, é suscitada no presente recurso, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, as quais delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal: saber se o procedimento criminal prescreveu (ou não) quanto ao arguido AA.

2 - A decisão recorrida.

O despacho objeto do recurso é do seguinte teor (integral):

“Declaro encerrada a instrução.

Cumpre, agora, proferir despacho de pronúncia ou não pronúncia, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 307º e 308º do Código de Processo Penal.

O que se fará, dando seguimento.

DECISÃO INSTRUTÓRIA

I. Enquadramento.

Nos presentes autos, e após encerramento do inquérito, o Ministério Público, por despacho de fls. 1477-1489, deduziu acusação contra BB, Lda., CC, DD, e AA, todos melhor id. a fls. 1479, imputando-lhe a prática de factos suscetíveis de consubstanciar, em seu entender, a prática:

- Por parte do arguido CC, um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punível pelos artigos 103º, número 1 e 104º, número 2, alíneas a) e b), todos do Regime Geral das Infrações Tributárias (R.G.I.T.), por referência ao artigo 26º, número 1, do Código Penal;

- Por parte da sociedade arguida, um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punível pelos artigos 103º, número 1 e 104º, número 2, alíneas a) e b), todos do R.G.I.T., por referência ao artigo 26º, número 1, do Código Penal; e,

- Por parte dos arguidos DD e AA, como cúmplices do arguido CC e da sociedade arguida, na prática do crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punível pelos artigos 103º, número 1 e 104º, número 2, alíneas a) e b), todos do R.G.I.T., por referência ao artigo 26º, número 1, do Código Penal.

Vem a acusação sustentada pelos meios de prova melhor id. a fls. 1488-1489.

Inconformado com a decisão plasmada no libelo acusatório, veio o arguido AA requerer a abertura de instrução, com base nos argumentos constantes de fls. 1552 e segs., alegando, em síntese, que o procedimento criminal quanto a si já se encontra prescrito, desde logo porque não existiu qualquer causa de suspensão do prazo prescricional, e caso se assim não entenda, não existiam indícios que permitiram formular o juízo acusatório quanto a si. Preconizando a prolação, a final, de decisão de não pronúncia.

Também inconformado com a decisão plasmada no libelo acusatório, veio o arguido CC requerer a abertura de instrução com base nos argumentos constantes de fls. 1589 e segs., negando, no essencial, a prática dos factos descritos na acusação, porquanto seria a sua mãe, EE, que exercia de forma exclusiva a gerência da sociedade arguida, desconhecendo o mesmo em absoluto as ações descritas na acusação.

Admitida a instrução, foi produzida a prova que se julgou pertinente face ao objeto da fase.

Ainda, foi declarado exindo o procedimento criminal quanto ao arguido DDs (cfr. despacho ref. 93086021) e a separação de processos relativamente à arguida sociedade (cfr. ata ref. 93095048) prosseguindo o processo apenas relativamente aos arguidos AA e CC.

Foi realizado o debate instrutório em obediência ao devido formalismo legal, como se alcança da respetiva ata.

Encerrado que está o debate, importa agora proferir decisão instrutória.

II. Conhecimento de nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que se possa conhecer (artigo 308º, número 3, do Código de Processo Penal).

O Tribunal é competente.

As partes têm legitimidade para exercer a ação penal.

Conhecimento de nulidades, exceções ou quaisquer outras questões prévias que obstem à apreciação do mérito da causa:

B) Da verificação da prescrição do procedimento criminal, relativamente ao arguido AA.

O arguido requereu a abertura de instrução alegando que o procedimento criminal quanto a si já se encontra prescrito, desde logo porque não existiu qualquer causa de suspensão do prazo prescricional.

Foi proferido despacho interlocutório (ref. 92857685) em que se entendeu não existir prescrição do procedimento criminal quanto a este arguido, “sem prejuízo do conhecimento da questão prévia em sede de decisão instrutória”.

O arguido recorreu de tal decisão, sendo que em sede de resposta ao recurso, o Ministério Público pugna pela verificação da prescrição do procedimento criminal, precisamente, porque se não se pode opor a este arguido a causa de suspensão anteriormente considerada.

E vistos bem os autos, afigura-se-me assistir-lhes razão.

A prescrição é, de entre outras, uma causa de extinção do procedimento criminal.

Parte-se da ideia de que a necessidade da pena, do ponto de vista retributivo e de prevenção geral, e ainda do ponto de vista do fim ressocializador da mesma, dilui-se pouco a pouco com o decurso progressivo do tempo e acaba por desaparecer. Também constitui fundamento da mesma a experiência processual de que, com a crescente distanciação temporal entre o processo penal e o momento da comissão do facto, aumentam as dificuldades probatórias a ponto de ser cada vez maior o perigo de sentenças erradas.

De facto, a prescrição do procedimento criminal ocorre pelo simples decurso do tempo, independentemente de qualquer outra causa e, ao invés do que sucede no direito civil (em que deve ser invocada pelo interessado, funcionando como exceção) deve ser suscitada pela autoridade judiciária assim que dela se aperceba, o que pode acontecer em qualquer momento ou fase do processo.

E tal é precisamente o que, em minha opinião, sucede no presente caso.

Antes de mais atentemos no enquadramento jurídico do instituto da prescrição do procedimento criminal, cotejando-o com a sua aplicabilidade no caso concreto.

Dispõe o artigo 118º do Código Penal (em redação idêntica à vigente à data da prática dos factos) sob a epígrafe “Prazos de prescrição”:

“1 - O procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos:

a) 15 anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for superior a 10 anos;

b) 10 anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a 5 anos, mas que não exceda 10 anos;

c) 5 anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a 1 ano, mas inferior a 5 anos;

d) 2 anos, nos casos restantes.

2 - Para efeito do disposto no número anterior, na determinação do máximo da pena aplicável a cada crime são tomados em conta os elementos que pertençam ao tipo de crime, mas não as circunstâncias agravantes ou atenuantes.

3 - Quando a lei estabelecer para qualquer crime, em alternativa, pena de prisão ou de multa, só a primeira é considerada para efeito do disposto neste artigo”.

Porque estamos perante crime tributário importa também levar em conta o que dispõe o artigo 21º do Regime Geral das Infrações Tributárias, sob a epígrafe “Prescrição, interrupção e suspensão do procedimento criminal”:

“1 - O procedimento criminal por crime tributário extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a sua prática sejam decorridos cinco anos.

2 - O disposto no número anterior não prejudica os prazos de prescrição estabelecidos no Código Penal quando o limite máximo da pena de prisão for igual ou superior a cinco anos.

3 - O prazo de prescrição do procedimento criminal é reduzido ao prazo de caducidade do direito à liquidação da prestação tributária quando a infração depender daquela liquidação.

4 - O prazo de prescrição interrompe-se e suspende-se nos termos estabelecidos no Código Penal, mas a suspensão da prescrição verifica-se também por efeito da suspensão do processo, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 42.º e no artigo 47.º”.

No presente caso, no despacho acusatório vem o arguido acusado da prática de factos que, no entender do Ministério Público, são suscetíveis de consubstanciar um crime de crime de fraude qualificada previsto e punível pelos artigos 103º e 104º, nº 2, al. a) e b) do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT) por referencia ao Artigo 26º do Código Penal, como cúmplice.

Como foi referido pelo Tribunal da Relação do Porto em acórdão de 19-2-2014, proc. número 1048/08.2TAVFR.P4, in www.dgsi.pt, e com o que se concorda inteiramente, “o crime de fraude fiscal cometido através de faturas falsas pode ser realizado de duas formas distintas: (i) pelo emitente das faturas que as entrega a outrem; (ii) por aquele a quem as faturas falsas são entregues e que, por seu turno, as inclui na sua conta-corrente para efeitos de IVA. Num e noutro caso o crime consuma-se em momentos diferentes: aquele que emite uma fatura falsa e a entrega a um terceiro, com a finalidade de este se aproveitar dela para cometer o crime de fraude fiscal, vê o seu crime consumado quando entrega a fatura; aquele que recebe a fatura falsa (isto é, sem que tenha havido qualquer transação) só comete o crime quando incluir a falsa operação numa declaração fiscal”.

Ora, compulsada a acusação (designadamente o quadro nela inserto), verifica-se que, de acordo com os factos narrados, a última fatura entregue pelo arguido (em nome próprio, pois de acordo com os factos, não tinha o controlo de qualquer uma das outras sociedades no lapso temporal em que foram emitidas faturas), data de 27-06-2005, e é a partir desse dia que deve ser contabilizada a prescrição do procedimento criminal.

De acordo com o disposto no artigo 21º, número 1, do RGIT, é de 5 anos o prazo geral prescricional tributário, o que sucede quanto ao arguido AA.

Assim, não havendo nenhuma causa de suspensão ou interrupção de tal prazo, o procedimento criminal quanto a si teria prescrito no dia 27-05-2010.

E a verdade é que, pese embora tenha havido quanto a si causas de interrupção (a primeira ocorre em 22/01/2016, com a sua constituição como arguido), nenhuma causa de suspensão ou interrupção se pode ter como ocorrida até 27-05-2010.

Entendeu-se anteriormente que existiu uma causa de suspensão e tal sucederia por via do disposto nos artigos 47º, número 1, e 21º, ambos do RGIT, conjugados com o artigo 42º, número 2, do mesmo diploma, e com os artigos 120º, número 1, al. a), do Código Penal (por efeito da apresentação de reclamação graciosa, em de 14-08-2008 (fls. 514 e seguintes) ter-se-ia iniciado tal suspensão, a qual terminaria em 03-04-2017 - data do trânsito em julgado da decisão do TCA, fls. 1260) -.

Sucede, porém, que tal reclamação graciosa foi apresentada pela coarguida “BB”, e não pelo arguido AA.

Ora, sendo a suspensão do prazo prescricional decorrente de tal apresentação prejudicial ao arguido AA, não deve a mesma verificar-se com base em circunstâncias que de todo a si são alheias, e sobre as quais não teve qualquer intervenção.

Para os efeitos que constam dos autos, o arguido AA foi constituído arguido em 2016, relativamente a factos que teria praticado em 2005, sendo que o prazo prescricional que o julgador considerou adequado, em face da ação em causa, se cifra em 5 anos. Claramente que as razões de certeza e estabilidade jurídica apontam para a prescrição do procedimento criminal quanto a si.

E, de facto, tem sido esta a posição que se crê como dominante na nossa jurisprudência, quando chamada a pronunciar-se sobre a questão. Neste sentido se podem consultar os doutos acórdãos, todos disponíveis em www.dgsi.pt:

- do Tribunal da Relação do Porto, de 20-05-2009, proc. número 0818024;

- do Tribunal da Relação do Porto, de 03-07-2013, proc. número 47/08.9IDPRT-A.P1;

- do Tribunal da Relação do Porto, de 05-02-2020, proc. número 342/16.3IDAVR-BC.P2; e,

- do Tribunal da Relação do Porto, de 20-11-2019, proc. número 342/16.3IDAVR-BB.P1.

Pelo exposto, outra conclusão não é possível retirar da fundamentação supra expendida a não ser que o procedimento criminal no caso dos presentes autos se encontra atualmente prescrito, relativamente ao arguido AA, sendo que apenas por lapso se terá entendido de forma diversa anteriormente.

Sendo a prescrição uma causa de extinção do procedimento criminal, e tendo-se a mesma por verificada no caso sub judice, importa declarar extinto o presente procedimento criminal quanto ao mesmo arguido.

O que vai decidido.

Pelo exposto, e tendo presentes todas as supra aludidas considerações e normas jurídicas invocadas, decido declarar extinto, pelo efeito da prescrição, o presente procedimento criminal na parte que concerne à atuação do arguido AA.

*

Não existem outras nulidades, exceções ou quaisquer outras questões prévias que obstem à apreciação do mérito da causa, na parte que remanesce – procedimento criminal relativo à atuação do arguido CC.

III. Da verificação da existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao(s) arguido(s) de uma pena ou medida de segurança.

A. Matéria de Facto.

A.1. Factos suficientemente indiciados:

Com interesse para a boa resolução da causa, resultam abundante e suficientemente indiciados todos os factos imputados ao arguido CC constantes da acusação formulada pelo Ministério Público, os quais aqui se dão, brevitatis causa, por integralmente reproduzidos.

B.2. Factos não suficientemente indiciados.

Não se considera indiciada a factualidade constante do requerimento de abertura de instrução que esteja em contradição lógica e histórica com a supra dada por indiciada.

B.3. Motivação do tribunal no tocante à indiciação da matéria de facto.

I. Dos “indícios suficientes”.

A instrução (ou o inquérito, ou o julgamento), assentam, em primeira linha, sobre a existência de um encadeado factual.

Factos esses que farão incorrer alguém na aplicação de uma pena ou medida de segurança, isto é, que traduzam, em síntese, a existência de uma ou mais condutas criminalmente puníveis (cfr. artigo 308º, número 1, do Código de Processo Penal).

O conceito de indícios suficientes reporta-se ao grau de certeza exigido pelo legislador ao decisor sobre a ocorrência destes factos. Quando o legislador alude a “indícios suficientes”, está na realidade a remeter-nos para um juízo – o juízo indiciário.

Indícios podem-se qualificar, de forma algo simplificada, como conclusões obtidas a partir de provas que ainda não foram submetidas ao crivo do julgamento. Crivo no sentido de contraditoriedade e imediação plenas. De facto, em instrução, o contraditório apenas assume o seu carácter pleno no debate.

Os indícios são suficientes, quando, em face dos mesmos, seja, em termos de prognose, muito provável a futura condenação do arguido ou que esta seja mais provável que a sua absolvição (cfr. artigo 283º, número 1 ex vi artigo 308º, número 2, ambos do mesmo diploma).

Constituirão assim indícios bastantes para a acusação (e para a pronúncia), aqueles elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado (em face dos factos apurados e sua integração jurídica).

Todavia, a instrução não equivale, nem poderia equivaler, a um primeiro julgamento. O seu principal escopo é a sindicância da decisão de acusar, seja ela da autoria pelo Ministério Público, seja ela da autoria do assistente (quer quando acusa particularmente, quer quando requer a abertura de instrução em casos nos quais o Ministério Público se absteve de acusar).

E foi sempre tendo estes princípios presentes que se procedeu à análise crítica dos elementos probatórios presentes nos autos, conforme infra se expende.

II. Análise crítica dos elementos de prova considerados no juízo de indiciação supra efetuado.

Em primeiro lugar, a factualidade indiciada resulta corroborada pelos diversos meios de prova carreados para os autos, e indicados na acusação.

Assim, a situação jurídica da sociedade arguida bem como as diversas atribuições de gerência resulta dos documentos juntos aos autos, e o seu incumprimento fiscal (não posto em causa pelo arguido requerente da abertura de instrução) resulta igualmente do acervo documental fiscal, também ele junto aos autos.

Efetivamente, a única questão relevante para a boa decisão da causa, prende-se com o efetivo conhecimento e poder de disposição, por parte do arguido CC, no que toca aos atos e omissões consubstanciadores de infração fiscal.

É a já muito debatida questão da comissão do delito dos gerentes/administradores de direito, quando não tenham exercido poderes de facto, neste caso, relativamente a um restrito aspeto da vida da sociedade.

O problema probatório que se coloca no que toca ao exercício da gerência de facto é a sua iliquidez previsível. Com efeito, é algo difícil – senão impossível – afirmar com base em dados objetivos, que determinada pessoa possuía o domínio de determinado facto em determinada situação.

Mas, sempre se dirá, é perfeitamente legítimo, em processo penal, o recurso a presunções simples ou naturais, visto que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (artigo 125º do Código de Processo Penal) e o artigo 349º do Código Civil prescreve que as presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido, sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (artigo 351º do Código Civil).

Na realidade, as presunções simples ou naturais são simples meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo e o sistema probatório alicerça-se em grande medida no raciocínio indutivo de um facto conhecido para um facto desconhecido, ou seja, toda a prova indireta se faz valer através desta espécie de presunções.

No entanto, a apreciação da prova indireta exige um particular cuidado na sua apreciação, apenas se podendo extrair o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, de modo a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis.

No caso presente temos dois factos indiciário - a administração de direito - do qual podemos inferir que a administração de facto foi exercida. Mas o não exercício também é possível.

Logo, para que se possa concluir pela existência de uma administração de facto, importa aferir se nos autos existem outros elementos de prova que nos possam levar a concluir nesse sentido (por exemplo, elementos de prova que denunciem que o arguido exercia a administração de facto, ainda que noutros quadrantes).

Isto posto, vejamos se tais elementos existem nos autos.

E neste tocante, desde já se diga que existem.

Desde logo, há que assinalar que das circunstâncias de as testemunhas indicadas pelo arguido ouvidas em instrução terem vindo afiançar apenas terem negociado com a sua falecida mãe, então também gerente da sociedade “BBt”, e terem a perceção de que apenas ela era a gerente de facto da dita sociedade, não se pode retirar que o arguido não exercia, também a gerência: são factos não excludentes.

Ademais, é a própria natureza do relacionamento familiar entre arguido e sua mãe que leva a concluir pelo seu conhecimento da atuação da sociedade relevante para os autos, sendo de alvitrar que, vivendo ambos os arguidos e sua falecida mãe na mesma casa na altura dos factos (como confirmou o arguido em sede de declarações) o mais natural é que conversassem amiúde entre si sobre a melhor forma de gerir a pessoa coletiva.

Ao que acresce que, há testemunhos nos autos que ligam efetivamente o arguido ao exercício efetivo da gerência da “BB”.

MA (fls. 753 e segs.) que exerceu funções de TOC para a sociedade, identifica o arguido CC e a sua mãe como os responsáveis da mesma.

CM (fls. 762 e segs.), que exerceu funções administrativas enquanto empregada da “BB”, quando questionada sobre quem era o seu patrão, referiu o arguido e sua mãe, “pois eram eles quem davam ordens aos empregados, pagavam os salários e decidiam em representação da empresa”.

FJ (fls. 764 e segs.), que exerceu funções administrativas enquanto empregado da “BB” quando questionado sobre quem era o seu patrão, referiu o arguido e sua mãe.

ME (fls. 777 e segs.), que exerceu funções TOC enquanto empregada da “BB” quando questionada sobre quem era o seu patrão, referiu o arguido e sua mãe, “tendo confirmado que eram eles os dois quem davam ordens aos empregados, pagavam os salários e decidiam em representação da empresa”.

Todas estas testemunhas ligaram o arguido CC à assunção de decisões de gestão na organização empresarial.

Em suma, partindo do facto indiciário - a administração de direito - podemos concluir, com base nos elementos supra discriminados, que a administração de facto foi exercida pelo arguido CC.

No que toca aos factos não suficientemente indiciados, os mesmos foram assim considerados por não se ter feito qualquer prova ou por a prova produzida não ser suficiente para que se pudessem considerar como sumariamente verificados, como acima aludido.

Assim foi formulado o juízo sobre a suficiente indiciação dos factos introduzidos pela acusação.

B.4. Subsunção jurídica das condutas descritas nos autos.

Vem o arguido acusado da prática de factos suscetíveis de consubstanciar, no entender do Ministério Público, um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punível pelos artigos 103º, número 1 e 104º, número 2, als. a) e b), do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei número 15/2001, de 05 de junho, por referência ao artigo 26º, número 1, do Código Penal.

Vejamos se face à matéria suficientemente indiciada há razões para pronunciar os arguidos nesses termos.

O ilícito criminal imputado ao arguido consubstancia-se na seguinte previsão legal (artigos 103º e 104º do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei número 15/2001, de 05 de junho):

“Artigo 103.º

Fraude

1 - Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:

a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria coletável;

b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;

c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.

2 - Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a (euro) 15000.

3 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária”.

“Artigo 104.º

Fraude qualificada

1 - Os factos previstos no artigo anterior são puníveis com prisão de um a cinco anos para as pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas coletivas quando se verificar a acumulação de mais de uma das seguintes circunstâncias:

a) O agente se tiver conluiado com terceiros que estejam sujeitos a obrigações acessórias para efeitos de fiscalização tributária;

b) O agente for funcionário público e tiver abusado gravemente das suas funções;

c) O agente se tiver socorrido do auxílio do funcionário público com grave abuso das suas funções;

d) O agente falsificar ou viciar, ocultar, destruir, inutilizar ou recusar entregar, exibir ou apresentar livros, programas ou ficheiros informáticos e quaisquer outros documentos ou elementos probatórios exigidos pela lei tributária;

e) O agente usar os livros ou quaisquer outros elementos referidos no número anterior sabendo-os falsificados ou viciados por terceiro;

f) Tiver sido utilizada a interposição de pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável;

g) O agente se tiver conluiado com terceiros com os quais esteja em situação de relações especiais.

2 - A mesma pena é aplicável quando:

a) A fraude tiver lugar mediante a utilização de faturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente; ou

b) A vantagem patrimonial for de valor superior a (euro) 50 000.

3 - Se a vantagem patrimonial for de valor superior a (euro) 200 000, a pena é a de prisão de 2 a 8 anos para as pessoas singulares e a de multa de 480 a 1920 dias para as pessoas coletivas.

4 - Os factos previstos nas alíneas d) e e) do n.º 1 do presente preceito com o fim definido no n.º 1 do artigo 103.º não são puníveis autonomamente, salvo se pena mais grave lhes couber”.

No entanto, tendo em conta a data da prática dos factos, é de levar em conta a redação legal de tais preceitos em vigor no período da sua prática:

“Artigo 103.º

Fraude

1 - Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:

a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria coletável;

b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;

c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.

2 - Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a (euro) 7500.

3 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária”.

“Artigo 104.º

Fraude qualificada

1 - Os factos previstos no artigo anterior são puníveis com prisão de um a cinco anos para as pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas coletivas quando se verificar a acumulação de mais de uma das seguintes circunstâncias:

a) O agente se tiver conluiado com terceiros que estejam sujeitos a obrigações acessórias para efeitos de fiscalização tributária;

b) O agente for funcionário público e tiver abusado gravemente das suas funções;

c) O agente se tiver socorrido do auxílio do funcionário público com grave abuso das suas funções;

d) O agente falsificar ou viciar, ocultar, destruir, inutilizar ou recusar entregar, exibir ou apresentar livros, programas ou ficheiros informáticos e quaisquer outros documentos ou elementos probatórios exigidos pela lei tributária;

e) O agente usar os livros ou quaisquer outros elementos referidos no número anterior sabendo-os falsificados ou viciados por terceiro;

f) Tiver sido utilizada a interposição de pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável;

g) O agente se tiver conluiado com terceiros com os quais esteja em situação de relações especiais.

2 - A mesma pena é aplicável quando a fraude tiver lugar mediante a utilização de faturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente.

3 - Os factos previstos nas alíneas d) e e) do n.º 1 do presente preceito com o fim definido no n.º 1 do artigo 103.º não são puníveis autonomamente, salvo se pena mais grave lhes couber”.

Em termos de previsão do tipo legal, os seus elementos constitutivos são:

a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar das declarações apresentadas ou prestadas, a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria coletável;

b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;

c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.

A ocultação ou alteração de factos ou valores constantes daquelas declarações constitui elemento constitutivo do crime de fraude fiscal, pois que tais declarações têm especificamente vocação para servir de suporte à determinação, avaliação ou controle da matéria coletável pela administração fiscal.

Comete este crime, antes de mais, o autor material das declarações apresentadas com factos ou valores alterados ou ocultados e esse autor pode ser o representante legal ou voluntário ou obrigatório que preencha ou assine aquelas declarações, agindo com intenção de obter vantagem patrimonial indevida para si ou para o sujeito passivo que representa mas também constitui crime fiscal autónomo a falsificação de faturas dirigida à diminuição das receitas fiscais, independentemente de ter havido ou não declaração do contribuinte.

Comete também este crime aquele que tendo o dever de declarar à administração fiscal determinadas receitas, não o faz, se a sua conduta visar a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias.

No caso vertente, verifica-se que, face à materialidade dada por suficientemente indiciada, o arguido CC, tendo sido gerente de facto da “BB”, e logo com responsabilidade em a determinar a cumprir as suas obrigações fiscais, praticou condutas que preenchem o tipo objetivo do crime em análise, já que simulou diversos contratos com diversas entidades que nunca existiram, e sequentemente, declarou valores que não correspondiam à verdade em duas declarações periódicas de IVA, pelo que, neste tocante, e desde já, a conclusão que há a retirar é a de que se impõe, em face da factualidade indiciariamente apurada e do seu enquadramento jurídico, proferir despacho de pronúncia pelos mesmos factos e enquadramento jurídico enunciados pelo Ministério Público.

Concorda-se assim com a integração jurídica efetuada pelo Ministério Público no seu despacho de acusação relativamente à factualidade aí descrita, nada mais havendo a acrescentar, em face de a dita factualidade não ter sofrido qualquer alteração e ser o regime que concretamente se mostra mais favorável ao arguido porquanto no regime novo, em que a moldura penal não se altera face ao anterior, o limiar do benefício obtido pelo arguido que dita o limite da punibilidade do facto é mais alto, o que lhe pode vir a ser mais favorável – artigo 2º, número 4, do Código Penal.

Razão pela qual deve ser, como será, proferido despacho de pronúncia.

O que se fará, dando seguimento.

IV. Decisão final.

Por conseguinte, e tendo presentes todas as supra aludidas considerações e normas jurídicas invocadas, decido pronunciar, nos termos do disposto nos artigos 308º, número 1, e 307º, número 1, parte final, ambos do Código de Processo Penal, para julgamento em processo comum e com intervenção do tribunal singular:

CC, filho de … e de …, natural da freguesia e concelho de …, nascido a …, solteiro, com o número de identificação civil …, residente na Rua do …, …, …, pelos factos enunciados no despacho ref. … (fls. 1479-1489) e cuja descrição aqui se dá, por brevidade de exposição, integralmente reproduzida.

Tais factos consubstanciam a prática de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punível pelos artigos 103º, número 1, e 104º, número 2, als. a) e b), do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei número 15/2001, de 05 de junho, por referência ao artigo 26º, número 1, do Código Penal.

Prova:

A indicada no despacho ref. … (fls. 1488-1489).

Medidas de Coação:

O arguido aguardará os ulteriores termos do processo mediante sujeição às medidas de coação propugnadas as fls. 1489, as quais, face aos elementos que constam dos autos, se mostram suficientes e adequadas às necessidades cautelares do caso sub judice.

Tendo presidido ao debate instrutório, declaro-me impedido para intervir no julgamento - artigos 40º, alínea b), e 41º, número 1, ambos do Código de Processo Penal.

As custas referentes a esta fase deverão ser levadas em conta a final, caso o arguido que requereu a abertura de instrução venha a ser condenado.

Remeta os autos à distribuição - artigo 310º, número 1, última parte, do Código de Processo Penal.

Notifique (cfr. artigo 113º, número 10, do Código de Processo Penal), sendo ainda o arguido AA para, no prazo de 10 dias, vir esclarecer se, em face da decisão ora proferida, ainda mantém interesse no recurso interposto”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) Questão prévia (recurso do arguido).

Juntamente com o recurso do Ministério Público, subiu também a este Tribunal da Relação um recurso do arguido AA, interposto em 29-07-2021, visando um despacho datado de 15-07-2021, no qual a Exmª Juíza de Instrução não atendeu ao requerimento desse arguido, que pugnava pela prescrição do procedimento criminal.

A questão que está em discussão nesse recurso é, em substância, a mesma que é objeto do recurso do Ministério Público.

Contudo, no despacho que admitiu o referido recurso ficou escrito o seguinte: “o presente recurso subirá nos próprios autos, a final, com o recurso da decisão que tiver posto termo à causa, e tem efeito devolutivo (cfr. artigos 406º, nº 1, 407º, nº 3, e 408º, a contrario, todos do Código de Processo Penal)”.

O arguido AA, muito embora tenha respondido ao recurso interposto pelo Ministério Público (recurso agora em apreciação), não manifestou qualquer impulso subsequente ao recurso por si interposto, que foi admitido e ficou “retido”, pelo que, não o tendo feito, o mesmo não pode ser conhecido nesta instância recursória (como decorre do preceituado nos artigos 412º, nº 5, e 413º, nº 4, do C. P. Penal).

Aliás, no final do despacho agora em apreciação (despacho acima integralmente transcrito), o Exmº Juiz deixou expressamente consignado o seguinte: “notifique (cfr. artigo 113º, número 10, do Código de Processo Penal), sendo ainda o arguido AA para, no prazo de 10 dias, vir esclarecer se, em face da decisão ora proferida, ainda mantém interesse no recurso interposto”.

Ora, compulsados os autos, verifica-se que o arguido AA, apesar de devidamente notificado nos termos e para os efeitos que lhe foram assim determinados, nada disse.

Em conclusão: como o arguido não manifestou, expressamente, interesse na manutenção do aludido recurso (visando o despacho proferido em 15-07-2021), este Tribunal ad quem não tomará conhecimento do mesmo (não o apreciando e não o decidindo).

b) Da prescrição (recurso do Ministério Público).

O recurso interposto pelo Ministério Público incide sobre o despacho de não pronúncia do arguido AA, despacho no qual se declarou extinto, pelo efeito da prescrição, o procedimento criminal na parte relativa à atuação desse arguido.

Alega o Exmº Magistrado do Ministério Público recorrente, e em breve síntese, que o procedimento criminal, quanto ao referido arguido, não se encontra prescrito, pois a suspensão do processo penal fiscal, que ocorreu nos autos, decorre da lei (artigos 21º, 42º e 47 do RGIT), e esta não distingue, quanto à eficácia e abrangência dessa suspensão, entre arguidos impugnantes e não impugnantes.

Cumpre decidir.

A questão que se coloca é a de saber que efeitos tem, sobre o decurso do prazo prescricional (do procedimento criminal por crimes fiscais), a impugnação judicial prevista no artigo 47º do RGIT, quanto aos coarguidos não impugnantes.

Estabelece o artigo 47º, nº 1, do RGIT (na redação dada pela Lei nº 53-A/2006, de 29/12): “se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respetivas sentenças”.

I - Como bem se assinala no Ac. do T.R.G. de 27-05-2019 (sendo relatora Ausenda Gonçalves - disponível in www.dgsi.pt) - acórdão profusamente citado na motivação do presente recurso -, “a questão de saber se a impugnação judicial apresentada por um arguido junto dos tribunais fiscais apenas se repercute na sua esfera jurídica, e, por isso, não suspende o processo penal tributário e o prazo de prescrição do procedimento criminal relativamente a outros arguidos, não obtém uma solução genérica e abstrata, antes depende da averiguação, caso a caso, sobre se entre o processo penal tributário e aquele procedimento tributário existe a relação de prejudicialidade que justifica a exceção ao princípio da suficiência do processo penal”.

Ora, decorre da análise dos presentes autos, a nosso ver, que o fundamento invocado pela arguida “BB”, na impugnação judicial que apresentou, reside no inconformismo com as liquidações adicionais de I.V.A. efetuadas e reportadas aos anos de 2004, 2005 e 2006, no montante total de 129.407,70 euros, e tal matéria é irrelevante para apurar da conduta ilícita imputada na acusação ao arguido AA (não estamos perante qualquer coautoria, nem estamos sequer, com o devido respeito por diferente opinião, face a cumplicidade do referido arguido com a atuação da arguida “BB”).

Não se configura, pois, uma qualquer comparticipação criminosa do arguido AA (não impugnante da liquidação tributária) e da arguida “BB” (que apresentou impugnação judicial, junto dos tribunais fiscais, da liquidação tributária que lhe é imputada).

Por outras palavras: o objeto do processo de impugnação que foi instaurado pela “BB” não coincide, total ou parcialmente, com o objeto do presente processo/crime no que respeita aos factos delitivos concretamente imputados ao arguido AA, não se verificando qualquer situação de dependência, direta e necessária, entre ambos esses processos.

Com o devido respeito pelo alegado na motivação do recurso, na concreta situação em apreço nestes autos, a impugnação judicial feita pela “BB” não coloca em causa, nem ao menos provisoriamente, a substantiva relação jurídica tributária relativamente ao arguido AA, não possuindo qualquer incidência negativa na possibilidade de afirmação do crime imputado ao mesmo.

Em suma: a decisão definitiva obtida na aludida impugnação judicial não afeta, minimamente, o objeto do processo penal que corre contra o arguido AA.

Ora, assim sendo, uma vez que apenas a coarguida “BB” deduziu impugnação judicial, a suspensão do decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal respeita apenas à impugnante, não produzindo efeitos relativamente ao arguido AA, o qual não é parte na referida impugnação, não interveio na mesma, não pode colher dela qualquer vantagem, nem pode ver alterada a respetiva situação tributária com base na decisão nela proferida (a sua situação tributária nada tem a ver com a aludida impugnação).

Não sendo aplicável ao arguido AA a suspensão do processo penal fundada na pendência da impugnação judicial apresentada pela “BB”, está prescrito o procedimento criminal contra o mesmo (o prazo de prescrição é de 5 anos, iniciou-se em 2005, e não ocorreu, até à data da sua constituição como arguido - verificada em 2016 -, qualquer causa suspensiva ou interruptiva do aludido prazo).

II - Partindo do que vem de dizer-se, e em reforço dos argumentos apresentados, devemos salientar ainda o carácter individual do decurso dos prazos de prescrição do procedimento criminal (a nosso ver, e como princípio geral, a prescrição do procedimento criminal reveste - tem de revestir - natureza individual, aplicando-se e adaptando-se à específica situação de cada um dos arguidos no processo).

Ora, na situação colocada neste processo, em que não estamos sequer perante um crime de comparticipação necessária, nada justifica a postergação do assinalado princípio geral (de individualidade na aplicação das regras relativas ao decurso dos prazos de prescrição do procedimento criminal).

In casu, tendo a impugnação sido feita estritamente pela arguida “BB”, e estando em discussão nessa impugnação questões não objetivamente atinentes ao arguido AA, a mesma não pode prejudicar este arguido, sob pena de, a entender-se o contrário, serem colocados em crise princípios e regras essenciais do direito penal e respetivo processo.

Em jeito de síntese: a impugnação judicial deduzida pela coarguida “BB” não constitui causa suspensiva da prescrição do procedimento criminal relativamente ao arguido AA, uma vez que este arguido é totalmente alheio a tal impugnação judicial.

Assim sendo, e conforme se assinala no despacho revidendo, a prescrição do procedimento criminal quanto ao arguido AA ocorreu já no ano de 2010.

Face ao predito, mostra-se acertada a decisão revidenda, que declarou extinto, pelo efeito da prescrição, o presente procedimento criminal na parte que concerne à atuação do arguido AA, pelo que o recurso interposto pelo Ministério Público é totalmente de improceder.

III - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso.

Sem custas, por o Ministério Público estar isento do seu pagamento.

*

Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 10 de maio de 2022

João Manuel Monteiro Amaro

Nuno Maria Rosa da Silva Garcia

Gilberto da Cunha