Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4267/15.1T8STB-C.E1
Relator: VICTOR SEQUINHO
Descritores: RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CONSUMIDOR
Data do Acordão: 01/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Num contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional, sinalizado, o promitente-comprador que obteve a tradição das fracções autónomas a que se refere o contrato prometido e as destinou, desde então, ao arrendamento a terceiros e, durante alguns períodos, à cedência temporária gratuita a amigos seus, não pode ser considerado consumidor para os efeitos decorrentes do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2014.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 4267/15.1T8STB-C.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo de Comércio de Setúbal
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
Relatório

(…) apresentou, contra Massa Insolvente de Construções (…), Lda., Construções (…), Lda. e os credores desta, a presente acção de verificação ulterior de créditos, nos termos do artigo 146.º, n.º 2, al. b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, pedindo:
- O reconhecimento, a seu favor, do direito de propriedade das garagens identificadas na petição inicial, por via da execução específica dos contratos-promessa celebrados com a insolvente e decorrente do incumprimento definitivo dos mesmos contratos;
- Subsidiariamente, a declaração de que a insolvente é sua devedora e de que ele próprio é credor da massa insolvente pela quantia de € 207.465,12, correspondente ao dobro dos preços pagos por conta dos contratos-promessa;
- A declaração da verificação da tradição das fracções autónomas objecto dos contratos-promessa para si;
- O reconhecimento do seu direito de retenção sobre as mesmas fracções autónomas, por incumprimento dos contratos-promessa por parte da insolvente, até integral pagamento ou reconhecimento da propriedade sobre as fracções;
- Que se considere tal direito de retenção reclamado, graduando-o no lugar que lhe competir;
- Acrescendo juros vincendos até efectivo e integral pagamento.
A massa insolvente de Construções (…), Lda. contestou, pugnando pela improcedência da acção.
Teve lugar a audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador, com a identificação do objecto do litígio e o enunciado dos temas de prova.
Realizou-se a audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, considerou verificado o crédito do autor, no montante de € 209.495,20, e declarou que o mesmo crédito reveste natureza comum, nos termos do artigo 176.º do CIRE.

O autor recorreu da sentença, formulando as seguintes conclusões:
a) A sentença recorrida é posta em crise, apenas na parte que considerou que o A. recorrente não pode ser considerado como consumidor para efeitos de atribuição do direito de retenção sobre os imóveis como garantia do seu crédito, julgado como comum, em apenso de verificação ulterior de créditos, pela posição contratual daquele como promitente-comprador e a insolvente como promitente vendedora;
b) Na matéria factual dada como assente nos autos e, com interesse para a consideração do recorrente como consumidor ou não, o Mmo. Juiz “a quo” apurou que: “Mas sabe-se, porque o mesmo alegou e provou, que o A., desde que lhe foram entregues as chaves das garagens, outorgou contratos de arrendamento em relação às mesmas e, outras vezes cedeu gratuitamente a sua utilização a amigos.
c) Foi fundamentada a sentença recorrida com a seguinte constatação: Se a cedência gratuita das garagens a amigos poderia não afastar a sua condição de consumidor (crf. Ac. do STJ de 5.07.2016, Processo nº 1129/11.5TBCVL – C.C1.S1, disponível em WWW.DGSLPT), o mesmo não podemos dizer quanto aos arrendamentos efectuados pelo A. ao longo dos anos, sendo certo que os documentos por este juntos comprovam, que pelo menos uma vez, já arrendou todas as garagens objecto dos contratos-promessa;
d) Contudo, o Mmo Juiz “a quo”, na sua decisão julgou o recorrente como não consumidor.
e) O recorrente em face do vertido em b) e c) supra entende que não poderia o Mmo Juiz “a quo” ter proferido uma decisão que o julgasse na posição qualificativa de não consumidor em relação a todos os imóveis objecto dos contrato de promessa de compra e venda,
f) E sendo vários os imóveis em causa nos autos, entende o recorrente que deveria ter sido proferida sentença que o julgasse como consumidor em relação a parte dos imóveis, isto porque foi provado que o recorrente fazia a cedência gratuita de garagens aos seus amigos, logo em relação a estas não poderá ser qualificado como consumidor.
g) Com o que, a sentença recorrida, em parte, deveria ter considerado como garantido, pelo direito de retenção, o crédito comum do recorrente e deveria ter ordenado a sua graduação no lugar próprio com essa garantia.
h) Não o tendo feito, entende o recorrente que a sentença recorrida é, em parte nula, pela verificação da nulidade prevista no artigo 615º do CPC na alínea c) do seu nº 1.
i) A sentença recorrida viola o AUJ nº 4/2014, de 20 de Março de 2014 publicado na DR-Iª Série de 19 de Maio de 2014 que fixou a jurisprudência no âmbito da graduação de créditos em insolvência quanto à consideração e qualificação do promitente-comprador como consumidor ou não e, por via dela, a atribuição do direito de retenção sobre os bens objecto dos contratos promessa, nos termos estatuídos no artigo 755º, nº 1, alínea f), do Código Civil e viola, igualmente, o DL nº 24/2014, de 14 de Fevereiro que transpôs a Directiva 2011/83/EU do Parlamento e do Conselho, de 25.10.2011, no seu artigo 2º que define consumidor “a pessoa singular que actue com fins que não se integrem no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”.
j) Com o que se requer que a sentença posta em crise seja alterada, em parte, e que considere o recorrente como consumidor em relação a parte dos imóveis, concedendo-lhe o direito de retenção em relação a estes, como garantia do seu crédito comum, e que a este seja ordenada a sua graduação no lugar próprio com o “suporte” daquela garantia, com o que se fará Justiça!

Não houve resposta.
O recurso foi admitido.
Objecto do recurso

É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
As questões a resolver são as seguintes:
1 – Nulidade da sentença;
2 – Se o recorrente pode ser considerado consumidor, nos termos por si pretendidos, para o efeito de se lhe reconhecer a titularidade de um direito de retenção sobre as fracções dos autos.
Factualidade apurada

Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:
1. Por sentença datada de 19.08.2015, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de Construções (…), Lda., e nomeada administradora da insolvência a Dra. (…).
2. Em 20.10.2015 foi apresentada nos autos, pela Sra. AI, a lista definitiva de créditos reconhecidos, não constando da mesma qualquer crédito a favor do A.
3. No apenso de apreensão de bens, estão apreendidos (entre outros) os seguintes imóveis:
a) Fracção autónoma “B”, do prédio urbano sito em Azeda, Vale de Mulatas, Avenida (…), nº (…), concelho de Setúbal, freguesia de S. Sebastião, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o nº (…), e inscrito na matriz sob o artigo (…) da referida freguesia (verba nº 1);
b) Fracção autónoma “C”, do prédio urbano sito em Azeda, Vale de Mulatas, Avenida (…), nº (…), concelho de Setúbal, freguesia de S. Sebastião, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o nº (…), e inscrito na matriz sob o artigo (…) da referida freguesia (verba nº 2);
c) Fracção autónoma “B”, do prédio urbano sito em Azeda, Vale de Mulatas, Avenida (…), nº (…), concelho de Setúbal, freguesia de S. Sebastião, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o nº (…), e inscrito na matriz sob o artigo (…) da referida freguesia (verba nº 4);
d) Fracção autónoma “C”, do prédio urbano sito em Azeda, Vale de Mulatas, Avenida (…), nº (…), concelho de Setúbal, freguesia de S. Sebastião, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o nº (…), e inscrito na matriz sob o artigo (…) da referida freguesia (verba nº 5).
4. No decurso do ano 2000, A (como segundo outorgante e promitente comprador) e insolvente (como primeira outorgante e promitente vendedora) celebraram o acordo que consta de fls. 61 a 63 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, de onde consta, nomeadamente, o seguinte:
“CLÁUSULA PRIMEIRA
A Promitente Vendedora é dona e legítima proprietária das fracções autónomas correspondentes às garagens Nºs 2 e 3 e Nº 2 dos prédios urbanos em que irá ser constituído em regime de propriedade horizontal, sito na urbanização nova azeda, lote (…) e lote (…), respectivamente, freguesia de S. Sebastião, concelho de Setúbal.
CLÁUSULA SEGUNDA
Por este contrato a Primeira Outorgante promete vender à Segunda Outorgante, e esta promete comprar-lhe, livre de quaisquer ónus ou encargos e obrigações de qualquer natureza e totalmente desocupada de pessoas, as fracções autónomas objecto do presente contrato promessa de compra e venda, descrita e identificada na cláusula primeira supra.
CLÁUSULA TERCEIRA
O Preço acordado para a prometida compra e venda é de Esc. 15.750.000$00 (Quinze Milhões setecentos e cinquenta mil escudos).
A) No acto da assinatura do presente contrato, a quantia de Esc. 7.875.000$00 (Sete Milhões e oitocentos e setenta e cinco mil escudos), quantia entregue a título de sinal e princípio de pagamento e de que se dá integral quitação pelo presente documento.
B) O Valor remanescente será pago aquando da conclusão das obras o que se prevê venha a acontecer em Abril do ano 2000; o valor restante será entregue mesmo que não se realize a respectiva escritura.
CLÁUSULA QUARTA
A escritura de compra e venda deverá ser celebrada no prazo a combinar, devendo a Primeira Outorgante Comunicarem à Segunda Outorgante por escrito ou verbalmente, Ter toda a documentação pronta para poder efectuar a venda respectiva. A escritura de compra e venda será feita em nome da promitente compradora ou no da pessoa ou pessoas por ela indicadas (…)”.
5. No dia 7.04.2000, o A procedeu ao pagamento da quantia de Esc. 3.500.000$00 (três milhões e quinhentos mil escudos) à insolvente, a título de reforço de sinal do contrato-promessa de compra e venda referido em 4, tendo sido emitido pela insolvente o respectivo recibo de reforço de sinal.
6. No dia 6.05.2000, o A procedeu ao pagamento da quantia de Esc. 4.375.000$00 (quatro milhões trezentos e setenta e cinco mil escudos) à insolvente, ficando liquidada a última prestação relativa às três garagens objecto do contrato-promessa de compra e venda referido em 4, tendo sido emitido pela insolvente o respectivo recibo.
7. No recibo referido em 6, as partes fizeram constar que em relação à marcação da escritura das garagens, esta será marcada consoante a disponibilidade do cliente, avisando com a antecedência de 8 dias a insolvente.
8. No dia 21.01.2002, A (como segundo outorgante e promitente comprador) e insolvente (como primeira outorgante e promitente vendedora) celebraram o acordo que consta de fls. 64 a 65 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, de onde consta, nomeadamente, o seguinte:
“1.ª A primeira outorgante é dona e legítima possuidora da garagem Nº 3, fracção “C”, que faz parte do prédio urbano sito na Urbanização Nova Azeda, lote (…), da freguesia de S. Sebastião, concelho de Setúbal, omisso na matriz.
2.ª Pelo presente contrato, a primeira outorgante promete vender aos segundos, e estes prometem comprar-lhe, livre de quaisquer ónus ou encargos o andar supra referido.
3.ª O preço da prometida compra e venda é de Esc. 5.250.000$00 (cinco milhões duzentos e cinquenta mil escudos) e será pago ao primeiro no acto de assinatura do presente contrato, o qual declara ter recebido e da qual confere plena quitação pelo presente documento (…).
5.ª A escritura de compra e venda realizar-se-á em data a combinar.
Os primeiros ou segundos outorgantes notificarão a outra parte, com oito dias úteis de antecedência da data, hora e local em que se celebrará a escritura de compra e venda.(…)”
9. As garagens referidas no contrato promessa de compra e venda descrito em 4, correspondem às verbas n.ºs 1, 4 e 5 do auto de apreensão de bens, com a seguinte correspondência:
-verba nº 1 – garagem 2 do lote (…);
-verba nº 4 – garagem 2 do lote (…);
-verba nº 5 – garagem 3 do lote (…).
10. A garagem referida no contrato promessa de compra e venda descrito em 8, corresponde à verba nº 2 do auto de apreensão de bens.
11. A insolvente procedeu à marcação das escrituras de compra e venda referentes aos contratos promessa referidos em 4 e 8, não tendo o A comparecido nas mesmas.
12. Nas datas correspondentes ao pagamento integral dos preços das garagens, a insolvente entregou as chaves das mesmas ao A.
13. Passando a usá-las, a outorgar contratos de arrendamento relativamente às mesmas ou a cedê-las gratuitamente a amigos.
14. Sem a oposição de ninguém.
15. Por carta registada datada de 26.01.2016, a qual se mostra junta a fls. 37 dos autos e aqui se dá por integralmente reproduzida, a Sra. AI comunicou ao A que:
“considero resolvido por incumprimento definitivo por parte de V. Exª na qualidade de promitente-comprador o contrato promessa de compra e venda tendo por objecto a fracção autónoma designada pela letra “C” correspondente à garagem número três do prédio urbano sito na Av. (…), nº (…), inscrito na respectiva matriz sob o artº (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Setúbal, freguesia de S. Sebastião, sob o número (…) e nos termos do qual V. Exª prometeu comprar à insolvente Construções (…), Lda. e esta prometeu vender aquela fracção atento não ter comparecido à escritura de compra e venda marcada para 24 de Maio de 2012 conforme comunicação enviada pela devedora.
Mais comunico que, para a eventualidade de não ser considerado ter havido incumprimento definitivo daquele contrato por parte de V. Exª e ao abrigo do disposto no artº 102º, nº 1, do CIRE, venho recusar o cumprimento do contrato promessa de compra e venda (…).
16.O A, através da sua Ilustre Mandatária, respondeu a esta carta, por carta datada de 10.02.2016, rejeitando a imputação de incumprimento definitivo, tudo conforme documento de fls. 38 dos autos que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

A sentença recorrida julgou não provados os seguintes factos:
a) Que, para além da resolução referida na carta que consta em 15., a insolvente, através da Sra. AI, tenha resolvido o contrato promessa referido em 4.
b) Que, na marcação da escritura de compra e venda, a insolvente o tenha feito com pelo menos quinze dias de antecedência.
Fundamentação
1

O recorrente sustenta que a sentença recorrida “é, em parte nula”, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. c), do CPC.
O fundamento apresentado é o seguinte: Tendo a sentença recorrida julgado provado que o recorrente, além de dar de arrendamento as fracções dos autos, também as cedeu gratuitamente a amigos, deveria tê-lo considerado, em parte, como consumidor, para os efeitos decorrentes do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2014, e, nessa medida, ter julgado o seu direito de crédito, em parte, como garantido por direito de retenção, graduando-o no lugar próprio com essa garantia.
O artigo 615.º, n.º 1, al. c), do CPC, estabelece que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. O recorrente tem em vista a causa de nulidade prevista na primeira parte do preceito, ou seja, a existência de oposição entre os fundamentos e a decisão.
Escrevem, a propósito, JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO e RUI PINTO que “Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se.”[1]
No caso dos autos, é evidente a inexistência de oposição entre fundamentos e decisão. Entendeu-se, na sentença recorrida, que o facto de o recorrente, em algum momento, já ter dado de arrendamento todas as fracções dos autos, é, por si só, suficiente para excluir a sua qualidade de consumidor relativamente às mesmas fracções e, consequentemente, para a inexistência de direito de retenção. A sentença di-lo muito claramente, explica porquê e decide em conformidade, sem qualquer contradição lógica entre fundamentação e decisão. Logo, não se verifica a nulidade da sentença invocada pelo recorrente. Questão diversa é saber se houve erro de julgamento. É o que veremos em seguida.
2

A discordância do recorrente relativamente à sentença recorrida circunscreve-se à parte em que a mesma decidiu que ele não pode ser considerado como consumidor para efeitos de atribuição de direito de retenção sobre as fracções dos autos como garantia do seu crédito. Entende o recorrente que, tendo a sentença recorrida julgado provado que ele, além de dar de arrendamento as referidas fracções, também as cedeu gratuitamente a amigos, errou ao julgá-lo como não consumidor “em relação a todos os imóveis objecto dos contratos de promessa de compra e venda”. Em vez disso, continua o recorrente, “sendo vários os imóveis em causa nos autos, (…) deveria ter sido proferida sentença que o julgasse como consumidor em relação a parte dos imóveis” e, consequentemente, “em parte, deveria ter considerado como garantido, pelo direito de retenção, o crédito comum do recorrente e deveria ter ordenado a sua graduação no lugar próprio com essa garantia”. No desenvolvimento desta argumentação, o recorrente afirma que “A sentença recorrida viola o AUJ nº 4/2014, de 20 de Março de 2014 publicado na DR-I Série de 19 de Maio de 2014 que fixou a jurisprudência no âmbito da graduação de créditos em insolvência quanto à consideração e qualificação do promitente-comprador como consumidor ou não e, por via dela, a atribuição do direito de retenção sobre os bens objecto dos contratos promessa, nos termos estatuídos no artigo 755º, nº 1, alínea f), do Código Civil e viola, igualmente, o DL nº 24/2014, de 14 de Fevereiro, que transpôs a Directiva 2011/83/EU do Parlamento e do Conselho, de 25.10.2011, no seu artigo 2º que define consumidor a pessoa singular que actue com fins que não se integrem no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”. O recorrente conclui que a sentença deverá ser “alterada, em parte, e que considere o recorrente como consumidor em relação a parte dos imóveis, concedendo-lhe o direito de retenção em relação a estes, como garantia do seu crédito comum, e que a este seja ordenada a sua graduação no lugar próprio com o suporte daquela garantia”.
Provavelmente porque, como veremos, a sua pretensão não faz qualquer sentido do ponto de vista jurídico, o recorrente não conseguiu formulá-la em termos claros. Com efeito, fica-se na dúvida sobre o concreto efeito jurídico que ele pretende. Colocam-se-nos duas hipóteses interpretativas:
1.ª – O recorrente pretende ser considerado como consumidor em relação a alguma ou algumas das quatro fracções dos autos, abdicando do reconhecimento dessa qualidade quanto às restantes; o direito de retenção recairia apenas sobre as primeiras fracções;
2.ª – O recorrente pretende ser considerado, em alguma medida, como consumidor em relação a cada uma das quatro fracções dos autos; o direito de retenção recairia, aparentemente, sobre uma parte de cada fracção, pois, a dado passo das alegações de recurso, fala-se em “quantificar em relação a cada um deles (imóveis) o direito de retenção a atribuir ao recorrente em face da sua condição de consumidor”.
Ao longo das alegações de recurso, o recorrente oscila entre a primeira construção e a segunda. Por isso, analisaremos ambas.
Antes, porém, assentemos no seguinte: o recorrente aceita o entendimento, expresso na sentença recorrida, de que o facto de se dar de arrendamento uma fracção exclui a qualidade de consumidor para os efeitos decorrentes do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2014. Caso contrário, não teria razão de ser o esforço construtivo por ele levado a cabo e que vimos analisando. O recorrente não sustenta que quem dá de arrendamento uma fracção autónoma ainda deve ser qualificado como consumidor. Sustenta, sim, nos termos expostos, que ele merece parcialmente (em algum dos sentidos anteriormente referidos) esta qualificação porque, além de dar de arrendamento, também cedeu gratuitamente as fracções dos autos a amigos.
Analisemos, então, a pretensão do recorrente.
Se o recorrente pretende ser qualificado como consumidor em relação a alguma ou algumas das quatro fracções dos autos, faltou-lhe, desde logo, especificar em relação a quantas fracções entende que aquela qualidade deve ser-lhe reconhecida e, não menos importante, identificar essas mesmas fracções. Tal omissão é, porém, compreensível, pois estamos perante uma tarefa impossível. Como a sentença recorrida salientou, “pelo menos uma vez, (o recorrente) já arrendou todas as garagens objecto dos contratos-promessa”. Consequentemente, as fracções estão em idênticas condições, não sendo admissível tratamento diferenciado. E porque, em relação a todas elas, o recorrente tem vindo, ainda que de forma intercalada com cedências gratuitas a amigos seus, a exercer uma actividade económica com intuito lucrativo como é o arrendamento, forçoso é concluir que aquele não pode ser qualificado como consumidor, seja em que acepção for, nomeadamente nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, da Lei n.º 24/96, de 31.07, e 3.º, al. c), do Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14.02.
Se o recorrente pretende ser considerado, em alguma medida, como consumidor em relação a cada uma das quatro fracções dos autos, recaindo o direito de retenção sobre uma parte ou uma quota ideal de cada fracção, está a pedir algo que é juridicamente impossível. Por um lado, não é concebível atribuir “parcialmente” a qualidade de consumidor em relação a um bem. Ou se é consumidor, ou não se é. Não são admissíveis graus intermédios. Por outro lado, é igualmente inaceitável a ideia, proposta pelo recorrente, de quantificar (ele próprio não o faz), em relação a cada fracção, o direito de retenção a atribuir-lhe em função da sua condição de consumidor. Nem sequer se percebe como se concretizaria esta ideia. Por definição, o direito de retenção, nomeadamente o que resulta do artigo 755.º, n.º 1, al. f), do Código Civil, quando existe, recai sobre a totalidade da coisa.
Em suma, seja qual for a perspectiva sob a qual se analise a argumentação expendida pelo recorrente, a mesma carece de sentido. Logo, o recurso terá de ser julgado improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.
Sumário


1 – Só se verifica a nulidade da sentença prevista na primeira parte da al. c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC quando exista uma contradição lógica entre os fundamentos e a decisão.

2 – Num contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional, sinalizado, o promitente-comprador que obteve a tradição das fracções autónomas a que se refere o contrato prometido e as destinou, desde então, ao arrendamento a terceiros e, durante alguns períodos, à cedência temporária gratuita a amigos seus, não pode ser considerado consumidor para os efeitos decorrentes do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2014.

3 – A existir, o direito de retenção recai, necessariamente, sobre a totalidade da coisa.


Decisão

Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
Notifique.
Évora, 25 de Janeiro de 2018
Vítor Sequinho dos Santos (Relator)
Conceição Ferreira
Rui Machado e Moura

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[1] Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, p. 670, em anotação ao artigo 668.º do anterior CPC.