Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
564/15.4T8EVR.E1
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE TRABALHO
ENTIDADE PATRONAL
Data do Acordão: 09/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I- A responsabilidade objetiva do empregador relativamente aos acidentes de trabalho sofridos pelos seus trabalhadores emerge do chamado risco económico ou de autoridade.
II- A teoria do risco económico ou de autoridade em que assenta o conceito de acidente de trabalho e as suas extensões, previstos, respetivamente, nos artigos 8.º e 9.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (LAT), remete não para um risco específico de natureza profissional, mas para um risco genérico ligado ao conceito amplo de autoridade patronal, ou seja, o acidente tem de ter uma conexão com a relação laboral e não propriamente com a prestação laboral em si.
III- A lesão verificada durante um jogo de futebol realizado pelos funcionários da entidade patronal, durante a hora de almoço, e por iniciativa dos participantes, constituiu uma atividade lúdica, de natureza pessoal, sem qualquer conexão com a relação laboral, pelo que o acidente ocorrido não pode beneficiar da tutela própria dos acidentes de trabalho. (sumário da relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]

I. Relatório
Na presente ação especial de acidente de trabalho que A… (Autor) intentou contra Seguradoras …, S.A. (Ré), em que é interveniente o Instituto de Segurança Social, I.P. – Centro Distrital de Évora, foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente, com a consequente absolvição da Ré dos pedidos contra si formulados.
Não se conformando com o decidido, veio o Autor interpor recurso, extraindo das suas alegações, as seguintes conclusões:
«1ª O presente recurso visa a impugnação da decisão da matéria de facto e da matéria de direito porque, salvo o devido respeito, uma e outra incorretamente julgados.
2ª Concretamente vai impugnada, em parte, a decisão da matéria de facto corporizada pela resposta ao quesito 1º da Base Instrutória por, sem razão, não acolher o segmento factual em que o A, em declarações de parte, referiu expressamente que praticava exercícios físicos a fim de manter em forma a sua capacidade física para o bom desempenho profissional
3ª Ou seja: à resposta à matéria do artº 1º da Base Instrutória dever ser aditado o trecho que verbaliza o facto determinante da prática de exercícios físicos pelo A. Na realidade,
4ª Não há qualquer razão para que assim não seja. Desde logo porque a sentença não aponta qualquer motivo que descredibilize ou torne duvidosa as palavras do Autor neste particular, sendo que na Motivação da decisão também nada é referido justificando o não – acolhimento das declarações do Autor, no seu todo. A isto acresce que não foi feita qualquer prova em sentido contrário pelo que nada, absolutamente nada, justifica a resposta dada ao quesito 1º.
5ª É através da motivação que as partes, e em especial a vencida, avaliam da bondade do julgado ficando a saber da razão ou das razões por que o Tribunal decidiu em determinado sentido e não noutro. E quando o Tribunal acolhe, somente em parte, as declarações produzidas durante a audiência de julgamento, como sucedeu no caso em apreço, deve explicitar a razão ou as razões por que não fez aceitação das demais. E,
6ª Não havendo, como de facto não houve, motivação para a não integração do apontado segmento, ocorre nulidade da sentença nessa parte – V artº 615º, nº1, b), do Cód de Processo Civil.
7ª Efetivamente, resulta das declarações do Autor a razão por que o mesmo praticava exercícios físicos. Logo, a resposta ao quesito 1º da Base Instrutória deve ser complementada mediante a integração do já referido segmento (em falta) para o que se sugere a redação seguinte: provado apenas que com o conhecimento e o consentimento da sua entidade patronal o Autor praticava exercícios, tais como corrida, exercícios com bola e ginásio, em ordem a manter em forma a sua capacidade física para o bom desempenho da sua profissão
8ª Igualmente vai impugnada, em parte, a resposta ao quesito 2º, o qual contém a referência “ao serviço da sua entidade patronal”, que deve ser havida como não escrita uma vez que colide com um facto admitido por acordo, já que não só não foi impugnado assim como foi objeto de acordo expresso.
9ª Acontece que no seu articulado, alegou o autor “ No momento do acidente, o A., prestava trabalho para o … na sua Academia, sita na Estrada Municipal Malhada de Meias, Barroca d’ Alva, 2890 – 5290 Alcochete sendo que a sua responsabilidade civil emergente de acidente de trabalho se achava transferida para aqui R. mediante a Apólice nº 0002174717” – cfr artº 4º da P.I
10ª Na sua douta defesa, a R consignou expressamente o seguinte. “Aceita-se o teor dos artigos 1º a 4º, 11º e 15º da P.I.” – cfr artigo 6 da contestação
11ª Ou seja: ficou admitido por acordo das partes, nos articulados, que no momento do acidente o A prestava trabalho para o S. C. P, o mesmo é, por outras palavras, dizer que no dia 10.04.2014, pelas 13 horas e 30 minutos, o A se encontrava ao serviço da sua entidade patronal. Esta, de resto, a razão por que o facto assim alegado e aceite pela R, sem qualquer controvérsia, passou diretamente à sentença, que o integrou, sob o ponto 3º, nos factos provados. Ora,
12ª Estando o facto assente, já não pode o mesmo ser levado à B I Esta a razão por que se propugna que deve ser havido como não escrita a parte referente “ ao serviço da sua entidade patronal”
13ª Neste enquadramento, o quesito 2º, uma vez saneado mediante a expurgação da referência “ao serviço da sua entidade patronal, deve receber a versão seguinte: No dia 10.04.2014, pelas 13 horas e 30 minutos o Autor sofreu um acidente?
14ª E, atento a prova produzida, a resposta respetiva só pode ser: provado que no dia 10.04.2014, pela 13 horas e 30 minutos na Academia, em Alcochete, o Autor sofreu um acidente de trabalho. E isto porque,
15ª Toda a prova produzida em audiência de julgamento situa localmente o acidente dos autos nas instalações desportivas (no dizer de todas as testemunhas), e na Academia de Alcochete na expressão do Autor, sendo do conhecimento geral que as instalações desportivas do S.P.C (vulgo academia) se situam em Alcochete.
16ª Acresce que o quesito 2º parece querer sintetizar o facto alegado a coberto do artº 6, da P.I que foi objeto de impugnação. Só que o quesito, na versão que se lhe conhece, tresmalhou. Assim,
17ª Sugere-se o aditamento de um novo quesito materializando o artº 6º da p.i cujo aqui se oferece como integralmente reproduzido sendo que a resposta respetiva terá de ser necessariamente: provado. E isto porque neste sentido foi toda a prova lograda em julgamento consoante o espelham os autos – cfr factos provados a coberto dos pontos 3º e 8º, in II. Dos factos provados
18ª De modo que ocorrido no local e tempo do trabalho, como efetivamente provado sob os pontos 3º e 8º dos factos provados – cfr II. Dos factos provados, não há como não haver o acidente dos autos como um típico acidente de trabalho e, portanto, indemnizável.
19ª A Ré, que não alegou quaisquer factos e nomeadamente que” o autor estava numa pausa da sua jornada de trabalho, pausa essa que aproveitou para ter um momento de lazer com outros colegas de trabalho, durante o qual não estava sujeito ao controlo da entidade patronal”, limitou-se, pura e simplesmente, a impugnar os factos alegrados pelo Autor.
20ª De tal modo que na ânsia de escapar à responsabilidade, atabalhoadamente, impugnou um facto alegado pelo A, e, mais adiante, alegou esse mesmo facto. Tal o desnorte – cfr artº 8º da P.I e artº 7º 12º da contestação
21ª De todo o modo basta percorrer a Base Instrutória e terminar no elenco dos factos provados para verificar que a Ré não alegou nem provou quaisquer factos e, em particular, os referidos supra sob a conclusão 19ª de modo a não ser condenada na reparação do acidente.
22ª É certo que a sentença, sem qualquer suporte fáctico nem acolhimento legal, faz a apologia da teoria do risco profissional como que a querer a sua repristinação.
Desenvolve, apaixonadamente, considerações a ponto de extrair conclusões e, a parir destas, novas conclusões dando a estas últimas as vestes de prova, o que, como consabido, não é lícito ao julgador.
23ª Na verdade, ao julgador só é lícito a partir de um facto conhecido firmar um facto desconhecido, mas não já extrair conclusões a partir facto inexistente. E mais: também não lhe é lícito, sem mais, concluir a partir dum facto não provado, dar como provado um facto em sentido contrário. É que um facto não provado apenas conduz a que se tenha por não provado uma realidade que se pretendia demonstrar e nada mais.
24ª Às partes cumpre, de início, alegar os factos e, depois, fazer a sua demonstração.
25ª Quanto ao apego à teoria do risco profissional bem evidenciada ao longo da sentença, o aqui Apelante busca amparo no citado supra aresto do S.T.J, de 29.06.2015, cujo neste espaço oferece como reproduzido no seu todo.
26ª A sentença, recorrida fez, pois, violação, do disposto no artigo 8º da L.AT e , ainda, do artº 615º, nº 1, b), do Cód de Processo Civil, aplicável ex vi artº 1º, nº 2,a), do Cód de Processo do Trabalho.
Termos em que,
Revogando a decisão recorrida e, em seu lugar, outra produzindo havendo acidente dos autos como de trabalho, e, portanto, reparável, Vossas Excelências farão límpida JUSTIÇA!»
Contra-alegou a Ré, propugnando pela improcedência do recurso.
A 1.ª instância admitiu o recurso de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Tendo o processo subido à Relação, foi observado o preceituado no n.º 3 do artigo 87.º do Código de Processo do Trabalho.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer favorável à confirmação da sentença.
O recorrente respondeu.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Objeto do Recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil aplicáveis ex vi do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho).
Em função destas premissas, as questões suscitadas no recurso são as seguintes:
1.ª Nulidade da sentença.
2.ª Impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
3.ª Qualificação do acidente como sendo de trabalho.
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III. Matéria de Facto
O tribunal de 1.ª instância considerou provados os seguintes factos relevantes para a boa decisão da causa:
1º O autor trabalhou por conta do … – Futebol SAD, com sede no …, sob a sua direção e fiscalização entre 01.02.2014 e 03.09.2015, exercendo as funções de motorista de pesados.
2º À data do acidente auferia a remuneração anual de 18.409,30€ (1.200,00€ x 14 + 146,30€ x 11).
3º No momento do acidente, o autor prestava trabalho para a sua entidade patronal, na Academia, sita na Estrada Municipal Malhada de Meias, Barroca d`Alva, Alcochete.
4º A entidade patronal celebrou com a ré um contrato de seguro, titulado pela apólice n.º 0002174717, para transferência da responsabilidade civil emergente de acidentes laborais dos seus trabalhadores.
5º A ré vem negando ao autor o pagamento de quaisquer importâncias, quer a título de incapacidade temporária, quer a título de tratamentos médicos e cirúrgicos que o mesmo necessite, encontrando-se o autor a ser acompanhado por médico do Serviço Nacional de Saúde.
6º O autor nasceu em 07.05.1987.
7º Com o conhecimento e o consentimento da sua entidade patronal, o autor praticava exercícios físicos, tais como corrida, exercícios com bola e ginásio.
8º No dia 10.04.2014, pelas 13,30 horas, o autor sofreu um acidente.
9º O acidente ocorreu quando o autor na sua hora de almoço estava a jogar à bola, no jogo dos funcionários da empresa quando ao correr no campo, magoou-se no joelho direito.
10º Em consultas médicas o autor despendeu a quantia global de 440,40€.
11º E em taxas moderadoras despendeu a quantia global de 19,50€.
12º No período compreendido entre 03.07.2014 e 04.07.2017 a Segurança Social pagou ao autor o montante de 15.692,43€ a título de subsídio de doença.
13º Do acidente sofrido em 10.04.2014 o autor teve alta em 06.05.2014 e ficou com uma incapacidade permanente parcial de 5%.
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IV. Nulidade da sentença
O recorrente argui a nulidade da sentença por omissão de pronúncia e falta de fundamentação, argumentando, para tanto, que na motivação da resposta dada ao artigo 1.º da base instrutória, o tribunal a quo não explicita a razão ou razões porque só aceitou parcialmente as declarações do Autor, produzidas em sede de julgamento.
Ora, no ordenamento processual-laboral ainda em vigor existe uma norma específica que exige que a arguição de nulidades seja feita expressa e separadamente no requerimento de recurso (cfr. artigo 77.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho)[2].
No caso em apreço, no requerimento de interposição do recurso dirigido ao tribunal de 1.ª instância, o recorrente argui a nulidade da sentença nos seguintes termos: «a sentença enferma de nulidade por não indicar os fundamentos para o não acolhimento do excerto em que o Autor alega o facto determinante da prática de exercícios físicos»
Ainda que apenas nas alegações e conclusões do recurso, identifique com maior precisão as causas de nulidade de sentença que invoca e desenvolva a argumentação que considera pertinente para as sustentar, afigura-se-nos que deve ser aceite a arguida nulidade da sentença, porque, ainda assim, o recorrente argui a nulidade da sentença expressa e separadamente, de modo compreensível, no requerimento de interposição do recurso dirigido ao tribunal de 1.ª instância.
De harmonia com o normativo inserto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável ao processo laboral, a sentença é nula quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
A causa de nulidade prevista na mencionada alínea está em correspondência direta com o artigo 608.º, n.º 2 do mesmo compêndio legal. Estabelece-se nesta norma que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Verifica-se a omissão de pronúncia quando o juiz deixe de apreciar as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação.
Neste âmbito, não se deverá confundir questões com razões ou argumentos invocados pelos litigantes em defesa do seu ponto de vista, pois esses não têm que ser obrigatoriamente conhecidos pelo tribunal. Já o Professor Alberto dos Reis ensinava, a propósito da nulidade de sentença por omissão de pronúncia que: «São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer a questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzido pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão» - Código de Processo Civil anotado, Vol. V, pag.143.
No caso vertente, o recorrente acusa o tribunal a quo de não se ter pronunciado na motivação da resposta dada ao artigo 1.º da base instrutória, sobre a razão ou razões porque só aceitou parcialmente as declarações do Autor, produzidas em sede de julgamento.
Ora, basta ler a motivação da decisão sobre a base instrutória para concluir que a mesma contém a análise crítica das provas, designadamente a apreciação e valoração das declarações emitidas pelo Autor, conjugadas com os restantes meios de prova indicados, que alicerçam a convicção formada pelo tribunal.
Resulta claramente da motivação da convicção que não obstante o Autor tenha declarado que praticava exercício físico para exercer a sua profissão de motorista, o mesmo não fez referência a quaisquer instruções emanadas da sua entidade patronal para que fizesse exercício físico para o bom desempenho profissional, o que, conjugadamente com os depoimentos das testemunhas Abel Ferreira e Ludovico Marques levou à resposta restritiva dada ao artigo 1.º da base instrutória.
Tanto basta parra concluir que não se verifica a invocada omissão de pronúncia, nem falta de fundamentação, no âmbito da motivação da convicção.
Pois, em relação à falta de fundamentação que constitui causa de nulidade da sentença[3], ensina-nos o Prof. Alberto dos Reis: «Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade (…)» - Código de Processo Civil anotado, Vol. V, pág.140.
Ora, existindo fundamentação da convicção do tribunal a quo, jamais poderia verificar-se a causa de nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
Pelo exposto, julga-se improcedente a arguida nulidade da sentença.
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IV. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Nas conclusões do recurso, o recorrente impugna a decisão de facto do tribunal a quo, relativamente à resposta dada aos artigos 1.º e 2.º da base instrutória.
Ora, de harmonia com o normativo inserto no n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Este dever consagrado no preceito abrange, naturalmente, situações em que a reapreciação da prova é suscitada por via da impugnação da decisão sobre a matéria de facto feita pelo recorrente.
Em tal situação, deve o recorrente observar o ónus de impugnação previsto no artigo 640.º do Código de Processo Civil.
Preceitua este dispositivo legal o seguinte:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º..
Vejamos, então, se o recorrente cumpriu o ónus de impugnação do qual depende a admissão do recurso.
Nas conclusões do recurso, o recorrente especificou os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, bem como a decisão que, no seu entender, deve ser proferida quanto às questões de facto impugnadas – alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil.
Quanto ao suporte probatório que leva a que considere que a materialidade em causa foi incorretamente julgada, verifica-se que o recorrente, nas alegações do recurso, invoca:
- as declarações de parte do Autor;
- os depoimentos das testemunhas A…, L… e S…;
Ora, tendo a prova oralmente produzida em julgamento sido gravada, o recorrente não indicou as passagens da gravação em que s funda no seu recurso – alínea b) do n.º 1 e alínea a) do n.º 2 da citada norma.
Ou seja, o mesmo não observou o ónus de impugnação previsto no aludido artigo 640.º.
Destarte, rejeita-se o recurso no que concerne à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
No âmbito da deduzida impugnação, o recorrente insere uma reação à formulação do artigo 2.º da base instrutória, baseada na existência de acordo das partes sobre matéria que foi considerada controvertida.
Ora, a manifestada reação processual é extemporânea - disposições conjugadas dos artigos 131.º, n.º 1, alíneas c) e d) e 1.º, nº 2, alínea a), ambos do Código de Processo de Trabalho, e 591.º e 596.º, ambos do Código de Processo Civil – pelo que não se conhecerá da mesma.
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VI. Qualificação do acidente
A 1.ª instância entendeu que o acidente que se aprecia nos autos, não é qualificável como acidente de trabalho.
Para tanto, desenvolveu a seguinte fundamentação:
«Dispõe o artº 8º, 1, da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro (diploma a que pertencem as normas legais doravante citadas sem menção de origem), que “É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo do trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.”.
Nas alíneas a) e b) do n.º 2 da mesma norma legal, define-se local de trabalho como sendo “todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, direta ou indiretamente, sujeito ao controlo do empregador”, e tempo de trabalho além do período normal de trabalho, “o que precede o seu início, em atos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em atos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho”.
Por sua vez, o artº 9º estende o conceito de acidente de trabalho, considerando como tal os acidentes ocorridos fora do local ou do tempo de trabalho, quando verificados em determinadas circunstâncias.
Nos acidentes de trabalho há uma inversão do ónus da prova, pois não é o trabalhador que tem de provar que o acidente por si sofrido, desde que ocorrido dentro dos pressupostos do artº 8º, foi um acidente de trabalho, mas sim a ré é que tem de provar que apesar de ocorrido dentro daqueles pressupostos não se trata de um acidente de trabalho (artº 342º, 2, do Código Civil).
Com já referimos, no caso em análise mostra-se assente, com interesse para a decisão desta questão, que o acidente ocorreu no dia 10.04.2014, cerca das 13,30 horas, quando o autor, na sua hora de almoço, estava a jogar à bola no jogo dos funcionários da empresa, o que acontecia com o conhecimento e o consentimento da sua entidade patronal, tendo-se magoado no joelho direito ao correr no campo.
Perante esta factualidade é indiscutível que o autor sofreu um evento gerador de uma lesão física num momento em que realizava uma atividade física numa instalação pertença da entidade patronal e que a realização dessa mesma atividade e naquele local se encontrava autorizada genericamente pela entidade patronal.
No entanto, o jogo de futebol em que o autor estava a participar com os seus colegas de trabalho não era uma atividade diretamente relacionada com a sua atividade de motorista (ao contrário do que o autor pretendeu passar, a função típica de motorista não exige a prática de exercício físico), nem uma atividade ordenada pela entidade patronal. Esta condescendia na prática de exercício físico nas suas instalações mas não obrigava.
O que se expôs leva-nos a concluir que a ré logrou provar que quando o acidente se verificou o autor estava numa pausa da sua jornada de trabalho (não sendo aqui relevante se o autor tinha ou não hora determinada para almoçar, sendo certo que tinha direito intervalo para almoço), pausa essa que aproveitou para ter um momento de lazer com outros colegas de trabalho, durante o qual não estava sujeito ao controlo da entidade patronal.
O facto de o acidente ter ocorrido em instalações pertencentes à entidade patronal e de esta consentir na utilização das mesmas pelo autor, não altera esta conclusão, na medida em se mostra provado que a utilização das instalações era um ato de condescendência da entidade patronal, não
havendo qualquer ordem ou instrução para que o autor praticasse exercício físico.
Em suma, repete-se, quando o acidente ocorreu, o autor estava a usufruir de um momento de lazer por sua conta e risco, satisfazendo necessidades privadas totalmente alheias às funções exercida
por conta da entidade patronal, sendo que só por mero acaso este ocorreu em instalações pertencentes à entidade patronal, o que não é suficiente para se caracterizar o acidente como sendo de trabalho.
Nesta medida, considera-se que não há qualquer relação entre o trabalho e o acidente, não
podendo este beneficiar da tutela própria dos acidentes de trabalho.»
Desde já se adianta que a sentença recorrida não nos merece censura.
Passaremos, de seguida, a explicar porquê.
A responsabilidade objetiva do empregador relativamente aos acidentes de trabalho sofridos pelos seus trabalhadores emerge do chamado risco económico ou de autoridade.
É certo que a noção de acidente de trabalho nasceu ligada ao designado risco profissional, isto é, ao risco específico de natureza profissional.[4]
Todavia, as limitações resultantes desta teoria conduziram a que a mesma fosse superada pela teoria do risco económico ou de autoridade.
Essa evolução é expressamente referida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-06-2005, proferido no processo n.º 574/05, da 4.ª secção[5], onde se pode ler:
«Relembremos que o fundamento da responsabilidade objetiva, no domínio dos acidentes de trabalho, começou por assentar apenas na teoria do risco, no pressuposto de que a atividade profissional tinha, em potência, um risco. Para haver lugar à indemnização bastava demonstrar que o acidente era causa normal do risco próprio daquela atividade (risco de exercício de atividade).
Acontece que, posteriormente, se entendeu que a responsabilidade objetiva por acidentes de trabalho também encontrava justificação no risco de integração empresarial (inclusão do trabalhador na estrutura da empresa, sujeitando-o à autoridade do empregador) - teoria do risco de autoridade. Ora esta teoria assenta numa noção ampla de acidente de trabalho, considerando que o risco não deriva só da atividade profissional desenvolvida. E como sabemos a crescente socialização do risco tende a amplificar ainda mais aquela noção.»

A teoria do risco económico ou de autoridade em que assenta o conceito de acidente de trabalho e as suas extensões, previstos, respetivamente, nos artigos 8.º e 9.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (LAT), remete não para um risco específico de natureza profissional, mas para um risco genérico ligado ao conceito amplo de autoridade patronal, ou seja, o acidente tem de ter uma conexão com a relação laboral e não propriamente com a prestação laboral em si.
Posto isto, foquemos a nossa atenção no caso concreto.
Resulta dos factos provados que o Autor, entre 01-02-2014 e 03-09-2015, exerceu subordinadamente a profissão de motorista de pesados para o … – Futebol SAD.
No dia 10-04-2014, o Autor encontrava-se em serviço na Academia do ….
Na sua hora de almoço esteve a jogar à bola, no jogo dos funcionários da empresa, quando ao correr no campo se magoou no joelho direito. Em resultado desta lesão, o Autor ficou com uma incapacidade permanente para o trabalho de 5%.
Com o conhecimento e o consentimento da sua entidade patronal, o Autor praticava exercícios físicos, tais como a corrida, exercícios com bola e ginásio.
Ora, subjacente ao conceito de acidente de trabalho consagrado no n.º 1 do artigo 8.º da LAT, está, como referimos supra, o nexo de causalidade entre o acidente e a relação laboral.
Será que esta fundamental conexão resulta dos factos assentes?
No nosso entender a resposta à questão só pode ser negativa, porque não resultou demonstrada qualquer manifestação de autoridade pela entidade empregadora, relativamente ao jogo de futebol em causa.
Durante o jogo de futebol, o Autor não estava a trabalhar, pelo que o acidente não resultou do exercício da sua missão profissional de motorista.
Não resultou demonstrado que o jogo de futebol tivesse sido promovido pela entidade patronal, ou que o Autor tivesse sido “convidado” ou incentivado pelo empregador a participar no aludido jogo, ou, pelo menos, a aproveitar as horas de almoço para juntamente com outros funcionários da empresa terem momentos coletivos de convívio[6].
Não se vislumbra, com arrimo nos factos assentes, qualquer interesse ou proveito económico, direto ou indireto, na realização do jogo, para a entidade patronal.
Também não é possível inferir que o Autor se tenha lesionado em consequência de qualquer risco específico do espaço utilizado.
Igualmente, não se deduz qualquer tipo de consequência laboral para o trabalhador, pela participação ou não participação no aludido jogo de futebol.
Ou seja, não se vislumbra o mínimo indício de autoridade laboral e de subordinação do trabalhador.
O que se infere dos factos provados é que a participação do Autor no jogo de futebol foi uma decisão estritamente pessoal, voluntária e espontânea.
E que a realização do jogo na Academia do …, foi apenas um aproveitamento deliberado do local, pelos participantes do jogo.
O consentimento da utilização do espaço pela entidade patronal não revela qualquer tipo de tutela ou controle por parte da entidade patronal.
Em suma, o jogo de futebol em que o Autor se lesionou constituiu uma atividade lúdica, de natureza pessoal, sem qualquer conexão com a relação laboral.
Destarte, tal como decidiu a 1.ª instância, o acidente em apreço nos autos não pode beneficiar da tutela própria dos acidentes de trabalho.
Nesta conformidade, confirma-se a bondade da decisão recorrida, julgando-se o recurso improcedente.
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VII. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
Notifique.
Évora, 26 de setembro de 2019
Paula do Paço
Emília Ramos Costa
Moisés Silva
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[1] Relatora: Paula do Paço; 1.º Adjunto: Emília Ramos Costa; 2.ª Adjunto: Moisés Silva
[2] Esta norma foi uma das alteradas pela Lei n.º 107/2019, de 9 de setembro, publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 172., mas que ainda não entrou em vigor.
[3] Prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
[4] Júlio Manuel Vieira Gomes, O acidente de trabalho – O acidente in itinere e a sua descaracterização, 1.ª edição, Coimbra Editora, págs. 34 e seguintes.
[5] P. 05S574, acessível em www.dgsi.pt.
[6] Júlio Manuel Vieira Gomes, obra citada, págs. 105 e segs.