Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
416/11.7JDLSB.E1
Relator: MARTINHO CARDOSO
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA
VALORAÇÃO DA PROVA
INDEMNIZAÇÃO POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 03/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I - Nas situações de abuso sexual de crianças, por força das circunstâncias, a prova é particularmente difícil, na medida em que escasseia a prova directa e, regra geral, só têm conhecimento da maioria dos factos o arguido e a vítima.
II - É normal a criança vítima do abuso sexual revelar grandes inibições e dificuldades em relatar os factos, quer pelo esforço que, inevitavelmente, fez ao longo do tempo para arredar da memória os abusos de que foi vítima, quer pelas reacções emocionais que a sua memória lhe provoca, quer pelo prejuízo que resulta para a sua auto-imagem.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 416/11.7JDLSB.E1
I
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
Nos presentes autos de Processo Comum com intervenção de tribunal colectivo acima identificados, do Tribunal Judicial de Estremoz, em que as menores A e B, representadas pelos respectivos pais, se constituíram assistentes e deduziram pedido cível contra o arguido C, este foi, na parte que agora interessa ao recurso, condenado pela prática de dois crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art.º 171.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, relativamente ao crime praticado na menor B, e de 2 anos de prisão, relativamente ao crime praticado na menor A.
Em cúmulo jurídico, 4 anos de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de 4 anos[1], sujeita ao cumprimento de regime de prova assente em plano de reinserção social a elaborar e à comparência em consulta de psiquiatria e subsequente sujeição terapêutica que lhe venha a ser aconselhada.
Mais foi o arguido condenado a pagar a cada uma das demandadas cíveis B e A a quantia de 12.000,00 €, a título de danos não patrimoniais.
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Inconformado com o assim decidido, o arguido interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:
A - O arguido vem recorrer do douto acórdão condenatório, quer de facto quer de direito;

DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE PACTO:
B - O douto acórdão recorrendo não deu como provados, nem como não provados, os factos relativos ao número de alunos na escola, entre os anos de 2008 e 2011, factos esses essenciais para se perceber o universo daquela escola.
C - Numa escola grande é fácil não se dar pela ausência de um aluno, que pode estar em qualquer outro lado, mas numa escola pequena, como aquela em que trabalhava o arguido, facilmente se dá pela falta de um aluno que seja. A escola de (...) era uma escola primária pequena, com menos de 20 alunos, pelo que a percepção dos factos em análise nos presentes autos é completamente diferente da de uma escola com mais de 100 alunos.
D - Tais elementos são fundamentais para ajuizar da notoriedade da ausência de alunos e professores nos recreios, pois só tinha duas turmas entre 2008 e 2010 e que a partir de 2010 passou a ter só uma turma, até que fechou. Neste tipo de escola todos se conhecem e todos sabem onde todos andam ou estão, dado o reduzido universo quer de alunos e professores, quer das instalações, pelo que facilmente se dá pela ausência de alguém.
E - Este foi um dos pontos fundamentais da defesa do arguido, apresentado em sede de contestação, descrevendo a escola de (...), como uma escola pequena, com um ambiente familiar, onde todos se conheciam e com instalações reduzidas, pelo que facilmente se dá pela falta sistemática de um aluno ou mais, uma vez que todos os alunos estão no mesmo espaço de recreio nos intervalos.
F - Tais factos foram questionados em sede de audiência de julgamento e, para além do arguido, várias foram as testemunhas que produziram prova nesse sentido, sem que a mesma tenha sido posta em causa por ninguém. Em face da prova produzida, impunha-se que tivesse ficado provado qual o número de alunos que frequentava a referida escola entre os anos lectivos de 2008/2009 a 2010/2011.
G - As respostas das testemunhas sobre o número de alunos foram, todas elas peremptórias e objectivas, com conhecimento dos factos, porque nela trabalhavam.
H - As respostas do arguido, constantes da gravação do seu depoimento, através do sistema integrado de gravação digital aos minutos 19.12 , 19.42, 19.51, 20.14 e 20.25, provam que no ano lectivo de 2010/2011 eram só 8 alunos e que nos anos anteriores eram 29 alunos. As respostas da testemunha D, constantes da gravação do seu depoimento, através do sistema integrado de gravação digital, aos minutos 12.58 provam que no ano de 2010/2011 eram à volta de 8/10 alunos. As respostas da testemunha de E, constantes da gravação do seu depoimento, através do sistema integrado de gravação digital, aos minutos 1.12, 2.43, provam que no ano lectivo de 2010/2011 eram só 8 alunos. As respostas da testemunha F, constantes da gravação do seu depoimento, através do sistema integrado de gravação digital, aos minutos 13.12, provam que entre 2006/2009 20/21 alunos.
I - Estes depoimentos, que não foram abalados nem contraditados por nenhuma outra prova, impunha que o Tribunal a quo tivesse dado como provado que nos anos lectivos de 2008/2009 e 2009/2010 o número de alunos na escola de (...) era de cerca de 20 alunos distribuídos por duas turmas e que no ano lectivo de 2010/2011 eram apenas 8 alunos apenas numa única turma.
J - Deve, pois, ser aditada uma nova alínea aos factos dados como provados, com a seguinte redacção: "28 - Nos anos lectivos de 2008 a 2010 a escola era frequentada por cerca de 20 alunos distribuídos em duas turmas, cada uma com um professor, e no ano lectivo de 2010/2011 por 8 alunos numa única turma com um professor."
K - O douto acórdão recorrendo deu como provados os factos constantes dos pontos 3 a 8 e 10 a 19, quando, em nosso entender, teria que os ter dado como não provados, face à prova produzida em audiência de julgamento, cujas testemunhas, E, de F e G, mereceram a credibilidade do colectivo dos Juízes a quo, pois os depoimentos das testemunhas mereceram toda a credibilidade para prova de factos constantes do acórdão recorrendo, o que implica que os respectivos depoimentos impunham prova diversa daquela que veio a ser dada como provada;
L - Na verdade, os professores estavam juntos nos intervalos, quer a tomar chá ou a preparar aulas ou então a vigiar os alunos no recreio e que os alunos eram vigiados pelas auxiliares educativas, tal prova torna impossível que tivessem ocorrido os factos dados como provados nos pontos 3 a 8 e 10 a 19 do acórdão recorrendo.
M - Acresce que, os depoimentos prestados pelas testemunhas E, F, G e auxiliares operacionais, foram determinantes para a prova dos factos constantes dos pontos 22, 23 e 24, constantes do acórdão recorrendo.
N - As respostas das testemunhas sobre a vivência da escola e onde estavam os professores e alunos foram, todas elas peremptórias e objectivas, com conhecimento dos factos, porque nela trabalhavam.
O - As respostas da testemunha E, constantes da gravação do seu depoimento, através do sistema integrado de gravação digital, aos minutos 6.11, 6.55, 14.11, 14.22, 14.4916.3118.26, 19.55, 21.04, 21.49,21.53, 26.19, 30.11, provam que as menores estavam sempre nos intervalos e que e que arguido não estava com elas na sala de aula. As respostas da testemunha H, auxiliar educativa, constantes da gravação do seu depoimento, através do sistema integrado de gravação digital, aos minutos 2.3, 2.43, 2.50, 2.55, 3.09, 3.27, 3.33, 3.404.04, 4.16, 4.56, provam que as menores estavam sempre nos intervalos e que o professor não estava com elas na sala de aula. As respostas da testemunha F, professora no ano lectivo 2006/2009, constantes da gravação do seu depoimento, através do sistema integrado de gravação digital, aos minutos 0.56, 1.03, 1.46, 4.23, 4.52, 5.10, 5.29, 5.35, 5.39, 5.56, 6.01, provam que os professores estavam juntos nos intervalos e que o arguido não estava na sala de aula com as menores. As respostas da testemunha G, professora no ano lectivo 2009/2010, constantes da gravação do seu depoimento, através do sistema integrado de gravação digital, aos minutos 2.31, 3.04, 3.34, 3.46, 4.28, 8.58, 12.58, provam que o arguido estava nos intervalos com a colega e que as menores estavam no recreio nos intervalos, pelo que não podiam estar na sala de aula com o arguido. As respostas da testemunha I, auxiliar operacional, constantes da gravação do seu depoimento, através do sistema integrado de gravação digital, aos minutos 1.23, 1.51, 2.51, 3.22, 3.49, 4.10, provam que as menores estavam no recreio nos intervalos e que o arguido não estava com elas na sala de aula.
P - Dos depoimentos das testemunhas indicadas em O, que viviam o dia a dia da escola em causa, provou-se que nos intervalos as menores estavam sempre cá fora e que os professores estavam juntos, a tomar chá, a vigiar os alunos ou a preparar trabalhos. Sendo esta a realidade do dia a dia da escola, não podiam ter ocorrido os factos constantes dos pontos 3 a 8 e 10 a 19 dos factos dados como provados no acórdão recorrendo, porque as pessoas em causa, arguido e menores não estavam na sala de aula ao mesmo tempo durante os intervalos.
Q - Se as duas menores, A e B, foram sempre vistas nos recreios a brincar com os outros colegas, tal torna impossível que elas estivessem na sala de aula durante os intervalos, o que, numa escola pequena, com 8 alunos no último ano e com cerca de 20 nos anos anteriores, pelo que faltando regularmente aos intervalos, quer a B quer a A, tal ausência chamaria à atenção das auxiliares educativas, tal como as próprias testemunharam no julgamento o afirmaram, iriam logo à procura delas.
R - Tais comportamentos decorrem da experiência comum de quem tem crianças à sua guarda e dá pela falta delas, pelo que, necessariamente, ao contrário do que fundamentam o colectivo de Juízes a quo no douto acórdão recorrendo, tal factualidade coloca em crise a factualidade dada como provada no pontos 3 a 8 e 10 a 19 da matéria dada como provada.
S - Acresce que, em nenhum destes depoimentos é referido que o arguido chamava as menores para virem à sala de aula, o que acentua a prova da não ocorrência dos factos constantes dos pontos 3 a 8 e 10 a 19. Se fosse hábito, tal como consta dos pontos 8 e 14 dos factos provados, que o arguido as chamava para dentro da sala, tal facto teria sido vivenciado pelas auxiliares educativas e pelos outros professores.
T - Não tendo sido provado que o arguido as chamava para dentro da sala de aula, não podia, o colectivo de Juízes a quo, ter dado como provado que os factos constantes do pontos 3 a 8 a 10 a 19 ocorriam nos intervalos depois de este as chamar para dentro da sala, pois nenhuma prova se produziu nesse sentido, sendo certo que nem as outras professoras nem as auxiliares educativas deram pela falta de qualquer das menores nos intervalos, nem ouviram que o arguido as chamasse nos intervalos para ir à sala de aula.
U - Não colhe a fundamentação dada à matéria de facto relativa aos pontos 3 a 8 e 10 a 19, pelo facto de não ser verosímil que o arguido estivesse sempre acompanhado, porque o natural na vivência de uma pequena escola, com poucos alunos e com instalações pequenas, é que estejam todos juntos. O natural na vivência de uma escola como a de (...) é que todos saibam onde todos estão, o que impossibilita a actuação do arguido.
V O que não é verosímil é que seja dado como provado que o arguido as chamasse para dentro da sala de aula e que nenhuma prova se tenha feito sobre esses factos e estes tenham sido dados como provados. Não decorre das regras da experiência comum, nem é verosímil, que numa escola com cerca de 20 alunos e que no último ano só tinha 8, cujo espaço de recreio é o mesmo para todos, professores, auxiliares educativas e alunos, ninguém dê que o arguido chamava regularmente as duas menores durante os intervalos para irem para a sala de aula.
X - Tal como não é verosímil que uma pessoa, seja o arguido ou outra qualquer, satisfaça os seus instintos lascivos e libidinosos em apenas escassos momentos ou minutos, tal como o afirma o colectivo de Juízes a quo na fundamentação da matéria de facto, constante do acórdão recorrendo, pelo que tal argumentação não pode, nunca, colher, para inviabilizar a prova produzida em audiência de julgamento e que não foi descredibilizada por qualquer outra prova.
Y - Os factos dados como provados nos pontos 22, 23 e 24 contradizem os factos dados como provados nos pontos 3 a 8 e 10 a 19. Se os professores todos os dias tomavam chá juntos nos intervalos, quando não estavam no recreio ou não estavam a preparar aulas, tal inviabiliza, por completo, poder dar-se como provado que os factos constantes dos pontos 3 a 8 e 10 a 19 tenham sido dados como provados, bem como que, se os alunos eram vigiados pelas auxiliares educativas e pelos professores nos intervalos, os factos constantes dos pontos 3 a 8 e 10 a 19 não podem ser dados como provados, porque foram exactamente as testemunhas que o colectivo de Juízes a quo, entendeu serem credíveis para prova destes e doutros factos, que afirmaram que nunca deram pela falta das menores A e B durante os intervalos.
Z - Assim sendo, dúvidas não restam que houve um julgamento incorrecto dos factos constantes dos pontos 3 a 8 e 10 a 19 dos factos provados, pois, da prova produzida pelas testemunhas ora indicadas e pelo arguido, impunha-se que tais factos tivessem sido dados como não provados, o que não sucedeu. Devem, pois, ser eliminados os pontos 3 a 8 e 10 a 19 dos factos dados como provados e os mesmos devem ser aditados aos factos dados como não provados, com a mesma redacção.
AA - O douto acórdão recorrendo também deu como provados os factos constantes dos pontos 26 e 27 dos factos provados, porém, não os podia ter dado como provados, porque não foi feita prova dos mesmos em sede de audiência de julgamento.
BB - Tais factos reportam-se ao comportamento das menores em consequência da suposta actuação do arguido, no entanto, da prova que foi produzida em audiência de julgamento não é passível de dar tais factos como provados. As testemunhas que depuseram sobre tais factos, limitaram-se a falar do comportamento das menores após o conhecimento público dos mesmos e não desde que a suposta agressão se deu.
CC - Os comportamentos das duas menores só se alteraram após os pais terem tomado conhecimento da suposta agressão do arguido, porque até àquela data estes não notaram nada de estranho ou de anormal no comportamento das mesmas, nem estas demonstraram, nem evidenciaram qualquer comportamento fora do normal que chamasse à atenção dos progenitores e das demais pessoas que com elas conviviam diariamente.
DD - Ora, decorre da experiência comum que crianças sujeitas a abusos sexuais alteram desde logo o seu comportamento, tornando-se mais irritadas, mais fechadas e, desde logo, no primeiro sintoma, que é a baixa do rendimento escolar e a recusa em ir às aulas, revelam medos, pânicos e vergonha. Só a partir da data do conhecimento público dos factos é que as menores passaram a evidenciar os comportamentos descritos nos pontos 26 e 27 dos factos provados.
EE - As respostas das testemunhas em sede de julgamento foram, todas elas, peremptórias e objectivas, com conhecimento dos factos, porque conviviam com as menores.
FF - As respostas do arguido, constantes da gravação do seu depoimento, através do sistema integrado de gravação digital, aos minutos 30.20, 31.49, 32.18, 35.02, 35.12, 35.15, 35.49, 36.02, provam que não houve alteração do comportamento das menores face a ele e na escola. As respostas da testemunha J, constantes da gravação do seu depoimento, através do sistema integrado de gravação digital, aos minutos 3.34, 3.39, 4.05, 4.17, 6.33 9.13, 10.51, provam que a menor A não tinha medo de ir à escola, não indo nervosa, não baixou as notas, sempre passou de ano e não tinha medo da presença de homens. As respostas da testemunha D, constantes da gravação do seu depoimento, através do sistema integrado de gravação digital, aos minutos 1.15, 1.43, 3.53, 5.48, 6.1.3, provam que até ao conhecimento público dos factos não se notou nenhuma alteração no comportamento da menor B. As respostas da testemunha E, constantes da gravação do seu depoimento, através do sistema integrado de gravação digital, aos minutos 23.10, provam que não verificou nenhuma alteração no comportamento das menores na escola. As respostas da testemunha K, constantes da gravação do seu depoimento, através do sistema integrado de gravação digital, aos minutos 11.39, 12.29, provam que a menor A só alterou o seu comportamento após o conhecimento dos factos pelos pais. As respostas da testemunha F, constantes da gravação do seu depoimento, através do sistema integrado de gravação digital, aos minutos 6.13, 6.25, 7.59, 9.13, provam que a menor A antes da ocorrência dos factos já tinha dificuldades e que foi seguida em consulta de psicologia. As respostas da testemunha L, constantes da gravação do seu depoimento, através do sistema integrado de gravação digital, aos minutos 9.26, 11.53, 12.21, 15.26, 15.36, 15.51, 16.32, 16.35, 16.39, provam que as menores já tinham dificuldades de relacionamento com os colegas, embora cada uma pelas suas razões e que a A já teria vivenciado experiências que não eram próprias da idade. As respostas da testemunha I, constantes da gravação do seu depoimento, através do sistema integrado de gravação digital, aos minutos 5.09, 5.23, 5.26, 5.38, 6.01, provam que as menores têm hoje um comportamento igual ao que tinham na escola primária. As respostas da testemunha M, constantes da gravação do seu depoimento, através do sistema integrado de gravação digital, aos minutos 2.20, 3.02, 6.38, 6.49, provam que a menor B alterou o seu comportamento após o conhecimento público dos factos, mas que, mesmo assim sempre continuou a ter boas notas. As respostas da testemunha N, constantes da gravação do seu depoimento, através do sistema integrado de gravação digital, aos minutos 1.52, 4.27 provam que as menores na nova escola estão perfeitamente integradas, têm um comportamento perfeitamente normal, igual ao que tinham na escola primária antes do conhecimento público dos factos. As respostas da testemunha O, constantes da gravação do seu depoimento, através do sistema integrado de gravação digital, aos minutos 1.39, 2.08, 2.20 provam que o comportamento das menores na nova escola é exactamente igual ao que tinham na escola primária, antes dos factos serem do conhecimento público.
GG - Em face das declarações das testemunhas que acima se transcreveram, forçoso é de concluir que o comportamento das menores só se alterou após o conhecimento público dos factos. Até àquela data, quem com elas conviveu não notou nenhuma alteração dos respectivos comportamentos que levasse a suspeitar que se passava alguma coisa, nomeadamente, os factos supostamente ocorridos e constantes dos presentes autos.
HH - Aliás até no comportamento escolar e nos respectivos rendimentos escolares nada se notou, nem antes do conhecimento dos factos, nem posteriormente. Ambas mantiveram os rendimentos escolares que já tinham, nada se alterando, nem sendo perceptível. Mesmo actualmente, nenhuma delas mostra sinais/sintomas de trauma decorrente da suposta agressão de que terão sido vítimas, fazendo a sua vida normal.
II - Não há, por isso, factos que suportem as conclusões retiradas nos pontos 26 e 27 dos factos provados, a não ser a partir do conhecimento público dos factos supostamente ocorridos, pelo que, dúvidas não restam que houve um julgamento incorrecto dos factos constantes dos pontos 26 e 27 dos factos provados. Em face da prova produzida pelas testemunhas ora indicadas e pelo arguido, impunha-se que tais factos tivessem sido dados como não provados, o que não sucedeu, pelo que houve um julgamento incorreto nesta parte da matéria de facto, a qual deve ser dada como não provada. Devem, pois, ser eliminados os pontos 26 e 27 dos factos dados como provados e os mesmos devem ser aditados aos factos dados como não provados, com a mesma redacção.

DO DIREITO APLICADO
JJ - Em face do que acima se alegou quanto ao incorrecto julgamento da matéria de facto e à forma como se impunha que tivesse sido julgada a matéria de facto, como provada e como não provada, entende-se que o Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, violou o disposto no artigo 171° n°1 do Código Penal e os artigos 483º, 342° n° 1, 487° e 496° todos do Código Civil.
KK - No que respeita ao artigo 171° do Código Penal, não se encontram preenchidos os tipos objectivo e subjectivo do tipo de crime por que foi condenado no acórdão recorrendo, pois, da matéria de facto que devia ter sido dada como provada e da matéria de facto que devia ter sido dada como não provada, não se mostra que o arguido tenha tido comportamentos que sejam subsumíveis aos elementos do tipo de crime por que vinha acusado, pelo que se impunha, após análise dos factos dados como provados e como não provados, a conclusão pelo não preenchimento dos tipos objectivo e subjectivo do crime de abuso sexual de criança, o que impunha a sua absolvição, pelo que, ao decidir como decidiu, com a condenação do arguido, o Tribunal a quo, violou o disposto no artigo 171° do Código Penal.
LL - No que respeita à indemnização civil, não se provando o crime por que vinha acusado o arguido, impunha-se que o arguido tivesse sido absolvido das mesmas, pelo que, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 483°, 342° n° 1, 487° e 498° do Código Civil.
MM - Mas, mesmo que assim se não entenda, sempre se dirá que o valor das indemnizações não respeita o princípio da repartição do ónus da prova, nem o princípio da equidade, pois, pouco se provou quanto aos eventuais danos causados às menores, sendo que os depoimentos das testemunhas são todos eles unânimes quanto à não alteração dos comportamentos das mesmas até que os factos se tornaram públicos e só após a publicidade dos factos é que as menores alteraram os seus comportamentos.
NN - Acresce que, um dos sinais mais evidente da existência deste tipo de comportamentos é a quebra do rendimento escolar e a aversão à escola e ao local onde supostamente ocorrem as agressões. Sobre nenhum destes sinais foi produzida prova, para além de não terem alterado o seu comportamento em relação ao arguido, nem ninguém ter notado que se passava alguma coisa fora do normal com elas, posto que o respectivo comportamento no ambiente escolar se manteve inalterado até à data do conhecimento público dos factos. Só estes elementos, teriam sido suficientes para que o valor da indemnização tivesse sido fixado em valor muito mais baixo do que aquele que foi fixado para cada uma delas, caso o arguido fosse condenado, isto, sem conceder sobre o que se alegou quanto à absolvição do arguido.
Nestes termos e nos demais de direito aplicáveis deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o douto acórdão recorrendo e substituindo-se por outro que absolva o arguido dos crimes por que foi condenado, bem como das indemnizações civis em que foi condenado.
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O Ex.mo Procuradora do tribunal recorrido respondeu, concluindo da seguinte forma:
1. Os factos referentes ao número de alunos na Escola de (...) foram alegados pelo arguido, o tribunal não os levou à matéria de facto provada nem não provada e foi efectivamente produzida prova da sua verificação nos termos das declarações apontadas pelo Recorrente, pelo que, nessa parte, deveria o recurso merecer provimento, nos termos do art° 374°, n° 2, e 379°, n° 1, al. a), do Cód. Proc. Penal.

2. Verificando-se que tais factos, em nada abalam os fundamentos do acórdão quanto à condenação do arguido, não sendo essenciais à decisão da causa, como abaixo se demonstrará, não ocorre a apontada nulidade.

3. O Acórdão recorrido explica cabalmente o percurso que conduziu à prova dos factos, nomeadamente, dos descritos sob os n°s. 3 a 8, e l0 a 19, 26 e 27, da matéria de facto provada, indicando os testemunhos e demais prova de que se socorreu e efectuando uma síntese desses depoimentos.
4. Donde resulta que não ocorre a pretendida impossibilidade da verificação do relatado pelas menores, porquanto, em síntese:

5. No período compreendido entre as 13.30 horas e 15.00, não havia auxiliar de acção educativa na escola, por ser esse o período destinado ao seu almoço, – cfr. testemunho de E (a única assistente operacional que então ali exercia funções, aos 01'20" e segs. e 27'.00" e segs.)- permanecendo os alunos apenas a cargo dos professores e, no ano de 2010/2011, aos cuidados somente do arguido, por apenas ter sido constituída uma única turma.

6. A excepção foi constituída pelo período em que E esteve de baixa, 22 dias no decurso do mês de Maio de 2011, em que foi substituída por H (durante uma semana e tal –cfr. 00'.20" e segs., do depoimento desta) e I (durante três dias –cfr. 01'.25", do depoimento desta). Mais,

7. Nos anos anteriores (2008/2009 e 2009/2010), acontecia a professora da segunda sala não conceder o intervalo e o arguido fazê-lo, pelo que, também nesse período, os alunos do arguido ficavam apenas sob a vigilância deste.

8. Nos termos dos n°s. 22 e 23 dos factos provados, a toma de chá era frequente mas não em todos os dias em que ocorriam actividades lectivas, tanto mais que por vezes os professores estavam no recreio ou a preparar aulas.

9. Note-se ainda o testemunho da Professora G, aos 04'.40", que chegou a leccionar aulas a A e que referiu que esta sua aluna necessitava, por vezes, de ficar na sala de aulas a concluir trabalhos que lhe mandava executar e que a aluna não concluía no tempo estipulado –cfr. 01'.30" e segs. do seu testemunho.

10. No mesmo sentido E referiu:
«18’.00’’ Aos intervalos, por vezes, o professor ficava na sala. Se lá ficava alguma a acabar trabalhos ou assim eu não ia duvidar (...) isso pode ter acontecido mas muito poucas»
22.00 Ás vezes ouvia, estão a acabar um trabalho mas eu estou aqui mas não eram sempre elas»

11. Verificando-se, pois, que por vezes o arguido permanecia com alunos no interior da sala, durante o intervalo ou parte dele, dando explicações à auxiliar de acção educativa sobre essa situação, que já ali não se deslocava.

12. A escola possui janelas na fachada principal as quais, devido à sua altura, não permitem que uma pessoa que esteja no exterior veja o que se passa dentro da sala –neste sentido fotografia de fls. 671 e testemunho de E aos 07'.00" e seguintes.

13. Quanto aos factos descritos nos n°s. 26 e 27, a fundamentação da prova assentou nas declarações de A e B, dos seus pais, bem como da psicóloga e psiquiatra que as acompanharam, depois dos pais das menores terem conhecimento dos factos.

14. Note-se que a Dr.ª. P, pedo-psiquiatra, referiu nos esclarecimentos que prestou em julgamento, a propósito da A, em complemento ao relatório junto aos autos, a 03'.00" e segs. «...era uma menina muito assustada, com dificuldade em conciliar o sono, vivia com medo, tinha passado a ter uma inibição social moderada (...) era uma miúda muito ingénua, imatura em alguns aspectos, o que talvez estivesse de acordo com a faixa etária». Continuou,

15. (15'.00" e segs.) «A A sempre foi uma miúda muito directa e muito clara nas suas resposta, quer em relação a este tema quer a outros assuntos (...) verbalizava parece que assim não presto para nada, havia revolta, havia uma insónia, sentia que era julgada pelas outras pessoas (...) esse tipo de comportamentos é típico de miúdos que tenham sido abusados»

16. «A B só a vi uma vez.» 06'.00" c segs. «Os factos foram traumatizantes para a B, era uma miúda assustada (...) passou a ter um comportamento baseado em medo, e uma certa inibição social, com dificuldade em ir para a escola, não queria sair de casa, fazer pequenos recados (...) era uma miúda sem pensamentos vingativos (...) não era dada a efabulações (...) nestas idades as efabulações e fantasias são coisas muito limitadas (quando muito querem ser princesas ou imitar uma cântaro pop, isso é coisa da adolescência» (09'.00" e segs.).

17. Por seu turno, a Dra. Q, Psicóloga, que contactou com as famílias das duas menores mas que só contactou pessoalmente com a A, esclareceu aos 00'.50" e segs. «a A apresentava uma sintomatologia típica de stress pós-traumático, mostrava medo em dormir sozinha e em ir à escola (...) esta sintomatologia era muito evidente (...) o medo era sempre associado à figura do professor (...) todos os indicadores que recolhemos neste "pós" tinham que ver com a vivência desta situação descrita por ela (07'.45" e segs) ela descreveu que as situações abusivas ocorriam com a prática de contactos em que ele se colocava por trás dela e simulava o contacto sexual (...) volta e meia a recorrência era de se lembrar da situação (...) ela viveu estas várias situações com muita dificuldade em processar o que se estava a passar (...) ela associava os medos e as dificuldades em dormir a memórias que tinha destas situações que aconteciam na escola».

18. Não tenho conhecimento dos antecedentes da A antes de a conhecer (...) aqui claramente usava o espaço terapêutico para elaborar a história que ela sentia que tinha dificuldade em elaborar porque lhe era muito difícil (...) não me pareceu que fosse fantasiosa (...) ela descrevia factualmente as várias inter-acções, não houve ao longo do tempo uma variabilidade em função de alguns elementos que ela pudesse em termos mnésicos alterar caso estivesse a confabular alguma coisa (13'.40" e segs.).

19. «Referia necessidade de que os outros acreditassem nela porque ela não estava a mentir (19'.30" e segs.)

20. Face aos testemunhos dos progenitores das menores, aos relatórios juntos aos autos, aos esclarecimentos prestados pela Sr.ª Dr.ª Pedo-Psiquiatra e pela Sr.ª Psicóloga, cujos excertos mais relevantes supra se transcreveram constata-se que os factos dados como provados são a expressão da prova produzida em julgamento como bem considerou o Tribunal Colectivo.

21. O Acórdão recorrido explica cabalmente, ainda que de forma sintética, o percurso que conduziu à prova dos factos provados, nomeadamente, dos descritos sob os n°s. 3 a 8 e l0 a 19, 26 e 27, da matéria de facto provada.

22. Dessa exposição se extrai que os factos objectivos fundaram-se nos testemunhos das menores, ouvidos em audiência, merecedores de credibilidade como explicitado no Acórdão, sem que se suspeite de qualquer confabulação, por tal possibilidade estar afastada, face às declarações da Sr.ª Pedo-Psiquiatra e da Sr.ª Psicóloga e sem que exista a mínima suspeita de que as menores armaram uma cilada ao arguido, uma vez que a revelação dos factos a adultos, no caso à testemunha E, foi acidental, esta bem esclareceu.

23. Verificando-se ainda que as menores, mantiveram o relato dos factos que realizaram inicialmente, sem acrescentarem outros elementos, situação que poderia fazer suspeitar da existência de confabulação, que na idade das menores é muito limitada, como esclareceu a Sr.ª Pedo-Psiquiatra.

24. Da globalidade da prova produzida resulta que a selecção da matéria de facto provada não padece de qualquer vício, incongruência ou contradição, mostra-se conforme às regras da experiência comum e encontra-se devidamente fundamentada.

25. Os factos, tal como o acórdão analisou, traduzidos na simulação de coito e em palpação dos seios da menor A, constituem actos sexuais de relevo para efeitos penais sem margem para dúvidas.

26. Por tudo o exposto, deverão V. Exas. negar provimento ao recurso e manter o Acórdão recorrido nos seus precisos termos.
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Também as assistentes responderam ao recurso, pugnando pela manutenção do decidido.
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Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II
No acórdão recorrido e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:
-- Factos provados:
1 - O arguido C foi professor no 10 cicio da Escola Básica de (...), em Estremoz, área de competência desta comarca.
2 - O arguido foi professor de A, nascida em 30/09/2002 quando esta frequentava o 30 ano de escolaridade do cicio básico da aludida escola.
3 - Em data não concretamente apurada, mas ocorrida no início do ano lectivo de 2010/2011, o arguido dirigiu-se à menor A num dos intervalos do período da tarde, que tinham lugar às 14h30 e às 15h30, a quem pediu que ficasse na sala de aula.
4 - Em seguida, o arguido pediu à menor para se colocar de frente para uma mesa, com as duas mãos abertas, colocadas sobre a mesa, ao mesmo tempo que pediu à menor para que segurasse uma régua, como que para fazer medições, com as pernas afastadas.
5 - Depois o arguido colocou-se atrás da menor, pôs as suas mãos na zona da anca daquela e, com a zona genital encostada no rabo da menor, esfregou-se, simulando a prática de coito.
6 - Ao longo do ano lectivo de 2010/2011, o arguido praticou factos semelhantes com a menor, mais do que uma vez, em datas não concretamente apuradas.
7 - Posteriormente, no mesmo ano lectivo, o arguido actuou da forma supra descrita, começando a colocar as suas mãos nos seios da menor.
8 - No final do ano lectivo de 2010/2011, A já se sentia com medo de estar na escola, mesmo no meio dos colegas. Tentava evitar ficar a sós com o arguido, pedindo-lhe para ir beber água quando chegava a altura de ir para o intervalo, para já não ter de voltar à sala de aula. No entanto, o arguido chegava a chamá-la do recreio na mesma, por isso as suas tentativas eram infrutíferas.
9 - O arguido foi também professor de B na mencionada escola.
10 - Em datas não concretamente apuradas, o arguido, durante os anos lectivos de 2008/2009 e 2009/2010, aproximou-se da menor B, quando tinha 8 e 9 anos de idade e praticou os seguintes factos:
11 - O arguido pedia à menor para se colocar de frente para uma mesa, com as duas mãos abertas, colocadas sobre a mesa, ao mesmo tempo que pediu à menor que segurasse uma régua, como que para fazer medições, com as pernas afastadas.
12 - Depois, o arguido colocava-se atrás da menor, punha as suas mãos na zona da anca daquela e, com a zona genital encostada no rabo da menor, esfregava-se, simulando a prática do coito.
13 - Ao longo dos anos lectivo de 2008/2009 e 2009/2010, o arguido praticou factos semelhantes com a menor, mais do que uma vez, em datas não concretamente apuradas.
14 - Aqueles factos foram praticados pelo arguido na menor, durante os intervalos das aulas, e sucediam-se mais ou menos da mesma forma: o professor chamava-a para dentro da sala de aula, supostamente para o ajudar a medir alguma coisa ou ajudá-lo nalguma tarefa agindo da forma descrita em 11 e 12.
15 - O arguido conhecia a idade das menores A e B, por as mesmas frequentarem a Escola Básica de (...), em Estremoz, onde as aulas tinham lugar, e sabia que, ao actuar da forma descrita supra, na presença das menores, perturbava e estava a prejudicar o desenvolvimento das suas personalidades, que ofendia os seus sentimentos de criança e punha em causa o são desenvolvimento da consciência sexual das mesmas.
16 - Sabia igualmente o arguido que, em função da idade das menores B e A, as mesmas não tinham suficiente discernimento para avaliar se os seus comportamentos eram ou não adequados.
17 - Actuou ainda o arguido, relativamente às menores, fortalecido pela relação de confiança estabelecida com estas, decorrente da circunstância de ser seu professor a exclusivo cargo.
18 - Ao agir da forma descrita, o arguido actuou com a intenção que concretizou, de dar satisfação aos seus instintos lascivos e libidinosos, utilizando, para tanto, as identificadas menores, indiferente à sua idade e às consequências de tal actuação sobre as
mesmas.
19 - Sabia o arguido que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
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20 - O arguido não tem antecedentes criminais.
21 - É casado, professor, auferindo aproximadamente 1.500 mensais; suporta pagamento com renda de casa no valor de € 477; o cônjuge está desempregado e não aufere qualquer subsídio; tem como habilitações literárias o curso do magistério primário.
21 - O arguido é considerado pessoa honesta, com princípios, amiga e profissionalmente competente por todos aqueles que com o mesmo contactam, sendo igualmente pessoa bem considerada e respeitada na comunidade onde se insere.
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22 - Nos anos lectivos de 2008/2009 e 2009/2010, o arguido e as professoras F e G tomavam frequentemente chá juntos nos intervalos da manhã, quando não estavam no recreio ou a preparar aulas.
23 - Os alunos eram vigiados por auxiliares educativas e muitas vezes pelos próprios professores no decurso dos intervalos.
24 - Os intervalos das aulas ocorriam às llhl5, 14h40 e 15h20.
25 - Por factos ocorridos em Setembro de 2012, a menor A participou de três colegas na escola que frequentava, conforme teor de fls. 683 e ss., que aqui se dão por reproduzidas.
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26 - Em consequência da actuação do arguido, a menor B passou a isolar-se em casa, deixando de frequentar os locais que antes fazia; revelou pânico quando tomou conhecimento que iria para uma escola onde já estava o arguido em funções profissionais; pedia para dormir com os pais; verbalizava que não achava correcto a actuação do professor.
27 - Em consequência da actuação do arguido a menor A revelou baixa auto estima, vergonha, medo e sentimentos de culpa: revela situação de stress pós-traumático, dificuldade em dormir sozinha, com medo reportado à figura do arguido; encontra-se a ser acompanhada por pedo-psiquiatra e medicada.
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-- Factos não provados:
Com interesse para a decisão da causa, não se provou que:
- que o referido em 3° se tenha verificado especificamente no intervalo das 14h30.
- que o descrito em 7° se tenha iniciado concretamente em Janeiro de 2011, e que o arguido
tenha colocado as mãos debaixo da roupa.
- que nenhum aluno ficava na sala de aula nos intervalos.
- que a menor B tenha tido quebra no seu desempenho escolar e falta de concentração.
- que a menor A em consequência da actuação do arguido tenha tido quebra no seu desempenho escolar, que tenha medo sempre que veja uma viatura idêntica à do arguido, que tenha passado a ter medo de homens, que tenha deixado de frequentar a escola e que lhe venham à memória os factos sempre que está na sala de aula.
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Fundamentação da decisão de facto:
A factualidade vertida nos art.s 3° a 14° relativamente aos actos imputados ao arguido resultam fundamentalmente do teor das declarações das duas menores, ouvidas em declarações para memória futura e ouvidas no decurso da audiência de julgamento.
As declarações das mesmas mostraram-se claras, concretas e dignas de credibilidade, mantendo-se ao longo do interrogatório a que foram sujeitas, sem contradições ou hesitações. E na verdade, apreciando a forma como o interrogatório foi feito, não subscrevemos as afirmações feitas pela defesa do arguido de que as respostas eram sugeridas na medida em que apenas era solicitada uma confirmação da factualidade.
Pelo contrário, as menores, às perguntas que iam sendo feitas foram frequentemente além das perguntas que lhe eram efectuadas, referindo factos e circunstâncias conexas aos que seriam a resposta directa à pergunta, mostrando-se totalmente livres na resposta, sem qualquer condicionamento, ainda que involuntário por quem fazia o interrogatório.
Por outro lado, mostrou-se de extrema relevância o depoimento da testemunha E, auxiliar da escola, a qual relatou a forma fortuita como teve conhecimento da situação, ao escutar uma conversa entre alunas no recreio, afastando a credibilidade da alegação da existência de qualquer plano maquiavélico por parte das menores.
Os depoimentos dos progenitores, relatando as alterações de comportamento das menores também são importantes na medida em que permitem concluir a existência de vicissitudes na vida das mesmas que foram causa de tais alterações e que são compagináveis e habituais em crianças sujeitas a actos desta natureza.
Nenhum outro elemento probatório colocou em causa estes depoimentos, sendo que não podemos deixar de notar a forma objectiva e que reputamos de sinceramente emocionada, mas contida, como foram prestados.
Por fim, e além dos relatórios periciais juntos aos autos que atestam as condições psicológicas e a credibilidade das menores, resultam ainda essenciais os depoimentos de P, psiquiatra, que acompanhou sobretudo a A, e Q, psicóloga do (…), que acompanhou a mesma menor.
Tais depoimentos foram coincidentes na forma como descreveram a credibilidade da menor em causa (e não deixou o tribunal de reparar que foi esta a menor cujo carácter foi colocado em causa mais vezes), nomeadamente que a forma como descreveu os factos, mantendo a sua versão ao longo do tempo, a idade que apresenta, resulta que a mesma não tem tendência para efabulação, revelou stress pós-trumático e que o professor, ora arguido, era a referência dos seus medos.
Tendo sido também, em julgamento, referido que esta última técnica não teria levado em consideração a envolvência familiar, uma vez que o agregado familiar da A teria características desestruturantes que poderiam ser causa da situação clínica psicológica ou psiquiátrica da menor, tal não é verdade. De forma fundamentada e segura referiu a mesma, confrontada com tal questão, que a relação com a mãe é funcional e o pai é visto como fonte de segurança. Referiu que pela idade, pela recorrência e forma como descreveu a situação, em que não houve variabilidade do discurso (que é o que habitualmente sucede quando as crianças confabulam), não se trata de uma criança fantasiosa.
Todas estas circunstâncias conferiram especial credibilidade às menores e alicerçaram a forte convicção do tribunal quanto a tal factualidade.
Inúmeras testemunhas vieram à audiência desmerecer a credibilidade das menores. A B, em síntese, era a apelidada de má, aquela que era bem comportada na sala de aula mas maltratava inclusivamente o avô. A A era a apelida de libertina, que gostava de rapazes mais velhos e só pensava em namorados.
Assim vieram pais de alunos da escola de (…) e até alguns professores, como L, que disse que a menor queria à força ter um namorado e disse logo de início que iam ter problemas com ela, R que teria ouvido uma conversa sobre sexo oral com a A.
Todavia, quando ouvimos uma professora da A na mesma escola, a mesma reputa a menor de educada com os professores, fazendo uma apreciação objectiva das dificuldades de relacionamento da menor com os seus colegas, mas não descontextualizando tais dificuldades da circunstância que resultou à saciedade de todos o julgamento e como, melhor explicou a Q, ser uma criança relativamente mais crescida fisicamente que as outras, desproporcionada, com óculos graduados, circunstâncias que todos sabemos que no meio escolar e infantil podem trazer dificuldades de integração.
E não podemos também deixar de notar pela negativa, que do depoimento de S, directora do agrupamento escolar, em face dos factos denunciados, a preocupação geral da comunidade escolar, designadamente professores, foi a ida da A para a escola como fonte de distúrbio e preocupação, e até de incómodo, em prejuízo da gravidade dos factos indiciados.
A valoração que foi feita da participação subscrita pela menor, desmerecendo, ou melhor, omitindo aquilo que afinal era verdade, apenas referindo o que seria mentira, denotam o estado de espírito da comunidade relativamente à menor em causa e, consequentemente à situação subjacente aos autos.
Desta forma, reafirmamos a forte convicção relativamente à factualidade em apreço.
A factualidade referida no art. 1 ° e 2° e 10° relativamente às funções exercidas pelo arguido e à idade das menores resultou à saciedade de todo o julgamento e encontra-se certificada nas certidões dos assentos de nascimento de fls. 353 e 350.
Os factos referidos em 15° a 20° resultam das regras de experiência comum, e tendo em consideração a profissão e características pessoais do arguido, pelo que não poderia o mesmo desconhecer tais circunstâncias.
A ausência de antecedentes criminais do arguido encontra-se certificada nos autos a fls.503.
As suas condições económicas e pessoais resultam das declarações do próprio e do teor do relatório social de fls. 622, bem como do teor dos depoimentos de T, U, V e W.
A factualidade vertida nos artigos 22 e 25 resultou fundamentalmente do teor dos depoimentos das identificadas professoras e da testemunha E que os corroboraram e do teor do documento de fls. 683 e ss. relativamente à participação.
Sem prejuízo, tal factualidade, salvo melhor opinião não coloca em crise as considerações supras sobre o convencimento do tribunal. Tomar chá com os colegas num dos intervalos não impossibilita a actuação do arguido. Qualquer das actuações em causa, tomar chá, ou a actuação delituosa imputada ao arguido não demora mais do que escassos momentos ou minutos, não sendo naturalmente possível afirmar que o arguido esteve sempre acompanhado, até por tal não ser verosímil.
Por outro lado, a situação descrita no documento em causa, para além do que já se escreveu quanto à menor A, ocorreu mais de um ano depois dos factos constantes na acusação.
A factualidade vertida nos artigos 26 e 27 resulta do teor da próprias menores, seus pais, bem como da psicóloga e psiquiatra já referidas.
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A matéria de facto não provada resulta de ausência de prova segura quanto aos mesmos e do que se disse quanto à matéria de facto provada.
III
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.
De modo que as questões postas ao desembargo desta Relação são as seguintes:
1.ª – Que deve ser aditada uma nova alínea aos factos dados como provados, com a seguinte redacção: "28 - Nos anos lectivos de 2008 a 2010 a escola era frequentada por cerca de 20 alunos distribuídos em duas turmas, cada uma com um professor, e no ano lectivo de 2010/2011 por 8 alunos numa única turma com um professor.";
2.ª – Que foi por ter avaliado mal a prova produzida em julgamento que o tribunal "a quo" deu como provado o teor dos pontos 3 a 8, 10 a 19 e 26-27 dos factos provados; e
3.ª – Que, de qualquer forma, os montantes indemnizatórios a título de danos não patrimoniais fixados às menores são exagerados.
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Vejamos:
No tocante à 1.ª das questões postas, a de que deve ser aditada uma nova alínea aos factos dados como provados, com a seguinte redacção: "28 - Nos anos lectivos de 2008 a 2010 a escola era frequentada por cerca de 20 alunos distribuídos em duas turmas, cada uma com um professor, e no ano lectivo de 2010/2011 por 8 alunos numa única turma com um professor.":

Sendo o objecto do processo delimitado pela acusação/pronúncia, pela contestação e pelos factos que resultarem da prova produzida em audiência (art.º 339.º, n.º 4, do Código de Processo Penal) e estando o tribunal obrigado a enumerar os factos provados e não provados (art.º 374.º, n.º 2, do mesmo Código), esta enumeração respeita aos factos alegados pela acusação e pela defesa que sejam essenciais para a caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes e mais aos factos provados que resultem da prova produzida em audiência que sejam relevantes para a questão da culpabilidade e determinação da sanção a aplicar (art.º 368.º e 369.º do Código de Processo Penal).
A circunstância do recorrente entender que o tribunal deveria ter dado como provado o número de alunos, professores e turmas não torna tais elementos relevantes, sendo que foram apurados os pertinentes dentro do objecto do processo e que permitem a aplicação do direito ao caso que foi submetido à sua apreciação – como já a seguir se verá.
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No tocante à 2.ª das questões postas, a de que foi por ter avaliado mal a prova produzida em julgamento que o tribunal "a quo" deu como provado o teor dos pontos 3 a 8, 10 a 19 e 26-27 dos factos provados:
Estes pontos dos factos provados têm o seguinte teor:
3 - Em data não concretamente apurada, mas ocorrida no início do ano lectivo de 2010/2011, o arguido dirigiu-se à menor A num dos intervalos do período da tarde, que tinham lugar às 14h30 e às 15h30, a quem pediu que ficasse na sala de aula.
4 - Em seguida, o arguido pediu à menor para se colocar de frente para uma mesa, com as duas mãos abertas, colocadas sobre a mesa, ao mesmo tempo que pediu à menor para que segurasse uma régua, como que para fazer medições, com as pernas afastadas.
5 - Depois o arguido colocou-se atrás da menor, pôs as suas mãos na zona da anca daquela e, com a zona genital encostada no rabo da menor, esfregou-se, simulando a prática de coito.
6 - Ao longo do ano lectivo de 2010/2011, o arguido praticou factos semelhantes com a menor, mais do que uma vez, em datas não concretamente apuradas.
7 - Posteriormente, no mesmo ano lectivo, o arguido actuou da forma supra descrita, começando a colocar as suas mãos nos seios da menor.
8 - No final do ano lectivo de 2010/2011, A já se sentia com medo de estar na escola, mesmo no meio dos colegas. Tentava evitar ficar a sós com o arguido, pedindo-lhe para ir beber água quando chegava a altura de ir para o intervalo, para já não ter de voltar à sala de aula. No entanto, o arguido chegava a chamá-la do recreio na mesma, por isso as suas tentativas eram infrutíferas.

10 - Em datas não concretamente apuradas, o arguido, durante os anos lectivos de 2008/2009 e 2009/2010, aproximou-se da menor B, quando tinha 8 e 9 anos de idade e praticou os seguintes factos:
11 - O arguido pedia à menor para se colocar de frente para uma mesa, com as duas mãos abertas, colocadas sobre a mesa, ao mesmo tempo que pediu à menor que segurasse uma régua, como que para fazer medições, com as pernas afastadas.
12 - Depois, o arguido colocava-se atrás da menor, punha as suas mãos na zona da anca daquela e, com a zona genital encostada no rabo da menor, esfregava-se, simulando a prática do coito.
13 - Ao longo dos anos lectivo de 2008/2009 e 2009/2010, o arguido praticou factos semelhantes com a menor, mais do que uma vez, em datas não concretamente apuradas.
14 - Aqueles factos foram praticados pelo arguido na menor, durante os intervalos das aulas, e sucediam-se mais ou menos da mesma forma: o professor chamava-a para dentro da sala de aula, supostamente para o ajudar a medir alguma coisa ou ajudá-lo nalguma tarefa agindo da forma descrita em 11 e 12.
15 - O arguido conhecia a idade das menores A e B, por as mesmas frequentarem a Escola Básica de (...), em Estremoz, onde as aulas tinham lugar, e sabia que, ao actuar da forma descrita supra, na presença das menores, perturbava e estava a prejudicar o desenvolvimento das suas personalidades, que ofendia os seus sentimentos de criança e punha em causa o são desenvolvimento da consciência sexual das mesmas.
16 - Sabia igualmente o arguido que, em função da idade das menores B e A, as mesmas não tinham suficiente discernimento para avaliar se os seus comportamentos eram ou não adequados.
17 - Actuou ainda o arguido, relativamente às menores, fortalecido pela relação de confiança estabelecida com estas, decorrente da circunstância de ser seu professor a exclusivo cargo.
18 - Ao agir da forma descrita, o arguido actuou com a intenção que concretizou, de dar satisfação aos seus instintos lascivos e libidinosos, utilizando, para tanto, as identificadas menores, indiferente à sua idade e às consequências de tal actuação sobre as mesmas.
19 - Sabia o arguido que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

26 - Em consequência da actuação do arguido, a menor B passou a isolar-se em casa, deixando de frequentar os locais que antes fazia; revelou pânico quando tomou conhecimento que iria para uma escola onde já estava o arguido em funções profissionais; pedia para dormir com os pais; verbalizava que não achava correcto a actuação do professor.
27 - Em consequência da actuação do arguido a menor A revelou baixa auto estima, vergonha, medo e sentimentos de culpa: revela situação de stress pós-traumático, dificuldade em dormir sozinha, com medo reportado à figura do arguido; encontra-se a ser acompanhada por pedo-psiquiatra e medicada.

O arguido pretende que a matéria de facto constante dos pontos 3 a 8 e 10 a 19 não podia ter sido dada como provada, baseando a sua argumentação em duas traves mestras: uma, a de que, pelo reduzido numero de alunos da escola e se encontrarem estes permanentemente monitorizados quer pelos professores, quer pelas auxiliares, não havia nem espaço, nem oportunidade para o arguido poder ter praticado tais factos; a outra, que tudo se trata de uma invenção das ofendidas.
Temos pois que ir ouvir as gravações da prova produzida em julgamento, designadamente a indicada pelo recorrente, para aferir o que se passou.
Não olvidando o ensinamento de Germano Marques da Silva, in Fórum Justitiae, Ano 1, n.º 0, pág. 22, de que «o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, mas constitui apenas um remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância».
Nas situações de abuso sexual de crianças, por força das circunstâncias, a prova é particularmente difícil, na medida em que escasseia a prova directa, e regra geral só têm conhecimento da maioria dos factos o arguido e a vítima.
Daí que assuma especial relevância o depoimento da vítima, desde que, como é evidente, o mesmo seja credível e esteja em sintonia com as regras da experiência comum, baseada nos conhecimentos que sobre a matéria vem sendo transmitida pelas investigações psicológicas, pois só nesse caso é susceptível de formar a convicção do julgador.
Por sistema, quer-se sempre atacar o depoimento da própria vítima e, por isso, anda-se em busca de discrepâncias, de pouco rigor, de inverdades…
Mas acreditar ou não num depoente é uma questão de convicção. Essencial é que a explicação do tribunal seja racional e tenha lógica – no caso, dentro da lógica da psicologia juvenil.
E quem está numa posição privilegiada para avaliar essa credibilidade é, sem dúvida, o tribunal da 1.ª Instância, que beneficiou da oralidade e da imediação que teve com a prova.
É normal a criança vítima do abuso sexual revelar grandes inibições e dificuldades em relatar os factos, quer pelo esforço que, certamente, fez ao longo do tempo para arredar da memória os abusos de que foi vítima, quer pelas reacções emocionais que sua memória lhe provocava, quer pelo prejuízo que dos mesmos resulta para a sua auto-imagem.
Por isso, não é de estranhar a circunstância da menor B, tida como uma criança discreta e boa aluna, só ter dado notícia dos abusos do professor após estes terem terminado, quando o professor já andava há algum tempo a abusar da A e a auxiliar E ouviu esta a falar do assunto.
Como se afirma no estudo que constitui a tese de Mestrado em Ciências Forenses da Dr.ª Lígia Alexandra da Silva Carvalho, [«A Valoração do Testemunho da Criança Vítima de Abuso Sexual Intra-familiar no Contexto da Avaliação Forense»] o abuso sexual das crianças encerra complexas dinâmicas que remetem ao silêncio as crianças que dele são vítimas.
Diz ainda a referida autora que o silêncio que caracteriza a situação abusiva decorre, igualmente, do que Summit (1983) designa de sindroma de acomodação ao abuso. Este sindroma explica as razões que conduzem as crianças a manter-se na situação abusiva, não revelando o abuso que as vitima. De acordo com Summit, a situação de impotência em que a criança se encontra contribui de forma decisiva para o seu silêncio. Importa não esquecer que a criança vivencia uma situação que não compreende e que é imposta por alguém que, de alguma forma, pelo estatuto ou pelo papel que desempenha na sua vida ou pela coacção que utiliza, exerce poder sobre ela. Às crianças vítimas de abuso sexual, resta apenas, perante a impotência que sentem para por fim à experiência abusiva, o desenvolvimento de um esforço de adaptação e acomodação ao abuso. Esta necessidade de acomodação é reforçada face a processos de revelação que, para além de serem, logo à partida, complicados e difíceis para a criança, são, frequentemente, mal sucedido.(…) O sindroma da acomodação constitui, assim, um esforço adaptativo que a criança faz, de forma a garantir a sua sobrevivência ao abuso sexual. Todavia, salienta-se que este processo de acomodação acentua o sentimento de culpabilidade da criança e torna mais difícil o caminho para a saída da situação abusiva (Machado, 2003).
E depois, há sempre coisas que os juízes de julgamento viram enquanto ouviam e não ficaram na gravação e das quais, por isso, o tribunal de recurso nunca se aperceberá, sendo por vezes precisamente essas que fazem a diferença e levam o tribunal a quo a tombar para o lado do provado em vez do não provado ou vice-versa.
Isto é, a percepção dos depoimentos só é perfeitamente conseguida com a oralidade e a imediação das provas, sendo certo que, não raras vezes, o julgamento da matéria de facto não tem correspondência directa nos depoimentos concretos, resultando antes da conjugação lógica de outros elementos probatórios, que tenham merecido a confiança do tribunal.
A prova testemunhal não é, pois, para ser avaliada aritmeticamente. Ou como se o depoimento de uma testemunha fosse para ser considerada com o rigor de uma escritura de um notário.
Por isso é que o art.º 127.º, do Código de Processo Penal, dispõe que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente; salvo quando a lei dispuser diferentemente, o que não é o caso.
Conforme refere o Prof. Cavaleiro Ferreira (Curso de Processo Penal, II-27) as regras ou normas da experiência "são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto, sub judice, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade” e a livre convicção "é um meio da descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade, portanto, uma conclusão livre porque subordinada à razão e à lógica e não limitada por prescrições formais exteriores".
Certo que a livre apreciação da prova não é livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, mas apreciação que, liberta do jugo de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objectivos, que determina dessa forma uma convicção racional e, portanto, objectivável e motivável – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4-11-98, Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1998, III-201.
Mas quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum[2] (e, no tocante aos presentes autos, face também aos conhecimentos da psicologia sobre menores abusados sexualmente).
No caso dos autos e em última análise, o que o recorrente pretende é substituir a convicção do tribunal pela sua. E embora desenvolva um quadro argumentativo com o qual pretende demonstrar, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade, não logrou convencer-nos disso, ou seja, de que a decisão do tribunal "a quo" em matéria de facto não é possível ou não é plausível.
É que não basta que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal "a quo" por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção ‘era possível’. Exige-se-lhe que indique a prova que imponha uma outra convicção.
De resto, do que o art.º 412.º, n.º 3 al.ª b), do Código de Processo Penal, fala é da indicação pelo recorrente da provas que imponham uma decisão diversa da recorrida, não de provas que eventualmente também permitam outra decisão de facto.
Pois bem.
Antes de mais, no ano lectivo de 2010/2011, altura em que lhe é imputada a prática de abusos sexuais sobre a A, professor naquela escola só havia um, o arguido, e também só havia uma auxiliar; sendo que esta à tarde geralmente não estava presente na escola à hora das aulas, pelo que durante este período o arguido ficava sozinho com os alunos, inclusive a vigiá-los no intervalo. Situação das tardes que também aconteceu nos anos lectivos de 2008/2009 e 2009/2010, em que a professora não fazia intervalo à tarde, mas o arguido fazia.
Depois, a auxiliar E apercebeu-se de que, embora raramente, às vezes ficava este ou aquele aluno/a na sala durante o período do recreio – a acabar algum trabalho ou a ajudar nalguma actividade escolar, o que era normal e não levantava quaisquer suspeições:
18’.00’’ Aos intervalos, por vezes, o professor ficava na sala. Se lá ficava alguma a acabar trabalhos ou assim eu não ia duvidar (...) isso pode ter acontecido mas muito poucas.
22’.00’’: Às vezes ouvia, estão a acabar um trabalho mas eu estou aqui mas não eram sempre elas.
A pretensão do arguido em que os abusos não podiam ter acontecido porque à hora em que lhe são imputados (no período dos recreios), o arguido tomava sempre chá com a outra professora, isso do chá só sucedeu nos anos lectivos de 2008/2009 e 2009/2010 e só da parte da manhã. E a toma do chá, embora fosse uma prática frequente, não era sistemática – como também não o eram os abusos sexuais imputados ao arguido no tocante, no caso destes anos lectivos, à B, não o sendo também em relação à A no ano lectivo de 2010/2011: os abusos eram esporádicos, aconteciam de vez em quando.

No tocante a que tudo não passe de uma invenção das ofendidas, procurou o arguido desqualificar particularmente a A, apontando-a como mentirosa – situação que ao longo da audição sobretudo dos colegas do arguido que este trouxe para depor como testemunhas de defesa, nos apercebemos não ser de forma alguma alheia à circunstância de a A parecer ser uma criança de aparência pouco graciosa [apesar de nos faltar a oralidade e a imediação com a prova, aparecem referências a isso nos depoimentos] – e que a B tinha sido influenciada por ela para arranjar uma história idêntica, já que esta era uma criança discreta e muito boa aluna. Não obstante, resulta dos depoimentos e dos relatórios da psiquiatra e testemunha P, que acompanhou sobretudo a A, e Q, psicóloga, que acompanhou a mesma menor, que esta não terá inventado a situação. E o incidente retratado a fls. 683 e ss., que consistiu em a A apresentar na escola uma queixa contra três colegas rapazes que em duas situações distintas, ocorridas mais de um ano após os factos imputados ao arguido, lhe dirigiram expressões de cariz sexual, sendo certo que uma das situações acabou por ser pela A confessada como tendo sido inventada, mas a outra situação foi verdadeira – pretende o arguido ver nesse incidente um sinal de que a A mentira na denúncia que fez do arguido. Não obstante, a nós parece-nos antes tratar-se de uma sequela do que aconteceu com o arguido, em virtude do que a A, por um lado, passou a ser objecto de escárnio pelos outros colegas e, por outro, passou a ver fantasmas agressores sexuais em situações isentas dessa conexão. De resto, é sabido que raparigas caucasianas na idade da infância, como o eram as ofendidas, têm uma fraca capacidade de efabularem fantasias de cariz sexual e ainda menos de as manterem inalteráveis a longo dos tempos.

Quanto à impugnação que o arguido faz do constante dos pontos 26 e 27 dos factos provados, recordemos o seu teor:
26 - Em consequência da actuação do arguido, a menor B passou a isolar-se em casa, deixando de frequentar os locais que antes fazia; revelou pânico quando tomou conhecimento que iria para uma escola onde já estava o arguido em funções profissionais; pedia para dormir com os pais; verbalizava que não achava correcto a actuação do professor.
27 - Em consequência da actuação do arguido a menor A revelou baixa auto estima, vergonha, medo e sentimentos de culpa: revela situação de stress pós-traumático, dificuldade em dormir sozinha, com medo reportado à figura do arguido; encontra-se a ser acompanhada por pedo-psiquiatra e medicada.
Põe o arguido em causa que em julgamento se tenha feito prova do teor destes dois pontos.
Mas fez-se.
O tribunal "a quo" fundamentou a prova daqueles factos nas declarações das menores ofendidas A e B, dos seus pais, bem como da psicóloga e da psiquiatra que as acompanharam depois dos pais das menores terem conhecimento dos factos.
Por exemplo, em relação à A, a Dr.ª P, pedo-psiquiatra, declarou em julgamento:
03'.00" e segs.: ...era uma menina muito assustada, com dificuldade em conciliar o sono, vivia com medo, tinha passado a ter uma inibição social moderada (...) era uma miúda muito ingénua, imatura em alguns aspectos, o que talvez estivesse de acordo com a faixa etária.
15'.00" e segs.: A A sempre foi uma miúda muito directa e muito clara nas suas resposta, quer em relação a este tema quer a outros assuntos (...) verbalizava parece que assim não presto para nada, havia revolta, havia uma insónia, sentia que era julgada pelas outras pessoas (...) esse tipo de comportamentos é típico de miúdos que tenham sido abusados.
E quanto à B:
09'.00" e segs: Os factos foram traumatizantes para a B, era uma miúda assustada (...) passou a ter um comportamento baseado em medo, e uma certa inibição social, com dificuldade em ir para a escola, não queria sair de casa, fazer pequenos recados (...) era uma miúda sem pensamentos vingativos (...) não era dada a efabulações (...) nestas idades as efabulações e fantasias são coisas muito limitadas (…) quando muito querem ser princesas ou imitar uma cantiga pop, isso é coisa da adolescência.
E a Dr.ª Q, psicóloga, declarou em julgamento, relativamente à A:
00'.50" e segs: a A apresentava uma sintomatologia típica de stress pós-traumático, mostrava medo em dormir sozinha e em ir à escola (...) esta sintomatologia era muito evidente (...) o medo era sempre associado à figura do professor (...) todos os indicadores que recolhemos neste "pós" tinham que ver com a vivência desta situação descrita por ela (07'.45" e segs) ela descreveu que as situações abusivas ocorriam com a prática de contactos em que ele se colocava por trás dela e simulava o contacto sexual (...) volta e meia a recorrência era de se lembrar da situação (...) ela viveu estas várias situações com muita dificuldade em processar o que se estava a passar (…) ela associava os medos e as dificuldades em dormir a memórias que tinha destas situações que aconteciam na escola.
13'.40" e segs: Não tenho conhecimento dos antecedentes da A antes de a conhecer (...) aqui claramente usava o espaço terapêutico para elaborar a história que ela sentia que tinha dificuldade em elaborar porque lhe era muito difícil (...) não me pareceu que fosse fantasiosa (...) ela descrevia factualmente as várias interacções, não houve ao longo do tempo uma variabilidade em função de alguns elementos que ela pudesse em termos mnésicos alterar caso estivesse a confabular alguma coisa.
19'.30" e segs: Referia necessidade de que os outros acreditassem nela porque ela não estava a mentir.

Assim, analisando o conteúdo das gravações da prova testemunhal produzida em julgamento, conjugada entre si e com as regras da experiência e da normalidade, nada se pode criticar à matéria de facto assente como provada, caindo por terra a pretensão do arguido, constante da conclusão KK, de que da matéria de facto que devia ter sido dada como provada e da matéria de facto que devia ter sido dada como não provada, não se mostra que o arguido tenha tido comportamentos que sejam subsumíveis aos elementos do tipo de crime por que vinha acusado, pelo que se impunha, após análise dos factos dados como provados e como não provados, a conclusão pelo não preenchimento dos tipos objectivo e subjectivo do crime de abuso sexual de criança, o que impunha a sua absolvição (…)
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No tocante à 3.ª das questões postas, a de que, de qualquer forma, os montantes indemnizatórios a título de danos não patrimoniais fixados às menores são exagerados:
Estes montantes foram os de 12.000 e para cada uma das menores.
Estabelece o art.º 129.º do Código Penal que «a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil».
Por seu lado, o art.º 483.º, n.º 1, do Código Civil, diz que «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
O art.º 496.º do mesmo Código preceitua, citado apenas na parte que agora interessa ao caso:
«1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
«2. ...
«3. O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art.º 494.º; ...»
Circunstâncias referidas no art.º 494.º que são:
«… o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso ...»
A este respeito escreve Antunes Varela, in “Obrigações”, pág. 428, que o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão da ordem pecuniária ao lesado.
Também Vaz Serra, in R.L.J., 113.º, a pág. 96, refere que o citado preceito legal é aplicável quer se trate de danos não patrimoniais resultantes de lesão corporal, quer de outros, desde que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
A indemnização por danos não patrimoniais visa proporcionar ao lesado alegrias tanto quanto possível reparadoras dos danos sofridos. Não é, como adverte o Prof. Vaz Serra (in B.M.J. 83/83) uma verdadeira indemnização, no sentido de um equivalente do dano, isto é, um valor que reponha as coisas no estado anterior à lesão. Trata-se apenas de dar ao lesado uma satisfação ou compensação do dano sofrido, uma vez que este, sendo apenas moral, não é susceptível de equivalente.
A indemnização a este título constitui, assim, uma compensação por prejuízos espirituais ou morais e deve ser fixada equitativamente, tendo em atenção a gravidade desses prejuízos e atendendo ao grau de culpa do agente, à situação económica deste e do lesado e às demais circunstâncias do caso.
Segundo Mota Pinto, "Teoria Geral do Direito Civil", Coimbra Editora, 1976, pág. 86, "os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis, não podem ser reintegrados mesmo por equivalente. Mas é possível, em certa medida, contrabalançar o dano, compensá-lo mediante satisfações derivadas da utilização do dinheiro. Não se trata, portanto, de atribuir ao lesado um "preço de dor" ou um "preço de sangue", mas de lhe proporcionar uma satisfação, em virtude da aptidão do dinheiro para propiciar a realização de uma ampla gama de interesses, na qual se podem incluir mesmo interesses de ordem refinadamente ideal".
Tal indemnização deve tender a viabilizar um lenitivo ao lesado, tendo um alcance significativo e não meramente simbólico (acórdãos do STJ de 16-12-93, Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1993, III-181; de 11-9-94, Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1994, III-89; e de 6-7-00, BMJ 499-309).
Na fixação do montante da indemnização pelos danos não patrimoniais revelados no caso dos presentes autos, deverá pois ter-se em conta, além do grau de culpabilidade do agente e da situação económica deste (que aufere 1.500,00 € por mês e é casado com uma doméstica) e das lesadas (ou melhor, do núcleo familiar com quem vive cada uma das menores lesadas, a A com a mãe empregada de limpezas e a B com os pais, sendo o pai trabalhador agrícola), a natureza e frequência dos abusos sexuais de que foram vítimas, a relação social de grande relevo que o abusador tinha com ambas (era o seu professor do ensino básico) e o grau do impacto negativo e traumatizante que as ocorrências tiveram na vidas das menores, agravadas pela circunstância de os factos terem ocorrido e as menores viverem num meio social pequeno, aonde as mesmas eram (e serão durante mais alguns anos ainda) frequentemente confrontadas, ou mesmo desacreditadas como o chegaram efectivamente a ser, com a penosa recordação do sucedido.
Pelo que, tudo visto e ponderado, têm-se por justos e adequados os montantes da indemnização pelos danos não patrimoniais fixados na 1.ª Instância a cada uma das menores (12.000 € para cada uma).
IV
Termos em que se decide:
1.º
Ao abrigo do disposto nos art.º 380.º, n.º 1 al.ª b) e 2, do Código de Processo Penal, e 50.º, n.º 5, do Código Penal, corrigir o manifesto lapso de o tribunal "a quo" no ponto c) da parte decisória, a fls. 799 dos autos, ter suspenso por 5 anos a pena única de 4 anos que aplicou ao arguido, passando o período daquela suspensão a ser o de quatro anos.
2.º
Negar provimento ao recurso.
3.º
Manter, com a correcção apontada em 1.º, a decisão recorrida.
4.º
Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade de tratamento das questões suscitadas, em cinco UC’s (art.º 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9, do RCP e tabela III anexa).
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Évora, 25-03-2014
(elaborado e revisto pelo relator,
que escreve com a ortografia antiga)

João Martinho de Sousa Cardoso
Ana Brito

_________________________________________________
[1] Na parte decisória do acórdão recorrido, o tribunal "a quo" consignou que a pena única de 4 anos de prisão era suspensa pelo período de 5 anos, o que se trata de um manifesto lapso, atento o disposto no art.º 50.º, n.º 5, do Código Penal, e a própria fundamentação da decisão de direito feita pelo tribunal "a quo", aonde a propósito desse assunto se expendeu (fls. 397 dos autos): Pelo exposto, determina-se a suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido vai condenado, pelo período de quatro anos - art. 50°, n° 5, do Cód. Penal, (…)
[2] Acórdãos do STJ de 6-3-02, CJ dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 2.002, II-44 e da Relação de Évora de 25-5-04, CJ, 2.004, III-258