Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1716.12.4TBFAR.E1
Relator: SILVA RATO
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
CUMPRIMENTO PARCIAL
IMPOSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
Data do Acordão: 02/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Entrando o devedor em mora, e mantendo-se o interesse do credor na prestação, deve este fixar-lhe um prazo razoável, por meio da denominada interpelação admonitória, advertindo-o de que, se não cumprir a prestação nesse prazo, considerará tal contrato definitivamente não cumprido (artigos 808.º, n.º 1, 2ª parte e 432.º, do Código Civil).
Decisão Texto Integral: Acordam, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

Proc. N.º 1716.12.4TBFAR
Apelação 1ª Espécie
Comarca de Faro (Faro 2º Juízo Cível)
Recorrente: “Materiais de Construção (…), Lda.”
Recorrida: “(…) Comércio e (…) de Automóveis, S.A.”
R05.2015

I. Materiais de Construção (…), Lda.”, intentou a presente acção declarativa constitutiva e de condenação com processo ordinário contra “(…) Comércio e (…) de Automóveis, S.A.”, peticionando que:
a) Se declare a resolução do contrato de compra e venda identificado na pi;
b) Se condene a ré a pagar a quantia de € 10 000,00 pelos danos sofridos pela autora e seu representante legal, quantia aquela acrescida de juros à taxa legal a contar desde a sentença até efetiva e integral restituição.
Para o efeito, alegou, em síntese, que celebrou com a ré um por contrato-promessa de compra e venda de um veículo, tendo sido contratada a aquisição de um extra para a viatura, sendo condição essencial para a aquisição do automóvel a montagem, pela ré, de tal extra (que consiste em bola de reboque e chapa protetora do cárter). O veículo (equipado com a falada bola de reboque) foi adquirido com o propósito específico de transportar os cavalos de desporto do filho do gerente da autora). O contrato de compra e venda foi celebrado, tendo a autora pagado o preço contratado e a ré entregado a viatura à autora em agosto de 2011 sem os acessórios montados. Apesar de várias insistências, a ré nunca montou os referidos acessórios até que comunicou à autora que não poderia proceder a tal montagem. Por tal razão, a autora deixou de poder realizar o transporte do cavalo a que se tinha comprometido, o que causou ao gerente da autora aborrecimento, incómodo, tristeza, nervos e perturbações do sono.
A Ré deduziu contestação, impugnando parte dos factos alegados pela Autora. Alegou ainda ter diligenciado pela aquisição junto do importador dos acessórios referidos na petição inicial a fim de proceder à sua rápida entrega e instalação no veículo vendido à autora. Contudo, a importadora demorou nas respostas e, após insistência da ré, terminou por informar que não dispunha do "kit de montagem" dos referidos equipamentos. Face à demora do importador nacional da marca, a ré procurou soluções alternativas, nomeadamente equipamentos equivalentes, e imediatamente disponíveis, tendo encontrado tais soluções, e dispôs-se a instalá-las sem custos para a autora e substitui-los se os originais entretanto estivessem disponíveis. A autora recusou tal oferta, por mais que uma vez. Conclui que inexiste qualquer direito à resolução contratual. Por fim, a ré sustenta que a resolução do contrato - caso venha a ser decretada - implica a restituição do veículo e do preço pago (devendo este ser atualizado - em função do tempo de uso - ao tempo da restituição do preço sob pena de a autora se locupletar à custa da ré.
A Autora replicou.

Realizado julgamento, foi proferida sentença, em que se decidiu o seguinte:
“Em conformidade com o exposto, o Tribunal decide:
a) Julgar a ação improcedente, por não provada e em consequência absolver a ré “(…) Comércio e (…) de Automóveis, S.A.” do pedido;
b) Condenar a autora “Materiais de Construção (…), Lda.” nas custas da ação.
…”

Inconformado com tal decisão, veio a Autora interpor recurso de apelação, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões:
1) O objeto do contrato de compra e venda foi um veículo automóvel, ligeiro de passageiros, novo, marca Volkswagen, modelo (…) 3.0TDI V6 TUP, do ano de 2011, cor preta, com bola de reboque e chapa protetora do cárter.
2) Conforme consta da matéria dada como provada: "Aquando do referido em 3 e antes de concluir o negócio, a autora exigiu à ré que esta procedesse à montagem de bola de reboque e chapa protetora do cárter, o que a ré aceitou fazer (quesito 1°)"
3) Pois como ficou provado, "Um dos fins para que foi adquirido o veículo supra identificado foi o de transportar os cavalos de desporto do filho do gerente da autora (quesito 2°)"
4) "Na data da entrega da viatura a mesma não tinha montados os acessórios contratados: a bola de reboque e chapa protetora do cárter (alínea H dos factos assentes);"
5) Sendo certo que a ora recorrida sabia que, a montagem da bola de reboque era essencial para que a autora pudesse circular com o atrelado e assim transportar os cavalos de desporto (quesito 5°)"
6) A recorrida informou a recorrente, no ato da compra, que não dispunha em sotck daqueles elementos, mas comprometeu-se a fazer a montagem na próxima semana, tendo sido essa a razão a que levou a recorrente a aceitar o negócio, pois como acordaram as partes, a bola de reboque e chapa de proteção do cárter seriam montados na semana seguinte.
7) "A ré não contactou a autora para a montagem da bola de reboque e chapa de proteção do cárter na semana seguinte"
8) Após várias insistências da recorrente para que os extras contratados fossem montados, a ré, ora recorrida, dispôs algumas soluções alternativas.
9) No entanto, tais soluções não agradaram à recorrente, até porque não foram esses os equipamentos contratados.
10) Deste modo, podemos concluir que a ora recorrida não cumpriu os termos que tinha contratado com a recorrente.
11) A recorrida, como sociedade que se dedica ao comércio e indústria de automóveis, comercializando as marcas Volkswagen e Audi, tinha obrigação de saber no ato da venda, não podendo alegar desconhecimento, de que os equipamentos extra estivessem indisponíveis para instalação.
12) A recorrente apenas aceitou a entrega do veículo, sem os acessórios contratados, devido ao facto da recorrida ter prometido ter prometido que no prazo de uma semana, iria ter em stock os elementos em falta, podendo depois proceder à montagem.
13) Sendo certo que, se a recorrida a tivesse informado que os equipamentos estivessem indisponíveis para instalação, a recorrente não teria celebrado o contrato.
14) Diz-nos o artigo 802.° do C. Civil, se a prestação se tornar parcialmente impossível, o credor tem a faculdade de resolver o negócio ou de exigir o cumprimento do que for possível, reduzindo neste caso a sua contraprestação, se for devida; em qualquer dos casos o credor mantém o direito à indeminização.
15) Impõe o artigo 432.° C. Civil que É admitida a resolução do contrato fundada na lei ou convenção.
16) Ora, na hipótese em análise, estamos perante um contrato de compra e venda de um bem móvel sujeito a registo, que só foi cumprido parcialmente, e que claramente não tem as qualidades asseguradas pelo vendedor, no caso a R., não correspondendo ao que foi encomendado,
17) Consequentemente tal facto impede a realização do fim a que se destinava a viatura em causa, como consta da matéria dada como provada, pelo facto de o vendedor não ter cumprido integralmente o contrato.
18) Deste modo a recorrente tem direito à resolução contratual, devendo a mesma ser declarada, com a consequente invalidade de todo o negócio, devendo a recorrida ser condenada a restituir à recorrente a quantia por esta paga, procedendo a recorrente à restituição da viatura em causa, em simultâneo.
19) Na douta sentença fez errada a aplicação dos artigos 913.°,802.°,432.° Termos em que deve o presente recurso deve ser julgado precedente e provado revogando-se a decisão recorrida com que fará a costumada, JUSTiÇA!
... “

Cumpre decidir.
II. Em 1ª instância, foi dada como provada a seguinte matéria factual:
A autora é uma sociedade que se dedica à venda de materiais de construção civil, entre outras (alínea A dos factos assentes);
A ré dedica-se ao comércio e indústria de automóveis, comercializando as marcas Volkswagen e Audi (alínea B dos factos assentes);
Por contrato promessa de compra e venda, datado de 28 de julho de 2011, a autora prometeu comprar e a ré prometeu vender o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, novo, marca Volkswagen, modelo (…) 3.0TDI V6 TUP, do ano de 2 Oll, cor preta, a pronto pagamento, pelo preço total de € 79 000,00, constando do referido contrato, in übs. P\ montagem de bola de reboque e chapa protetora do cárter (alínea C dos factos assentes);
Foi contratada a aquisição de um extra para a viatura em causa: Pacote Chrone Style (alínea D dos factos assentes);
Na data da celebração do contrato promessa de compra e venda, a autora pagou à ré a quantia de € 5 000,00, a título de sinal, através do cheque n° (…), sacado sobre a sua conta junto do Banco (…), tendo emitido e entregue à autora o respetivo recibo n° (…) (alínea E dos factos assentes);
A viatura supra identificada foi entregue pela ré à autora no dia II de agosto de 2011 e nessa data a autora procedeu ao pagamento da quantia remanescente, tendo sido emitida a fatura (…), datada de II de agosto de 2011, e nota de entrega de valores n° 5173 (alínea F dos factos assentes);
No dia 11 de agosto de 2011 a ré:
a. Procedeu à preparação da viatura para entrega, tendo verificado a viatura em causa;
Emitiu e entregou à autora a necessária autorização de circulação;
Emitiu e entregou à autora a declaração para efeito de imposto sobre veículos;
Entregou à autora a DAV (declaração aduaneira de veículos), emitida em 30 de julho de 2011;
Emitiu e entregou à autora termo de responsabilidade relativo à viatura desde 11 de setembro de 2011 e pelo período em que se encontrasse averbada em nome da ré (alínea G dos factos assentes);
Na data da entrega da viatura a mesma não tinha montados os acessórios contratados: a bola de reboque e chapa protetora do cárter (alínea H dos factos assentes);
Naquele dia, a autora recebeu a viatura e procedeu ao pronto pagamento da quantia remanescente (alínea I dos factos assentes);
Em 28 de setembro de 2011 e na ausência de qualquer contacto por parte da ré, a autora enviou-lhe um email onde fazia referência ao facto de ter sido condição para a compra da viatura a montagem dos referidos acessórios e o facto de, não obstante se ter comprometido, a ré não a ter contactado para proceder à respetiva montagem (alínea J dos factos assentes);
Por carta de 13 de outubro de 2011, a ré enviou à autora a documentação da viatura, bem como a fatura n° 1978, datada de 13 de outubro de 2011 (alínea L dos factos assentes);
Por se tratar de duplicação da fatura n° (…) de 11 de agosto de 2011, a fatura referida em 11 foi devolvida pela autora à ré em 18 de outubro de 2011 (alínea M dos factos assentes);
Por fax datado e enviado em 21 de novembro de 2011, a autora comunicou à ré que, face ao supra exposto, era sua intenção proceder à resolução do contrato com as devidas consequências (alínea N dos factos assentes);
Face a essa comunicação, a ré foi desde então prometendo que iria resolver a questão, que iria pôr o problema ao importador, no sentido de ver qual a melhor solução para este assunto (alínea O dos factos assentes);
Aquando do referido em 3 e antes de concluir o negócio, a autora exigiu à ré que esta procedesse à montagem de bola de reboque e chapa protetora do cárter, o que a ré aceitou fazer (quesito 1°);
Um dos fins para que foi adquirido o veículo supra identificado foi o de transportar os cavalos de desporto do filho do gerente da autora (quesito 2°);
As restantes viaturas de que a autora é proprietária não permitem transportar os cavalos de desporto do filho do gerente da autora (quesito 3°);
O filho do gerente da autora dedica-se à equitação desportiva, participando, em vários fins-de-semana em provas da modalidade, deslocando-se para o efeito, para várias localidades do Alentejo e Algarve e às Caldas da Rainha (quesito 4°);
A montagem da bola de reboque era essencial para que a autora pudesse circular com o atrelado e assim transportar os cavalos de desporto (quesito 5°);
A ré não contactou a autora para a montagem da bola de reboque e chapa de proteção do cárter na semana seguinte (quesito 7°);
Não obstante várias solicitações da autora, os referidos acessórios nunca foram montados pela ré, sem prejuízo do que consta infra em 32 e 33 (quesito 9°);
Na carta referida em 11, a ré nada referiu quanto à questão da montagem dos referidos acessórios (quesito 10°);
A autora, enquanto não lhe foi oferecida a possibilidade de montar uma bola de reboque, deixou de poder realizar o transporte do cavalo no veículo adquirido à ré por falta da montagem dos referidos acessórios (quesito 12°);
A ré informou a autora, no ato da compra, que não dispunha em stock dos elementos extra contratados: a bola de reboque e a chapa protetora do cárter;
A autora aceitou a compra nessas condições e aceitou a entrega do veículo mesmo assim, o que a ré fez (quesito 15°);
A ré, logo com a compra, tratou de encomendar à importadora nacional, os referidos equipamentos (quesito 16°);
A fim de proceder à sua rápida entrega e instalação no veículo vendido à autora (quesito 17°);
A importadora, após insistência da ré informou que não dispunha do "kit de instalação elétrica para o gancho de reboque" (quesito 18°);
A bola de reboque chegou mas vinha desacompanhada do necessário complemento para instalação (quesito 19°);
Aquando da venda do veículo à autora, a ré não foi informada de que qualquer daqueles equipamentos estivesse indisponível para instalação (quesito 20°);
Do que informou a autora (quesito 21°);
32. Face à demora do importador nacional da marca em fornecer o "kit de instalação elétrica para o gancho de reboque" a ré procurou soluções alternativas, nomeadamente equipamentos equivalentes e imediatamente disponíveis (quesito 22°);
A ré encontrou tais soluções e dispôs-se a instalá-las sem custos para a autora;
A ré informou várias vezes a autora sobre a disponibilidade ou indisponibilidade dos equipamentos negociados (quesito 25°);
35. A autora recusou a oferta da ré, por mais do que uma vez (quesito 26°).
Devido aos factos descritos em 23, o gerente da autora sentiu-se aborrecido, incomodado, triste, enervado, tendo passado alguma noites sem dormir (quesito 13°).
***
III. Nos termos do disposto nos art.ºs 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, ambos do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do art.º 608º do mesmo Código.

A questão a decidir resume-se, pois, a saber se a acção deve proceder, determinando-se a resolução do contrato de compra e venda, supra referido.

Vejamos então a questão.

Perante o quadro jurídico que serviu de fundamentação às alegações da Apelante, importa, em primeiro lugar, definir se estamos perante o não cumprimento parcial de um contrato ou perante o cumprimento defeituoso do mesmo.

Conforme se retira do disposto no art.º 913º do Cód. Civ., coisa defeituosa é a que padece “de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim.”
Consubstanciando-se assim a venda de coisa defeituosa na venda de uma determinada coisa, com vícios que a desvalorizem ou impeçam a realização do fim a que se destina, a falta das qualidades asseguradas pelo vendedor, ou ainda a falta de qualidade necessárias à realização do fim (vide Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. III, págs. 113)
“A noção de defeito deverá, por conseguinte, ser entendida num sentido híbrido, pois ela é, em simultâneo, objectiva e subjectiva. Em primeiro lugar, importa verificar se o bem corresponde à qualidade normal de coisas daquele tipo e, em seguida, terá de se determinar se é adequada ao fim, implícita ou explicitamente estabelecido no contrato.
Assim sendo, os vícios correspondem a imperfeições à qualidade normal, enquanto as desconformidades são discordâncias com respeito ao fim acordado” (Romano Martinez in Cumprimento Defeituoso em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, págs. 166).

Matéria diversa é a do não cumprimento parcial do contrato, por via da não realização de parte da prestação a que o devedor está vinculado, por via contratual.

Em face da matéria provada, que não foi impugnada, afigura-se-nos não haver dúvidas que estamos perante um contrato de compra e venda de um veículo automóvel, com extras, no que ao caso interessa, de acessórios “bola de reboque” e “chapa protectora do carter” (em diante Kit).
Entregue a viatura à compradora, sem a aplicação dos acessórios, por então não estarem disponíveis, e pago o atinente preço global, ficou a compradora a aguardar pela instalação dos ditos acessórios.
Ora, em face deste quadro, parece-nos lógico concluir que as partes, dentro do princípio da liberdade contratual, consagrado no art.º 405º do Cód. Civ., acordaram que a entrega dos bens vendidos, seria efectuada em dois momentos distintos, desde logo o veículo e mais tarde o referido Kit, a instalar pela vendedora.
Do que resulta, que a não instalação do Kit por parte da vendedora, se traduz no não cumprimento parcial do contrato e não num cumprimento defeituoso do mesmo.
Na verdade, o veículo entregue, em cumprimento parcial do contrato de compra e venda, não tem qualquer defeito.
Do que o negócio padece é de não cumprimento parcial do contrato, por não instalação do dito Kit no veículo.

Definido que estamos perante uma situação de não cumprimento parcial do contrato, passaremos à análise e efeitos desse incumprimento.

Nos termos gerais, o contrato deve ser cumprido pontualmente, nos termos acordados (art.ºs 406º, n.º 1 e 762º n.º 1 do Código Civil), entrando o devedor em mora, no caso de não cumprimento pontual culposo (art.º 804º do Código Civil).

No caso em apreço, embora as partes tenham relegado para momento posterior a colocação do Kit, porque não estava disponível no momento da entrega do veículo, não fixaram prazo para o efeito, como resulta da matéria provada.
No entanto, a ora Autora interpelou a Ré, por diversas vezes, para cumprir com o acordado, o que não foi possível à Ré, por o Kit não estar disponível no mercado, conforme informação do importador.
O que a Ré comunicou à Autora, oferecendo-se para colocar um equipamento equivalente e imediatamente disponível, e para, logo que houvesse no mercado o equipamento contratado, substituir os alternativos sem custos para a Autora.
O que a Autora não aceitou.

Perante este quadro, temos que equacionar, em primeiro lugar, se a impossibilidade da Ré de cumprir o contratado, quanto ao referido Kit, lhe pode ser imputada a título de culpa, ou se estamos perante uma impossibilidade absoluta de cumprimento parcial do contrato.
A impossibilidade de cumprimento a que aludem os art.ºs 790º e 793º do Cód. Civ., reporta-se à prestação verdadeiramente impossível, por causas legais ou naturais, ou só possível para além do limite do sacrifício exigível, e não à mera dificuldade na prestação (difficultas praestandi), que consubstancia uma impossibilidade relativa (vide neste sentido Antunes Varela, Obrigações, Vol.II, págs. 68 e sgs.).
Tendo presentes os factos provados, não resulta dos mesmos que o Kit tenha sido descontinuado no seu fabrico, mas sim, e só, que o importador do mesmo, não o tinha, na sua totalidade, para entrega.
O que nos leva a concluir que seria plausível, e estaria ao alcance da Ré, com pouco esforço, dada as tecnologias de informação disponíveis para qualquer empresa e a facilidade de circulação dos bens entre os países comunitários, encomendar o referido Kit noutro fornecedor.
De qualquer forma, caberia sempre à Ré afastar a presunção de culpa do incumprimento da prestação, que está estabelecida no art.º 799º do Cód. Civ. contra o devedor, o que não logrou fazer, pelo que se presume que a Ré teve culpa no não cumprimento do contratado, quanto à instalação do referido Kit.

Em face deste incumprimento culposo da prestação, entrou a Ré em mora no cumprimento do contratado.
Mas será que a simples mora, pode dar lugar, por mera vontade do credor, à resolução do contrato, se este mantiver o interesse na prestação, apreciado este do ponto de vista objectivo?
Nos termos do art.º 432º do Cód. Civ., a resolução dos contratos pode ter como fundamento a lei ou a convenção entre as partes.
A resolução do contrato, com fundamento na lei ou na convenção estabelecida pelas partes, implica a destruição do negócio, ex tunc ou ex nunc, no primeiro caso como regra geral, no segundo caso, nos casos previstos na 2ª parte do n.º1 do art.º 434º do Cód. Civ., nomeadamente nos previstos no n.º 2 do mesmo artigo (art.ºs 433º, 2ª parte, 434º, 289º e 290º, todos do Cód. Civ.).
No entanto tais efeitos só se produzem, na medida em que a lei ou a vontade das partes não estabeleça um regime diverso, conforme estipula a 1ª parte do art.º 433º do Cód. Civ., ao dizer expressamente ”na falta de disposição especial”.
E conforme ensina Antunes Varela, no seu Código Civil Anotado, em nota ao art.º 434º, “a retroactividade da resolução presume-se querida pelos contraentes; mas não é imposta pela lei”.
Quanto à convenção entre as partes, sobre os efeitos da resolução do contratado entre elas celebrado, que normalmente consta de uma ou mais cláusulas contratuais, pode abranger um campo tão vasto, como os fundamentos da resolução, o âmbito da mesma e os seus efeitos (vide Soares Martinez, Da Cessação do Contrato, págs. 81 e 82).
Nos termos gerais, o contrato deve ser cumprido pontualmente, nos termos acordados (art.ºs 406º, n.º 1 e 762º n.º 1 do Código Civil), entrando o devedor em mora no caso de não cumprimento pontual (art.º 804º do Código Civil).
No que respeita à simples mora, e aderindo à maioria da doutrina e jurisprudência, entendemos que da mesma não decorre o não cumprimento do contrato, no sentido de falta definitiva de cumprimento, sendo necessário, para que opere a resolução do contrato, a interpelação admonitória, como está definida pelo art.º 808º do Cód. Civ..
“A interpelação admonitória não surge neste artigo 808º como um simples pressuposto da resolução do contrato, à semelhança do que sucede no Código italiano, mas antes como uma ponte obrigatória de passagem da tal ocorrência transitória da mora para o cumprimento da obrigação ou para a situação mais firme e mais esclarecedora do não--cumprimento (definitivo) da obrigação. E não reveste sequer textualmente a forma de um puro direito (ou faculdade) concedido ao credor, precisamente porque, como ponte obrigatória de passagem de uma situação jurídica para outra, a intimação do credor funciona substancialmente no interesse de uma e outra das partes.
Por um lado, o credor tem a possibilidade de impor à outra parte um prazo para cumprir, como meio de obter a realização efectiva da prestação a que tem direito ou de lançar mão das providências com que a lei castiga o não cumprimento definitivo da obrigação, entre as quais se conta a de resolver o contrato, donde nasceu a obrigação que também a ele vincula.
Por outro lado, o devedor tem a garantia de que a contraparte (o credor) não goza ainda da possibilidade de desencadear contra ele nenhuma das sanções ou providências correspondentes ao não cumprimento ... enquanto lhe não der uma nova e derradeira chance de corrigir o seu descuido, de emendar a sua negligência, de superar a mora em que incorreu.
E têm os autores entendido - e bem! -, em face do espírito e do próprio texto da lei, que, para o devedor em mora ficar nessa situação de faltoso em definitivo, se torna necessário mesmo que na interpelação feita pelo credor, ao abrigo do disposto no artigo 808º, se inclua expressamente a advertência de que, não cumprindo o devedor dentro do prazo suplementar fixado, a obrigação se terá para todos os efeitos por não cumprida.» (Antunes Varela, RLJ, ano 128, pág.138).
Daí que entrando o devedor em mora, e mantendo-se o interesse do credor na prestação, deve o credor fixar-lhe um prazo razoável, por meio da denominada interpelação admonitória, advertindo-o de que se não cumprir a prestação nesse prazo considerará tal contrato definitivamente não cumprido (art.ºs 808º, n.º 1, 2ª parte e 432º, ambos do Código Civil).

Como acima referimos, a Autora, interpelou a Ré, por diversas vezes, para instalar o referido Kit, no veículo que lhe comprou, o que demonstra a continuação do seu interesse na prestação.
No entanto, em momento nenhum, lhe fixou um prazo razoável para que a Ré cumprisse com a prestação a que estava contratualmente obrigada, demonstrando-lhe assim a sua vontade de decorrido esse prazo, considerar a obrigação definitivamente incumprida e accionar os meios ao seu dispor, nomeadamente resolvendo o contrato celebrado entre ambas.
Pelo que, na falta de interpelação admonitória nos termos acima definidos, ao citar o Prof. Antunes Varela, não pode a Autora resolver o contrato celebrado entre ambas.

Acresce que, mesmo que, aparentemente, estivessem reunidos os pressupostos acima referidos para que a Autora pudesse proceder à resolução do contrato, por via do incumprimento definitivo parcial do contrato, tal resolução não seria admissível, por um lado dada a sua desproporcionalidade, por outro porque a Ré não aceitou a prestação que a Ré lhe ofereceu em substituição da devida, instalando-lhe um equipamento diferente mas equivalente, que satisfaria a mesma finalidade.

Apesar de o ter alegado, não resultou provado que a Autora destinasse o veículo adquirido à Ré exclusivamente (ou mesmo predominantemente) para rebocar um atrelado com os cavalos do filho do seu gerente, embora se tenha provado que assim também era, entre outros fins (vide resposta ao quesito 16º), e podendo, por conseguinte, o veículo ser utilizado no restante serviço da Autora _ a utilização do veículo para reboque do atrelado com o cavalo do filho do gerente da Autora, afigura-se aliás, fora do contexto do seu objecto empresarial _ afigura-se-nos que, dada a escassa relevância do Kit no cômputo do valor global do contrato, não seria admissível a resolução do contrato por força do disposto no n.º 2 do art.º 802º do Código Civil, aplicável ex vi o n.º 1 do art.º 808º do mesmo Código.

Importando ainda não olvidar que subjacente ao princípio da liberdade contratual, consagrado no art.º 405º do Código Civil, está o conceito da boa fé contratual consagrado nos art.ºs 227º e 762º, ambos do mesmo Código, quanto aos preliminares, à formação e ao cumprimento do contrato.
O que se estende assim, às premissas da resolução do contrato.
No caso em apreço, perante a impossibilidade da Ré obter junto do importador nacional, todas as peças do Kit, mas oferecendo-se para instalar Kit diverso, mas equivalente, violaria os limites da boa fé permitir-se que o comprador, perante uma prestação equivalente, e de escassa relevância no cômputo geral do contrato, pudesse resolver o contrato, na sua globalidade.
Admitir-se-ia, quanto muito, uma redução do preço.

Concluindo, não se verificam os pressupostos para que proceda o pedido da Autora de resolução do contrato em apreço.
Improcede assim o presente recurso.
***
IV. Decisão
Pelo acima exposto, decide-se pela improcedência do recurso, confirmando-se a sentença recorrida pelos fundamentos acima expendidos.
Custas pela Apelante.
Registe e notifique.
Évora, 12 de Fevereiro de 2015
Silva Rato
Assunção Raimundo
Abrantes Mendes