Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
297/10.8TBALR.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: EXTINÇÃO DE SOCIEDADE
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: REVOGADA
Sumário: I – Não tendo as partes sido previamente ouvidas sobre a possibilidade de ser declarada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, na sequência do conhecimento nos autos da extinção da sociedade ré, não há dúvidas de que estamos perante uma decisão surpresa e como tal nula.
II - A extinção da sociedade não produz a extinção da instância nas ações em que a sociedade seja parte; tais ações continuam. A sociedade considera-se substituída pela generalidade dos sócios e a instância não se suspende nem é necessária habilitação (art. 162º, nºs 1 e 2 do Código das Sociedades Comerciais).
III – Uma vez extinta uma sociedade comercial, os antigos sócios respondem pelo passivo social, mas só até ao montante que receberam na partilha, sendo que incumbe ao credor alegar e provar que os sócios receberam bens na partilha do património da sociedade.
IV – Tal alegação, tendo a extinção da sociedade ocorrido na pendência da ação, pode ser feita em articulado superveniente até ao encerramento da discussão, nos termos do artigo 588º do CPC.
Decisão Texto Integral:





Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
AA instaurou a presente ação declarativa, com processo sumário, contra BB – Construções, Lda., pedindo que a ré seja condenada a:
- reconhecer que o seu muro se encontra em propriedade da autora;
- demolir aquele muro, que confina com o da autora, numa extensão de 34,55 metros e retirá-lo da propriedade da autora;
- pagar à autora, a título de danos patrimoniais, o valor de € 8.782,00 correspondente ao pagamento de materiais, demais despesas e mão de obra com a demolição do muro antigo e construção do novo muro;
- pagar à autora a quantia de € 2.500,00 a título de danos não patrimoniais;
- pagar à autora juros legais a partir da citação até integral pagamento.
Alegou, em síntese, que autora e ré são proprietárias, respetivamente, dos lotes de terreno identificados nos artigos 1º e 2º da petição inicial, os quais confinam entre si, sucedendo que a ré construiu um muro no seu lote que invadiu o lote da autora, o que lhe causou prejuízos de que se quer ver ressarcido, os quais se traduziram não apenas pela ofensa do seu direito de propriedade, mas também porque tal construção provocou instabilidade no muro da autora e abriu no mesmo rachas e fissuras que originaram a demolição do muro e a necessidade de construir um novo muro.
A ré contestou, impugnando a factualidade alegada pela autora, imputando a terceiros a eventual responsabilidade dos prejuízos causados à autora, deduziu reconvenção, pedindo que a autora seja condenada a pagar-lhe uma quantia não inferior a € 1.500,00, por alegados transtornos e gastos acrescidos, e pediu a condenação da autora como litigante de má-fé em multa e indemnização por despesas que computa em valor não inferior a € 3.000,00.
Por último, requereu a ré a intervenção provocada daqueles que, no seu entender, são os responsáveis pelos eventuais prejuízos sofridos pela autora com a construção do muro.
A autora respondeu, concluindo pela improcedência do pedido reconvencional e pelo indeferimento da intervenção provocada requerida, sustentando ainda que quem litiga de má-fé é a ré, devendo por isso ser condenada em multa.
Foi proferido despacho convidando a ré a apresentar nova contestação aperfeiçoada, quer no que respeita ao incidente de intervenção provocada, com alegação de factos concretos que justifiquem o chamamento, quer quanto à reconvenção, com a concretização de factos suscetíveis de consubstanciar os prejuízos alegados.
A ré aceitou o convite, apresentando nova contestação aperfeiçoada.
A autora deduziu também o incidente de intervenção provocada dos atuais titulares do imóvel onde se situa o muro em discussão nos autos.
Em 29.01.2015, a fls. 212 dos autos, foi proferida decisão que não admitiu os requeridos incidentes de intervenção de terceiros.
Os mandatários da ré constituídos nos autos renunciaram ao mandato (fls. 213 vº e 216 vº).
Em 07.05.2015, a fls. 220 dos autos, foi proferido despacho a declarar “sem efeito a reconvenção deduzida”.
Nesse mesmo despacho, ordenou-se a notificação da autora “do teor da certidão do registo comercial da R. que antecede e para, querendo, no prazo de 10 dias, requerer o que tiver por conveniente”.
A aludida certidão não consta do processo físico, mas constitui a referência nº 67264387 do processo eletrónico, da qual resulta, nomeadamente, a dissolução e o encerramento da sociedade ré, pela inscrição 3 da Ap. 1/20140224, e o cancelamento da matrícula pela inscrição 4 da referida Ap. 1/20140224, da Conservatória do Registo Civil/Predial/Comercial.
A Secretaria notificou a ilustre mandatária da autora do teor do despacho de 07.05.2015 e para, em 15 dias, apresentar os requerimentos probatórios ou alterar os que haja apresentado (ref.ª 67617785 do processo eletrónico).
A autora apresentou o seu requerimento probatório no qual indicou o rol de testemunhas e requereu a gravação da prova (fls. 221-223).
Seguidamente a Mm.ª Juíza a quo proferiu decisão a julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
Inconformada, a autora apelou do assim decidido, tendo rematado a sua alegação com a formulação das seguintes conclusões:
«1ª) - Ora do que se transcreve e da prova documental existente nos autos evidente se torna que os documentos carreados para os autos e a sequência de atos no processo não permitem ao tribunal de 1ª instancia decidir pela inutilidade superveniente da lide, nos termos em que o faz.
2ª) Nos termos do já citado n.º 1 do artigo 162º do código das sociedades comerciais prescrevesse que: “as ações em que a sociedade seja parte continuam após a extinção desta, que se considera substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários, nos termos dos artigos 163º, n.ºs 2, 4 e 5 e 164ºº n.ºs 2 e 5”
3ª) Prescreve o n.º 3 do artigo 269º do CPC que a “morte ou a extinção de alguma das partes não dá lugar à suspensão, mas à extinção da instância, quando torne impossível ou inútil a continuação da lide”, sendo que o n.º 2 prescreve que o estipulado no n.º 1 do artigo 162º do código das sociedades comerciais obsta à “morte ou extinção” das sociedades prevendo que sejam representadas pelos seus sócios.
4ª) E, o Tribunal a quo, assim fez, decidindo, pela notificação, da sociedade na pessoa do seu sócio, logo em 10 de abril de 2015 para a renuncia do mandato do seu represente legal, não podendo, depois, o mesmo tribunal vir decidir que o “autor nada alegou”, quando o autor nada tem de alegar.
5ª) A ré não trouxe aos autos a sua liquidação, juntou ata ou requereu a extinção da instância pela sua dissolução, foi o tribunal quem apurou com base em buscas às bases de dados que a matricula estava cancelada e como tal notificou o seu sócio, e muito bem, pelo que não pode, o mesmo tribunal, perante a falta de informação no processo, decidir para além do que consta nos autos.
6ª) Se, efetivamente a ré liquidou a sociedade, o que não poderiam legalmente fazer, pois existem ações a correr contra esta e, eventualmente, os seus sócios prestaram falsas declarações na liquidação da sociedade, pois apenas e se a sociedade não tiver dividas se pode proceder à partilha dos haveres sociais, conforme estipula o n.º 1 do artigo 147º do Código das Sociedades Comerciais.
7ª) Estipula o n.º 5 do artigo 607º do CPC que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.”
8ª) Deveria o tribunal a quo, em primeiro lugar ter notificado o sócio, como represente da sociedade, expediente já usado antes pelo tribunal, para que este juntasse aos autos a documentação suporte da liquidação da sociedade – ata de liquidação ou outro; E, em segundo lugar ter notificado a autora para requer e alegar para os efeitos do artigo 163º do Código das sociedades comercias, nos termos e para os efeitos da aplicação do artigo 590º do CPC em que o juiz deve convidar as partes a suprir irregularidades, pelo que deveria, salvo melhor opinião ter convidado a parte a essa alegação e prova.
9ª) Ou, em última instância deveria ter aguardado o impulso processual da autora nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 281º do CPC. Mas na realidade, o que temos nos autos é que o tribunal decide pela inutilidade superveniente da lide tendo em conta que a autora não alegou, nem provou os factos constitutivos do artigo 163º do Código das Sociedades Comercias, sendo que a autora não tinha de fazer essa alegação e prova.
10º) Se fosse possível que com o cancelamento da matrícula de uma sociedade se decretasse a inutilidade superveniente da lide por extinção da sociedade, então todas as rés sociedades teriam aqui oportunidade de nunca serem condenadas em tribunal e o principio da segurança jurídica estaria irremediavelmente colocado em causa, não fazendo sentido que as sociedades tivessem, por si, personalidade jurídica.
11ª) Ora, no caso dos autos o tribunal de 1ª instância proferiu um despacho sobre matéria cujo conteúdo não foi trazido aos autos, nem pela autora, nem pela ré.
É certo que a autora foi notificada em 07 de maio de 2015 da cópia da certidão comercial da ré, onde consta a menção de “matrícula cancelada”, mas também é certo que o próprio tribunal já tinha, anteriormente, decidido pela notificação da ré através do seu represente legal, uma vez que a notificação enviada para a sede foi devolvida.
12ª) Se o tribunal entende que a sociedade não mantem personalidade jurídica com o cancelamento da matricula, deveria desde logo ter tomado a decisão de despachar pela inutilidade superveniente da lide e não notificar as partes para juntarem a prova nos autos, tal como que mantendo uma aparência de continuidade do processo que afinal não existia, pois pretendia declarar a inutilidade superveniente de lide e não marcar a data de julgamento prévia, isto ao fim de quatro (4) anos de os autos terem estado a aguardar despacho do tribunal.
13ª) Por outro lado, prevê o artigo 609º/1 do Código de Processo Civil, que a sentença não pode condenar em objecto diverso do que se pedir, sendo certo que, no caso dos autos, o tribunal de 1ª instância proferiu um despacho sobre matéria cujo conteúdo não foi trazido aos autos nem pela autora nem pela ré.
14ª) Estabelece o já citado artigo 615º/1 alínea e) do Código de Processo Civil que é nula a sentença quando o juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
15ª) Tem, assim, de concluir que houve uma errada aplicação do direito que torna esta sentença material nula, por violação do previsto nos artigos 609º e 615º/1 alínea e) do Código de Processo Civil, na exacta medida que às sentenças se aplicam as regras resultantes do preceituado nos artigos 152º, 153º e 154º todos do Código de Processo Civil
NESTES TERMOS
E nos melhores de direito que Vs. Exªs suprirão se requer julguem as presentes CONCLUSÕES procedentes por devidamente por fundamentadas e consequente declarar materialmente nula a sentença recorrida ordenado a baixa do processo para que, produzida prova requerida, o douto tribunal de 1ª instância profira a sentença devida.
POIS ASSIM SE FARÁ A COSTUMADA JUSTIÇA!»

Não foram apresentadas contra-alegações.

Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões essenciais a decidir, atenta a sua ordem de precedência lógica, consubstanciam-se em saber:
- se a sentença é nula;
- se em vez de ter julgado extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, o Tribunal a quo devia ter feito prosseguir os autos com a realização da audiência de julgamento e prolação da respetiva sentença.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Os factos a considerar são os que constam do relatório precedente.

O DIREITO
Da nulidade da decisão
Diz a recorrente «que a sentença não pode condenar em objecto diverso do que se pedir, sendo certo que, no caso dos autos, o tribunal de 1ª instância proferiu um despacho sobre matéria cujo conteúdo não foi trazido aos autos nem pela autora nem pela ré».
Vejamos.
Na decisão recorrida entendeu-se que a extinção da sociedade ré na pendência da ação e a falta de alegação sobre a atribuição de bens aos sócios, contra os quais não foi deduzido qualquer pedido, «torna a decisão a proferir sem qualquer interesse ou utilidade».
Ou seja, a decisão recorrida não condenou a ré no que quer que seja e, nessa medida, não pode dizer-se que tal decisão é nula por ter condenado em objeto diverso do pedido.
Daí não se segue, porém, que a decisão recorrida não padeça de um outro tipo de nulidade. É o que veremos de seguida.
O artigo 3º, nº 3, do CPC, consagra um principio basilar do processo civil – o princípio do contraditório – nos termos do qual se consigna que «o juiz deve observar e fazer cumprir o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciar». Esta formulação consagra ainda a proibição das decisões surpresa.
Lebre de Freitas traça a evolução do princípio do contraditório, na vertente do direito de influenciar a decisão, do seguinte modo:
«Por princípio do contraditório entendia-se tradicionalmente a imposição de que, formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, devia à outra ser dada oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão, tal como, oferecida uma prova por uma parte, a parte contrária devia ser chamada a controlá-la e ambas sobre ela tinham o direito de se pronunciar, assim se garantindo o desenvolvimento do processo em discussão dialéctica, com as vantagens decorrentes da fiscalização recíproca das afirmações das partes.
A esta concepção, válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do rechliches Gehor germânico, entendida como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo fundamental do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia para passar a ser a influência no sentido positivo de direito de incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo»[1].
Escreveu-se a este propósito no Acórdão desta Relação de 10.04.2014[2]:
«A violação do contraditório inclui-se na regra geral sobre as nulidades processuais constante do artº 201º nº 1 do CPC (a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influenciar a decisão da causa). E dada a importância do contraditório é indiscutível que a sua inobservância pelo Tribunal é susceptível de influir no exame ou decisão da causa. Porque a omissão da audição das partes (salvo no caso de falta de citação), não constitui nulidade de que o Tribunal deva conhecer oficiosamente, a eventual nulidade daí decorrente, deve ser invocada pelo interessado no prazo de 10 dias após a respectiva intervenção em algum acto praticado no processo ….sendo que, porém, estando a mesma coberta por decisão judicial nada obsta a que este Tribunal conheça da referida nulidade quando invocada em sede recurso nas respectivas alegações (cfr., entre outros, Ac. da R.L. de 11/01/2011, proc. 286/09.5T2AMD-B.L1-1; Ac do STJ de 13/01/2005, proc. 04B4031, da RP de 18/06/2007, proc. 0732861)».
Explicitando este entendimento Miguel Teixeira de Sousa considera que «a falta de audição prévia de qualquer das partes constitui uma violação do princípio do contraditório e, por isso, uma nulidade processual (cf. art. 195.º, n.º 1, nCPC); só que esta nulidade processual é consumida por uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia (cf. art. 615.º, n.º 1, al. d), nCPC), dado que, sem a prévia audição das partes, o tribunal não pode conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão»[3].
No caso em apreço verifica-se que as partes não foram previamente ouvidas sobre a possibilidade de ser declarada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, pelo que não há dúvidas de que estamos perante uma decisão surpresa e como tal nula, tanto mais que a autora havia sido notificada pela secretaria para apresentar o seu requerimento probatório.
Contudo, deve esta Relação conhecer do objeto da apelação, em observância ao disposto no artigo 665º, nº 1, do CPC.

Do mérito da decisão
O Prof. Raúl Ventura[4] diz-nos que a dissolução da sociedade é a modificação da relação jurídica constituída pelo contrato de sociedade consistente em ela entrar na fase da liquidação.
São por isso realidades distintas, sujeitas a regimes igualmente distintos, a dissolução e liquidação da sociedade e a sua extinção.
Na verdade, uma sociedade dissolvida e em liquidação não está extinta: a extinção só se verifica com a inscrição, no registo, do encerramento da liquidação (art. 160º, nº 2, do Código das Sociedade Comerciais[5]).
A fattispecie extintiva da sociedade é complexa, integrando um facto que coloque a sociedade na fase de liquidação e um processo de liquidação lato sensu (mais ou menos complexo): a extinção é um efeito legal do registo do encerramento da liquidação[6].
Como se escreveu no Acórdão do STJ de 26.06.2008[7], «dissolvida a sociedade, esta entra em liquidação (art. 146º/1), mantendo ainda a sua personalidade jurídica (art. 146º/2). Os seus administradores passam a ser liquidatários, salvo disposição estatutária ou deliberação noutro sentido (art. 151º/1), competindo-lhes, em tal veste, ultimar os negócios pendentes, cumprir as obrigações da sociedade, cobrar os créditos, reduzir a dinheiro o património residual e propor a partilha dos haveres sociais (art. 152º/3). Com a proposta respectiva, submetem a deliberação da sociedade (art. 157º/4) um relatório completo da liquidação, acompanhando as contas finais (art. 157º/1). Aprovada a deliberação, será requerido o registo do encerramento da liquidação - e é com este registo que, finalmente, a sociedade exala o último suspiro, isto é, se considera “extinta, mesmo entre os sócios” e sem prejuízo das acções pendentes ou do passivo ou activo supervenientes[8].
Com a extinção, deixa de existir a pessoa colectiva, que perde a sua personalidade jurídica e judiciária, mas as relações jurídicas de que a sociedade era titular não se extinguem, como flui do disposto nos arts. 162º, 163º e 164º.
Estes normativos tratam de matérias conexas, todas elas derivadas da subsistência de relações jurídicas depois de extinta a sociedade».
Ao caso sub judice importa o regime estatuído pelo artigo 162º.
A extinção da sociedade não produz a extinção da instância nas ações em que a sociedade seja parte; tais ações continuam. A sociedade considera-se substituída pela generalidade dos sócios (art. 162º/1) e a instância não se suspende nem é necessária habilitação (art. 162º/2).
No caso em apreço, a Sr.ª Juíza a quo, para sustentar a sua decisão, invocou o decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.03.2013, proc. 7414/09.9TBVNG.P2.S1, onde se escreveu: «[u]ma vez extinta uma sociedade comercial, os antigos sócios respondem pelo passivo social, mas só até ao montante que receberam na partilha, sendo que incumbe ao credor alegar e provar que os sócios receberam bens na partilha do património da sociedade.»
Porém, o caso decidido naquele acórdão revestia contornos algo diferentes do dos autos, desde logo porque a ali autora instaurou a ação contra os sócios de uma sociedade já extinta, o que manifestamente não é o caso dos autos, uma vez que a sociedade ré se extinguiu na pendência da ação, cerca de 4 anos após a propositura da mesma[9].
E, ademais, no caso tratado no acórdão, a falta de alegação e prova de que os sócios receberam bens na partilha do património da sociedade, conduziu à improcedência da ação e não à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
Seja como for, parece não haver dúvidas que o ónus de alegação e prova de que os sócios receberam bens na partilha do património da sociedade cabe à autora.
Com efeito, «[o] art.º 163º nº 1 é claro: o direito do credor sobre o sócio depende do facto deste ter partilhado. Assim, a existência de partilha é um facto constitutivo desse direito, não um facto que, provado, seja modificativo, impeditivo ou extintivo do direito em questão. Logo, estamos perante um facto constitutivo do direito e que, portanto, deve ser alegado e provado pelo autor – cf. art.º 342º do C. Civil nºs 1 e 2»[10].
No caso concreto, o momento próprio para essa alegação não poderia ter sido evidentemente a petição inicial, uma vez que a ação foi intentada contra a sociedade muito antes desta se extinguir.
No entanto, como se refere no Acórdão do STJ de 26.06.2008 supra citado:
«A autora podia ter feito a alegação em articulado superveniente, nos termos do art.º 506º do CPC, logo que tomou conhecimento da extinção da sociedade.»
Significa isto que, não obstante a autora nada ter dito na sequência do despacho que ordenou a sua notificação do teor da certidão do registo comercial da ré[11], podia a mesma apresentar um articulado superveniente com tal alegação até ao encerramento da discussão, nos termos do art. 588º do CPC.
Acresce que a falta de alegação e prova de que os sócios receberam bens na partilha do património da sociedade ré, enquanto facto constitutivo do direito da autora, tem como consequência a improcedência da ação e não a mera absolvição da instância.
Também nesta outra vertente não pode subsistir a decisão recorrida.
O recurso merece, pois, provimento, devendo os autos prosseguir os seus termos, nomeadamente com a designação de data para realização da audiência final.

Sumário:
I – Não tendo as partes sido previamente ouvidas sobre a possibilidade de ser declarada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, na sequência do conhecimento nos autos da extinção da sociedade ré, não há dúvidas de que estamos perante uma decisão surpresa e como tal nula.
II - A extinção da sociedade não produz a extinção da instância nas ações em que a sociedade seja parte; tais ações continuam. A sociedade considera-se substituída pela generalidade dos sócios e a instância não se suspende nem é necessária habilitação (art. 162º, nºs 1 e 2 do Código das Sociedades Comerciais).
III – Uma vez extinta uma sociedade comercial, os antigos sócios respondem pelo passivo social, mas só até ao montante que receberam na partilha, sendo que incumbe ao credor alegar e provar que os sócios receberam bens na partilha do património da sociedade.
IV – Tal alegação, tendo a extinção da sociedade ocorrido na pendência da ação, pode ser feita em articulado superveniente até ao encerramento da discussão, nos termos do artigo 588º do CPC.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Cível em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir nos termos supra referidos.
Custas pela parte vencida a final.
*
Évora, 15 de Dezembro de 2016


Manuel Bargado


Albertina Pedroso


Francisco Xavier





__________________________________________________
[1] Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais À luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 1996, pp. 96/97
[2] Proc. 500/12.0TBABF-K.E1, disponível, como os demais citados sem outra indicação, in www.dgsi.pt.
[3] In Blog do IPPC, citado no Acórdão desta Relação de 17.03.2016, proc. 178/14.6TBRDD.E1.
[4] Comentário ao Código das Sociedades Comerciais - Dissolução e Liquidação de Sociedades, 1987, p. 16.
[5] São deste Código as normas adiante indicadas sem outra menção.
[6] Raúl Ventura, ob. cit., pp. 436 e ss..
[7] Proc. 08B1184.
[8] Pinto Furtado, Curso de Direito das Sociedades, 3ª ed., p. 546.
[9] O registo do encerramento da liquidação foi efetuado em 24.02.2014 e a ação foi instaurada em 11.03.201º (cfr. fls. 64).
[10] Acórdão do STJ de 07.02.2013, proc. 9787/03.8TVLSB.L1.S1.
[11] O que é compreensível, dado que da aludida certidão não consta que tenha existido partilha dos bens sociais.