Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2834/18.0T8STR.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: ACÇÃO DE PREFERÊNCIA DE ARRENDATÁRIO
PREÇO
PRESTAÇÕES DEVIDAS
Data do Acordão: 09/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - A prestação realizada pela compradora à empresa de mediação imobiliária a título de pagamento de parte da comissão devida não integra o conceito de preço devido pela compra do imóvel, consubstanciando antes a prestação acessória prevista no artigo 418.º do Código Civil.
- O arrendatário de parte específica do prédio urbano não constituído em propriedade horizontal não é titular do direito de preferência legal previsto no artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Autor: Município de Tomar
Recorridos / Réus: (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…) e (…) e (…), S.A.

Trata-se de uma ação declarativa de condenação através da qual o A, na qualidade de arrendatário, peticionou o reconhecimento do seu direito de preferência na aquisição do prédio vendido pelos 1.ºs RR. à R. (…), S.A., pelo preço declarado, com o consequente cancelamento do registo de aquisição. Peticionou ainda a declaração de nulidade do contrato de arrendamento celebrando com a R. (…), S.A., condenando-se esta a restituir-lhe o valor das rendas, acrescido de juros à taxa legal.
Invoca que o direito de preferência decorre do regime inserto no art. 1091.º/1/al. a) do CC, na redação então vigente, que a comunicação que lhe foi feita para preferir é ineficaz dada a falta de identificação do adquirente, que foram violadas as condições de preferência que lhe tinham sido comunicadas, e que procedeu tempestivamente ao depósito do preço devido, do preço constante do título de transmissão.
Procedeu ao depósito autónomo no montante de € 550.000 (quinhentos e cinquenta mil euros) aquando da apresentação da petição inicial.
Em sede de contestação, os RR. invocaram a caducidade da ação alegando que o A. não depositou a totalidade do preço, faltando o valor de € 10.000,02 referente à comissão da imobiliária paga pela adquirente, que fazia parte do preço e que constava da notificação para o exercício do direito de preferência, tratando-se de condição essencial à realização do negócio. Mais invocaram a inexistência do direito legal de preferência, pois o imóvel não se encontra constituído em propriedade horizontal e o arrendamento respeita apenas a parte dele.
O A. pronunciou-se dizendo que o valor a depositar corresponde ao preço devido, que é o montante pago pela compradora aos vendedores, estando excluídas as despesas do contrato, como o valor da comissão imobiliária, que é uma despesa a cargo dos vendedores, a efetuar perante um terceiro e que não faz parte do preço. Caso assim não se entenda, o A sustentou que deverá o tribunal convidá-lo a efetuar o depósito do remanescente, salvaguardando os valores e princípios constitucionais, de forma a que não resulte precludido o seu direito de ação, que se traduziria numa situação de injustiça material.
Relativamente ao direito legal de preferência, o A. invocou o regime inserto no artigo 59.º/2 da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, por via do qual a aplicação da alínea a) do n.º 1 do artigo 1091.º do Código Civil na versão dada pela referida Lei não determina a perda do direito de preferência por parte de arrendatário que dele seja titular aquando da entrada em vigor.
Mais invocou o direito de preferência estabelecido no artigo 126.º do DL n.º 380/99, de 22 de setembro, por o edifício se situar nas áreas do plano com execução programada, i.e., no âmbito do plano de pormenor do Centro Histórico de Tomar; o direito de preferência para fins e objetivos de política pública estabelecido no artigo 29.º da Lei n.º 31/2014, de 30 de Maio, Lei de bases gerais da política pública de solos, de ordenamento do território e de urbanismo, o consagrado no artigo 58.º do DL n.º 307/2009, de 23 de Outubro, e ainda o direito legal de preferência, consagrado na Lei n.º 107/2001, de 08 de Setembro, nas transmissões a título oneroso para os imóveis classificados ou em vias de classificação ou imóveis localizados nas respetivas zonas de proteção. Sustentou ainda a indevida celebração da escritura pública por não ter sido exibido o comprovativo do cumprimento do dever de comunicação para preferência nos termos do artigo 38.º da Lei 107/2001, de 8 de setembro.

II – O Objeto do Recurso
Em sede de saneador sentença julgou-se verificada a caducidade do direito do A. Município de Tomar com fundamento na falta de depósito da verba de € 10.000,02 referente à comissão da imobiliária paga pela adquirente e, bem assim, a inexistência do direito legal de preferência previsto no artigo 1091.º do CC, assim como do direito obrigacional com eficácia real, considerando-se, ainda e por via disso, inviável a ação de preferência.

Inconformado, o A apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que julgue totalmente improcedente a Exceção de Caducidade do Direito de Ação,
Ou caso assim não se entenda,
Pela revogação da sentença recorrida, a substituir por decisão que determine a descida dos autos para efeitos de notificação do Recorrente para depósito do valor da comissão imobiliária em causa;
Sem prejuízo,
Deve a sentença recorrida ser julgada nula, por omissão de pronúncia relativa aos regimes legais de onde emerge(m) o(s) direito(s) de preferência do Recorrente;
Ou caso assim não se entenda,
Deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue improcedente as Exceções de Inexistência do Direito Legal de Preferência e Inexistência do Direito de Ação;
Em consequência,
Devem ainda ser conhecidos e julgados como verificados os erros de julgamento na decisão relativa ao cumprimento do dever de comunicação para a preferência realizado pelos 1.ºs Recorridos, e na decisão relativa ao incumprimento do exercício atempado do direito de preferência pelo Recorrente, implicando na nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão, que importa a declaração da sua nulidade e descida dos autos para produção de prova, ou a sua revogação e alteração da matéria de facto, ou a decida dos autos para produção de prova.
Conclui a alegação de recurso nos seguintes termos:
«A. O presente Recurso Jurisdicional vem interposto da Sentença proferida pelo douto Tribunal a quo, em 27.10.2020, com exceção do segmento decisório que absolveu o Autor, ora Recorrente, do pedido de condenação em litigância de má-fé.
B. A Sentença recorrida padece de Erro de Julgamento no que concerne à decisão de (in)cumprimento do depósito do preço devido nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 1410.º, do Código Civil, pois que, o “preço devido”, previsto no disposto no artigo 1410.º do CC, corresponde ao preço (valor) do bem imóvel conforme titulado pela escritura de transmissão, pelo que, do mesmo se excluem os valores correspondentes a impostos, emolumentos e demais despesas subjacentes à celebração do contrato de compra e venda.
C. O preço não pode integrar o valor da comissão imobiliária – € 10.000,02 (dez mil euros e dois cêntimos) –, diferentemente do entendido pelo Tribunal a quo, na medida em que esse valor consubstancia uma condição complementar, secundária e independente do contrato de compra e venda, que, além de eventual e acessória, é liquidada pelo comprador a um terceiro alheio ao negócio em causa, nenhuma medida de proteção do vendedor se impondo in casu.
D. Considerar-se uma referida comissão imobiliária como parte integrante do preço devido, equivaleria a atribuir-se legitimidade para os 1.ºs Recorridos exigirem o pagamento de um depósito correspondente a um montante que nunca lhes foi pago, porquanto estes receberam da 2.ª Recorrida apenas o valor de € 550.000,00 (quinhentos e cinquenta mil euros), configurando-se, assim, uma manifesta situação de enriquecimento sem causa daqueles, no valor de € 10.000,02 (dez mil euros e dois cêntimos).
E. A idêntica conclusão se chega nos termos e de acordo com as premissas basilares do direito dos contratos, em particular das disposições relativas ao preço no âmbito da compra e venda, pois que o preço devido reconduz-se ao conceito técnico de preço aí previsto, sendo que não é por se encontrar previsto o pagamento de uma comissão a um terceiro, que isso o torna um elemento integrante do preço, tratando-se, ao invés, de uma mera cláusula contratual, e, quanto muito, de uma condição suspensiva, caso a mesma venha redigida no sentido de os efeitos do contrato estarem dependentes da sua verificação – o que não se verifica in casu.
F. A Sentença recorrida padece de Erro de Julgamento no que concerne à decisão de (in)suscetibilidade do convite à regularização do depósito do preço devido, pois que, ainda que se considerasse que o valor da comissão imobiliária integra o “preço devido”, sempre deveria o Tribunal a quo, dentro daquelas que são as suas competências de adequação e gestão processual, notificar o Recorrente para efetuar o depósito do remanescente daquele valor, salvaguardando desta forma os valores e princípios constitucionais em causa.
G. Interpretar o disposto no n.º 1 do artigo 1410.º do CC, no sentido de incluir no conceito de “preço” aí mencionado a comissão paga a um mediador imobiliário, e, em consequência, fazer caducar o direito de acção do Recorrente pelo facto de o mesmo não a ter incluído no valor global depositado, seria incluir na letra e no espírito da Lei aquilo que ela não contempla, e, assim, efetuar uma interpretação contrária ao direito de acesso ao direito e aos tribunais, com assento constitucional no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, e previsão legal no artigo 2.º do CPC.
H. Não foi concedida a possibilidade ao Recorrente de depositar o remanescente do preço, em concreto o valor da comissão imobiliária, ao contrário daquela que tem sido a solução preconizada pelos nossos tribunais superiores em casos semelhantes em que se impõe igual solução, em solução que contende, assim, com as expectativas inevitavelmente geradas pelo mesmo em ver o seu direito finalmente reconhecido, em prol da imposição de um formalismo.
I. Em regime paralelo, como o é o regime da consignação em depósito prevista no artigo 830.º, n.º 5, do Código Civil, concede-se a possibilidade de que seja proferida Sentença condenatória a condicionar a eficácia da condenação ao depósito do remanescente do preço, sendo que não existe motivo para que no caso dos presentes autos seja aplicada solução diversa, faculdade que se reclama para o presente e que foi negada – em erro de julgamento – pela Sentença.
J. Deve a Sentença recorrida ser revogada e substituída por outra decisão que ordene a notificação do Recorrente para proceder ao depósito do remanescente referente o valor da comissão imobiliária em causa.
K. A decisão padece ainda de nulidade por omissão de pronúncia relativamente aos regimes legais subjacentes ao direito legal de preferência do Recorrente, pois que, o Tribunal a quo não só não apreciou a questão relacionada com a norma transitória prevista na Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, que salvaguarda o direito legal de preferência do Recorrente constituído à luz de lei da Lei n.º 2030, de 20.06.1948, como também não apreciou os regimes legais invocados pelo Recorrente consagrados no Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de Maio e 29.º e na Lei n.º 31/2014, de 30 de Maio; no Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de Outubro; e no Decreto Lei n.º 309/2009, de 23 de Outubro e 37.º, da Lei n.º 107/2001, de 08 de Setembro, de onde também emerge um direito legal de preferência do Recorrente sobre a venda daquele imóvel.
L. Essa omissão inquina a Sentença recorrida de nulidade nos termos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, por total ausência de apreciação e conhecimento do douto Tribunal a quo sobre todo o enquadramento jurídico de questão essencial e sobre factos alegados pelo Recorrente constitutivos do seu direito legal de preferência que subjazem à causa de pedir nos presentes autos, com o que deve a Sentença recorrida ser anulada e substituída por outra decisão que ordene a descida dos autos para que o douto Tribunal a quo aprecie e conheça da questão da existência do direito legal de preferência do Recorrente.
M. A Sentença recorrida padece de outro erro de Julgamento, pois que ao contrário do preconizado pelo Tribunal a quo, aplicar-se-ia o disposto no artigo 66.º da Lei n.º 2030, de 22.06.1948, por virtude da norma transitória consagrada no artigo 59.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro – nos termos do qual se determinava que o arrendatário tem (também) direito de preferência sobre o “prédio” arrendado, e não o disposto no artigo 1091.º do Código Civil, na redacção conferida pela Lei n.º 43/2017, de 14 Junho, nos termos do qual se determina que o arrendatário apenas detém direito de preferência sobre o local arrendado.
N. A Sentença recorrida também padece de outro Erro de Julgamento, pois que, in casu, o artigo 155.º do Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de Maio e o artigo 29.º da Lei n.º 31/2014, de 30 de Maio, conferiam ao Recorrente um direito legal de preferência na transmissão do imóvel em causa para fins e objetivos de política pública, por se tratar de uma transmissão onerosa entre particulares de edifício integrado nas áreas do plano com execução programada, i.e., situado no âmbito do plano de pormenor do Centro Histórico de Tomar ainda em vigor.
O. A Sentença recorrida padece, ainda, de outro Erro de Julgamento, pois que, in casu, o Recorrente tinha direito legal de preferência na transmissão do imóvel em causa, nos termos dos artigos 54.º e 58.º do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro, por se situar em área de reabilitação urbana.
P. Por último, a Sentença recorrida padece de Erro de Julgamento, pois que, in casu, o Recorrente detinha um direito de preferência na transmissão do imóvel em causa, nos termos do artigo 43.º do Decreto-Lei n.º 309/2009, de 23 de Outubro e do artigo 37.º da Lei n.º 107/2001, de 08 de Setembro, por se situar numa zona especial e geral de protecção urbana do Município de Tomar sujeita a restrições adequadas em função da protecção e valorização dos bens imóveis classificados em causa, como o são a Igreja de São João Baptista e o Edifício dos Paços do Concelho.
Q. Em face da existência de qualquer um dos supra mencionados direitos legais de preferência, deve a Sentença recorrida ser revogada e substituída por outra decisão que reconheça que o Recorrente se encontrava investido no direito potestativo de exigir que, por decisão judicial, fosse constituído o seu direito de propriedade sobre o imóvel objecto da preferência, julgando-se, em consequência, totalmente improcedentes as Excepções de Inexistência do Direito Legal de Preferência, e de Inexistência de Direito de Acção por parte do Recorrente.
R. A Sentença recorrida padece ainda de erro de julgamento ao considerar que a comunicação pelos 1.ºs Recorridos respeitou os termos e os pressupostos do disposto no artigo 416.º do Código Civil, na medida em que aquela consubstancia tão-só um mero aviso vago e genérico, pois que carece da identificação dos possíveis e eventuais compradores interessados, in casu, o aqui 2.º Recorrido, quando é pacífica a exigência de prestação da identidade do eventual comprador/interessado na compra do imóvel objeto de preferência, enquanto é um elemento essencial que tem de, obrigatoriamente, constar da comunicação ao preferente, sob pena da ineficácia da referida comunicação.
S. Os 1.ºs Recorridos também não exibiram perante a notária as certidões comprovativas da comunicação efectuada ao Estado para o exercício do seu direito legal de preferência, o que também determina o incumprimento das comunicações referidas no artigo 37.º da Lei n.º 107/2007, de 8 de Outubro, bem como o impedimento da celebração pelos notários das respectivas escrituras, e o obstáculo a que os conservadores inscrevam os actos em causa nos competentes registos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 38.º da mesma Lei.
T. A única “comunicação” feita pelos 1.ºs Recorridos, em 26.04.2018, para o Recorrente vir exercer o seu direito de preferência sobre o imóvel em causa, revela-se deficitária e incompleta, pelo que a mesma sempre seria ineficaz por não corresponder à comunicação exigida nos termos do disposto no artigo 416.º, e/ou dos termos do disposto no artigo 37.º da Lei n.º 107/2007, de 8 de Outubro.
U. O douto Tribunal a quo incorreu ainda em contradição entre os fundamentos de facto e a decisão ao ter, primeiramente dado como provado no Facto 7, dos factos dados como provados, que a Sr.ª Presidente compareceu no acto em causa dotada de poderes legais e com poderes para autorizar o pagamento do preço, e depois ter decidido na sua sequência que o direito de preferência, ainda que convencional, não foi exercido atempadamente, uma vez que a Sr.ª Presidente não se encontrava munida dos meios de pagamento do preço pelo imóvel em causa.
V. Ficou provado que: i) o Recorrente manifestou a sua intenção de preferir; ii) os 1.ºs Recorridos reconheceram o direito de preferência do Recorrente e indicaram a data, hora e local para a escritura de compra e venda; iii) a Sr.ª Presidente da Câmara Municipal de Tomar compareceu no local designado para efeitos de outorga da escritura pública, acompanhada dos membros do seu staff, e dotada dos poderes legais para representar o Recorrente e para autorizar o pagamento do preço (atuando no âmbito dos poderes legais que lhe foram concedidos, e, ainda, no âmbito das suas competência materiais delegadas, nos termos da alínea g do n.º 1 do artigo 33.º e do n.º 1 do artigo 34.º da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro); iv) a Sr.ª Presidente da Câmara Municipal de Tomar viu-se impedida da celebração do acto; v) os 1.ºs Recorridos celebraram a referida compra e venda com a 2.ª Recorrida (cfr. teor da Acta n.º 11/2018, da Reunião Ordinária da Câmara Municipal de Tomar, de 28.05.2018).
W. Mais ficou provado que perante tal preterição e violação do exercício do direito legal de preferência do Recorrente, a Sr.ª Presidente deixou clara a intenção do Recorrente em adquirir o imóvel pelo preço proposto, tendo manifestado no próprio acto a sua discordância com a transmissão do imóvel entre os 1.ºs Recorridos e a 2.ª Recorrida, tendo aqueles prosseguido com a venda não obstante devidamente advertidos pela Sra. Notária de que escritura poderia vir a ser impugnada.
X. O exercício de preferência por parte do Recorrente não era pretendido pelas Recorridas, pois que os 1.ºs Recorridos já há muito que tinham optado pela 2.ª Recorrida para realização do negócio em causa, sendo sintomático disso o facto da 2.ª Recorrida ter pago a título de sinal € 40.000,00 (quarenta mil euros) aos 1.ºs Recorridos em 09.04.2018 (i.e., um cerca de um mês antes de o Recorrente ser notificado para o exercício do seu direito de preferência), e de terem pago o valor de € 10.000,02 (dez mil euros e dois cêntimos) referente à comissão imobiliária em 10.05.2018 (i.e., um dia antes da realização do negócio em causa, e depois do Recorrente ter comunicado a sua intenção de preferir).
Y. Esta matéria factual encontra-se claramente controvertida nos autos (cfr. artigos 31.º a 34.º da Petição Inicial, artigos 69.º a 75.º da Contestação dos 1.ºs Recorridos e, ainda, artigos 70.º a 72.º e 82.º da Contestação da 2.ª Recorrida), pelo que sempre se impunha a produção de prova relativamente à mesma.
Z. O que Tribunal a quo não poderia ter feito, como fez, era limitar-se a dar como provado por um lado que o Recorrente não tinha meios para proceder ao pagamento do imóvel em causa, atendendo ao teor da escritura pública, e por outro, dar como provado que Sr.ª Presidente compareceu na data, hora e local designada para a celebração da escritura de compra e venda do imóvel em causa, encontrando-se dotada dos poderes legais para representar o Município de Tomar, e para autorizar o pagamento do preço, mas não lhe foi consentida a outorga de escritura pelos 1os Réus na presença dos representantes da Alienante e da Sra. Notária Sara Reis (cfr. Facto 7, dado como provado), sob pena de nulidade nos termos e para os efeitos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
AA. Em face de todo o exposto, deve a Sentença recorrida ser anulada, determinando-se a descida dos autos para que o douto Tribunal a quo conheça da presente matéria controvertida.
BB. Caso assim também não se entenda deverá a Sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que altere a decisão proferida sobre a presente matéria de facto, nos termos do n.º 1 do artigo 662.º do CPC, dando-se como provado que a Sr.ª Presidente da Câmara Municipal de Tomar encontrava-se dotada dos poderes legais para representar o Recorrente no acto e para autorizar o pagamento do preço (cfr. alínea g) do n.º 1 do artigo 33.º e do n.º 1 do artigo 34.º da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro e em conformidade com a Acta n.º 11/2018, da Reunião Ordinária da Câmara Municipal de Tomar, de 28.05.2018), e que foi impedida de exercer o direito de preferência, na medida em que os 1.º Recorridos, conformando-se com a advertência da Sra. Notária, celebraram à mesma o negócio com a 2.ª Recorrida.
CC. Ou, deverá a Sentença ser substituída por outra que ordene a descida dos presentes autos para o seu normal prosseguimento e produção de prova, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea c) do n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 662.º do CPC, caso se considere existir nesta matéria insuficiência da matéria de facto e insuficiência de prova, por relação à declaração da Sra. Notária, impugnada pelo Recorrente, de que a Sra. Presidente não se encontrava munida dos meios para autorizar e realizar o pagamento, e sobre a qual o Recorrente não teve oportunidade de produzir prova (ainda que a tenha indicado), em função da dispensa de audiência prévia (e subsequentemente de julgamento) para se conhecer (supostamente apenas) da Exceção de Caducidade do Direito de Ação.»
Em sede de contra-alegações, os RR pugnaram pela improcedência do recurso.

As questões suscitadas são as seguintes:
- do depósito do preço devido;
- da omissão de pronúncia relativamente aos demais direitos de preferência invocados;
- da inaplicabilidade do artigo 1091.º do CC na versão acolhida na sentença, atenta a norma transitória consagrada no artigo 59.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro;
- da ineficácia da comunicação para exercício do direito de preferência por falta de identificação do comprador;
- da falta de exibição da comunicação na escritura pública, atento o disposto no artigo 38.º da Lei n.º 107/2001, de 8 de setembro;
- do prosseguimento dos autos para apurar matéria controvertida.

III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância
1 - O Autor é arrendatário do primeiro andar e sótão com entrada pelo n.º 3 da Praça da (…), que é parte do prédio urbano composto por casa de habitação de rés do chão com seis divisões e primeiro andar com catorze divisões e terraço, sito na Rua (…), n.ºs 89 a 103, na Praça da (…), n.ºs 1 a 3 e Rua Dr. (…), n.º 118, em Tomar, União de Freguesias de Tomar, inscrito na matriz predial desta freguesia sob o art.º (…), e descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar com o n.º (…) - São João Baptista, desde 26/02/1964 (artigos 22º da petição inicial e artigo 22º da contestação).
2 - Na cláusula sétima do contrato de arrendamento, de que existe cópia a fls. 46-50 consta o seguinte:
“No caso de convir aos senhorios a venda do prédio, será concedido à arrendatária o direito de preferência em igualdade de circunstâncias” (artigo 37º da contestação).
3 - Em 26/04/2018, os Primeiros Réus dirigiram uma carta à Câmara Municipal de Tomar, de que existe cópia a fls. 52-53, na qual vieram informar como se segue:
“Serve a presente para, nos termos do artigo 416.º do C. Civil, vos dar conhecimento, na qualidade de arrendatários do prédio urbano composto por casa de habitação de rés do chão com seis divisões e primeiro andar com catorze divisões e terraço, sito na Rua (…), com os números 89 a 103 de polícia, na Praça da (…), números 1 a 3 de polícia e Rua Dr. (…), n.º 118, União de Freguesias de Tomar (S. João Baptista e Santa Maria dos Olivais), concelho de Tomar, inscrito na matriz predial desta freguesia sob o artigo (…), e descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar com o n.º (…) - Freguesia de São João Baptista, de que é nossa intenção, na qualidade de comproprietários do mesmo, proceder à venda do mesmo, pelo preço global de quinhentos e cinquenta mil euros, correspondente a:
a) € 40.000,00 – quarenta mil euros, pagos no ato de outorga de contrato de promessa de compra e venda;
b) € 510.000,00 – quinhentos e dez mil euros, a pagar por cheque bancário, no ato da outorga da escritura pública.
Ao valor acordado acresce o montante de € 8.130,08 – oito mil e trinta euros e oito cêntimos – acrescidos de IVA à taxa legal em vigor, a pagar a título de comissão pela mediação da venda do imóvel à sociedade (…) – Mediação Imobiliária, Unipessoal, Lda.
A venda será realizada, livre de ónus ou encargos, e terá lugar no prazo de cinco dias após o “terminus” do prazo previsto para o exercício do direito de preferência.
Nesse sentido, sendo V. Exas titulares do direito de preferência na compra ou dação em pagamento do prédio objeto do contrato de arrendamento, deverão, querendo, exercer o vosso direito no prazo de 8 dias, sob pena de caducidade” (artigo 24º da petição inicial).
4 - Em 03/05/2018, a Exma. Sra. Presidente da Câmara Municipal de Tomar remeteu ofício, de que existe cópia a fls. 58, na qual consta:
“Na sequência da notificação recebida nesta câmara municipal por parte dos proprietários do prédio (…), “dando conta do projeto de venda do referido imóvel pelo valor global de € 550.000,00, do qual o Município de Tomar é arrendatário, vem o mesmo pelo presente informar que pretende preferir na venda pelo valor global supra indicado.
(…)
Cumpre-nos alertar para o facto de o projeto de venda não ser, quanto a nós, completamente claro, nomeadamente quanto à data de realização da venda, isto é, da celebração da escritura de compra e venda, sendo que a mesma não poderá ser realizada, nos termos indicados, ou seja, livre de ónus ou encargos, pelo menos até ao dia 31 de Julho de 2018, na medida em que até essa data incide sobre o referido prédio, pelo menos, o ónus do contrato de arrendamento, que entre nós vigora.
Importa também referir que a indicação do acréscimo do montante de € 8.130,08, para pagamento da comissão pela mediação da venda, é da responsabilidade de quem contratou o serviço, o vendedor, que certamente terá celebrado um contrato de mediação imobiliária com a sociedade referida, não podendo imputar a um terceiro um cumprimento de uma obrigação que é sua. Assim, consideramos que a referência a tal acréscimo de valor não poderá considerar-se incluída no projeto de venda” (artigos 25º e 26º da petição inicial).
5 - Em 09/05/2018, os Primeiros Réus, notificados da missiva de 03/05/2018, remeteram Carta ao Município de Tomar a carta de que existe cópia a fls. 60-61, nos termos da qual vieram responder o seguinte:
“Registamos, no que ao conteúdo desta missiva diz respeito, a vossa pretensão em “preferir na venda pelo valor global supra indicado”.
Contudo, e relativamente ao demais apraz-nos informar V. Exa. o seguinte:
Não se encontrando em causa a cessação do contrato de arrendamento subjacente ao direito legal de preferência do Município, neste momento, e por qualquer via, não reconhecemos como válida, para este negócio em concreto, a reclamação de quaisquer benfeitorias que tão pouco se encontram identificadas, valorizadas, e cuja licitude cumprirá sempre apreciar.
De resto, esclarecemos ainda que, salvo melhor entendimento, os contratos de arrendamento – de génese meramente obrigacional – não configuram ónus reais, para efeitos de interpretação da expressão “livre de ónus ou encargos”, facto que naturalmente é esclarecido pelo regime geral da locação nos termos do qual “o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador (…)” – cfr. 1057.º do Código Civil. Encontrando-se, nesta medida, salvaguardada a posição de arrendatário do Município e Serviços Municipalizados de Água, que poderão manter, atualizar e negociar a posição de arrendatário com o adquirente do direito de propriedade.
Consideramos ainda, e em jeito de mera anotação, que se encontram devidamente esclarecidas as condições essenciais do negócio, nos termos e em cumprimento do artigo 416.º do Código Civil, afigurando-se-nos claro que sendo a venda realizada, livre de ónus ou encargos, e no prazo de cinco dias após o “terminus” do prazo previsto para o exercício do direito de preferência, a mesma terá lugar contados cinco dias após o termo do prazo para o exercício do direito legal de preferência.
Neste sentido, e não obstante estas apreciações, uma vez registada a vossa intenção de preferir no negócio, pelo valor global indicado, informamos que a escritura de compra e venda se encontra agendada para o próximo dia 11 de Maio, às 14 horas, no Cartório Notarial a cargo da Notária Dra. Sara Reis, sito na Alameda Um de Março, n.º 36, r/c, esq., em Tomar” (artigo 28º da petição inicial).
6 - Em 11/05/2018 foi celebrada a Escritura de Compra e Venda do imóvel entre os Primeiros Réus e a 2ª R., no Cartório Notarial, sito na Alameda Um de Março, n.º 36, r/c, esq., em Tomar, perante a Notária Sara João Neves dos Reis, de que existe cópia fls. 63-71 (artigo 31º da petição inicial).
7 - Na data, hora e local indicado, compareceu a Sr.ª Presidente da Câmara Municipal de Tomar, acompanhada de membros do seu staff para efeitos de outorga da escritura pública, dotada dos poderes legais para representar o Município no ato e com poderes para autorizar o pagamento do preço, mas não lhe foi consentida a outorga de escritura pelos Primeiros Réus, na presença dos representantes da Alienante e da Sr.ª Notária Sara Reis (artigo 32º da petição inicial).
8 - Na escritura de compra e venda, de que existe cópia fls. 63-71, consta o seguinte:
(…)
“Que, pela presente escritura e pelo preço de € 550.000,00, que declaram para si e para os seus representados, já ter recebido e de que dão a devida quitação, vendem à sociedade representada pela sétima outorgante, livre de ónus ou encargos, o prédio.
(…)
Declararam ainda os outorgantes que este ato teve a intervenção da mediadora imobiliária (…), Mediação Imobiliária Unipessoal, Lda., portadora da licença AMI (…), tendo sido advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de desobediência previsto no artigo 348º do Código Penal se, perante oficial público, tiverem prestado falsas declarações, tendo os outorgantes declarado que foi pago a título de comissão imobiliária, o valor de € 17.059,98 pagos pelos vendedores e o valor de € 10.000,02 pago pela sociedade compradora.
Que o preço atrás referido de € 550.000,00 (quinhentos e cinquenta mil euros) foi pago da seguinte forma:
a) A título de sinal no dia 09/04/2018, a quantia de quarenta mil euros, por cheque com o número (…) sacado sobre o Banco (…), S.A.;
b) Na presente data, os restantes quinhentos e dez mil euros, através de cheque bancário com o número (…), sacado sobre o Banco (…), S.A., nada mais terá de ser pago pela sociedade representada da sétima outorgante aos vendedores.
(…)
Depois de estes me terem declarado expressamente que mesmo depois de ter comparecido hoje neste cartório a Câmara Municipal de Tomar, representada pela sua presidente de Câmara, como titular do direito de preferência na presente alienação em virtude de serem um dos arrendatários do identificado imóvel, e de terem referido a intenção da referida entidade querer exercer o direito de preferência, só não o exercendo hoje por não estar em condições de o fazer, nomeadamente, não trazendo os meios de pagamento para pagar o referido preço, os aqui outorgantes pretendem celebrar na mesma esta escritura, advertindo-os eu notária e tendo também eles conhecimento que esta escritura poderá vir a ser impugnada (…)” – (artigos 35º e 38º da petição inicial e 76º e 77º da contestação).

B – O Direito
Do depósito do preço devido
O A apresentou-se a exercer o direito de preferência na qualidade de arrendatário de parte do prédio objeto do contrato de compra e venda, direito esse consagrado no artigo 1091.º do CC.
Por via do disposto no artigo 1091.º/4 do CC, cumpre aplicar o regime previsto no artigo 1410.º do CC cujo n.º 1 estabelece o seguinte: o comproprietário a quem se não dê conhecimento da venda ou da dação em cumprimento tem o direito de haver para si a quota alienada, contanto que o requeira dentro do prazo de seis meses, a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, e deposite o preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da ação.
Aquando da propositura da ação, o A procedeu ao depósito autónomo de € 550.000 (quinhentos e cinquenta mil euros).
Consta da escritura que foi declarada a compra e venda do prédio pelo preço de € 550.000,00. Mais consta da escritura que os outorgantes declararam que foi pago a título de comissão imobiliária o valor de € 17.059,98 pelos vendedores e o valor de € 10.000,02 pela sociedade compradora.
Em 1.ª Instância julgou-se caducado o direito de preferência dado o não pagamento da verba de € 10.000,02.
Vem sendo discutido qual o sentido da expressão preço devido, nomeadamente se corresponde ao preço real ou ao preço que seja declarado na escritura pública de compra e venda e se abarca ou não as despesas inerentes à aquisição, tais como os impostos de transmissão, despesas com a escritura e registos, sem embargo do dever de o preferente reembolsar o terceiro pelas despesas efetuadas.[1]
“A exigência do prévio depósito do preço constitui uma garantia para o alienante, pondo-o a coberto do risco de perder o contrato com o adquirente e não vir a celebrá-lo com o preferente, por este se desinteressar entretanto da sua realização ou não dispor dos meios necessários para esse efeito.”[2] Assim, o preço devido designará o valor em dinheiro a pagar pelo preferente como contrapartida da aquisição do bem sujeito à preferência (no fundo, o conceito técnico de “preço” a que alude o artigo 874.º do Código Civil), valor esse correspondente ao benefício económico ajustado entre vendedor e o adquirente como contrapartida da alienação do bem.[3]
A jurisprudência do STJ vem maioritariamente sustentando que a preferência exerce-se pelo preço real, o valor correspondente à contrapartida da alienação do bem; o preço devido corresponderá ao preço real, que pode ser quer o preço pago pelo terceiro adquirente ao alienante, quer o preço acordado entre estes para a transação, mesmo que ainda não esteja pago, a menos que tal não se tenha provado, situação em que, a final, o preço devido corresponderá, simplesmente, ao preço declarado na escritura pública.[4] E que outras despesas em que o terceiro adquirente possa ter incorrido ou os impostos que possa ter pago, são irrelevantes para o exercício do direito de preferência.[5]
De todo o modo, é a falta de depósito do preço devido nos 15 dias subsequentes à data da propositura da ação que determina a caducidade do direito de preferência – cfr. art. 1410.º/1 do CC. Se o depósito for efetuado pelo preço declarado na escritura e se vier a apurar ser outro o preço devido, não se trata de falta de depósito do preço, antes de depósito tempestivamente efetuado mas, embora pelo preço declarado, insuficiente por inferior ao preço real. Caso em que deve dar-se oportunidade ao A, preferente, de efetivar o depósito do remanescente, concedendo-se para o efeito um prazo de quinze dias, a contar do trânsito em julgado, sob pena de perda do direito.[6]
No caso em apreço, não está em causa a disparidade entre o preço acordado e o preço acordado nem o montante atinente a despesas, impostos e emolumentos inerentes à celebração da escritura pública.
A questão reside no pagamento, pela compradora, de quantia que integra o valor devido pelos vendedores a título de remuneração dos serviços de mediação imobiliária: os outorgantes declararam na escritura que foi pago a título de comissão imobiliária o valor de € 17.059,98 pelos vendedores e o valor de € 10.000,02 pela sociedade compradora – a remuneração devida à empresa mediadora conforme previsto no art. 19.º da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro. A remuneração acordada é devida pelo cliente ou seja, pela pessoa ou entidade que celebra com uma empresa habilitada para o efeito um contrato visando a prestação de serviços de mediação imobiliária – cfr. artigos 2.º, n.º 6 e 16.º, n.º 2, alínea c), da citada Lei.
A menção declarada pelos outorgantes na escritura pública revela o acordo firmado entre eles no sentido de a compradora solver, em parte, obrigação dos vendedores junto de terceiro, a empresa de mediação imobiliária, conforme previsto no artigo 767.º, nº 1, do CC.
Afigura-se, no entanto, que a prestação realizada pela compradora à empresa de mediação imobiliária não integra o conceito de preço devido pela compra do imóvel, não se subsume ao preço previsto no artigo 874.º do Código Civil, nem tal verba é considerada, designadamente, para efeitos de apuramento de impostos devidos pela transação.
Consubstancia antes a prestação acessória prevista no artigo 418.º do CC, cujo regime é aplicável por força do disposto no citado artigo 1091.º, n.º 4, do CC. Dado tratar-se de prestação pecuniária cujo pagamento reverte em favor da compradora (o reembolso do pagamento efetuado à empresa de mediação imobiliária), deve o preferente proceder ao depósito autónomo dessa verba.[7]
Desde logo por via do princípio da cooperação consagrado no artigo 7.º do CPC, e considerando a natureza controvertida da referida verba a que se alude na escritura pública, (onde não é caraterizada de preço), impunha-se conceder ao Recorrente prazo para proceder ao depósito do montante pecuniário que, em sentido técnico, não integra o conceito de preço devido.
Termos em que se conclui que o Recorrente, preferente, procedeu tempestivamente ao depósito do preço devido, inexistindo fundamento para declarar a caducidade do direito de preferência nos termos do disposto no artigo 1410.º, n.º 1, do Código Civil.

Da omissão de pronúncia relativamente aos demais direitos de preferência invocados
Em 1.ª Instância não foram apreciados os direitos legais de preferência invocados pelo Recorrente para além daquele que está consagrado no artigo 1091.º do CC. Trata-se do direito de preferência estabelecido no artigo 126.º do DL n.º 380/99, de 22 de setembro, por o edifício se situar nas áreas do plano com execução programada, i.e., no âmbito do plano de pormenor do Centro Histórico de Tomar; do direito de preferência para fins e objetivos de política pública estabelecido no artigo 29.º da Lei n.º 31/2014, de 30 de Maio, Lei de bases gerais da política pública de solos, de ordenamento do território e de urbanismo; do direito legal de preferência consagrado no artigo 58.º do DL n.º 307/2009, de 23 de Outubro; do direito legal de preferência consagrado na Lei n.º 107/2001, de 08 de Setembro, nas transmissões a título oneroso para os imóveis classificados ou em vias de classificação ou imóveis localizados nas respetivas zonas de proteção.
Tais direitos, para além de contenderem com a natureza pública do Recorrente e com relações de índole administrativa, foram invocados apenas na resposta apresentada pelo A às exceções invocadas pelos RR. Na petição inicial tais direitos legais de preferência não foram trazidos à colação para sustentar a pretensão deduzida, nem nela foram carreados factos atinentes ao imóvel, à respetiva localização e situação jurídica de modo a aferir a subsunção do caso aos diversos regimes jurídicos invocados.
Na medida em que na petição inicial o Recorrente apenas se arrogou do seu direito de preferência na qualidade de arrendatário, a invocação posterior dos demais direitos legais de preferência configura alteração da causa de pedir. Alteração essa que se afigura inadmissível à luz do disposto no artigo 265.º do CPC.
Não cabe, pois, apreciar os referidos direitos legais de preferência no âmbito deste processo.

Da inaplicabilidade do artigo 1091.º do CC na versão acolhida na sentença, atenta a norma transitória consagrada no artigo 59.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro
O artigo 1091.º do CC, na redação em vigor à data da celebração da escritura pública de compra e venda (redação dada pela Lei 6/2006, de 27 de fevereiro)[8], estatuía o seguinte:
1 - O arrendatário tem direito de preferência:
a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos;
b) Na celebração de novo contrato de arrendamento, em caso de caducidade do seu contrato por ter cessado o direito ou terem findado os poderes legais de administração com base nos quais o contrato fora celebrado.
2 - O direito previsto na alínea b) existe enquanto não for exigível a restituição do prédio, nos termos do artigo 1053.º.
3 - O direito de preferência do arrendatário é graduado imediatamente acima do direito de preferência conferido ao proprietário do solo pelo artigo 1535.º.
4 - É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º.
Perante o teor da alínea a) do n.º 1 do citado normativo, coloca-se a questão de saber se tal regime contempla os casos como aquele que temos aqui em litígio – o local arrendado consista numa parte específica de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal – ou se acolhe apenas os casos em que o local arrendado constitui prédio ou fração autónoma, só como tais suscetíveis de ser objeto de negócio jurídico.
O regime atinente ao direito de preferência do arrendatário anterior ao que decorre da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro constava do artigo 47.º do RAU, aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15 de outubro, estabelecendo o seguinte:
1. O arrendatário de prédio urbano ou de sua fração autónoma tem o direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de um ano.
2. Sendo dois ou mais preferentes, abre-se entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante.
Na vigência desta disposição legal, a jurisprudência e a doutrina maioritariamente sustentavam que o arrendatário urbano de parte de prédio indiviso poderia exercer a preferência sobre a totalidade do prédio a vender, ainda que o objeto material do arrendamento não coincidisse com o prédio em venda ou fração autónoma dele.[9] O teor do n.º 2 do artigo 47.º do RAU só tinha sentido quando existissem vários arrendamentos sobre partes de prédio indiviso.
Na verdade, «Nem do preâmbulo do DL n.º 321-A/90, nem dos trabalhos preparatórios do mesmo se pode retirar ter sido intenção do legislador afastar o direito de preferência do locatário habitacional na compra e venda de todo o imóvel não constituído em regime de propriedade horizontal; pode impressionar o facto de o legislador ter utilizado a expressão "local arrendado", só que tal expressão não é sinónimo de andar arrendado, mas de todo o imóvel onde o arrendamento se situa.
Se o legislador tinha intenção de restringir a preferência aos casos de compra e venda de prédio constituído em propriedade horizontal devia tê-lo dito no artigo 47.º do RAU; não o tendo feito não pode a interpretação restringir com base em expressões de alcance dúbio.
Assim, o direito de preferência existe para a fração autónoma arrendada, no caso de o prédio estar constituído em propriedade horizontal, ou para todo o imóvel se este não estiver legalmente parcelado a preferência não pode incidir, apenas sobre a parte arrendada, não sendo de interpretar restritivamente o artigo 47.º, n.º 1. do RAU» – Acórdão STJ de 12/01/2012, proc. n.º 72/2001.
Seguiu-se, então, a Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, que reintroduziu o artigo 1091.º do CC, com a redação suprarreferida.
Ora, compaginando ambos os preceitos (o art. 47.º do Rau com o art. 1091.º n.º 1 al. a) do CC) constata-se a supressão da locução arrendatário de prédio urbano ou de sua fração autónoma, passando a constar local arrendado; foi eliminado o n.º 2 do art. 47.º do RAU que estabelecia o mecanismo de licitação entre dois ou mais arrendatários preferentes.
Ora, «pelo recorte dado ao referido normativo, divergente do dantes configurado no artigo 47.º, n.º 1, do RAU, face à eliminação do n.º 2 deste artigo e atento o propósito do legislador de 2006, mormente quanto ao moderado relevo por ele dado à função económico-social das preferências legais do arrendatário urbano, afigura-se mais correto interpretar o pressuposto típico configurado na alínea a) do n.º 1, do artigo CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, no sentido de só atribuir o direito de preferência ao arrendatário urbano nos casos em que exista coincidência entre o objeto material do arrendamento e o da compra e venda ou dação em cumprimento, afastando assim do âmbito da sua aplicação os casos, como o dos autos, em que o arrendamento só incide sobre parte de prédio urbano indiviso ou não constituído em propriedade horizontal» – Acórdão do STJ de 11/07/2019 (proc. n.º 3818/17).[10]
Por conseguinte, à luz do regime legal vigente a 11/05/2018, o arrendatário de uma parte de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal não goza do direito legal de preferência na venda do prédio, já que tal direito apenas é reconhecido ao arrendatário de todo o prédio urbano ou fração autónoma do prédio objeto de venda. O referido direito legal de preferência está confinado ao andar ou à parte do prédio que constitui objeto do concreto contrato de arrendamento, o qual terá de estar juridicamente autonomizado para que possa ser transacionável.
Foi este o entendimento sufragado em 1.ª Instância, nos termos do qual se declarou não ser o Recorrente, enquanto arrendatário de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal, titular do direito legal de preferência na venda do prédio.
Sustenta o Recorrente que, atento o regime inserto no art. 59.º/2 da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro (nos termos do qual a aplicação da alínea a) do n.º 1 do artigo 1091.º do CC, na versão dada pela referida Lei, não determina a perda do direito de preferência por parte de arrendatário que dele seja titular aquando da entrada em vigor da mesma Lei), o direito de preferência deve ser apreciado e reconhecido de acordo com a disciplina legal anterior à introduzida pela citada Lei n.º 6/2006.
Não lhe assiste razão.
O citado preceito legal, relativo à aplicação no tempo do regime decorrente da lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, visa salvaguardar os preferentes perante o alargamento do prazo para três anos (era de um ano) de duração do contrato de arrendamento indispensável à aquisição do direito de preferência do arrendatário – cfr. artigo 1091.º, n.º 1, al. a), do CC.
Em anotação ao artigo 59.º, n.º 2, da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, sustentam Soares Machado e Regina Santos Pereira[11] o seguinte:
«A redação dada pelo NRAU de 2006 ao art. 1091.º, n.º 1, al. a) do CC, alargou para três anos o tempo de duração do contrato de arrendamento indispensável à aquisição do direito de preferência pelo arrendatário.
Contudo, a exigência deste prazo não se aplica aos arrendatários que, antes da entrada em vigor do NRAU (em 2006), já tivessem um ano de contrato, por força do disposto no artigo 59.º, n.º 2, isto é, os arrendatários nessas condições não tinham que perfazer os três anos exigidos pelo NRAU de 2006 para exercerem o direito de preferência, visto que o respetivo direito já lhes era reconhecido por lei antes da entrada em vigor do NRAU de 2006.
Assim, se o arrendatário já possuía os requisitos legais para o exercício do direito, à data da entrada em vigor do NRAU de 2006, ou seja, já era titular do direito de preferência ao abrigo do RAU, então poderia exercê-lo relativamente a uma alienação que ocorresse já na vigência do NRAU de 2006.»
Luís Menezes Leitão[12], por sua vez, deixa expresso que:
«A primeira exceção» à aplicação integral e imediata do NRAU «respeita ao art. 1091.º, n.º 1, alínea a), que passou a fazer depender o direito de preferência do arrendatário do facto de este ter arrendado o locado há mais de três anos, enquanto que o artigo 47.º, n.º 1, do RAU bastava-se com o facto de o arrendamento durar há mais de um ano. Do artigo 59.º, n.º 2, do NRAU resulta que se o arrendatário já fosse titular do direito de preferência à data da entrada em vigor do NRAU, não o perderá em consequência dessa entrada em vigor. (…) Basta que o arrendatário já tenha completado um ano de arrendamento na data da entrada em vigor do NRAU para poder logo exercer a preferência em relação a todas as alienações do prédio que se verifiquem após essa data. (…) A função deste artigo 59.º, n.º 2, do NRAU seria a de derrogar nesta situação a regra do artigo 297.º, n.º 2, do CC.»
Por conseguinte, o artigo 59.º, n.º 2, da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, não afasta a aplicação do regime previsto no artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC, na versão dada pela citada Lei, ao direito de preferência de arrendatário relativamente a contrato de compra e venda outorgado a 11/05/2018.
Termos em que se conclui não ser o Recorrente, arrendatário de parte específica do prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, titular do direito de preferência legal previsto no artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC.
Tal como consta da sentença recorrida, o direito de preferência decorrente do contrato de arrendamento, de natureza obrigacional, não gozando de eficácia real, não constitui fundamento para a ação de preferência – cfr. artigo 421.º, n.º 1 e 2, do CC.
Não merecendo acolhimento as conclusões da alegação de recurso no que respeita à afirmação do direito legal de preferência de que se arrogou o A, resulta prejudicado o conhecimento do mais suscitado.

As custas recaem sobre o Recorrente (artigo 527.º, n.º 1, do CPC), já que a procedência do recurso no que respeita à caducidade da ação resulta inócuo em face do mais decidido.

Concluindo: (…)


IV – DECISÃO
Nestes termos, embora proceda o recurso relativamente à questão da caducidade da ação, revogando-se nesse âmbito a decisão recorrida, improcede o recurso quanto ao mais decidido em 1.ª Instância, em consequência do que se confirma a improcedência da ação.
Custas pelo Recorrente.

*

Évora, 9 de setembro de 2021
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho dos Santos


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[1] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. III, 2.ª edição, pág. 374 a 377; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 5.ª edição, pág. 332; Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 13.ª edição, páginas 232 a 235, entre outros.
[2] Cfr. Antunes Varela, RLJ ano 100.º, pág. 242.
[3] Cfr. Ac. do STJ de 08/09/2016 (proc. n.º 1022/12).
[4] Ac. do STJ de 22/02/2005 (proc. n.º 4669/04); Ac. do STJ de 01/04/2014 (proc. n.º 854/07); Ac. do STJ de 27/10/2015 (proc. n.º 125/04); Ac. do STJ de 08/09/2016 (proc. n.º 1022/12).
[5] Ac. do STJ de 22/02/2005 (proc. n.º 4669/04); Ac. do STJ de 08/09/2016 (proc. n.º 1022/12), com apoio, entre outros, em Agostinho Cardoso Guedes, O Exercício do Direito de Preferência, pág. 656, Menezes Leitão, ob. cit., pág. 232, entre outros.
[6] Ac. do STJ de 08/09/2016 (proc. n.º 1022/12), Ac. do STJ de 22/02/2005 (proc. n.º 4669/04), Ac. STJ de 18/04/2013 (proc. n.º 71/07).
[7] Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 5.ª edição, pág. 338.
[8] A lei reguladora do direito de preferência é a vigente na data em que se concretizou o ato de alienação, por o direito legal de preferência não passar de uma faculdade que integra o conteúdo do direito do arrendatário, que só a prática do negócio translativo da propriedade, sem que o senhorio lhe tenha oferecido a preferência, o transforma em direito potestativo – Ac. do STJ de 21/01/2016 (proc. n.º 9065/12).
[9] Acórdãos STJ de 29/09/2015 (proc. n.º 1555/08), de 21/01/2016 (proc. n.º 9065/12), de 18/10/2018 (proc. n.º 3131/16, entre outros; Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 6.a edição., pág. 314; Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 3.a edição, pág. 639 e 640; Pires de Lima e Antunes Varela, CC Civil Anotado, Volume II, anotação 8 ao art. 47.º RAU; Agostinho Cardoso Guedes, O Direito de Preferência, pág. 172-208.
[10] Neste sentido, entre muitos outros, Acórdãos STJ de 18/10/2018 (proc. n.º 3131/16), de 07/11/2019 (proc. n.º 14276/18), de 09/03/2021 (proc. n.º 2899/18), TRP de 10/12/2019 (proc. n.º 2311/18).
[11] Arrendamento Urbano (NRAU), 3.ª edição, pág. 402.
[12] Arrendamento Urbano, 10.ª edição, pág. 190.