Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
299/17.3GBASL-C.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: DOENÇA
COVID
ALTERAÇÃO MEDIDA DE COACÇÃO
Data do Acordão: 09/08/2020
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Sumário: 1 - A referência no artigo 7º, nº 1, ao artigo 3º, nº 1, da Lei n.º 9/2020 não pode ser vista como uma remissão estritamente legal, como se a interpretação a fazer àquele preceito devesse ser encarada como um “espelho” da interpretação feita neste para efeitos de indulto.

2 - Nem estamos perante “requisitos”, nem de saber se são cumulativos ou meramente alternativos numa análise seca e formal. O que releva é saber se o recluso tem autonomia.

3 - A expressão “grau de autonomia incompatível com a normal permanência em meio prisional” constante do nº 1 do artigo 3º aponta cristalinamente para o conceito de “autonomia pessoal” em ambiente prisional.

4 - Trata-se de apurar qual a situação factual, pessoal, em que se encontra o recluso tendo por referência a sua idade, estado de saúde e as condições do estabelecimento prisional, tendo em vista apurar se o mesmo (o recluso) apresenta um grau de autonomia compatível com – no caso – a permanência no estabelecimento prisional ou se, ao invés, essa autonomia pessoal inexiste e, por isso, a situação do recluso é potencialmente perigosa.

5 - A existência de uma ou mais doenças – com mais ou menos de 65 anos de idade – que incluam o recorrente num grupo de risco, tal como definido pela D.G.S. não implicam de forma automática um desagravamento das medidas cautelares, nem um regime de diminuição pessoal das necessidades cautelares.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

Nos autos de Inquérito que corre termos no Juízo de Instrução Criminal de Setúbal, J2, por despacho proferido em 04-05-2020, a Mmª. Juíza manteve a medida de prisão preventiva ao arguido (…) à data indiciado pela prática de crimes de roubo qualificado, furto qualificado e burlas.

Inconformado com tal decisão o arguido interpôs o presente recurso, com as seguintes conclusões:

1. Atenta a situação excecional provocada pela pandemia do Covid 19, o arguido requereu a alteração da sua MC de Prisão Preventiva, pugnando que a mesma fosse revogada e substituída pela MC de OPHVE a cumprir na morada do TIR.

2. Após a entrada em vigor da Lei 9/2020, o arguido requereu a nulidade/irregularidade do Despacho que manteve a MC de prisão preventiva, o qual referia sem mais que o arguido era saudável, não resultando dos autos de que sofresse de qualquer doença ou patologia.

3. Contudo, tal não corresponde, de todo à verdade, sendo o arguido portador de Hepatite C e HIV, sendo que o arguido solicitou os respetivos relatórios médicos aos Serviços Clínicos do Estabelecimento Prisional onde se encontra recluído, os quais juntou aos autos.

4. Sucede que, pese embora o arguido padeça de duas patologias crónicas graves, o Merítissimo Juiz do Tribunal a quo, proferiu o Despacho recorrido com a referência 90261927.

5. Pugnando na presente peça Recursória que o Despacho alvo do presente Recurso, seja revogado e substituído por outro que aplique ao Arguido ora Recorrente, Medida de Coação não privativa da liberdade, ou em última ratio, a Medida de Coação de Obrigação de Permanência na Habitação sob Vigilância Eletrónica.

6. De facto, o arguido ora recorrente não se conforma, nem pode de modo algum conformar-se com o entendimento plasmado no despacho recorrido.

7. O arguido ora recorrente, requereu alteração da MC de prisão preventiva tendo em conta a situação excecional provocada pela pandemia de Covid 19.

8. De facto, o racíocinio do arguido não foi de todo descabido, pois houve até a necessidadede legislar tal matéria.

9. O legislador criou o art.º 7º, impondo desde logo que todas as MC de prisão preventiva fossem revistas, independentemente do decurso do prazo de 3 meses.

10. Reforçando desde logo, que sobretudo quando os arguidos estiverem em alguma das situações previstas no nº 1 do art.º 3 da Lei 9/2020 de 10/04.

11. Pese embora, para haver lugar à aplicação do indulto os requisitos sejam cumulativos, ou seja, idade igual ou superior a 65 anos e doença física ou psíquica ou grau de autonomia incompatível com a normal permanência em meio prisional.

12. A verdade é que, no art.º 7º o legislador expressamente previu que todas as MC de Prisão Preventiva, deveriam ser revistas independentemente do prazo de 3 meses, sobretudo quando os reclusos estiverem em alguma das situações previstas no art.º 3º nº 1.

13. Ou seja, em primeiro lugar o legislador previu a necessidade de rever todas as MC de prisão preventiva, sobretudo, quando os reclusos estiverem em alguma das situações presvistas nº art.º 3 nº 1.

14. Assim, não previu que tais requisitos se verificassem cumulativamente, ao invés previu expressamente: em alguma das situações, querendo com isto dizer, ou na situação de idade igual ou superior a 65 anos, doença física ou psíquica, grau de autonomia incompativel com a normal permanência em contexto prisional.

15. Não se conformando o arguido com o despacho proferido, uma vez que, a Meritissima Juiz do Tribunal a quo entendeu que os requisitos eram cumulativos, e que o arguido não preenchia o requisito da idade.

16. O que de todo não corresponde à verdade, o legislador foi expresso quandquando escreveu “ em alguma das situações”.

17. Por outro lado, dizer-se que o arguido ainda que sofra de hepatite c e HIV, tais problemas não são incompativeis com a atual situação de reclusão, ainda que no atual contexto de pandemia, mormente sujeito à necessária medicação adequada a tais problemas, é uma atrossidade.

18. O VIH é o vírus da imunodeficiência humana que causa a SIDA. O vírus ataca e destrói o sistema imunitário do nosso organismo, isto é, destrói os mecanismos de defesa que nos protegem de doenças.

19. Naturalmente, e sem serem necessários grandes conhecimentos na área da medicina, facilmente se conclui que os doentes com HIV são doentes de risco para o Covid 19.

20. Por outro lado, não se diga que o facto do arguido estar sujeito à medicação adequada, no caso, toma retrovirais diariamente o protege por si só do Covid 19.

21. O arguido não sendo saudável, está mais suscetível a ser contagiado e mais suscetivel a desenvolver uma infeção grave, uma vez que, as suas defesas são muito mais baixas que as de qualquer outra pessoa que não padece de HIV.

22. Se o art.º 7º da Lei 9/2020 não se aplica ao arguido, aplica-se então em que situações.

23. Por outro lado, a necessidade de criação desta Lei deveu-se como a Merítissima Juiz a quo bem sabe, ao facto da população reclusa ser uma população de alto risco.

24. Atenta a sobrelotação dos Estabelecimentos Prisionais, atentas as conhecidas defeciências a nível alimentar, atento o grande número de toxicodependentes e portadores de HIV, e atentas ainda as dificuldades de higiene da própria população e dos espaços.

25. Foi por essas razões que o Parlamento Português, aprovou, na tarde quarta-feira dia 8 de Abril de 2020, um regime especial que permitisse libertar milhares de reclusos.

26. O objetivo, foi exatamente o de diminuir a lotação das cadeias.Tal medida, foi amplamente defendida por entidades de apoio aos direitos humanos e especialistas em saúde pública.

27. A ministra da Justiça, Dra. Francisca Van Dunem, foi pessoalmente ao Parlamento para apresentar os argumentos pela libertação dos reclusos em Portugal, que tem a quarta população prisional mais envelhecida da Europa."Nós estamos aqui a falar de atos de graça em um contexto que pode haver muitas mortes. Não vale a pena demonizarmos o perdão. A única ideia que nos move é evitar uma catástrofe", disse Van Dunem."Estudos indicam que um caso de Covid-19 nos estabelecimentos prisionais permite, numa semana, uma contaminação de 200 reclusos, e a partir daí os dados são geométricos. A propagação do vírus numa cadeia faz-se como um rastilho", completou.

28. Em nota, o Ministério da Justiça destacou ainda, que a medida visa proteger também os funcionários das prisões e que segue um apelo feito pela ONU "para que os países membros estudassem formas de proteger os reclusos particularmente vulneráveis à Covid-19, designadamente os mais idosos, os doentes e os infratores de baixo risco.

29. Também a OMS (Organização Mundial de Saúde) venha chamando a atenção para o risco de transmissão nas prisões e da necessidade de os países criarem planos de resposta, a questão prisional é polêmica em várias partes do mundo.

30. No caso dos autos, veio o arguido ora recorrente requerer a substituíção da MC de Prisão Preventiva pela MC de OPHVE, ou seja, uma MC igualmente privativa da liberdade.

31. Como é reconhecido por todos, o artigo 27º, da CRP, consagra o princípio geral do direito à liberdade e segurança, contemplando as apertadas exceções que existem em relação ao mesmo.

32. A aplicação das medidas de coação está enquadrada na confluência de valores antagónicos: de um lado, a procura da verdade e da segurança; de outro, a dignidade da pessoa humana.

33. Para a convergência dos valores neste difícil equilíbrio, em que se deve ter sempre presente o princípio da presunção de inocência do a arguido, o legislador sujeitou a aplicação das medidas de coação a vários princípios (a ponderação abstrata), que se devem entender como regras regulamentadoras da decisão do caso em apreciação pela autoridade judiciária (a ponderação concreta), do objetivo dali resultante, a compatibilização prática dos indicados valores.

34. Neste quadro, é preciso ter bem presente o carácter excecional das medidas de coação, perante a restrição que representam nos direitos fundamentais dos cidadãos, direitos esses que resultam do artigo 18º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.

35. Por isso, compreende-se que se imponham vários princípios processuais para a aplicação de tais medidas de coação, desde logo, os de necessidade, legalidade, tipicidade, proporcionalidade e adequação, especialidade e subsidiariedade (quanto à prisão preventiva).

36. Para aplicação desta MC tem que se aferir, através de factos concretos e objetivos, do perigo de fuga (este perigo tem que ser concreto e atual) do perigo da continuação da atividade criminosa e terá que se concluir, com base em factos concretos e objetivos, que mais nenhuma MC se revelam suficientes e adequadas a acautelar tais perigos.

37. A natureza excecional e subsidiária da prisão preventiva estão, desde logo, consagradas no art.º 28 nº 2 da CRP.

38. Com a revisão operada pela Lei nº 48/2007 de 29 de Agosto, também a OPH assume natureza subsidiária, como impõe o nº 2 do art.º 193.

39. Como resulta dos preceitos constitucional e legal referidos, a prisão preventiva e a OPH, ainda que adequadas e proporcionais à gravidade do crime indiciado, só podem ser aplicadas quando as restantes medidas de coação se revelarem insuficientes ou inadequadas ao caso concreto.

40. Assim se outras medidas de coação se revelarem de igual forma suficientes e adequadas face às exigências cautelares de um concreto processo penal em curso, não deverão ser escolhidas quer a prisão preventiva, quer a Obrigação de Permanência na Habitação, em obediência ao princípio da subsidiariedade de ambas.

41. Efetivamente, não pode nunca perder-se de vista o princípio constitucional da presunção de inocência, que impõe que as medidas de coação sejam, na maior medida possível, compatíveis com o estatuto processual da inocência inerente à fase em que se encontram os arguidos a quem são aplicadas e por isso que, ainda que legitimadas pelo fim, devam ser aplicadas as menos gravosas, desde que adequadas.

42. Assim sendo, e tendo em conta o princípio da equidade e o princípio da proporcionalidade e da necessidade que deve estar na base de qualquer decisão judiciária – mesmo que se trate de uma decisão de aplicação da MC - o Tribunal a quo jamais deveria aplicar ao ora Recorrente uma MC que não seja, adequada, necessária e proporcional às necessidades cautelares do caso em apreço.

43. A aplicação das medidas de coação, com a exceção do TIR, não depende, apenas da existência de indícios, e de indícios fortes, da prática do crime e dos requisitos específicos definidos na lei para cada uma delas.

44. Saliente-se, ainda que, no que diz respeito ao uso dos meios de coação em processo penal, haverá sempre que respeitar os princípios da legalidade (artigos 29.º, nº 1, da CRP, e 191º do CPP), excecionalidade e necessidade (artigos 27º, nº 3 e 28º, nº 2, da CRP, e 193º, do CPP), adequação e proporcionalidade (art.º 193º do CPP), como emanação do princípio constitucional da presunção da inocência do arguido, contido no artigo 32°, nº 2, da Constituição.

45. No que diz respeito ao perigo de continuação da atividade criminosa, quanto à inexistência real e concreta deste perigo, na medida em que o simples facto de o arguido ter já passado criminal.

46. Para além disso, e como supra se referiu também, se ao ora Recorrente fosse aplicada a MC de OPHVE esse perigo de continuação da atividade criminosa continuaria a ser nulo, na medida em que o Arguido confinado na habitação indicada, não poderia praticar crimes de índole semelhante.

47. Importa referir que, a aplicação de uma medida de coação não pode servir para acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas tão só a continuação da atividade criminosa pela qual o arguido está indiciado.

48. A não ser assim, estar-se-ia a aplicar ao arguido não uma medida de coação de natureza meramente cautelar, num concreto processo penal em curso, mas sim uma medida de segurança, que nem a lei substantiva permite a sua aplicação a qualquer pessoa com o fim de prevenir a sua eventual atividade criminosa.

49. Em resumo, há que considerar NÃO VERIFICADOS, em concreto, os perigos de fuga e, ainda, o perigo da continuação da atividade criminosa.

50. A medida de coação deve ser idónea para satisfazer as medidas cautelares do caso, sendo escolhida em função da finalidade a que se destina, ou seja, como resulta do nº 1 do artigo 193º do CPP, “deve ser adequada às exigências cautelares que o caso requerer”, (princípio da adequação).

51. Por seu turno, enfatize-se que o princípio da proporcionalidade das medidas de coacção, significa que a medida a aplicar deve ser proporcionada à gravidade do crime e à sanção que previsivelmente venha a ser praticada ao arguido em razão da prática do crime, devendo para tanto atender-se a todas as circunstâncias que em geral devem ser consideradas para a determinação da medida da pena.

52. Deste modo, outra medida de coacção, ainda, que privativa da liberdade, nomeadamente a OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO prevista no art.º 201 do C.P.P, responde de forma adequada e suficiente às exigências cautelares que o caso reclama, é proporcional à gravidade do crime indiciado e à sanção que, previsivelmente será aplicada ao recorrente.

53. Há que atentar desde logo para a natureza excecional e subsidiária da prisão preventiva está, desde logo, consagrada no art.º 28 nº 2 da CRP. 54. Com a revisão operada pela Lei nº 48/2007 de 29 de Agosto, também a OPH assume natureza subsidiária, como impõe o nº 2 do art.º 193.

55. Como resulta dos preceitos constitucional e legal referidos, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação, ainda que adequadas e proporcionais à gravidade do crime indiciado, só podem ser aplicadas quando as restantes medidas de coacção se revelarem insuficientes ou inadequadas ao caso concreto.

56. Assim se outras medidas de coacção se revelarem de igual forma suficientes e adequadas face às exigências cautelares de um concreto processo penal em curso, não deverão ser escolhidas quer a prisão preventiva, quer a obrigação de permanência na habitação, em obediência ao princípio da subsidiariedade de ambas.

57. No caso concreto é aplicável quer a prisão preventiva quer a obrigação de permanência na habitação.

58. Impõe o nº 3 do art.º 193º, que deve ser dada preferência à OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO, sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares, o que se compreende, face à sua natureza menos gravosa que a prisão preventiva.

59. Efectivamente, não pode nunca perder-se de vista o princípio constitucional da presunção de inocência, que impõe que as medidas de coacção sejam, na maior medida possível, compatíveis com o estatuto processual da inocência inerente à fase em que se encontram os arguidos a quem são aplicadas e por isso que, ainda que legitimadas pelo fim, devam ser aplicadas as menos gravosas, desde que adequadas.

60. Dito isto, e no âmbito da apreciação que foi feita até aqui, há que retirar a devida consequência, isto é, estão reunidas as condições para que o arguido fique com obrigação de permanência na habitação, nos termos do artigo 201º do CPP, medida esta adequada, por suficiente, à gravidade dos factos indiciados nos autos e aos perigos, ou melhor, à falta dos perigos, referidos, mas não justificados em concreto, no Douto Despacho Recorrido.

61. Face ao supra exposto, justifica-se a substituição da MC de Prisão Preventiva, pela MC de OPHVE, seja para a casa do Arguido, ou caso assim não se entenda para a casa deste sita em Elvas, desde que a morada agora indicada revele reunir as condições adequadas para tal, devendo para o efeito ser elaborado o competente relatório pelos Serviços da DGRSP.

62. “Afigura-se que a medida de coação de prisão preventiva decretada é excessiva nesta fase do procedimento criminal (decorridos estão vários meses sobre a detenção dos arguidos e tendo já havido a recolha da prova necessária), a qual, por isso, pode e deve ser substituída pela medida de prisão domiciliária do arguido, a qual, acompanhada da medida de vigilância eletrónica, permitirá controlar os movimentos deste arguido e, por esta via, impedir a continuação da atividade criminosa.” – NESTE SENTIDO PRONUNCIOU-SE ACÓRDÃO PROFERIDO NO PROCESSO Nº 435/18.2 GBPBL EM 8 DE MAIO DE 2019, PELO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIM


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Apresentou resposta a Digna magistrada do Ministério Público com as seguintes conclusões:

A) Assiste razão ao recorrente apenas quando defende que os pressupostos para a revisão da medida de coacção imposta pelo Artº 7º, nº 1, da Lei nº 9/2020 de 10 de Abril, previstos no Artº 3º, nº 1 do mesmo diploma legal por remição da primeira norma mencionada, não são cumulativos, mas sim alternativos;

B) Apesar disso, o Artº 7º, nº 1 impõe a revisão do estatuto coactivo, mas não o seu desagravamento;

C) O que se pretende com o regime excepcional criado pela Lei nº 9/2020 de 10 de Abril é garantir que os arguidos que se mostrem especialmente vulneráveis em ambiente prisional, face ao perigo de contágio que se pretende evitar no âmbito da pandemia, sejam subtraídos ao ambiente prisional sempre que as necessidades cautelares que concretamente se coloquem o permitam;

D) Embora os problemas de saúde o recorrente o tornem mais vulnerável em caso de contágio, o mesmo apresenta-se em boas condições físicas e com um grau de autonomia que lhe permite cumprir as regras destinadas ao controlo do perigo de contágio no interior do estabelecimento prisional;

E) As necessidades cautelares que se verificam no caso dos autos não permitem que, face ao concreto estado de saúde do arguido, se desgrave o seu estatuto coactivo.


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Nesta Relação, a Exmª Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência total do recurso.

Foi observado o disposto no nº 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal.


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B - Fundamentação:

B.1 - Os elementos de facto relevantes constam do antecedente relatório e do teor do despacho recorrido.

O despacho recorrido tem a data de 04-05-2020 e o seguinte teor:

«Inqº. nº 299/17.3GBASL

Vi o aditamento do relatório.

Dos relatórios médicos (relatório e aditamento) que constam dos autos, resulta que o arguido (…) sofre de HIV, hepatite C, toxicodependência e história de fractura de clavícula direita.

Apresenta “boa condição física”, “com mobilidade física completa”, apesar do Exmº Médico do E.P. informar que tais problemas de saúde condicionam o seu grau de autonomia em meio prisional, não se explicando por que razão.

Nos termos do Artigo 7º da Lei nº 9/2020 de 10/04, o Tribunal tem que, ainda que oficiosamente, reapreciar os pressupostos de aplicação das medidas de coacção da prisão preventiva (o que já fez anteriormente), qual sejam os requisitos da necessidade, adequação e suficiência, com relevo para a necessidade, nomeadamente quando os arguidos estiverem em alguma das situações elencadas no Artigo 3º, nº 1 do C.P.P., isto é quando tenham idade igual ou superior a 65 anos e doença física psíquica, ou grau de autonomia incompatível com a normal permanência em meio prisional, em contexto de pandemia.

A nosso ver, tais requisitos são cumulativos, não preenchendo o arguido um deles, qual seja a idade. Por outro lado, o arguido é pessoa autónoma, conforme resulta da menção a mobilidade física completa e, apesar de tais problemas de saúde goza de “boa condição física”.

Por outro lado, ainda que o arguido sofra de hepatite e HIV, não se vislumbra que tais problemas de saúde sejam incompatíveis com a sua actual situação de reclusão, ainda que no actual contexto de pandemia, mormente se sujeito à necessária medicação adequada a tais problemas de saúde.

Finalmente, conforme já se referiu em despacho anterior de revisão oficiosa da aludida medida de coacção, a prisão preventiva continua a manter-se necessária (face aos ilícitos indiciados, à conduta do arguido indiciariamente perpetrada, de grande gravidade), suficiente e adequada, sendo que o arguido se encontra indiciado da prática de crimes de roubo, roubo qualificado, burla e furto qualificado, apresentou versão incoerente para os factos, tem numero elevado de antecedentes criminais e a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação não permite obstar à continuação da actividade criminosa do arguido mormente quanto a eventuais e futuros crimes de burla, sendo passíveis de os mesmos serem praticados via meios à distância, via telefónica e outros.

Por outro lado, só a medida de coacção da prisão preventiva de modo absoluto permite obstar à concretização dos demais perigos cautelares, incluindo continuação da actividade criminosa e perturbação do inquérito, no que toca à genuinidade da prova já produzida, mormente por referência a testemunhas relevantes nos autos e teor e contéudo das declarações já prestadas pelos mesmos.

Desta maneira, consideramos que se mantêm, apesar da situação de pandemia, tais requisitos para aplicação da medida de coacção da prisão preventiva, que se deve manter e que se revê.

DECISÃO:

Termos em que, face ao disposto no Artigo 213º, nº 1, al. a) do CPP e Artigo 7º da Lei nº 9/2020 de 10/04, se mantém e revê a medida de coacçaõ da prisão preventiva aplicada ao arguido (…).

Notifique e DN.»


***

Cumpre conhecer

B.2 – É consabido que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação. Vistas estas, uma é no essencial a questão a abordar: existem condições processuais para alterar a medida de coacção de prisão preventiva aplicada ou, utilizando terminologia actualista, essa alteração impõe-se por imposição pandémica?

Responder a esta questão implica a resposta prévia a outras questões que se prendem com a actual situação sanitária do país e uma abordagem – igualmente prévia – à legislação entretanto tornada pública.

O recurso do arguido não reivindica a existência de qualquer facto novo que tenha ocorrido e tenha peso na alteração da decisão anterior.

Porque são duas coisas distintas: o recorrer de um despacho que aplica uma medida de coacção; o recorrer de um despacho que mantém uma medida já aplicada. Daí que a al. b) do nº 1 do artigo 212º do Código de Processo Penal refira como causa de revogação imediata da medida de coacção a alteração das circunstâncias que justificaram a sua aplicação.

E, de facto, nada de novo ou de impugnante do despacho é adiantado pelo recorrente. Nem sequer o tempo decorrido. No caso, é o surgimento da pandemia e da legislação que a acompanha o elemento diferenciador na visão do arguido. Centra-se o recurso, no essencial, na necessidade de alteração da medida de coacção de prisão preventiva por imposição legal, designadamente por aplicação da Lei nº 9/2020, de 10-04, concretamente o seu artigo 7º.

A Lei n.º 9/2020 veio constituir um “regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID -19”, estabelecendo 4 figuras inovadoras no seu articulado, de que o seu artigo 1º é bem elucidativo:


Artigo 1.º

Objeto


1 — A presente lei estabelece, excecionalmente, no âmbito da emergência de saúde pública

ocasionada pela doença COVID -19, as seguintes medidas:

a) Um perdão parcial de penas de prisão;

b) Um regime especial de indulto das penas;

c) Um regime extraordinário de licença de saída administrativa de reclusos condenados;

d) A antecipação extraordinária da colocação em liberdade condicional.

Estas quatro medidas espraiam-se pelos artigos 2ª a 5ª com as epígrafes que vão indicadas: Artigo 2.º - Perdão; Artigo 3.º - Indulto excecional; Artigo 4.º - Licença de saída administrativa extraordinária; Artigo 5.º - Adaptação à liberdade condicional.

O diploma dispõe de outros preceitos secundários e/ou acessórios (artigos 6º, 8º e 9º) e um tertium genus – como não podia deixar de ser – de difícil qualificação. Trata-se da previsão do artigo 7º do diploma que tem por objecto o reexame dos pressupostos da prisão preventiva.

Esta figura vem classificada pela Prof. Fernanda Palma no seu artigo «Comentários de emergência” à lei do perdão das penas» como uma quinta figura a considerar - cidpcc.wordpress.com/2020/04/10/artigos – atribuindo-lhe, no entanto, pouco relevo autónomo e distintivo para além da necessidade de reexame independentemente do prazo legal de 3 meses.

Já Nuno Brandão nem aborda o artigo, analisando apenas as quatro indicadas figuras jurídicas da classificação legal [«3. A Lei n.º 9/2020 prevê: a) um perdão parcial de penas de prisão (art. 2.º); b) um regime especial de indulto das penas (art. 3.º); c) um regime extraordinário de licença de saída administrativa de reclusos condenados (art. 4.º); e d) a antecipação extraordinária da colocação em liberdade condicional (art. 5.º)”] – in «A libertação de reclusos em tempos de COVID-19. Um primeiro olhar sobre a Lei n.º 9/2020, de 10/4» - Julgar Online, abril de 2020, pags. 5 e 6.

O nosso colega Pedro Soares de Albergaria, com outra intenção e metodologia foi quem mais centradamente abordou o tema no seu artigo «Nótula sobre o âmbito objectivo e subjectivo da obrigação de reexame dos pressupostos da prisão preventiva na L 9/2020, de 10 de Abril», in Julgar Online, 10 de abril de 2020.

Delimita o âmbito objectivo de aplicação da norma concluindo que a revisão da prisão preventiva dos reclusos imposta no n.º 1 do art. 7 se estende àqueles que não foram abrangidos pelas medidas de graça (arts. 2.º/6 e 3.º/5) e quanto ao seu âmbito subjectivo de aplicação a norma abrange quaisquer reclusos e não se mostra “limitada aos reclusos presos preventivamente que sejam “portador(es) de doença, física ou psíquica, ou de um grau de autonomia incompatível com a normal permanência em meio prisional, no contexto desta pandemia”.

E o colega conclui, bem, que o nº 2 do artigo 7º da Lei nº 9/2020 é uma redundância, para além da previsão de exigência de uma “manifesta” inadequação ou insuficiência de outras medidas, com a consequente desincentivação da sua aplicação numa realidade que se alterou via pandemia e onde devem (deviam) ser atendidas as dificuldades dos estabelecimentos prisionais face à eclosão potencial da doença.

Diferentemente, no caso concreto, trata-se de apurar se a medida de coacção deve ser mantida, não se deve ser aplicada.

Nós entendemos também que até o nº 1 do preceito tem préstimo reduzido, para além da imposição de não sujeição do reexame da medida de coacção aplicada ao prazo de três meses, já que a referência ao artigo 3º, nº 1 da Lei 9/2020 sempre resultaria de uma natural apreciação de pressupostos da situação – da aplicação ou revogação da medida de coacção – em função de uma nova situação de facto, a existência de uma pandemia por SARS-CoV-2.

Mas, admitimos, a definição de um critério diferenciador das situações de facto a aconselhar uma alteração das medidas coactivas poupa muito labor jurisprudencial por prazo que sempre seria excessivo. E esse critério diferenciador consta do artigo 3º, nº 1 da Lei 9/2020 para o qual o artigo 7º faz expressa remissão.

Essa referência no artigo 7º, nº 1 ao artigo 3º, nº 1 no entanto não pode ser vista como uma remissão estritamente legal, como se a interpretação a fazer àquele preceito devesse ser encarada como um “espelho” da interpretação feita neste para efeitos de indulto.

Trata-se, bem ao invés, de mera remissão factual, de fazer apelo às circunstâncias de facto ali previstas, os casos em que o “recluso que tenha 65 ou mais anos de idade à data da entrada em vigor da presente lei e seja portador de doença, física ou psíquica, ou de um grau de autonomia incompatível com a normal permanência em meio prisional, no contexto desta pandemia”.

Ou seja, nem se trata de “requisitos”, nem de saber se são cumulativos ou meramente alternativos numa análise seca e estéril, formal, “de direito”. Isso é irrelevante! O que releva é saber se o recluso tem autonomia.

Trata-se de apurar qual a situação factual, pessoal, em que se encontra o recluso tendo por referência a sua idade, estado de saúde e as condições do estabelecimento prisional, tendo em vista apurar se o mesmo (o recluso) apresenta um grau de autonomia compatível com – no caso – a permanência no estabelecimento prisional ou se, ao invés, essa autonomia pessoal inexiste e, por isso, a situação do recluso é potencialmente perigosa.

É claro que o legislador, na urgência, olvidou o significado inicial e actual de “autonomia” aplicando-o a uma realidade onde essa “autonomia” no sentido puro não existe. Autonomia tem o significado forte – sinónimos - de “emancipação”, “independência”, “liberdade”, “autogoverno”, “autossuficiência”, “emancipação”, “soberania”, realidades de que um recluso não dispõe, já que a sua situação se define precisamente pela restrição desses direitos.

Mas a expressão “grau de autonomia incompatível com a normal permanência em meio prisional” aponta cristalinamente para o conceito de “autonomia pessoal” em ambiente prisional.

E aqui “autonomia” quer significar, per se, intrinsecamente, pela sua própria natureza, “autonomia pessoal” de forma análoga à autonomia pessoal de doente internado em hospital, relevando saber se o mesmo se alimenta a si próprio, trata da sua higiene pessoal de forma independente, se não necessita de ajuda ou apoio para tais actos ou outros essenciais, por se considerar, eventualmente, que essa ausência parcial ou total de autonomia, essa “semi-autonomia”, “autonomia diminuída”, ou mesmo “heteronomia” (no sentido de ausência ou anomalia na autonomia), é um factor agravante do perigo de infecção pandémica, quer para o próprio recluso, quer para os restantes reclusos e funcionários do estabelecimento.

Ora os autos revelam claramente, mesmo depois de junto o aditamento ao relatório médico, que essa falta de autonomia não existe. O dito aditamento – pedido pelo tribunal - fala em “grau de autonomia condicionado” porque o recluso tem 46 anos de idade e “apresenta debilidades de saúde (HIV, Hepatite C, Toxicodependência e história de fractura de clavícula direita)”.

Mas o relatório médico afirma: “Utente consciente, calmo, colaborante, totalmente independente nas atividades do dia a dia, orientado em espaço, tempo e pessoa, responde ao interrogatório adequadamente, com condição física boa, estado mental alerta, ativo, deambula, com mobilidade fica completa, sem incontinências de sistemas, sem anorexia, sem perda do apetite.” Esclarecedor!

E, note-se, o legislador não exige que exista uma qualquer falta de autonomia, impõe que se trate de uma autonomia “incompatível com a normal permanência em meio prisional, no contexto desta pandemia”.

O que consta do relatório médico e seu aditamento é um “nada” em termos de afirmação de falta de autonomia pessoal. Nada do que lá consta diminui essa autonomia de vivência em estabelecimento prisional. Só este a condiciona. Mas essa pode ser uma inerência das necessidades cautelares.

Em conclusão, plena autonomia pessoal do arguido recorrente.

Assim, nada do que consta da Lei 9/2020 condiciona ou altera as necessidades cautelares já existentes no caso concreto nem a natureza da medida de coacção imposta deve ser alterada em função do referido diploma.

Aquilo que se não pode extrair de tal diploma é que ele imponha uma necessária alteração das medidas de coacção ou implique de forma automática um seu desagravamento.

Por fim, a existência de uma ou mais doenças – com mais ou menos de 65 anos de idade [1] – que incluam o recorrente num grupo de risco, tal como definido pela D.G.S. não implicam de forma automática um desagravamento das medidas cautelares, nem um regime de diminuição pessoal das necessidades cautelares ou revogação das normas incriminadoras das condutas imputadas ao recorrente.

Os códigos Penal e de Processo Penal continuam vigentes, os crimes se praticados e provados devem ser punidos, as vítimas continuam a existir e o Estado necessita de manter o seu ius puniendi de forma efetiva. O artigo 7º da Lei 9/2020, norma de mero senso jurídico comum consequente a uma situação de pandemia – e cujo regime deveria ser seguido mesmo sem a sua existência, daí o ser tendencialmente redundante – não é um regimento automático e obrigatório de um regime facilitista para quem sofra de uma das doenças de risco.

Estabelecimentos prisionais com doentes de risco é certamente uma longa história. E certamente haverá que evitar o facilitismo do raciocínio proposto pelo recorrente: tenho uma doença de risco, posso ser infectado no E.P., logo deve ser alterada a medida imposta. O raciocínio exposto pelo recorrente na sua conclusão 17ª é precipitado e não resiste à mais simples análise factual. O que se lhe segue - das conclusões 18ª a 29ª - serão critérios sanitários e epidemiológicos mas não processuais penais.

Como se afirmou supra, a exigência processual determinante centra-se na expressão “grau de autonomia incompatível com a normal permanência em meio prisional” constante do nº 1, do artigo 3º da Lei nº 9/2020, aplicável como critério definidor de necessidade de alteração das medidas de coacção pelo artigo 7º, nº 1 do mesmo diploma e que aponta cristalinamente para a essencialidade do conceito de “autonomia pessoal” em ambiente prisional.

Inexistindo factualmente essa autonomia a alteração impõe-se. O contrário também é verdadeiro: existindo essa autonomia a alteração não se justifica, pelos motivos sanitários e epidemiológicos invocados.


*

Haverá que passar à constatação de que o tribunal recorrido afirmou muito claramente que os riscos inerentes à necessidade de imposição da medida de prisão preventiva são dois, a continuação da actividade criminosa e a perturbação do inquérito, como se impõe recordar:

“…o arguido se encontra indiciado da prática de crimes de roubo, roubo qualificado, burla e furto qualificado, apresentou versão incoerente para os factos, tem numero elevado de antecedentes criminais e a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação não permite obstar à continuação da actividade criminosa do arguido mormente quanto a eventuais e futuros crimes de burla, sendo passíveis de os mesmos serem praticados via meios à distância, via telefónica e outros.

Por outro lado, só a medida de coacção da prisão preventiva de modo absoluto permite obstar à concretização dos demais perigos cautelares, incluindo continuação da actividade criminosa e perturbação do inquérito, no que toca à genuinidade da prova já produzida, mormente por referência a testemunhas relevantes nos autos e teor e contéudo das declarações já prestadas pelos mesmos.”

Ou seja, não houve qualquer invocação no despacho recorrido de um perigo de fuga de que o arguido trata nas suas conclusões 36ª, e 45ª a 49ª.

Quanto ao perigo de continuação da actividade criminosa, apesar de o arguido afirmar que ele inexiste em regime de permanência na habitação, isso só será verdadeiro para parte dos crimes indiciados, roubo qualificado e furto qualificado, que não para os crimes de burla.

Mas o arguido olvidou em conclusões o outro perigo invocado pelo tribunal recorrido, o de perturbação do inquérito, não obstante o referir em motivações nos seguintes termos:

Acresce que o Despacho recorrido não aponta qualquer facto concreto que indicie ter o arguido em preparação ou em marcha ou simplesmente em projeto qualquer das condutas acima referidas (nomeadamente, pressões sobre o Ofendido e as testemunhas).

Assim, é de concluir, pois, pela inexistência, em concreto, dos invocados perigos de perturbação do decurso do inquérito da ordem e tranquilidade públicas. - Fls. 5619 a 5620 vª.

Tendo presente que o recorrente deveria ter sido, em devido tempo, convidado a completar as suas conclusões em obediência a pregressa jurisprudência constitucional que veio a ser concretizada no nº 3 do artigo 417º do C.P.P., o tribunal conhecerá desta invocação tendo em vista evitar um atraso insuportável no conhecimento do recurso.

A tese invocada pelo recorrente tem algum suporte doutrinal – o de que o perigo de perturbação do inquérito deve ser concreto – mas apresenta o inconveniente do que é excessivamente teórico e proveniente de advogados de barra em efectivo exercício de funções, a defesa tendencial de teses favoráveis aos arguidos om olvido dos perigos potenciais e evidentes, lesivos de vítimas e dos interesses de perseguição penal do Estado.

Que é como quem diz, aqui basta a potencialidade concretizável do perigo para que ele seja atendível. Recorde-se que o processo foi declarado de especial complexidade dado o número de arguidos e ofendidos, apresenta crimes que integram o conceito de “criminalidade violenta” e o arguido tem antecedentes criminais. E tanto basta para que o perigo de perturbação do inquérito e da tranquilidade pública se baste como potencial mas altamente previsível na sua concretização para que ele deva ser considerado.

O recorrente olvidou igualmente nas suas conclusões a alegação de inconstitucionalidade imputada ao despacho recorrido nas suas motivações a fls. 5615 vº.

Pelas mesmas razões conheceremos da alegada inconstitucionalidade. No entanto e porque esta não pode ultrapassar o fixado nas motivações (teor de jurisprudência constitucional anterior e do actual nº 4 do artigo 417º do C.P.P.), essa alegação limita-se a este trecho:

Ora a argumentação levada a cabo pelo Douto Tribunal de 1ª instância é com todo o respeito INCONSTITUCIONAL, por violação dos princípios da legalidade, adequação, proporcionalidade e subsidiariedade.

Ao decidir como decidiu, o Despacho que aplicou as Medidas de Coação, violou o disposto nos artigos 18º nº 2, 27º nº 3, 28º nº 2 e 32º nº 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa. - INCONSTITUCIONALIDADE QUE DESDE JÁ SE ALEGA E REQUER PARA OS DEVIDOS EFEITOS LEGAIS.

E sendo certo que as respectivas conclusões, se tivesse havido convite ao seu completamento, não o poderiam ultrapassar, resta-nos concluir – conhecendo – que não se vislumbra que a decisão do tribunal recorrido se mostre eivada de interpretação normativa violadora dos princípios da legalidade, adequação, proporcionalidade e subsidariedade.

É sabido que a verificação de qualquer alteração das circunstâncias de facto e de direito implica a modificabilidade da decisão, não só no sentido de ser permitida essa alteração, como no sentido do dever de proferir nova decisão adequada, suficiente, necessária e proporcional para satisfação das exigências cautelares do caso concreto. Naturalmente que, não havendo alteração das circunstâncias de facto e de direito que sejam favoráveis ao arguido haverá que constatar – e apenas – isso mesmo. E, mantendo-se os perigos evidenciados, mantêm-se as necessidades cautelares que determinaram a sujeição do arguido a prisão preventiva.

Assim, é improcedente o recurso interposto por todas as indicadas razões.


*

C - Dispositivo:

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste tribunal em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.

Comunique de imediato ao tribunal recorrido, independentemente do trânsito em julgado da decisão.

Notifique.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) U.C.s.

Évora, 08 de Setembro de 2020

(Processado e revisto pelo relator)

João Gomes de Sousa

Sérgio Bruno Povoas Corvacho (votei vencido)

Gilberto Cunha (Presidente de Secção)


Declaração de Voto

A Lei nº 9/2020 de 10/4 aprovou um regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19.

A instituição desse regime tem por finalidade a protecção da população prisional e, em especial, os reclusos da contaminação com vírus da COVID 19, por se pressupor que as características do meio em que estão confinados potenciam o contágio.

Tal regime como principal aspecto o perdão de penas previsto no art. 2º da Lei em referência, o qual tem como função a redução da população encarcerada, com a consequente diminuição dos perigos de contaminação.

O nº 1 do art. 3º do mesmo diploma legal prevê a possibilidade de um indulto excepcional para reclusos em condições de especial vulnerabilidade, incluindo «doença física ou psíquica».

Finalmente, o nº 1 art. 7º da Lei nº 9/2020 de 10/4 impõe a revisão da prisão preventiva dos arguidos, fora do prazo previsto no art. 212º do CPP, sobretudo, dos que se encontrem nas situações descritas no nº 1 do art. 3º.

O arguido recorrente é comprovadamente portador da doença VIH, a qual lha ataca o sistema imunológico, o que o torna especialmente vulnerável à contaminação, independentemente, se bem se compreende, do seu estado de saúde actual ou do seu maior ou menor grau de autonomia pessoal.

Nestas condições, afigura-se-me que se justificará a substituição da prisão preventiva, a que o arguido está sujeito, pela medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, prevista no art. 201º do CPP.

Como é evidente, não está em causa a alteração do juízo de indiciação ou de avaliação das exigências cautelares, que esteve na origem da aplicação da prisão preventiva, mas sim o acionamento do regime protector previsto na Lei nº 9/2020 de 10/4.

Pelo contrário, não tem qualquer justificação a aplicação ao recorrente de um regime coactivo não privativo de liberdade, conforme por ele peticionado, em primeira linha, ficando os imperativos de protecção adequadamente satisfeitos com a retirada do arguido do universo prisional e seu confinamento a uma residência.

Consequentemente, teria concedido provimento parcial ao recurso, determinando a substituição da prisão preventiva pela obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica

Évora 8/9/20 (processado e revisto pelo signatário)

(Sérgio Bruno Povoas Corvacho)

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[1] - Os grupos de Risco para COVID 19 incluem (https://covid19.min-saude.pt/perguntas-frequentes/)

Pessoas idosas;

Pessoas com doenças crónicas – doença cardíaca, pulmonar, neoplasias ou hipertensão arterial, entre outras;

Pessoas com compromisso do sistema imunitário (a fazer tratamentos de quimioterapia, tratamentos para doenças auto-imunes (artrite reumatoide, lúpus, esclerose múltipla ou algumas doenças inflamatórias do intestino), infeção VIH/sida ou doentes transplantados.