Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1019/22.6T8STR.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: ASSISTENTE
REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO POR INADMISSIBILIDADE LEGAL
Data do Acordão: 09/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O requerimento de abertura de instrução, quando deduzido pelo assistente, configura ele mesmo, em substância, um libelo acusatório que irá delimitar tematicamente a fase jurisdicional que se seguirá, devendo assim conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” e “a indicação das disposições legais aplicáveis”, para que o arguido poder exercer plenamente o contraditório quanto a estes.
É assim necessário que o requerimento de abertura da instrução deduzido pelo assistente enuncie claramente os factos que pretende imputar ao arguido e tais factos deverão pelo menos integrar os elementos objetivo e subjetivo de um tipo legal de crime. De outra forma, como também vem entendendo uniformemente a doutrina e jurisprudência, a instrução estará vazia de conteúdo e realizá-la seria de todo em todo inútil, pois não existiria base factual que permitisse uma eventual pronúncia do arguido.

Vem-se entendendo assim que a falta de enunciação de factos suficientes para integrar o tipo objetivo e subjetivo de crime no RAI do assistente configura uma causa de rejeição do requerimento de abertura de instrução por “inadmissibilidade legal” desta fase, nos termos do artigo 287º, n.º 3, do CPP

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - RELATÓRIO

Nos autos de instrução nº 1019/22.6T8STR, que correm termos no Juízo de Instrução Criminal de … (Juiz …), o Exmº Juiz de Instrução rejeitou o requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente AA, com fundamento na sua inadmissibilidade legal.

Inconformada com essa decisão, recorreu a assistente, terminando a motivação do recurso com as seguintes (transcritas) conclusões:

“1º. A Assistente, ora Recorrente, viu os autos arquivados nos crimes indiciados de morte e maus-tratos a animais de companhia, p. e p. pelo artigo 387, n.ºs 2 e 3 do Código Penal e o crime de dano simples, p. e p. pelo artigo 212, n.º 1 do Código Penal (relativamente também aos animais).

2º. Salvo melhor opinião e com o devido respeito que é muito, discordou a Assistente em absoluto com tal decisão, tendo efetuado o Requerimento de Abertura de Instrução a fls.....

3º. Foi o Requerimento de Abertura de Instrução da Assistente rejeitado liminarmente por inadmissibilidade da Instrução.

4º. Elencou a Assistente os factos que discordava do Despacho de Arquivamento, complementados com a indicação para a prova documental existente nos autos, cf. artigo 7 do presente recurso

5º. Mais solicitou, a Assistente, que fosse ouvido o Guarda Autuante - BB, para indicar todos os factos presenciados, em que estado se encontravam os animais, visualização das pastilhas de veneno e o que falou com a Assistente e a Arguida.

6º. Assim como elencou todas as disposições legais aplicáveis ao facto concreto, cf. artigo 8 do presente recurso.

7º. Não se pode conformar a Recorrente com a rejeição do requerimento de abertura de instrução por (in)admissibilidade legal da instrução, por o requerimento não conter todos os elementos de facto necessários para ser apto à abertura desta fase processual.

8º. É que o requerimento para abertura da instrução por si formulado, independentemente dos estilos, cumpre todos os requisitos legais, quer formais quer substantivos.

9º. Aliás, o que nem por motivos esquemáticos foge ao quadro geral comum deste tipo de atos.

10º. Os atos de inquérito não são apenas suscetíveis de reclamação hierárquica, terão sempre que ser sindicados, quanto à sua legalidade, pelo juiz de instrução, quando tal seja solicitado.

11º. O n.º 2 do artigo 287 do Código de Processo Penal dispõe que o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à decisão de não acusação, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283 do Código de Processo Penal, sendo todas as referidas normas legais violadas pelo despacho em crise.

12º. Por força desta remissão, o RAI deve ainda conter a narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo., se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, e deve ainda indicar as disposições legais aplicáveis.

13º. O tribunal recorrido, antecipando um juízo de prognose - que, nos termos da lei, apenas tem lugar no final da fase de instrução (artigo 308º do Código de Processo Penal) -, optou por indeferir liminarmente o requerimento de abertura de instrução.

14º. A decisão recorrida procedeu a uma errada aplicação do direito, rejeitando o requerimento de abertura de instrução num caso em que a lei não permite tal rejeição.

15º. Dispõe o n.º 3 do artigo 287º do Código de Processo Penal - que o despacho em crise viola frontalmente - que o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

16º. O tribunal a quo considerou que no conceito de inadmissibilidade legal de instrução se inclui a omissão dos elementos previstos nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal - trata-se de uma interpretação errada da lei.

17º. Em primeiro lugar porque em parte alguma do n.º 2 do artigo 287º do Código de Processo Penal se refere que esses elementos são obrigatórios, sob pena de rejeição do requerimento, pelo contrário, a letra da lei tem uma tónica claramente indicativa e ordenadora.

18º. Em segundo lugar, porque resulta evidente que a lei quis ser específica, concreta e taxativa no que diz respeito aos fundamentos de rejeição do requerimento de abertura de instrução; e não faria sentido estipular no n.º 3 do artigo 287º do Código de Processo Penal que o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução, ou seja, em três casos específicos e taxativos, e depois interpretar o último desses casos de rejeição como abarcando toda e qualquer situação em que se entendesse que o requerimento de abertura de instrução não contém as menções previstas na lei, sobretudo quando do próprio texto da lei, e para o MP, que tem poderes de investigação que estão vedados ao assistente, se inclui a expressão “se possível”, cf. alínea c) do n.º 2 do artigo 283 do Código de Processo Penal.

19º. Pelo que, in casu, e ao arrepio da lei, o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal entendeu que a assistente, que não tem poderes de investigação, nem para obtenção de meios de prova essenciais, teria um dever de circunstanciar o Requerimento de Abertura de Instrução, acima mesmo do que a lei exige ao titular do inquérito, que é o Ministério Público, Ministério Público que, no caso, decidiu não investigar, ao que parece, com beneplácito, ilegal, diga-se, do Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal.

20º. Por último, resulta evidente que, ao incluir a inadmissibilidade legal nos três fundamentos taxativos de rejeição do requerimento de abertura de instrução, o n.º 3 do artigo 287º do Código de Processo Penal se refere, exclusivamente, aos casos em que a instrução não é admissível, por não caber na forma de processo em causa ou ser requerida por quem não tem legitimidade para tal.

21º. Acresce que a doutrina e a jurisprudência são unânimes na interpretação restritiva que fazem deste fundamento legal de rejeição do Requerimento de Abertura de Instrução, precisamente de modo a evitar que o tribunal antecipe, para a fase de admissão a instrução, um juízo de prognose que apenas pode e deve existir no final da mesma.

22º. O tribunal recorrido, ao subsumir o caso vertente a uma hipótese de inadmissibilidade legal do Requerimento de Abertura de Instrução, justificativa da sua rejeição, fez uma incorreta e errada aplicação do direito.

23º. Tal traduz uma antecipação ilegítima do juízo de prognose que se relega para o final da fase de instrução, durante a qual, além da análise da prova produzida e do eventual oferecimento de novos meios de prova, terá, obrigatoriamente, lugar o debate instrutório, e apenas no terminus da mesma ocorrerá a comprovação judicial da decisão tomada no final do inquérito.

24º. Pese embora a diligência com que a assistente atuou, revelando sempre uma atitude colaboradora com o Ministério Pública, este demonstrou, indubitavelmente, um desinteresse na causa e no apuramento da verdade, não cumprindo o dever funcional que se lhe impunha em prol da descoberta da verdade.

25º. Ademais, não se pode conceber que tudo o que a Assistente vem, insistentemente, alegando, seja grosseiramente ignorado, não só pelo Ministério Público, como agora pelo Juiz de Instrução.

26º. Deve revogar-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que admita a abertura da instrução, ordene a realização dos atos instrutórios requeridos, bem como o obrigatório debate instrutório por forma aferir da pronúncia ou não da arguida.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V.Exas., doutamente suprirão, deve revogar-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que admita a abertura da instrução, ordene a realização dos atos instrutórios requeridos, bem como o obrigatório debate instrutório por forma aferir da pronúncia ou não da arguida, pois só assim se realiza Justiça e se faz cumprir a Lei”.

*

A Exmª Magistrada do Ministério Público junto do tribunal de primeira instância respondeu ao recurso, defendendo a improcedência total do mesmo, e concluindo tal resposta nos seguintes termos (em transcrição):

“1ª - A questão que importa dirimir no âmbito do recurso interposto pela assistente AA consiste em apurar se deve o Requerimento de Abertura de Instrução por si apresentado considerar-se como legalmente admissível e, por isso, não enquadrável no estatuído no artigo 287º, nº 3, do CPP, devendo em consequência ser admitido, com todas as decorrências legais inerentes a essa admissão?

2ª - Está em causa o douto despacho proferido em 10.02.2022, referência 89136261, o qual não admitiu o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente AA, ao abrigo do estabelecido no artigo 287º, nº 3, do CPP, por inadmissibilidade legal.

3ª - O mencionado despacho fundou-se na circunstância de o requerimento de abertura de instrução não cumprir os seguintes aspetos:

- “No caso dos autos não há uma verdadeira narração de factos objetivos, ou seja, uma sequência de factos enquadrados no espaço e no tempo, de forma lógica e cronológica”.

- Para além disso, o RAI da assistente não elenca os factos necessários a preencher o elemento subjetivo do crime imputado à arguida, tendo-se concluído no referido douto despacho “(…) que a falta de alegação expressa do elemento subjetivo do tipo legal de crime no RAI do assistente, implica a rejeição dessa peça processual e a não realização da fase de instrução que se tornaria vazia de conteúdo, pois só por via de um despacho ferido de nulidade se poderia pronunciar a arguida”.

4ª - Quando a fase de instrução é requerida pelo assistente não basta apresentar as razões de discordância, sendo ainda necessário que o requerimento de abertura de instrução contenha uma verdadeira acusação que aquele requerente entende deveria ter sido formulada por parte do Ministério Público.

5ª - Nessa medida, tal parte do requerimento de abertura de instrução é, pois, fundamental dado que delimita o objeto do processo e, por conseguinte, o cerne da instrução, da defesa do arguido e ainda consubstancia aquele que será o substrato à prolação do despacho instrutório, que o assistente pretende que seja de pronúncia, razão de ser da sua pretensão e do seu requerimento de abertura de instrução.

6ª - Assim, a lei estipula expressa e adicionalmente para o requerimento do assistente a necessidade de cumprimento de certos requisitos, tal como se estabelece no artigo 287º, nºs 2 e 3, do CPP, que regula o requerimento de abertura de instrução, destacando-se a necessidade de observância das alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º do CPP.

7ª - Da análise do requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente ora recorrente resulta que o mesmo não obedece às mencionadas exigências legais, uma vez que se devia ter procedido à enunciação dos factos e à sua imputação à arguida nos moldes pelos quais aquela pretendia ver deduzida a acusação, com a descrição dos elementos objetivos e subjetivos da sua conduta.

8ª - Era, por conseguinte, necessário que no requerimento de abertura de instrução a assistente tivesse especificado e concretizado factualmente as datas e locais dos factos, que situações factuais foram praticadas pela arguida, designadamente onde colocou as pastilhas raticidas para, com alguma probabilidade, serem acedidas pelos gatos, quais a consequências da sua conduta (morte e ferimentos/lesões produzidos nos gatos e decorrentes da ingestão das pastilhas) e ainda quais os factos dos quais emanasse a consciência da ilicitude, uma vontade livre e consciente, uma conduta dolosa, na sua vertente intelectual e volitiva.

9ª - Não contendo tais elementos objetivos e subjetivos dos tipos de crimes imputados á arguida o requerimento de abertura de instrução não pode delimitar o objeto da instrução, permitir a defesa cabal daquela e o seu exercício de contraditório nem pode servir de substrato à eventual prolação de um despacho de pronúncia, uma vez que, por contraponto ao despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público a assistente não deduziu uma acusação autónoma no dito requerimento.

10ª - Tal situação inviabiliza desse modo, o alcançar do desiderato da fase de instrução requerida pela assistente, isto é, não permite fundamentar uma dedução de despacho de pronúncia.

11ª - Logo, forçoso é concluir pela inadmissibilidade legal da fase de instrução nos termos em que a assistente a requereu dado ser de antever que não poderá alcançar-se a finalidade subjacente a essa fase processual que antes de mais é a de comprovar ou não a decisão do Ministério Público de arquivar o inquérito.

12ª - Em face do exposto conclui-se que bem andou o Mº JIC a quo ao não admitir o requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da fase de instrução nos termos em que foi requerida pela assistente não tendo sido violado o disposto no artigo 287º, nº 3, do CPP, pelo que inexiste fundamento para revogação do douto despacho recorrido, em concreto o despacho proferido em 10.02.2022, referência 89136261.

13ª - Nestes termos, deve ser mantido o douto despacho recorrido, e improceder o recurso interposto pela assistente, pois não violou qualquer preceito legal”.

*

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, entendendo que deve ser negado provimento ao recurso.

Cumprido o disposto no nº 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

Efetuado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso.

No caso destes autos, e vistas as conclusões extraídas pela recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal, a questão a apreciar, e em muito breve resumo, prende-se com a aferição da existência de motivo legal de rejeição da instrução, face ao requerimento para abertura de instrução apresentado pela assistente, isto é, saber se o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que admita o requerimento a pedir a abertura de instrução.

2 - A decisão recorrida.

O despacho revidendo é do seguinte teor:

“Da (in)admissibilidade legal da instrução:

Vem a assistente, AA, requerer a abertura da instrução.

No entanto, como se verá, o seu requerimento não contém todos os elementos de facto necessários para ser apto à abertura desta fase processual.

Resulta do teor do artigo 287º, n.º 2, do CPP que o requerimento de abertura da instrução (RAI) deduzido pelo assistente deve conter as menções previstas no artigo 283º, n.º 3, als. b) e c) do mesmo código.

Por outras palavras, deve conter “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” e “a indicação das disposições legais aplicáveis”.

Conforme tem vindo a ser unanimemente afirmado pela doutrina e jurisprudência, esta exigência corresponde à materialização de um imperativo constitucional, sendo uma decorrência da estrutura acusatória do processo prevista no artigo 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.

Isto porque o requerimento de abertura de instrução, quando deduzido pelo assistente, configura ele mesmo, em substância, um libelo acusatório que irá delimitar tematicamente a fase jurisdicional que se seguirá, devendo assim conter os seus elementos essenciais acima discriminados, para que o arguido poder exercer plenamente o contraditório quanto a estes - neste sentido Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 138-147.

De resto, como se extrai do artigo 309º, n.º 1, “a decisão instrutória é nula, na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente, ou no requerimento para abertura da instrução”.

Daqui se extrai a relevância desta peça processual no âmbito da fase, equiparada, portanto, à acusação do Mº Pº.

É assim necessário que o requerimento de abertura da instrução deduzido pelo assistente enuncie claramente os factos que pretende imputar ao arguido e tais factos deverão pelo menos integrar os elementos objetivo e subjetivo de um tipo legal de crime. De outra forma, como também vem entendendo uniformemente a doutrina e jurisprudência, a instrução estará vazia de conteúdo e realizá-la seria de todo em todo inútil, pois não existiria base factual que permitisse uma eventual pronúncia do arguido.

Vem-se entendendo assim que a falta de enunciação de factos suficientes para integrar o tipo objetivo e subjetivo de crime no RAI do assistente configura uma causa de rejeição do requerimento de abertura de instrução por “inadmissibilidade legal” desta fase, nos termos do artigo 287º, n.º 3, do CPP1 (neste sentido, entre muitos outros, cfr. Ac. da Rel. do Porto de 14-07-2010, proc. n.º 579/08.9GDVFR-A.P1; Ac. da Rel. do Porto de 20-01-2010, proc. n.º 361/08.3PAPVZ.P1; Ac. da Rel. de Évora de 19-03-2013, proc. n.º 590/11.2TDEVR.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Atentando no teor do RAI, no segmento em que respeita à imputação dos factos ao arguido, devemos pois ter em conta o que aí vem alegado e confrontar tais alegações com as disposições incriminadoras em causa, nomeadamente com o artigo 387º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, que prevê o crime de maus-tratos a animal de companhia, e pelo qual se pretende a pronúncia.

Tal norma estatui que “1 - Quem, sem motivo legítimo, matar animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 2 anos ou com pena de multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

(…)

3 - Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 1 ano ou com pena de multa de 60 a 120 dias”.

O conceito de animal de companhia está descrito no artigo 389º, do Código Penal que tem a seguinte redação:

“1 - Para efeitos do disposto neste título, entende-se por animal de companhia qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia.

2 - O disposto no número anterior não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial, assim como não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de espetáculo comercial ou outros fins legalmente previstos.

3 - São igualmente considerados animais de companhia, para efeitos do disposto no presente título, aqueles sujeitos a registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC) mesmo que se encontrem em estado de abandono ou errância”.

Estamos perante um crime de execução livre, que pode ser praticado por qualquer conduta que cause a morte do sofrimento/dor a um animal de companhia, sendo assim um crime de resultado.

Ao nível subjetivo, estamos perante um crime doloso, nos termos do artigo 13º, do Código Penal, pois não está legalmente prevista a sua comissão por negligência.

É, pois, necessário para a tipicidade/punibilidade da conduta que esta seja dolosa, exigindo-se o dolo genérico, nos seus elementos cognitivo e volitivo, relativamente a todos os elementos do tipo objetivo.

Aderindo pois aqui à formulação adotada no AUJ 1/20152 (publicado no DR, I SÉRIE, Nº 18, 27 DE JANEIRO DE 2015), diremos que tal como a acusação, o RAI do assistente deve conter os “…elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor”.

No caso dos autos, atentando no RAI não há uma verdadeira narração de factos objetivos, ou seja, uma sequência de factos enquadrados no espaço e no tempo, de forma lógica e cronológica.

Diz-se que a arguida colocou pastilhas raticidas na propriedade da assistente (não se indicando qual o local concreto nem as circunstâncias de tempo em que tal terá ocorrido).

Diz-se que três gatos morreram por terem ingerido as pastilhas e “outros” (não sabemos quantos) ficaram gravemente feridos (não sabemos quais as lesões concretas em causa), tendo necessidade de tratamento veterinário.

Mais se diz que a arguida “Agiu livre e conscientemente, sabendo serem as suas condutas proibidas por lei”.

Ora estas menções não são suficientes para integrar o dolo, num crime de resultado como é o dos autos.

É, pois, necessário descrever qual a atitude mental do agente para com o resultado típico, ou seja:

a) O agente quis provocar o resultado típico (dolo direto, artigo 14º, al. a), do Código Penal);

b) O agente não quis diretamente o resultado, mas sabia que era consequência necessária da sua conduta (dolo necessário, artigo 14º, al. b), do Código Penal); ou

c) O agente previu como possível que a sua conduta criasse o resultado típico, e conformou-se com essa realização (dolo eventual, artigo 14º, al. c), do Código Penal).

Assim sendo, temos um RAI de assistente que não só não faz qualquer enquadramento espácio-temporal dos factos em causa, como também não elenca os factos necessários a preencher o elemento subjetivo do crime imputado.

Notamos que nada na lei exige que o elemento subjetivo do tipo de crime seja alegado recorrendo às expressões tabelares vulgarmente utilizadas, mas deve ser alegado, por ser elemento essencial do tipo de crime.

A lei não faz qualquer distinção entre os factos objetivos e subjetivos do tipo de crime, quando exige a sua narração nestas peças processuais, nem faz qualquer distinção entre o RAI e a acusação, antes mandando aplicar ao RAI do assistente a norma do artigo 283º, n.º 3, als. b) e c), aplicável à acusação.

Não existem assim, na formulação de um libelo acusatório, “factos implícitos”, nem é exigível ao arguido que “leia nas entrelinhas” da acusação para detetar aquilo que nela é omisso.

Entendemos, pois, que a falta de alegação expressa do elemento subjetivo do tipo legal de crime no RAI do assistente, implica a rejeição dessa peça processual e a não realização da fase da instrução, que se tornaria vazia de conteúdo pois só por via de um despacho ferido de nulidade se poderia pronunciar o arguido.

Não podemos deixar de salientar que a Ilustre patrona da assistente despendeu bastante esforço (e tempo) em considerações jurídicas abstratas sobre a natureza deste crime, que, sendo doutas, se mostram in casu desnecessárias (pois o arquivamento estribou-se na apreciação da prova indiciária). Poderia ter investido esse tempo na construção da narrativa e da “acusação alternativa” de que fala a jurisprudência, de modo a garantir a admissibilidade do seu RAI.

Termos em que, com os fundamentos expostos, rejeito liminarmente o RAI da assistente, por inadmissibilidade legal da instrução.

Notifique e devolva ao Mº Pº”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

Sendo a instrução uma fase jurisdicional, a atividade processual desenvolvida em tal fase é, por isso, materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações (cfr., neste sentido, Prof. Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, in “Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal”, CEJ, 1988, pág. 16).

Por isso, a instrução não é um complemento da investigação feita em inquérito, antes contempla a prática dos atos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento.

Em boa verdade, o juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução, sempre tendo em conta a indicação constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o nº 2 do artigo 287º do C. P. Penal (cfr. artigo 288º, nº 4, do mesmo código).

O artigo 286º, nº 1, do C. P. Penal, indica expressamente como objetivo da instrução a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

A abertura de instrução, como decorre do preceituado no artigo 287º, nº 1, al. b), do C. P. Penal, pode ser requerida pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.

Dispõe o nº 2 deste mesmo artigo 287º que o requerimento para abertura da instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283º, nº 3, als. b) e c), do C. P. Penal.

No que tange à acusação pelo Ministério Público, estabelece este último preceito que a mesma contém, além do mais, sob pena de nulidade: b) “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”; c) “a indicação das disposições legais aplicáveis”.

Quanto à direção e natureza da instrução, e como acima já aflorado, dispõe o artigo 288º, nº 4, do C. P. Penal, que o juiz de instrução investiga autonomamente o caso submetido a instrução, tendo em consideração a indicação constante do requerimento da abertura de instrução.

Por sua vez, determina o artigo 307º, nº 1, do mesmo C. P. Penal, que, encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia, podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução.

Acresce que o artigo 309º, nº 1, do C. P. Penal, prevê que a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução.

Resulta do exposto que, no caso de ter sido proferido despacho de arquivamento, o requerimento de abertura de instrução determinará o objeto da instrução, definindo o âmbito e os limites da investigação a cargo do juiz de instrução, bem como da decisão instrutória de pronúncia.

Assim sendo, e por outras palavras, podemos legitimamente afirmar que o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente tem de constituir, substancialmente, uma acusação alternativa, que, dada a divergência com a posição assumida pelo Ministério Público (no seu despacho de arquivamento), vai, necessariamente, ser sujeita a comprovação judicial.

Nestes termos, perante o paralelismo que se estabelece entre a acusação e o requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente na sequência de um despacho de arquivamento, sendo que tal requerimento contém substancialmente uma acusação, deverá o mesmo fazer a narração dos factos e indicar as disposições legais aplicáveis, tal como para a acusação o impõe o artigo 283º, nº 3, als. b) e c), do C. P. Penal.

Aliás, a importância da fixação do objeto da instrução liga-se diretamente, por um lado, com a estrutura acusatória do processo penal português, ainda que mitigada pelo princípio da investigação judicial (cfr. artigo 289º, nº 1, do C. P. Penal, na fase da instrução), e, por outro lado, com a existência de todas as garantias de defesa (cfr. artigo 32º, nºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa).

Revertendo ao caso dos autos, e analisado o requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente, verifica-se que o despacho revidendo não nos merece qualquer reparo ou censura.

Senão vejamos.

I - Por entre muitas e diversas razões de discordância com a decisão de arquivamento do inquérito tomada pelo Ministério Público, e por entre extensas e profusas considerações jurídicas, é possível, analisando o requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente, respingar a seguinte factualidade (na qual a assistente estriba, sem mais, o seu requerimento para abertura da instrução):

- Numa propriedade da assistente apareceram “pastilhas” de veneno “raticida”, algumas delas presas numa rede colocada junto a tal propriedade e outras atiradas ao chão (para dentro da propriedade em causa).

- A esse local apenas se tem acesso ou pela propriedade da arguida, ou pela propriedade da assistente, inexistindo acesso público ao mesmo.

- Da colocação desse veneno “raticida” resultou a morte de 3 gatos, sendo que outros gatos ficaram gravemente feridos (tendo necessitado de tratamento veterinário, por terem ingerido as “pastilhas” do veneno em causa).

- A situação ainda não cessou, tendo sido encontrado, novamente, veneno “raticida”, em local onde se encontram também galinhas, patos, gansos, cabras e ovelhas.

- A arguida atuou numa tentativa de prejudicar a assistente e de atentar contra os animais desta.

- Com a atuação da arguida, a assistente encontra-se impedida de deixar os seus animais de estimação livremente, com receio que os mesmos possam ser afetados na sua saúde e bem-estar.

- A arguida agiu livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei.

Com o devido respeito pelo esforço argumentativo vertido na motivação do recurso, o requerimento de abertura da instrução em causa, limitando-se a narrar a referida factualidade (narração sem sequência cronológica), não se apresenta estruturado como uma acusação, da qual conste a descrição de factos balizados e situados no tempo, bem como a narração de factos que integrem os elementos subjetivos do crime imputado.

Em nosso entender, era necessário, por um lado, que a assistente tivesse especificado, de modo lógico e apreensível, as datas e os concretos locais dos factos imputados à arguida, e, por outro lado, que tivesse descrito os factos relativos ao dolo com que a arguida atuou (ao elemento intelectual do dolo - o conhecimento da tipicidade - e ao elemento volitivo do dolo - a vontade de praticar o facto ilícito e típico -).

Com efeito, perante o que consta do requerimento para abertura da instrução em análise, colocam-se as seguintes questões fácticas:

- Quando colocou a arguida as “pastilhas” do veneno “raticida”?

- Onde, em concreto, colocou a arguida esse veneno?

- A arguida agiu sabendo das consequências da sua conduta?

- A arguida sabia que a ingestão do “raticida” por si colocado, nos moldes em que o fez, provocava a morte (e/ou lesões) nos gatos e nos demais animais da assistente?

- A arguida conhecia esses factos e, apesar disso, agiu?

Da leitura do requerimento de abertura da instrução em causa não é possível esclarecer essas questões.

Como muito bem salienta o Exmº Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, “se nos demorarmos algum tempo no RAI, temos a perceção de estarmos perante RAI que segue um formato de recurso, como se estivesse a apelar do despacho de arquivamento do Ministério Público e não a submeter ao JIC uma acusação. Veja-se, por impressivo e constante, que o requerimento tem como sujeito da narração a própria assistente e não a arguida. Predica a avaliação do Ministério Público no arquivamento, discorre sobre prova, cita doutrina e retrata o seu ponto de vista sobre os factos denunciados e a sua qualificação jurídica, mais como se de uma reclamação hierárquica se tratasse. Ao assim proceder a assistente, não fica posta em causa apenas uma questão de forma ou de formato narrativo. De facto, uma acusação, que deve estar contida num RAI apresentado pelo assistente, deve ter como sujeito de uma ação típica, ilícita, culposa e punível um sujeito ativo que age, de forma típica, ilícita, culposa e punível. Esse sujeito é o arguido. Se em vez do arguido temos considerações, juízos e citações, misturados com factos, que retratam o ponto de vista do assistente sobre eles, resulta afrontado o princípio do contraditório e da defesa, pois o arguido não pode defender-se respondendo àquilo que é a visão da assistente, mas apenas a factos que lhe sejam objetivamente e subjetivamente imputados, incluindo tempo, lugar e motivação”.

II - Em segundo lugar, e decorrente do que vem de dizer-se (omissão, no requerimento para abertura da instrução, da indicação de factos), cumpre assinalar que não cabe ao Tribunal (quer a este Tribunal ad quem, quer ao Tribunal de primeira instância - ao Exmº Juiz de Instrução que proferiu o despacho recorrido -) determinar se, no “Inquérito” a que o Ministério Público procedeu, foram, ou não, realizadas as devidas diligências para investigação da existência do crime que a assistente imputa à arguida.

Ou seja, e ao contrário do que parece entender-se na motivação do recurso, não competia ao Exmº Juiz de Instrução, perante o requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente (omisso quanto a factos), averiguar, apreciar e decidir se as “denúncias” feitas pela assistente contra a arguida foram (ou não) objeto da devida e competente investigação, e se foram (ou não), no “Inquérito”, omitidas importantes diligências de prova.

III - Em terceiro lugar, compete-nos dizer que, sendo inexequível a instrução, como sucede na presente situação, deve, logo à partida, ser rejeitado pelo Juiz de Instrução o requerimento para abertura da instrução.

Por isso, bem andou o Exmº juiz de Instrução ao decidir rejeitar o requerimento para abertura da instrução em análise por inadmissibilidade legal da instrução.

Com efeito, e como lapidarmente se sintetiza no Ac. do S.T.J. de 12-03-2009 (relator Arménio Sottomayor, in www.dgsi.pt), “a instrução é uma fase processual destinada a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento. A inadmissibilidade legal constitui uma das três formas legalmente previstas de rejeição do requerimento para abertura de instrução. Um dos princípios que presidem às normas processuais é o da economia processual, entendida esta como a proibição da prática de atos inúteis, conforme estabelece o art. 137º CPC, aplicável ao processo penal nos termos do art. 4º do CPP, por o princípio que lhe serve de substrato se harmonizar em absoluto com o processo penal. Há afloramentos deste princípio em diversas normas do CPP, nomeadamente no art. 311º, ao permitir ao juiz rejeitar a acusação manifestamente infundada, e no art. 420º, que prevê a rejeição do recurso quando for manifesta a sua improcedência. Dado o paralelismo entre a acusação e o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente, deve aquilatar-se da possibilidade de aplicação ao requerimento para abertura da instrução do disposto no art. 311º, que considera manifestamente infundada a acusação: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as prova que a fundamentam; d) se os factos não constituírem crime. (…) A instrução será inexequível e constituirá uma fase processual sem objeto se o assistente deixar de narrar os factos e de indicar as disposições legais aplicáveis. De igual modo, se, pela simples análise do requerimento para abertura da instrução, sem recurso a qualquer outro elemento externo, se dever concluir que os factos narrados pelo assistente jamais poderão levar à aplicação duma pena, estaremos face a uma fase instrutória inútil, por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia. No conceito de “inadmissibilidade legal da instrução”, haverá, assim, que incluir, além dos fundamentos específicos de inadmissão da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissão de atos processuais em geral”.

É verdade que, conforme dispõe o artigo 287º, nº 3, do C. P. Penal, o requerimento para abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

Contudo, e como bem refere Souto Moura (in “Jornadas de Direito Processual Penal - o Novo Código de Processo Penal”, CEJ, 1988, pág. 120), “se o assistente requerer instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há de versar, a instrução será a todos os títulos inexequível. O juiz ficará sem saber que factos é que o assistente gostaria de ver acusados. (…) O juiz de instrução não prossegue uma investigação, nem se limitará a apreciar o arquivamento do Ministério Público, a partir da matéria indiciária do inquérito. O juiz de instrução responde ou não a uma pretensão. Aliás, um requerimento de instrução sem factos, subsequente a um despacho de arquivamento, libertaria o juiz de instrução de qualquer vinculação temática. Teríamos um processo já na fase de instrução sem qualquer delimitação do seu objeto, por mais imperfeita que fosse, o que não se compaginará com uma fase que em primeira linha não é de investigação, antes dominada pelo contraditório”.

Também Maia Gonçalves (in “Código de Processo Penal Anotado”, 15ª edição, 2005, pág. 582) sustenta que “se o requerimento para abertura de instrução não indicar os factos integradores da infração criminal, a instrução será inexequível”.

Por conseguinte, é de concluir que a omissão dos elementos de facto concretos, a inobservância dos requisitos de uma acusação, em que no fundo e estruturalmente se deve converter o requerimento para abertura da instrução, conduzindo à não formulação e delimitação do thema probandum, fazem com que a suposta acusação, pura e simplesmente, não exista, ficando a instrução sem objeto.

Ora, sendo inexequível a instrução, por falta do próprio objeto do processo, deve, logo à partida, ser rejeitado pelo Juiz de instrução o requerimento para abertura da instrução.

Por outro lado, entendemos que, nesta situação, não há sequer lugar a despacho de aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente, devendo esse requerimento ser obrigatoriamente indeferido (cfr., nesta mesma orientação, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 7/2005, de 12-05-2005, in DR nº 212, 1ª Série A, de 04-11-2005).

Ou seja, a deficiente e omissa descrição dos elementos integradores do tipo legal de crime imputado deve determinar, como determinou no caso sub judice, a rejeição do requerimento para abertura da instrução relativo a tal crime, por inadmissibilidade legal, sendo o mesmo insuscetível de correção.

Como esclarece Paulo Pinto de Albuquerque (in “Comentário do Código de Processo Penal”, Universidade Católica Editora, 2ª ed., 2008, pág. 755, nota nº 7 ao artigo 287º), “o juiz deve mandar completar o requerimento se nele faltarem algum ou alguns elementos que deviam constar. Não é esse o caso se o requerimento do assistente for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.

Conclui-se, pois, que a decisão recorrida não violou qualquer disposição legal, sendo essa decisão, por correta e devidamente fundamentada, de manter na íntegra.

Posto o que precede, é totalmente de improceder o recurso interposto pela assistente.

III - DECISÃO

Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso da assistente, mantendo-se, consequentemente, o douto despacho revidendo.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.

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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 13 de setembro de 2022

João Manuel Monteiro Amaro

Nuno Maria Rosa da Silva Garcia

Edgar Gouveia Valente