Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2749/15.4T9FAR.E1
Relator: CLEMENTE LIMA
Descritores: PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
DEMANDADO CIVIL
INSOLVÊNCIA
ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
REPRESENTAÇÃO LEGAL
Data do Acordão: 02/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário: I – O pedido cível deduzido em processo penal não corresponde a uma “acção declarativa” no sentido e para os efeitos constantes do AUJ nº 1/2014.
II – Por isso, transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, tal não determina a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, do pedido cível deduzido contra o insolvente em processo-crime.
III - A declaração de insolvência não obsta a que os arguidos devedores/insolventes sejam, por si, chamados ao pagamento das prestações devidas e respectivos juros, no processo crime por abuso de confiança contra a segurança social.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2749/15.4T9FAR.E1
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I

1 – Nos autos de processo comum em referência, os arguidos, BB e a CC - Restauração, Lda., foram acusados, pelo Ministério Público, da prática de factos consubstanciadores da autoria material de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punível (p. e p.), nos termos do disposto nos artigos 107.º e 105.º n.os 1, 4 e 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), 30.º n.º 2 e 79.º n.º 1, estes do Código Penal, esta com referência ao disposto nos artigos 7.º n.os 1 e 3, do RGIT, e 11.º, 30.º n.º 2 e 79.º n.º 1, do CP.

2 – O Instituto da Segurança Social, IP (ISS) formulou pedido cível contra os arguidos pela quantia indemnizatória de 37.152,16 euros e juros.

3 – O arguido BB contestou, alegando a insolvência de ambos os arguidos, a impossibilidade de pagar a dívida e manter a intenção de a liquidar, na medida das suas possibilidades.

4 – Precedendo audiência de julgamento, a Mm.ª Juiz do Tribunal recorrido, por sentença de 4 de Abril de 2017, decidiu:
(i) declarar extinta a instância cível, por inutilidade superveniente da lide;
(ii) condenar o arguido BB, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, previsto e punido nos termos dos artigos 107.º, 105.º, n.ºs 1, 4 e 7 do RGIT em conjugação com o artigo 30.º, n.º 2 e 79.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 12 (doze) meses de prisão, substituída por 72 (setenta e dois) períodos de prisão em Estabelecimento Prisional, com duração individual de 48 (quarenta e oito) horas, períodos esses que deverão ter início às 20 (vinte) horas de Sexta-feira e termo às 20 (vinte) horas de Domingo, a começar na primeira Sexta-feira decorridos que sejam 30 (trinta) dias após o trânsito da sentença;
(iii) condenar a arguida CC - Restauração, Lda., pela prática de um crime de abuso de confiança à segurança social, na forma continuada, previsto e punido nos termos dos artigos 107.º, 105.º, n.ºs 1, 4 e 7, conjugado com o artigo 7.º, n.ºs 1 e 3 todos do RGIT e com os artigos 11.º, 30.º, n.º 2 e 79.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de multa correspondente a 300 (trezentos) dias, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros);
(iv) condenar os arguidos nas custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) Uc's, reduzida a metade por força da confissão (artigo 344.º, n.º 2 al. c) do Código de Processo Penal).

5 – O arguido BB interpôs recurso da sentença.
Formula o pedido nos seguintes termos:
«deve declarar-se a nulidade e inconstitucionalidade invocadas, com as suas legais consequências, absolvendo-se o arguido do crime de que vem acusado; ou se assim não se entender, aplicar-lhe pena de admoestação, ou no máximo pena de prisão não superior a 6 meses, sempre suspensa na sua execução, ou a manter-se a pena decidida dever a mesma ser suspensa na sua execução.»
Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões:
«I. A notificação feita ao arguido em 15.01.2016 nos termos do n.º 6 do artigo 105.º do RGIT, quer pessoalmente quer enquanto representante da sociedade, é nula.
II. Ela faz-se na pessoa errada, uma vez que o arguido já estava então insolvente e já não representava a sociedade, representada pelo administrador de insolvência que nunca foi notificado e que eventualmente, se o tivesse sido, poderia até ter procedido ao pagamento e afastado a responsabilidade criminal.
III. A mesma notificação intima o arguido para a prática de uma conduta que lhe está material e legalmente vedada, assim contendendo com os seus direitos de defesa.
IV. Deixa-se invocada a nulidade dessa notificação, a qual acarreta a nulidade da Sentença que sobre ela se baseia.
V. Igualmente se deixa invocada a inconstitucionalidade da interpretação da norma do artigo 105.º, n.º 6 do RGIT nos termos em que douta Sentença o faz.
VI. A pena em concreto aplicada é excessiva, pois que deveria ter sido o arguido absolvido.
VII. A pena baseou-se também numa análise incorrecta do registo criminal do arguido, considerando-o no seu aspecto parcelar, crime a crime, sem atentar que todos aqueles crimes não são mais que o desenvolvimento, por razões de organização dos processos fiscais e da Segurança Social, da mesma situação de descapitalização do arguido e da sociedade.
VIII. Pelo que deveria ter sido o arguido absolvido; mas se não o fosse nunca deveria ter havido pena de prisão, devendo a pena aplicada ser a de admoestação.
IX. Se se entendesse que deveria ser de prisão a pena a aplicar, nunca a mesma deveria ir além de 6 meses.
X. Em todo o caso, qualquer pena de prisão, mesmo que se mantenha a que foi decidida, sempre deverá ser suspensa na sua execução por estarem reunidos todos os requisitos para o efeito.
XI. Ao assim não entender, o Tribunal" a quo" violou os artigos 105.º, n.º 6 do RGIT, 32 da CRP, 71,40, 60 todos do CP.»

6 – O ISS interpôs recurso da sentença.
Pretende que se revogue a decisão recorrida na parte em que declarou extinta por inutilidade superveniente da lide a instância cível.
Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões:
«1. Resultou provado na sentença recorrida que o arguido BB, atuou voluntária, livre e conscientemente, por si e na qualidade de sócio-gerente da sociedade CC - Restauração, Ldª", sabendo que os valores não lhe pertenciam e eram devidos à Segurança Social. E assim, os arguidos foram condenados, em autoria, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. nos artigos 107º e 105.° do RGIT.
2. Em consequência da prática do crime em causa, o recorrente viu-se privado de valores a que, por força da Lei, tinha direito, ou seja, a conduta dos arguidos foi causa direta e necessária de tal privação e, deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos "CC - Restauração, Ldª:" e BB, no montante de € 37.152,16 (trinta e sete mil, cento e cinquenta e dois euros e dezasseis cêntimos) acrescido de juros de mora à taxa legal, referente à soma das quotizações deduzidas nas remunerações pagas aos trabalhadores da sociedade e que não foram entregues à Segurança Social.
3. O pedido de indemnização civil deduzido, é fundado na prática de um crime (abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido pelos artigos 107° e 105° do RGIT), e consubstanciado no facto de terem sido deduzidas no valor das remunerações devidas a trabalhadores, quotizações legalmente devidas e não entregues à Segurança Social, no prazo legal e é deduzido no processo penal respetivo por força do Princípio da Adesão, só o podendo ser em separado nos casos previstos na Lei (artigo 71.° do CPP). Pelo que, o que está em causa, nos presentes autos é a responsabilidade civil dos arguidos, emergente da prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, por que foram condenados.
4. O ISS, IP, tem interesse em obter título executivo também contra o gerente da sociedade arguida, em relação à totalidade dos montantes e períodos em causa nos presentes autos, pelo que o demandante, teria necessariamente, que demandar aquele, no âmbito do processo penal. E, inclusivamente, a sentença ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil, sempre que o pedido respetivo vier a revelar-se fundado ( ... ) (artigo 377.° do CPP).
5. A Mma Juiz a quo decidiu declarar extinta a ínstância cível, por inutilidade superveniente da lide por referência ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2014. O pedido cível deduzido em processo penal não corresponde a uma ação declarativa no sentido e para os efeitos constantes do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2014 (publicado no Diário da República, I Série, de 25/02/2014).
6. O Acórdão n.º 1/2014, é aplicável a temáticas do foro privatístico, nos domínios da responsabilidade contratual, quer a nível civil, quer laboral, não é extrapolável para os domínios da responsabilidade civil delitual/aquiliana, conforme esclarece o próprio Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 28/01/2015, no Proc. n.º 4608/04.7TDLSB.L2.S2 (processo em que está em causa, á semelhança dos presentes autos, um pedido de indemnização civil deduzido pelo ISS, IP), onde, face ao contexto do Acórdão n.? 1/2014, que foi proferido no âmbito de um processo que teve por base, uma ação declarativa intentada no Tribunal do Trabalho de Almada, se conclui "a ineludível singularidade do Acórdão n.º 1/2014, sem dúvida aplicável a temáticas reconhecidamente do foro privatístico, nos domínios da responsabilidade contratual, quer a nível civil, quer laboral, e daí não necessariamente extrapolável para os domínios da responsabilidade civil delitual/aquiliana. O pedido de indemnização deduzido pelo demandante emerge da prática de crime(. .. )"
7. Não colide com a natureza e o fundamento do processo de insolvência, a dedução de pedido cível em processo penal contra arguido insolvente, já que o demandante-credor sempre terá de reclamar o seu crédito no processo de insolvência, assim se garantindo a salvaguarda da igualdade dos credores perante a insuficiência de património do devedor. Nesse sentido vai o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 30/09/2014, Proc. n.º 344/08.3 GAOLH.E1: "Nada obsta, e não colide com a natureza e o fundamento do processo de insolvência a dedução de pedido cível em processo penal contra arguido insolvente (…) Esta solução não contraria o AUJ n.º 1/2014, pois o pedido cível deduzido em processo penal não corresponde a uma acção declarativa no sentido e para os efeitos constantes desse Acórdão. Este não se pronunciou sobre o pedido cível deduzido em processo-crime não sendo neste identificáveis as homologias comuns aos direitos e processos civil e laboral. Decidir-se que o juiz da insolvência pode reconhecer os créditos de trabalhadores não significa decidir que deve também conhecer do crime e dos seus elementos típico".
8. Acresce que, a declaração de insolvência de uma sociedade comercial, embora determine a sua dissolução, não provoca a sua extinção nem, consequentemente, a extinção do procedimento criminal que tenha sido contra ela instaurado (artigo 160.°, n. o 2 do Código das Sociedades Comerciais e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo n.? 141/13.4TATBU.C1, de 27 de janeiro de 2016) e em relação ao arguido pessoa singular, o procedimento criminal apenas se extingue por efeito da prescrição, pela morte, amnistia, perdão genérico e indulto (V. artigos 118.° e 127º do Código Penal).
9. Deste modo, salvo melhor e douta opinião e não se vislumbrando a existência de qualquer causa de inutilidade da lide, deveria a douta sentença proferida, quando considerou provada a acusação e condenou os arguidos pela prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social, ter considerado procedente, por provado, o pedido de indemnização deduzido pelo ISS, IP/Centro Distrital de Faro, e condenado os arguidos no pagamento dos montantes peticionados.»

7 – Os recursos foram admitidos, por despacho de 1 de Junho de 2017.

8 – A Ex.ma Magistrada do Ministério Público em 1.ª instância respondeu ao recurso interposto pelo arguido.
Defende que o recurso deve ser rejeitado por manifesta improcedência.
Extrai da respectiva minuta as seguintes conclusões:
«1. A representação do Administrador da insolvência circunscreve-se aos efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência, continuando os gerentes a representar a sociedade para efeitos criminais, incluindo, para efeitos de notificação do art. 105º, nº4, al. b), do RGIT;
2. No caso dos autos, as notificações efectuadas para efeitos do disposto no art. 105º, nº4, al. b), do RGIT foram regularmente efectuadas na pessoa do arguido/pessoa singular nessa qualidade e enquanto representante legal da arguida/sociedade, como devem ser, continuando a ser este o representante para efeitos criminais, não estando as notificações feridas de qualquer nulidade;
3. O cumprimento do disposto no art. 105º, nº4, al. b), do RGIT nada tem que ver com a utilização da massa insolvente, sendo questões completamente alheias e pertencentes a jurisdições diferentes;
4. A aplicação das penas visa a proteção dos bens jurídicos e a reintegração social do agente, e tem como limite máximo a medida da culpa; a medida concreta da pena deve ser achada entre o limite mínimo imposto pelas necessidades de prevenção geral (i.e., a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada), e o limite máximo permitido pela medida da culpa, no ponto ótimo em que se encontram satisfeitas as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização do arguido;
5. No caso dos autos, as necessidades de prevenção geral mostram-se elevadíssimas, considerando o tipo de crime em causa, a sua elevada prática e crescente consciencialização por parte da sociedade da gravidade das condutas e das consequências danosas para todos enquanto sociedade e em concreto para a realização das funções que cabem à Segurança Social; assim como as necessidades de prevenção especial, considerando as condenações anteriores, sobretudo, pela prática do mesmo crime em pena de prisão de prisão suspensa na sua execução com condição de pagamento, por sentença transitada em data anterior à data da prática dos factos destes autos;
6. O que, aliado à circunstância do arguido demonstrar atitude vitimizadora e auto desculpabilizadora das suas condutas e de ter sido criada uma nova sociedade com o mesmo ramo de actividade que o arguido gere, ainda que de forma não declarada, impõe que se conclua pela não existência do juízo de prognose favorável que é imposto para a decisão de suspensão da execução da pena previsto no art. 50º, nº1, do C.P;
7. Cabe aos tribunais aplicar penas que efectivamente desincentivem os arguidos de voltar a praticar crimes fiscais, por não compensar financeiramente ou por restringir a sua liberdade pessoal;
8. Resulta da fundamentação da escolha e medida da pena expressa de forma clara e exaustiva na sentença que a Mmª Juiz “a quo” fez a devida ponderação das circunstâncias que, no caso concreto, depõem a favor e contra o arguido, nos termos exigidos pelo art. 71º, do C.P;
9. A pena concretamente aplicada, de 12 meses de prisão, substituída por 72 períodos de prisão por dias livres, mostra-se a mais justa, adequada e proporcional ao caso concreto, respeitando a medida da culpa e as necessidades de prevenção geral e especial exigidas no caso, conforme dispõe o art. 71º, nºs 1 e 2, do Código Penal, pelo que deverá ser mantida, nos seus exatos termos;
10. Todos os argumentos apresentados, de ordem formal e material, se mostram manifestamente improcedentes, devendo o recurso ser rejeitado por manifesta improcedência, nos termos do disposto no art. 420º, nº1, als. a) e b), e nº3, do C.P.P.»

9 – Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, louvado na resposta, é de parecer que deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido.

10 – O objecto dos recursos reporta ao exame das seguintes questões:
(a) no caso do recurso interposto pelo arguido: (a1) da nulidade da notificação do arguido, nos termos do artigo 105.º n.º 6, do RGIT, consequente nulidade da sentença e da inconstitucionalidade da interpretação levada daquele preceito, e (a2) do erro de jure em matéria de escolha e medida da pena;
(b) no caso do recurso interposto pelo ISS: da inexistência de causa de inutilidade da lide.
II

11 – Vejamos, desde logo, por razões de cronologia preclusiva, do recurso interposto pelo ISS.

12 – O recorrente defende, muito em resumo, que, por força do princípio da adesão, o pedido que formulado, para ressarcimento das prestações tributárias em dívida devia ter sido conhecido nos autos, não havendo razão para decretar a extinção da instância cível.

13 – A Mm.ª Juiz do Tribunal recorrido fundamentou a declaração de extinção da instância cível nos seguintes termos:
«Do pedido de indemnização civil deduzido pelo Instituto de Segurança Social, I.P. Nos presentes autos, o Instituto da Segurança Social, I.P. veio deduzir pedido de indemnização civil contra os aqui arguidos peticionando a sua condenação solidária no pagamento da quantia de € 37.152,16 (trinta e sete mil cento e cinquenta e dois euros e dezasseis cêntimos) relativo ao montante das cotizações retidas e não entregues e, bem assim, no valor de € 4.795,69 (quatro mil setecentos e noventa e cinco euros e sessenta e nove cêntimos) a título de juros vencidos, acrescido, ainda, do montante atinente aos juros vincendos até efectivo e integral pagamento.
Oficiosamente foi suscitada a questão de uma eventual extinção da instância cível, por inutilidade superveniente da lide, atento o estado de insolvência dos demandados.
Foi cumprido o contraditório, tendo o Instituto da Segurança Social, I.P. se pronunciado nos termos e com os fundamentos constantes do requerimento junto a fls. 497 a 503, alegando, em síntese que:
- a fonte de obrigação do pedido de indemnização civil é a responsabilidade civil por facto ilícito e não a mera responsabilidade relativa a cotizações não pagas;
- tem interesse em obter, relativamente ao demandado (pessoa singular), um título executivo para melhor cobrança dos seus créditos;
- não tem aplicação, in casu, a jurisprudência firmada no AUJ n.º 1/2014.
Importa, pois, considerar, por um lado, que o demandado BB foi declarado em estado de insolvência por sentença proferida em 25.09.2014, no âmbito do processo n.º 18/14.65T80LH, que correu termos na Instância Central de Comércio de Olhão, J1, já transitada em julgado e, por outro, que sociedade demandada CC - Restauração, Lda. foi declarada em estado de insolvência, por sentença datada de 24.03.2015, proferida no âmbito do processo 288/15.2T80LH, que corre termos na Instância Central de Comércio de Olhão, J2, já transitada em julgado.
Apreciando e decidindo.
Aceitando-se embora que diferentes são as causas de pedir e que o fundamento do pedido de indemnização civil, pela sua natureza, entronca na comissão de um ilícito criminal, a verdade é que, salvo melhor entendimento, não se poderá olvidar que o pedido de indemnização civil não é mais do que uma acção civil enxertada no processo penal, através do qual se pretende o reconhecimento de um direito de crédito indemnizatório. E, assim sendo, a declaração de insolvência dos demandados não poderá ser indiferente à solução a adoptar, como melhor infra se explanará.
Não se olvida, e como bem frisou o demandante, que flui, claramente, do disposto nos artigos 71.º, n.º 1 e 74.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que a acção cível que adere ao processo penal é a que tem por objecto a indemnização por perdas e danos causados por um crime e só essa. Logo, se o pedido não é a indemnização por danos ocasionados pelo crime, se não se funda na responsabilidade civil do agente, pelos danos que, com a prática do crime, causou, o pedido é legalmente inadmissível no processo penal.
E, como também bem realça o demandante, o que está em causa nos presentes autos não é a responsabilização de pessoas singulares pelas dívidas tributárias da sociedade arguida, mas sim a responsabilidade civil do referido ente colectivo, e seu gerente, decorrente da prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social.
No mais, saliente-se ainda que, independentemente da efectivação da responsabilidade tributária subsidiária das pessoas singulares, através da reversão do processo de execução fiscal, o pedido de indemnização fundado na prática de um crime há-de ser deduzido por dependência da acção penal, como decorre, aliás, do princípio da adesão, estabelecido no artigo 71.º do Código Penal, só o podendo ser em separado nos casos expressamente previstos na lei.
Sucede, porém, que a questão oficiosamente levantada por este Tribunal não se pretende com a legitimidade do demandado para deduzir pedido de indemnização civil nos presentes autos - o que é quanto a nós um dado inquestionável - mas tão só quais as efectivas repercussões processuais e substantivas que a declaração de insolvência dos demandados tem no pedido de indemnização civil formulado nos presentes autos.
Ora, a questão de saber se a declaração de insolvência determinava a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide de uma acção declarativa de condenação para reconhecimento de um crédito sobre o insolvente era controversa e não vinha merecendo solução uniforme por parte da jurisprudência, até à prolação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2014 (publicado no Diário da República, I Série, de 25.02.2014), nos termos do qual " transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do artigo 287.º do C.P.C."
Nesta senda, já o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 46/2014 (publicado no Diário da República, II Série, de 21.02.2014), havia então considerado não ser inconstitucional a interpretação normativa de acordo com a qual, transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, impondo-se decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do então artigo 287.º do Código de Processo Civil.
Analisemos, agora, as normas constantes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Dispõe o artigo 46.º, n.º 1 do referido diploma legal que “[a] massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas... ", acrescentando o artigo 47.º, n.º 1, que "[declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrante da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio".
Da conjugação dos citados normativos legais decorre quanto a nós, e de forma inequívoca, que declarada a insolvência, todos os credores do devedor passam a assumir a qualidade de credores da insolvência. Em consequência, e de acordo com o artigo 90.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com o preceituado no referido Código e durante a pendência do correspondente processo.
Desta forma, podemos igualmente constatar que os credores da insolvência estão obrigados a reclamar os seus créditos no próprio processo de insolvência, mesmo que dotados de sentença definitiva que reconheça a existência do seu crédito, o que se harmoniza com o carácter de execução universal do processo de insolvência, cuja finalidade é a liquidação do património do devedor, assegurado o princípio da igualdade de tratamento entre os credores.
Acresce que, e nos termos do artigo 128.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, após a declaração de insolvência os credores têm um prazo fixado na sentença para reclamarem os seus créditos no processo de insolvência, sendo que a verificação de créditos "tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento" (n.º 3 do normativo citado). Por conseguinte, e para efeitos de obtenção do pagamento de créditos à custa da massa insolvente só releva a reclamação deduzida no próprio processo de insolvência.
Quanto à articulação entre o disposto nos artigos 85.º e 128.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda (em anotação ao último normativo citado e a propósito da apensação) que "[s]e dentro do prazo para a reclamação de créditos, esses processos [entenda-se as acções declarativas que visem o reconhecimento de um direito de crédito e a condenação de quem foi declarado insolvente a pagar] estiverem já apensos ao processo de insolvência, muito embora, em rigor, se não possa dizer, à semelhança do n.º 4 do artigo 188.º do CPEREF, que se consideram reclamados, a verdade é que não pode deixar de se entender, para efeitos do n.º 1 do artigo 129.º, que eles são conhecidos do administrador da insolvência. Mas, por maior prudência, os titulares dos créditos identificativos nos processos apensados devem também reclamá-los".
Da concatenação das normas expostas decorre, pois, que mesmo que se verifique a apensação - o que nem sequer é obrigatório - ainda assim, os credores da insolvência deverão igualmente reclamar os seus créditos no processo de insolvência; no caso de a apensação não ser requerida os créditos têm obrigatoriamente que ser reclamados nos termos fixados no artigo 128.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas sob pena de não se serem atendidos.
Concludentemente, o presente pedido de indemnização civil, no qual o demandante pretende ver reconhecido o seu crédito sobre os arguidos/demandados, não mantém qualquer interesse ou utilidade práticos, uma vez que não possibilitará jamais a satisfação do seu crédito, posto que o mesmo terá de lançar mão da reclamação de créditos ou eventualmente socorrer-se da acção prevista no artigo 146.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Realce-se ainda que mesmo que o pedido de indemnização civil prosseguisse, e o demandante obtivesse, como reclama, um título executivo contra o arguido/demandado pessoa singular, nunca poderia obter a cobrança coerciva do seu crédito com fundamento na decisão final, pois que a declaração de insolvência obsta à instauração de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência (artigo 88.º, n.º 1, 2.ª parte do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Tendo em conta que o demandante só poderá obter o pagamento do seu crédito no âmbito do processo de insolvência, não sendo relevante para tal processo a existência de sentença que reconheça o mesmo, verifica-se que o presente processo (rectius o presente enxerto cível) se tornou inadequado para a realização do direito de crédito por si invocado (vide, neste sentido, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 20.09.2011, o aresto Tribunal da Relação de Guimarães datado de 22.02.2011 a acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 16.12.2015, que aqui seguimos de perto, todos disponíveis no sítio da internet www.dgsi.pt).
Como refere José Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, Coimbra Editora, 1999, págs. 510 a 512 "a inutilidade superveniente da lide ocorre quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não pode ter qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo ou porque o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio", o que concluímos suceder no caso em apreço.
Face ao exposto, e ao abrigo do disposto no artigo 277.º aI. e) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4.º do Código de Processo Penal, declaro extinta a instância cível, por inutilidade superveniente da lide.»

14 – A questão não tem merecido tratamento unívoco na jurisprudência, podendo ver-se, em apoio da decisão revidenda, para além dos acórdãos citados, também o acórdão, do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16-12-2015 (Processo 421/14.1TAFIG.C1, disponível, como os mais citandos, em www.dgsi.pt).

15 – Sem embargo nem desdouro para a tese ali sufragada, figura-se que a questão acima editada deve merecer a resposta alinhada no acórdão, deste Tribunal da Relação de Évora, de 30-09-2014 (Processo 344/08.3GAOLH.E1), nos seguintes (transcritos) termos:
«Com todo o respeito, diverge-se desta posição [levada na decisão recorrida e nos acórdãos nela citados].
Na verdade, ela assenta no pressuposto de que, sempre que o devedor se encontre numa situação de insolvência, o lesado em processo-crime só pode fazer valer o seu direito a obter reparação no âmbito do processo de insolvência. E equipara o “pedido cível deduzido em acção penal” a uma “acção declarativa”, o “demandante cível” à “parte” em processo cível, e não distingue o “reconhecimento do crédito” da “reclamação do crédito”.
Começando pelo último aspecto, conclui-se no acórdão que a lide seria agora inútil pois o reconhecimento do crédito do demandante sempre haveria que ter (obrigatoriamente) lugar no âmbito do processo de insolvência – artigo 128.º, n.º 3.
O reconhecimento do crédito nasce com a condenação, mas um crédito já reconhecido sempre poderá vir a ser reclamado no processo de insolvência mesmo que o tenha sido fora dele, nos termos do art. 146º, nº2, alínea b) do CIRE, que trata da verificação ulterior de créditos ou de outros direitos.
Esta reclamação do crédito (mesmo do reconhecido fora do processo de insolvência, mais concretamente no processo-crime, possibilidade de que se tratará de seguida) teria sempre que processar-se no processo de insolvência, o que acautelaria, então, o princípio da igualdade dos credores.
Dito de outro modo, na posição que defendemos, a igualdade de todos os credores mantém-se acautelada, independentemente do reconhecimento do crédito se processar no âmbito do processo de insolvência ou em processo de natureza penal.
Cumpre então saber se o pedido cível em processo penal é absolutamente equiparável a uma acção declarativa, o que, a verificar-se, envolveria a obrigatoriedade do reconhecimento do crédito se processar no processo de insolvência.
No caso, a parte demandante civil surge no processo penal por força do princípio da adesão (art. 71º do Código de Processo Penal), uma vez que o lesado só pode fazer valer os seus direitos, em separado perante o tribunal civil, nas situações – excepcionais – previstas no art. 72º nº 1 do Código de Processo Penal.
No caso de indemnização fundada na prática de crime, o lesado não é livre de optar pela jurisdição e processo civis, mesmo que considere serem os que melhor servem o seu direito. Acha-se obrigado à disciplina do processo penal e a aceitar o desvio às regras gerais da competência do juiz penal, que pode, então, conhecer também da causa cível.
A causa crime e a causa cível mantêm alguma autonomia material, que não se elimina por terem de ser conhecidas e tratadas num mesmo processo. Este tratamento formal unitário deve-se a razões de economia de meios e de esforços, e serve ainda a uniformização de decisões sobre uma mesma questão de facto.
Mas justifica-se também pela especial conexão, ou precisando, pela peculiar conjugação da matéria penal com a matéria cível, que leva a parte penal a influir na decisão cível.
Pense-se, por exemplo, na determinação da matéria de facto que realiza o “facto (penalmente) ilícito” (no processo penal, obtida à luz de princípios de prova que inexistem no processo civil), na relevância de determinados elementos penalmente típicos (como o dolo penal e o seu grau de intensidade) na quantificação da indemnização, entre outros. Tudo itens a apurar em processo-crime, de acordo com as regras e princípios do processo penal, e que vão integrar também a decisão em matéria cível.
De tudo resulta que a conexão obrigatória não tem um fundamento exclusivamente formal, antes se justificando, igualmente, por razões materiais.
As regras processuais penais impõem-se então na tramitação do processo conjunto – sendo a acção cível que é recebida no processo penal e não o inverso –, o que sucede por razões decorrentes do estatuto de demandado/arguido, do exercício e reconhecimento das garantias de defesa, das diferenças existentes nos direitos probatórios penal e civil, particularmente nos princípios de prova na vertente da apreciação (in dúbio pro reo, presunção de inocência, inexistência de repartição de ónus de prova).
Assim, as nuances processuais no conhecimento da causa cível enxertada justificam-se na medida em que a forma civil se deve compatibilizar, respeitando-o, com o estatuto do demandado que é também arguido. Simultaneamente, cumpre garantir ao lesado a tutela dos seus direitos–tutela que obteria através do recurso ao processo civil – pois o art. 20º, nº1 da Constituição da República Portuguesa assegura a todos o acesso ao direito e garante-lhes o recurso aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos.
O objecto da causa cível fundada na prática do crime é, desde logo, o facto ilícito (ao lado do dano, do nexo causal e da imputação daquele ao agente). A responsabilidade civil por facto ilícito não pode deixar de incluir o conhecimento – de facto e de direito – de todos os pressupostos da responsabilidade civil, o que implica o conhecimento do facto ilícito que constitui, aqui, também um crime.
O lesado civil tem direito – constitucionalmente assegurado, repete-se –, a ver a sua pretensão apreciada por um tribunal – a totalidade da sua pretensão e não apenas parte dela. A decisão sobre a responsabilidade civil não assenta somente no reconhecimento da existência de danos e do seu quantum. Ao lesado civil tem de ser processualmente assegurada a ampla discussão de toda a matéria (factual e jurídica) relevante para decisão cível, particularmente a causa de pedir do pedido que formula. Sendo ainda certo que, no processo penal e na maioria dos casos, lhe bastará alegar e provar os danos, o que se deve à possibilidade de aproveitamento de uma actividade probatória desenvolvida pelo Ministério Público, justificativa da própria figura da adesão obrigatória.
Existem, pois, razões de ordem material que fundamentam a conexão e a adesão obrigatória, não existindo outras que, no reverso, impeçam a dedução do pedido cível contra arguido insolvente, em processo penal.
Esta solução também em nada colide com a natureza e o fundamento do próprio processo de insolvência, como processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.
Na verdade, o demandante-credor sempre terá de vir a reclamar o seu crédito no processo de insolvência, o que garantirá a salvaguarda da igualdade de oportunidade de todos os credores perante uma insuficiência de património do devedor.
Assim, identificam-se na causa penal razões materiais que justificam a conexão obrigatória – que a justificam materialmente, não apenas formalmente, insiste-se – e o consequente conhecimento da causa cível no processo penal, nos casos de responsabilidade civil emergente de crime.
A única questão sobrante é a de saber se esta posição, que se adopta, contraria o AUJ nº 1/2014, que fixou a jurisprudência seguinte:
“Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.” (D.R. n.º 39, Série I de 2014-02-25).
Este Acórdão mereceu já juízo de constitucionalidade (Ac. Tribunal Constitucional nº 42/2014, DR 11.02.2014).
Estava ali em causa o prosseguimento de acção declarativa tendente ao reconhecimento de direitos laborais (créditos salariais e direitos indemnizatórios do trabalhador).
A questão decidenda foi equacionada como sendo a de saber se a sentença transitada, que declara a insolvência da ré-empregadora, determina, ou não, a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, de acção declarativa pendente contra a insolvente.
O Acórdão não tratou, não aflorou, não analisou e não se pronunciou sobre o pedido cível deduzido em processo-crime, sendo certo que não são identificáveis aqui certas homologias que ali (nos direitos processuais civil e laboral) se reconhecem. Também materialmente as duas situações são distinguíveis, não sendo o mesmo considerar-se que o juiz da insolvência pode reconhecer os créditos de trabalhadores e o decidir-se que este pode conhecer também do crime e dos seus elementos típicos. Por último, a instância laboral, todo o processo laboral, se extinguiria por força da inutilidade superveniente da lide, já o mesmo não sucedendo com a acção penal que acolheu o pedido cível, a qual teria sempre de prosseguir para conhecimento do crime e dos seus autores.
Pelas razões desenvolvidas, considera-se que o “pedido cível deduzido em processo penal” não corresponde a uma “acção declarativa” no sentido e para os efeitos constantes do AUJ nº 1/2014. Razão pela qual, no caso sub judice, o Acórdão não obsta à improcedência da excepção invocada em recurso, inexistindo uma inutilidade superveniente da lide.»

16 – Assim, sufragando-se, por inteiro e data venia, a argumentação trazida neste acórdão, que desmerece qualquer redundante reiteração, deve concluir-se como ali se concluiu:
«I - Nos casos de responsabilidade civil emergente de crime, identificam-se razões de ordem formal e material que justificam o conhecimento da causa cível no processo penal, como sucede com a relevância dos elementos penalmente típicos na quantificação da indemnização, apuráveis à luz de princípios de direito e de prova próprios do direito processual penal.
II - Nada obsta, e não colide com a natureza e o fundamento do processo de insolvência, a dedução de pedido cível em processo penal contra arguido insolvente, já que o demandante-credor sempre terá de reclamar o seu crédito no processo de insolvência, assim se garantindo a salvaguarda da igualdade dos credores perante a insuficiência de património do devedor.
III - Esta solução não contraria o AUJ n.º 1/2014, pois o pedido cível deduzido em processo penal não corresponde a uma acção declarativa no sentido e para os efeitos constantes desse Acórdão.
IV - Este não se pronunciou sobre o pedido cível deduzido em processo-crime, não sendo neste identificáveis as homologias comuns aos direitos e processos civil e laboral. Decidir-se que o juiz da insolvência pode reconhecer os créditos de trabalhadores não significa decidir que deve também conhecer do crime e dos seus elementos típicos

17 – Em tais termos, impõe-se julgar procedente o recurso interposto pelo ISS, anular, na parcela em referência (referente à declaração de extinção da instância cível), a decisão recorrida, e determinar que, em primeira instância, se conheça do pedido formulado pelo ISS.

18 – Quanto ao recurso interposto pelo arguido, vejamos.

19 – A Mm.ª Juiz do Tribunal recorrido apreciou a matéria de facto nos seguintes termos:
«A. Factos provados
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1. A arguida pessoa colectiva é uma sociedade comercial por quotas que tem como objecto social a exploração de estabelecimentos de restauração e de bebidas, nomeadamente restaurantes, snack-bares, pastelaria, gelataria e padaria com fabrico próprio; e serviço de take-away e catering.
2. Desde a data da sua constituição até final, foi gerente único da sociedade o arguido BB, obrigando-se a mesma, perante terceiros, com a sua intervenção.
3. Era ele que efectuava os pagamentos a fornecedores e a entidades bancárias, que ordenava a facturação, que contratava empregados e que detinha poderes para processamento de salários e pagamentos à Administração Fiscal e à Segurança Social.
4. No período temporal que abaixo releva, a empresa arguida encontrava-se inscrita como contribuinte na Segurança Social no Regime Geral dos Trabalhadores por Conta de Outrem.
5. O arguido, na qualidade de gerente de facto e de direito da sociedade e no interesse desta, procedeu ao desconto das cotizações para a Segurança Social no âmbito das remunerações dos trabalhadores por conta de outrem (Regime Contributivo Geral),
6. Entre o mês de Março de 2013 e o mês de Novembro de 2014, no montante total de € 37.152,16 (trinta e sete mil, cento e cinquenta e dois euros e dezasseis cêntimos).
7. Contudo, não entregou à Segurança Social o mencionado valor, que havia efectivamente descontado das remunerações pagas.
8. Não o fez nem até ao dia 15 do mês subsequente àquele a que respeitavam, nem nos 90 dias subsequentes ao termo desse prazo.
9. Em cada um dos períodos mensais, dentro do assinalado âmbito temporal, foram regularmente entregues as folhas de remuneração aos trabalhadores.
10. Em virtude disso, o arguido BB foi notificado no dia 15 de Janeiro de 2016 - quer pessoalmente, quer enquanto representante da sociedade - que teria o prazo de 30 dias para proceder ao pagamento das contribuições em dívida. Não o fez - nem no referido prazo, nem até hoje.
11. O arguido BB quis agir do modo descrito, fazendo-o em nome e no interesse da sociedade arguida e enquanto entidade patronal, sabendo que introduzia no acervo patrimonial da empresa as quantias deduzidas das remunerações pagas.
12. Sabia que tais contribuições pertenciam à Segurança Social e que, com isso, colocavam em crise o regular funcionamento desse sistema.
13. Fê-lo, porém, com o intuito de manter a empresa em actividade, utilizando aqueles valores no pagamento das despesas correntes, designadamente no pagamento dos salários dos trabalhadores e das dívidas bancárias.
14. Agiu na sequência da crise económica que o país atravessou desde o ano de 2011 e motivado pela falta de liquidez da sociedade.
15. Actuou sempre da mesma forma, de todas as vezes que não efectuou a entrega mensal das contribuições à Segurança Social, e repetindo as descritas condutas enquanto foi conseguindo, tendo encontrado essa actuação facilitada pela inércia dos serviços da Segurança Social.
Mais se provou que:
(…)
21. O arguido foi declarado em estado de insolvência por sentença proferida em 25.09.2014, no âmbito do processo n.º 18/14.65T80LH, que correu termos na Instância Central de Comércio de Olhão, J1, já transitada em julgado.
(…)

20 – O arguido defende que é nula a notificação que (lhe) foi efectuada, nos termos e para os efeitos prevenidos no n.º 6 do artigo 105.º, do RGIT, alegando que, precedendo a declaração de insolvência, tal notificação deveria ter sido operada na pessoa do respectivo administrador.

21 – Está em causa, não o segmento normativo reportado pelo arguido (que foi revogado pela Lei n.º 68-A/2008, de 31 de Dezembro), mas antes a notificação para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º, do RGIT, para o pagamento das prestações em dívida e dos juros respectivos.

22 – Ressalvado o muito e devido respeito (e como sublinha, com incontornável proficiência, a Dg.ª respondente), não pode promiscuir-se a indisponibilidade dos insolventes para actos de disposição patrimonial relativos à massa insolvente, com a chamada ao pagamento das prestações tributárias em débito, nos termos prevenidos no artigo 105.º n.º 4 alínea b), do RGIT, através de notificação que, de modo uniforme, se tem entendido como condição objectiva de punibilidade na prefiguração do crime de abuso de confiança contra a segurança social, aqui em apreço.

23 – Não se vê que a declaração de insolvência obste a que os arguidos devedores sejam, por si, chamados ao pagamento das prestações devidas e respectivos juros, no processo crime por abuso de confiança contra a segurança social.

24 – Neste sentido se pronunciou o acórdão, deste Tribunal da Relação de Évora, de 15-10-2013 (Processo 33/10.9IDEVR.E1, relatado pelo aqui adjunto), que, data venia, se subscreve, nos seguintes (transcritos) termos:
«I - Com a declaração de insolvência, abre-se uma nova fase na vida da sociedade – a sua liquidação –, competindo ao administrador da insolvência os poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, incluindo os de representação para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência (art.º 81 n.º 4 do CIRE); II - Esta representação circunscreve-se aos aspectos de natureza patrimonial que interessem à insolvência, o que equivale a dizer que relativamente aos demais, a sua representação caberá ao seu gerente, ex vi art.º 252 n.º 1 do CSC; III – Por isso, a notificação para efeitos penais efectuada ao gerente considera-se regular; III - Enquanto não se mostrar efectuado o registo do encerramento da liquidação, a sociedade, ainda que despojada de bens, não pode considerar-se extinta: mantém personalidade jurídica, sendo-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas (art.º 146 n.º 2 do CSC); IV - A existência do crime de abuso de confiança fiscal não exige, actualmente, como elemento constitutivo, que o agente se aproprie, em proveito próprio, das quantias recebidas, bastando que, tendo-as recebido, não as tenha entregue ao Estado, nos termos legais.»

25 – Ademais, como se decidiu, também neste Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 26-09-2017 (Processo 862/15.7T9RVR.E1, em que o aqui relator foi adjunto),
«I – A declaração de insolvência de uma sociedade, embora provoque a sua dissolução, não provoca a sua extinção nem a extinção do procedimento criminal contra ela instaurado.
II – No tocante às sociedades, para efeitos de extinção do procedimento criminal, nos termos do artigo 127.º do CP, apenas o registo da sua dissolução e do encerramento da liquidação fazem extinguir aquelas.»

26 – Por outro lado, não se vê qualquer inconstitucionalidade na invocada interpretação do n.º 6 do artigo 105.º, do RGIT [rectius, da alínea b) do n.º 4 daquele preceito], por violação do disposto no artigo 32.º, da Lei Fundamental, designadamente na medida em que se não veem insuportavelmente lesados quaisquer direitos de defesa do arguido na consideração de que a representação pelo administrador da insolvência se circunscreve aos aspectos de natureza patrimonial que àquela pertinem, cabendo os demais actos ao gerente da sociedade insolvente, nos termos do disposto no artigo 252.º n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais.

27 – Nestes termos e nesta fracção, o recurso interposto pelo arguido não pode lograr provimento.

(…)

39 – Em face do decaimento total no recurso, impõe-se a condenação do arguido em custas, nos termos e com os critérios definidos nos artigos 513.º e 514.º, do CPP, e no artigo 8.º e Tabela III, estes do Regulamento das Custas Processuais.
III

40 – Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se: (a) conceder provimento ao recurso interposto pelo Instituto da Segurança Social, IP, revogando-se a sentença recorrida no segmento em que decreta a extinção da instância cível e determinando-se que a Mm.ª Juiz do Tribunal recorrido, em face dos factos sedimentados, aprecie o pedido formulado pelo demandante; (b) negar provimento ao recurso interposto pelo arguido; (c) condenar o arguido recorrente nas custas, com a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta.

Évora, 20 de Fevereiro de 2018
António Manuel Clemente Lima (relator)
Alberto João Borges (adjunto)

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