Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
949/20.4T8FAR.E1
Relator: FLORBELA MOREIRA LANÇA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
INDEMNIZAÇÃO POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DIREITOS DE AUTOR
Data do Acordão: 10/22/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I.A determinação do tribunal materialmente competente para o conhecimento da pretensão deduzida pelo demandante deve partir do teor da pretensão e dos fundamentos em que se estriba, sendo, para este efeito, irrelevante o juízo de prognose que se possa fazer relativamente à viabilidade da mesma.
II. Sendo peticionada indemnização, por danos não patrimoniais, fundamentando-se tal pretensão na falta de diligência, de actuação, de fiscalização das RR., de quem é associado, na defesa do direito de autor e dos direitos conexos, resultando os invocados danos não patrimoniais da omissão por parte das apeladas da protecção dos direitos de autor e conexos do apelante, a resolução do litígio não passa pelo conhecimento das questões de existência de direito de autor e direitos conexos, da declaração de tais direitos, ou da sua violação e respectivas consequências.
III. Face à configuração da demanda pelo A., nos termos alegados na p.i., não passando a resolução do litígio a que respeitam os presentes autos pelo conhecimento de questões de existência de um direito de autor ou de direitos conexos, da violação e respectivas consequências, impõe-se concluir que são materialmente competentes para dirimir o litígio, os tribunais cíveis. (sumário da relatora)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NA 1.ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I.Relatório
S… propôs a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra S…, CRL e G…, pedindo a condenação de cada uma delas, no montante de € 70.000,00, a título de danos não patrimoniais.
Conclusos os autos, foi proferido o seguinte despacho:
S… intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra S… CRL e G…, pedindo que, com fundamento na violação dos direitos de autor e direitos conexos, sejam as rés condenadas no pagamento de uma indemnização pelos danos causados.
Cumpre apreciar liminarmente.
Como é sabido, qualquer causa, por força da lei definidora dos pertinentes pressupostos de conexão, deve ser instruída e julgada por determinado Tribunal ou Juízo, do que resulta, entre um e outro, um nexo jurídico de competência.
A competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, salvo no caso de a alteração superveniente do valor da causa implicar a competência de outro Tribunal.
No caso concreto verificamos que, tal como o autor configura na petição inicial, a relação jurídica que se discute na ação é a decorrente da existência de determinados direitos de autor e direitos conexos e a sua violação por terceiros, que o legitima a pedir a condenação das rés no pagamento de determinadas quantias, a título de indemnização, pelos danos causados.
A propósito da competência do Tribunal de Propriedade Intelectual, dispõe o art.º 111.º, n.º1, al. a) da Lei da Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, que compete a este Tribunal conhecer das questões relativas a ações em que a causa de pedir verse sobre direito de autor e direitos conexos.
Como se defende no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17.12.2019, acessível in www.dgsi.pt., “ (…) versar significa ter por objeto ou assunto (...), incidir sobre (...)”.
Como se evidencia, a presente ação versa ou trata, precisamente, saber se ao autor assistem determinados direitos de autor e direitos conexos, que fundamentam o pedido.
Nestes termos, entendemos que a competência para o julgamento do litígio cabe ao Tribunal de Propriedade Intelectual.
Nos termos do disposto nos art.ºs 99.º, n.º 1 e 590.º, do Código de Processo Civil, a verificação da incompetência absoluta do Tribunal implica a absolvição do réu da instância ou, como no presente caso, o indeferimento liminar da petição inicial.
Por todo o exposto, ao abrigo dos citados preceitos legais e do disposto nos artºs 577.º, al.a), 578.º e 590.º, todos do Código de Processo Civil, julgo verificada a exceção de incompetência absoluta e, consequentemente, declaro este Juízo Central Cível da Comarca de Faro incompetente, em razão da matéria, indeferindo liminarmente a petição inicial.
(…)”
O A. não se conformando com o despacho prolatado dele interpôs recurso, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:
“11º
A matéria de facto, alegada na PI no que concerne à G… e S… está em causa a sua responsabilidade Civil por eventual omissão de actuação.
12º
Na presente acção recorrida não estão em causa direitos de autor ou de direitos conexos, a sua violação e respectivas consequências, mas sim a eventual responsabilidade contratual por falta de diligência na cobrança de remunerações devidas.
13º
Aos Juízes Centrais Cíveis compete a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a 50.000,00€ (cinquenta mil euros) Lei n.º 62/2013 art.º 117.º al.a).
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando a sentença proferida pelo Tribunal a quo devendo ser substituída por outra que determine o prosseguimento da instância e assim se fazendo a costumada justiça”.
Os RR., citados para os termos do recurso e da acção não responderam às alegações.
Dispensados os vistos e nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.
II. Objecto do Recurso
Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (art.º 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º e 663.º, n.º 2 do CPC).
A única questão a decidir resume-se a saber se competente para conhecer da presente litígio são os Juízos Centrais Cíveis ou o Tribunal da Propriedade Intelectual.
III. Fundamentação
Para que o Tribunal possa decidir sobre o mérito de um pedido, é, desde logo, indispensável que a acção seja proposta perante o Tribunal competente para a sua apreciação, o que significa que a competência é um pressuposto processual que se determina pelo modo como o autor configura o pedido e a respectiva causa de pedir, que importa analisar antes de se conhecer do fundo da causa, e de que depende poder o Juiz proferir decisão de mérito sobre a mesma, condenando ou denegando a providência judiciária requerida pelo demandante[1].
Com efeito, os pressupostos processuais constituem as condições mínimas de que depende o exercício da função jurisdicional e, no caso da competência, visam assegurar a justiça da decisão, a garantia de que a mesma é dimanada do Tribunal mais idóneo[2].
Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, podendo haver na primeira instância tribunais com competência específica e tribunais especializados para o julgamento de matérias determinadas (art.º 211.º, n.ºs 1 e 2 da CRP).
Os tribunais de comarca desdobram-se em tribunais de competência genérica ou especializada, cabendo-lhe preparar e julgar processos relativos às causas não abrangidas pela competência de outros tribunais (art.º 80.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, doravante LOSJ).
O Tribunal da Propriedade Intelectual é um tribunal de competência especializada (art.º 83.º da LOSJ).
Como vem sendo entendido, a determinação do tribunal materialmente competente para o conhecimento da pretensão deduzida pelo demandante deve partir do teor da pretensão e dos fundamentos em que se estriba, sendo, para este efeito, irrelevante o juízo de prognose que se possa fazer relativamente à viabilidade da mesma, mas sendo igualmente certo que o tribunal não está vinculado às qualificações jurídicas efectuadas pelo requerente.
A competência dos tribunais é aferida em função dos termos em que a acção é proposta, “seja quanto aos seus elementos objectivos (v.g. natureza da providência ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal – ensina Redenti – “afere-se pelo quid disputantum (quid decidendum, em antíntese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”. (…) É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor, compreendidos aí os respectivos fundamentos”[3], ou seja, em consonância com o princípio da existência de um nexo jurídico directo entre a causa e o Tribunal, a competência afere-se pelo quid disputatum ou quid decidendum, em antítese com o que, mais tarde, será o quid decisum. Em suma, a competência determina-se pelo pedido do autor, e tal não depende da legitimidade das partes, nem da procedência da acção, mas antes dos termos em que a mesma é proposta, seja quanto aos seus elementos objectivos, como acontece com a natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, seja quanto aos seus elementos subjetivos[4].
Segundo Manuel de Andrade[5], a competência em razão da matéria atribuída aos tribunais, baseia-se na matéria da causa, no seu objecto, "encarado sob um ponto de vista qualitativo - o da natureza da relação substancial pleiteada."
É, pois, pacífico o entendimento de que o pressuposto processual da competência se determina em função da acção proposta, tanto na vertente objectiva, atinente ao pedido e à causa de pedir, como na subjectiva, respeitante às partes, importando essencialmente para o caso ter em consideração a relação jurídica invocada.
“A competência material do tribunal afere-se pelos termos em que a acção é proposta e pela forma como se estrutura o pedido e os respectivos fundamentos. Daí que para se determinar a competência material do tribunal haja apenas que atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados”[6].
Esta posição está em sintonia com a essência do direito dos cidadãos acederem aos tribunais para verem apreciados os seus direitos (art.º 20.º, n.º 1 da CRP), que reclama que os particulares possam ver apreciados por um órgão jurisdicional os direitos que entendam arrogar-se.
É, pois, a partir da análise da forma como a causa se mostra estruturada na petição que teremos de encontrar as bases para responder à questão de saber qual é a jurisdição competente para o conhecimento da presente ação.
Apreciar-se-á o caso dos autos, à luz dos princípios indicados, atendendo à factualidade invocada pelo apelante na petição inicial e aos argumentos cruzados nas alegações.
Revertendo ao caso concreto, constatamos que o tribunal a quo se declarou materialmente incompetente para a acção, fundando-se no disposto na al. a) do art.º 111.º da LOSJ, porquanto, no seu entendimento, a causa de pedir da presente acção “versa ou trata, precisamente, saber se ao autor assistem determinados direitos de autor e direitos conexos, que fundamentam o pedido”.
Dispõe o art.º 111.º da LOSJ:
“1. Compete ao tribunal da propriedade intelectual conhecer das questões relativas a:
a) Ações em que a causa de pedir verse sobre direito de autor e direitos conexos;
(…)”
“O critério de delimitação de competência do tribunal da propriedade intelectual, nos termos do disposto naquele art.º 111.º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto – acções em que a causa de pedir verse sobre direito de autor e direitos conexos - deve procurar-se no acto de declaração do direito, exigida pela controvérsia em causa na acção, e não apenas na sua circunstância, não bastando a referência ou o versar sobre direito de autor e direitos conexos, sendo também necessário que esteja em causa a declaração desses direitos”.[7]
No caso sujeito, analisada a prolixa, com o respeito sempre devido, e confusa petição inicial, conclui-se que o apelante pede a condenação de cada uma das apeladas no pagamento da quantia de € 70.000,00, a título de responsabilidade civil, por danos não patrimoniais, fundamentando tal pretensão na falta de diligência, de actuação, de fiscalização das RR., de quem é associado, na defesa do direito de autor e dos direitos conexos. Ou seja, os invocados danos não patrimoniais resultarão da omissão por parte das apeladas da protecção dos direitos de autor e conexos do apelante (cfr., entre outros, os art.ºs 11.º a 15.º, 25.º a 27.º, 32.º, 33.º, 38.º, 44.º, 46.º, 87.º e 88.º da p.i.).
Na espécie, a resolução do litígio não passa pelo conhecimento das questões de existência de direito de autor e direitos conexos, da declaração de tais direitos, ou da sua violação e respectivas consequências. Não se discute, pois, o direito de autor e conexos, não sendo este um caso em que o tribunal se deva pronunciar sobre a sua existência, violação e consequências desta, não versando, pois a causa de pedir sobre tal matéria.
Nos termos alegados pelo A. está, pois, em causa a responsabilidade civil das RR. que, pela omissão da sua actuação, na defesa do direito de autor e dos direitos conexos do apelante, associado daquelas, lhe provocou danos não patrimoniais.
Ora, exige a al. a) do n.º 1 do art.º 111.º da LOSJ que “a causa de pedir verse sobre direitos de autor ou conexos”. Como bem refere a decisão recorrida, “versar significa ter por objecto ou assunto (…), incidir sobre (…)”, sendo preclaro que a presente acção não incide nem tem por objecto direitos de autor e/ou conexos, i.e., a discussão sobre a existência ou inexistência de tais direitos. O que se pretende é o pagamento de uma indemnização, a título de danos não patrimoniais, com fundamento na omissão de actuação das RR. na defesa dos direitos do apelante.
Assim, tal como se sustentou no citado aresto do Tribunal da Relação de Lisboa, que na espécie mantém actualidade, “(…) tratando-se de um tribunal de competência especializada (art.º 83.º, n.ºs 1, 2 e 3 da LOSJ), a delimitação desta competência não pode prescindir das razões e do escopo que preside a essa especialização.
Ora, umas e outro têm a ver com as especificidades próprias dos direitos que se pretendem fazer valer com o recurso a tais tribunais, ou melhor, com as especificidades próprias da declaração desses direitos, que é o acto pedido ao tribunal.
Nesta perspectiva, o critério de delimitação de competência do Tribunal de Propriedade Intelectual deve procurar-se no acto de declaração do direito, exigida pela controvérsia em causa na acção, e não apenas na sua circunstância, ou seja, não basta a referência ou o versar sobre direito de autor e direitos conexos, mas é também necessário que esteja em causa a declaração desses direitos”.
Conclui, assim, o citado Acórdão que o Tribunal de Propriedade Intelectual, no âmbito da al. a) do citado normativo, é apenas competente, em sede de direito de autor e direitos conexos, quando tenha de se pronunciar sobre questões de existência de tais direitos, sobre a sua violação e sobre as consequências.
Ora, como se adiantou supra, face à configuração da demanda pelo ora apelante, nos termos alegados na p.i., não passando a resolução do litígio a que respeitam os presentes autos pelo conhecimento de questões de existência de um direito de autor ou de direitos conexos, da alegada violação e respectivas consequências, impõe-se concluir que a presente acção não se compreende na al. a) (nem em qualquer outra das alíneas do n.º 1 do art.º 111.º da LOSJ), o que afasta a competência material especializada do Tribunal de Propriedade Intelectual, sendo, pois materialmente competentes para dirimir o litígio, os tribunais cíveis, rectius, os juízos centrais cíveis (n.º 1 do art.º 117.º da LOSJ).
Procedem, pois, as conclusões recursórias.

IV. Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se neste Tribunal da Relação em conceder provimento à apelação, revoga-se o despacho recorrido, declara-se materialmente competentes, para a apreciação do presente litígio, os juízos centrais cíveis e, consequentemente, determina-se o prosseguimento dos autos, se a ele nada mais obstar.
Custas pela parte vencida a final na proporção em que o for.
Registe.
Notifique.
Évora, 22 de Outubro de 2020

Florbela Moreira Lança (Relatora)*
Elisabete Valente (1:ª Adjunta)**
Ana Margarida Leite (2.ª Adjunta)*
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- Sessão e conferência realizadas por meio de plataforma de comunicação remota, nos termos do aditamento ao ponto 4.1. do Plano de Contingência do Tribunal da Relação de Évora, de 16 de Março p.p., e da Divulgação n.º 3/20, de 18 de Março p.p., da Presidência deste Tribunal da Relação da Évora.
* Acórdão assinado electronicamente
** Atesto o voto de conformidade da Senhora Juíza Desembargadora Elisabete Valente, nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, Florbela Moreira Lança
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[1] Assim, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, com a colaboração de Antunes Varela, nova edição, revista e actualizada por Herculano Esteves, 1976, pp. 74 e 75, Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, II, 1970, pp. 379 e Castro Mendes, Direito Processual Civil, I, pp. 557

[2] Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, II, 1970, pp. 379-380

[3] Manuel de Andrade, Noções Elementares do Processo Civil, pp. 91

[4] Assim, Acórdãos Doutrinais do STA, 479.º, 1539, Ac. do STJ, de 09.02.1999, BMJ 484, 292 e Ac. do STJ, de 09.05.1995, CJ, II, pp. 68

[5] Op. cit., pp. 92

[6] Ac. do STJ, de 14.05.2009, proferido no proc. n.º 09S0232, acessível em www.dgsi.pt

[7] Ac. da RL de 24.03.2015, proferido no proc. n.º 448/14.3YHLSB.L1-7, acessível em www.dgsi.pt