Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
180/19.1GDSRP-A.E1
Relator: BEATRIS MARQUES BORGES
Descritores: NULIDADE INSANÁVEL
INQUÉRITO CRIMINAL
COMPETÊNCIA DO JUIZ DE INSTRUÇÃO
Data do Acordão: 01/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Os princípios da legalidade e da estrutura acusatória, previstos pelo artigo 32.º, n.º 5 da CRP, proíbem o Juiz de Instrução, antes de aberta a instrução, de declarar a omissão de pronúncia de factos cuja investigação cabe ao MP, bem como declarar a existência de nulidade insanável decorrida na fase investigatória do processo.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
1. Da decisão
No Processo de Instrução n.º 180/19.1 GDSRP da Comarca de Beja Juízo de Competência Genérica de Serpa o Tribunal a quo decidiu o seguinte:
“(…) Requerimento do Assistente/Arguido (…) de fls. 524 a 529:
Nos presentes autos foi proferido despacho de encerramento de inquérito, no qual:
(i) foi o mesmo arquivado no que concerne à imputação ao Arguido (…) de um crime de violência doméstica na pessoa de (…);
(ii) foi o mesmo arquivado no que concerne à imputação a cada um dos Arguidos de um crime de violência doméstica na pessoa do outro, nomeadamente, e no que concerne ao crime imputado ao Arguido, relativamente a factos datados de fevereiro de 2019 e relatados a fls. 41 a 43 dos autos (cf. fls. 471 e 473);
(iii) foi deduzida acusação contra (...) pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo de um crime de ofensa à integridade física qualificada (previsto e punido pelos artigos 143.°, n.º 1, 145.°, n.º 1, al. a) e 2, por referência à al. b), do n.º 2, do artigo 132.°, todos do Código Penal) e de um crime de dano (previsto e punido pelo artigo 212.°, n.º 1, do Código Penal), por factos temporalmente situados em 30-05-2020;
(iv) foi deduzida acusação contra (...) pela prática, em autoria material, na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física qualificada (previsto e punido pelos artigos 143.°, n.º 1, 145.°, n.º 1, al. a) e 2, por referência à al. b), do n.º 2, do artigo 132.°, todos do Código Penal), por factos temporalmente situados em setembro de 2019.
Vem agora o Arguido (...) requerer a abertura de instrução, invocando, desde logo, a nulidade de inquérito por omissão de despacho final do Ministério Público quanto aos factos que imputou à também Arguida (...) em 01-06-2020 e em 04-06-2020, e que situou temporalmente em 30-05-2020, pugnando pela prolação de despacho que, declarando tal nulidade, ordene a remessa do processo ao Ministério Público para que ((...) complete o despacho de encerramento do inquérito) relativamente a factos nele vertidos) que não foram objeto de decisão (... )) (cf. artigos 12.° e 13.° do requerimento identificado em epígrafe).
Cumpre apreciar e decidir.
De harmonia com o disposto no artigo 119.°, alínea b), do Código de Processo Penal «Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento) além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais: ( ... ) b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público) nos termos do artigo 48.º bem como a sua ausência a actos relativamente aos quais a lei exigir a respectiva comparência; ( ... )».
Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 48.°, 53.° e 262.° do Código de Processo Penal, cabe ao Ministério Público a promoção do processo penal, realizando todas as diligências que visam investigar a existência de um crime, findas as quais encerra o inquérito, deduzindo acusação ou arquivando-o (cf. artigo 276.°, n.º 1 do Código de Processo Penal), consoante haja, ou não, indícios da prática de crime e de quem foi o seu agente (cf. artigos 283.° e 277.°, do Código de Processo Penal).
Ora, compulsados os autos, constata-se que, efetivamente, em 01-06-2020 e em 04-06-2020, o Assistente (e também Arguido) (…) participou às autoridades factos alegadamente ocorridos em 30-05-2020 (cf. fls. 342, 342 verso e 363 a 365 dos autos), os quais, como tal, passaram a integrar o inquérito. Contudo, acerca de tais factos não é tecida pelo Digno Titular da ação penal qualquer apreciação no despacho de encerramento daquela fase processual proferido em 14-12-2020.
Conclui-se, assim, que, findo o inquérito foi omitido todo e qualquer juízo relativamente à existência ou inexistência de indícios relativamente à factualidade denunciada por aquele sujeito processual como tendo ocorrido em 30-05-2020, não tendo sido deduzido, quanto aos mesmos, acusação ou despacho de arquivamento.
Ora, como considerou o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 16-06-2015, (disponível em www.dgsi.pt.processon.04508/10.1T3AMD.Ll-5). «tendo durante o inquérito sido investigados factos susceptíveis de integrar a prática de determinados crimes, impõe-se que o MP, nesta parte, aquando do despacho de encerramento do inquérito se pronuncie pela acusação ou arquivamento (total ou parcial) quanto aos mesmos».
Assim, e nada dizendo a propósito destes factos - relativamente aos quais tinha obrigação de tomar posição, cf. artigos 48.°, 49.°, n.º 1,262.° e 276.°, n.º 1 e 277.° do Código de Processo Penal - ocorreu uma omissão de pronúncia que configura «nulidade insanável, de conhecimento oficioso, prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 119.º do CPP) que determina a invalidade do despacho de encerramento do inquérito e dos termos subsequentes», cf. acórdão supra citado.
Em face do exposto, e ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 119.°, alínea b) e 122.°, ambos do Código de Processo Penal, julgo verificada a nulidade por falta de promoção do Ministério Público, declarando nulo todo o processado a partir do despacho de encerramento do inquérito e determinando, em consequência, a devolução dos autos ao Ministério Público. (…)”.

2. Do recurso
2.1. Das conclusões do MP
Inconformado com a decisão o MP interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“1) Concluídas as diligências de inquérito, o Magistrado do Ministério Público proferiu despacho de arquivamento parcial e de acusação.
2) Inconformado com essa decisão, o arguido (…) requereu a abertura de instrução "relativamente aos factos pelos quais vem acusado" e, nesse requerimento, arguiu "nulidade do inquérito relativamente aos factos denunciados em 01.06.2020 e em 04.06.2020", por considerar que o Ministério Público não se pronunciou sobre tais factos, peticionando ao tribunal recorrido:
a. Que, conhecendo da invocada nulidade do inquérito relativamente aos factos denunciados em 01.06.2020 e em 04.06.2020, se declare a mesma e ordene o seu suprimento, com a consequente remessa do processo ao MP para os fins tidos por convenientes;
b. Que, seja declarada aberta a fase de instrução nestes autos, relativamente aos factos pelos quais o arguido vem acusado pelo MP";
c. Que, seja designado dia e hora para realização do debate instrutório;
d. Que, a final, seja proferido despacho de não-pronúncia do arguido (…) relativamente aos factos pelos quais vem acusado pelo Ministério Público, com o consequente arquivamento dos autos, no que a eles respeita.
3) Perante o requerido, o Tribunal a quo decidiu "ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 119.º alínea b) e 122.º ambos do Código de Processo Penal, julgo verificada a nulidade por falta de promoção do Ministério Público, declarando nulo todo o processado a partir do despacho de encerramento do inquérito e determinando, em consequência, a devolução dos autos ao Ministério Público", e não se pronunciou sobre o requerido pelo arguido em 2.°, 3.° e 4.°, não tendo sido ordenado o prosseguimento dos autos com abertura de instrução.
4) Ao decidir por não determinar o prosseguimento dos autos declarando aberta a fase de instrução ou rejeitar o requerimento de abertura de instrução, decidindo declarar verificada uma nulidade de inquérito à margem das fases processuais legalmente fixadas, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 286.°, n.º 1, 287.°, n.º 5, 289.°, n.º 1, 297.° e 308.°, n.º 3, todos do Código de Processo Penal.
5) O cumprimento do disposto nos aludidos preceitos legais impõe que a apreciação e a declaração de uma nulidade de inquérito, por parte do Juiz de Instrução Criminal, terá de ocorrer numa concreta fase processual, quer na fase de inquérito, quer na fase de instrução, não sendo legalmente admissível que sejam apreciadas após o encerramento da fase de inquérito e antes de declarada aberta a fase de instrução.
6) Quando requerida a abertura da fase de instrução e inexistindo fundamentos para rejeitar o requerimento de abertura de instrução, o Juiz de Instrução tem o dever de declarar aberta esta fase processual e de designar data e hora para a realização do debate instrutório por se tratar de uma diligência de instrução obrigatória.
7) Só após a realização deste debate e em sede de decisão instrutória poderá o Juiz de Instrução tomar posição sobre nulidades processuais referentes ao inquérito.
8) Assim, o tribunal a quo deveria ter proferido despacho a determinar a abertura desta fase processual e ordenar a realização do debate instrutório, devendo os autos prosseguir os seus trâmites normais com a prolação, a final, de decisão instrutória.
9) Tal omissão - omissão quanto à requerida abertura de instrução e designação e realização de debata instrutório - constitui a nulidade de insuficiência de instrução, prevista no artigo 120.°, n.ºs 1 e 2, al. d), do Código de Processo Penal.
10) Deve, assim, ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida que deve ser substituída pelo despacho de recebimento ou rejeição do requerimento de abertura de instrução, por não ser legalmente admissível a possibilidade de o Juiz de Instrução decidir das nulidades de inquérito sem declarar aberta a fase de instrução e realizar o debate instrutório.
11) Sem prescindir e a título subsidiário, caso se entenda que o Juiz de Instrução poderia conhecer previamente da nulidade arguida sem declarar aberta a instrução, deve o despacho que julgou procedente a nulidade do inquérito, ser revogado e substituído por outro, que declare improcedente tal nulidade porque a apreciação de nulidades respeitantes ao inquérito são da competência, concorrente, do Ministério Público e do Juiz de Instrução Criminal, o primeiro relativamente aos actos processuais levados a cabo pelo Ministério Público nessa fase processual (artigo 263.°, do Código de Processo Penal) e o segundo relativamente aos actos jurisdicionais por si autorizados, ordenados ou praticados nessa fase processual (artigos 268.° e 269.°, do Código de Processo Penal).
12) Portanto, o arguido deveria ter requerido ao Ministério Público que se pronunciasse sobre a invocada nulidade processual, suscitando uma decisão por parte do magistrado titular do inquérito e só após ser proferida a subsequente decisão se poderia equacionar a questão de suscitar a reapreciação por um juiz da nulidade suscitada pelo arguido junto do Ministério Público, designadamente em ulteriores fases do processo.
13) Ao decidir por se pronunciar sobre a invocada nulidade, quando a mesma apenas poderia ser apreciada, em primeira linha, pelo magistrado do Ministério Público titular do inquérito, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 119.°, alínea b) e 122.°, 263.°, n.º 1,268.°, n.º 1, e 269.°, n.º 1, todos do Código de Processo Penal.
14) O cumprimento do disposto nos aludidos preceitos legais impõe que o Juiz de Instrução indeferisse o requerido pelo arguido no que respeita à invocada nulidade de inquérito.
15) Deve assim, ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida que deve ser substituída pelo despacho de recebimento do requerimento de abertura de instrução, por não ser legalmente admissível a possibilidade de o Juiz de Instrução julgar a invocada nulidade de inquérito.
16) Sem prescindir e a título subsidiário, caso se entenda que o Juiz de Instrução poderia conhecer previamente da nulidade arguida, deve o despacho que julgou procedente a nulidade do inquérito, ser revogado e substituído por outro, que declare improcedente tal nulidade, porque do despacho de encerramento do inquérito proferido nos presentes autos não resulta qualquer omissão de pronúncia, não se verificando a existência de uma nulidade processual.
17) Efectivamente, em sede de inquérito, foram apreciados todos os factos carreados para os autos.
18) O tribunal a quo ao julgar verificada a nulidade por falta de promoção do Ministério Público violou o disposto nos artigos 119.°, alínea b) e 122.°, ambos do Código de Processo Penal.
19) Diante a inexistência da nulidade do despacho de arquivamento parcial e de acusação, por não se ter ocorrido omissão de pronúncia, no respeito pelo disposto nas referidas disposições legais, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida que deve ser substituída pelo despacho de recebimento ou rejeição do requerimento de abertura de instrução.”.

2.2. Do Despacho de sustentação
O arguido não apresentou contra-alegações, mas o Tribunal a quo sustentou o despacho pela seguinte forma (transcrição):
“Nos termos do disposto no artigo 414.°, n.º 4, do Código de Processo Penal, sustenta-se a decisão recorrida, nos termos que se seguem S.m.o., e contrariamente ao invocado pelo Digno Magistrado do Ministério Público, considera este Tribunal que não se verifica a arguida nulidade por insuficiência da instrução. Com efeito, resulta dos artigos 286.°, n.º 1 e 287.°, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal que o objeto da instrução é a decisão de acusar ou arquivar do Ministério Público, versando esta fase processual sobre a factualidade pela qual o Titular da Ação Penal acusou ou que decidiu arquivar.
Ora, a nulidade insanável que foi declarada na decisão recorrida teve por fundamento, precisamente, a omissão de pronúncia quanto a factos denunciados, ou seja, a ausência quer de acusação, quer de arquivamento. Logo, quanto aos factos denunciados e não apreciados pelo Ministério Público fica prejudicada a abertura da fase de instrução por inexistência de objeto.
É certo, não se olvida, que o Arguido/Assistente requereu também a abertura de instrução relativamente a outros factos pelos quais foi acusado, pugnando pela sua não pronúncia quanto aos mesmos. Contudo, tendo este Tribunal entendido que a fase de inquérito não se mostrava completa, estava impedido, s.m.o., de declarar aberta a fase processual seguinte relativamente a outra factualidade por ser una a tramitação processual penal.
Ademais, constatada a aludida nulidade do despacho final de inquérito, a prévia abertura da fase de instrução, realização de diligências instrutórias e debate instrutório para, a final, ser declarada a nulidade do inquérito por omissão de pronúncia, configuraria prática de atos inúteis, proibida por lei.
No que concerne à invocada incompetência do Juiz de Instrução para conhecer a nulidade insanável de falta de promoção do processo pelo Ministério Público, pese embora se reconheça que, durante a fase de investigação e atenta a estrutura acusatória do processo penal, o JIC não se pode colocar numa posição de sindicante da atividade do Ministério Público, conhecendo das invalidades dos atos da competência deste, entende-se também que, terminado o inquérito com um despacho final que padece de uma omissão que impede o prosseguimento do processo (pois, como se disse, perante a ausência de decisão final quanto a determinados factos, estes não podem ser sequer objeto de instrução) e que consubstancia nulidade insanável (como tal, de conhecimento oficioso em qualquer fase do procedimento) tem o Juiz de Instrução chamado a intervir competência para dela decidir.
Quanto aos demais fundamentos de recurso, mantém-se a posição já espelhada na decisão recorrida.”.

2.3. Do Parecer do MP em 2.ª instância
Na Relação o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido de ser julgada a procedência total do recurso interposto pelo MP.

2.4. Da tramitação subsequente
Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Objeto do recurso
De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

2. Questão a examinar
A única questão a decidir consiste em apurar se o juiz de instrução tem competência para declarar uma nulidade insanável ocorrida durante o inquérito, sem prévia abertura da instrução, devidamente requerida e por si rejeitada.

3. Apreciação do recurso interposto pelo MP
Apreciemos, então, a questão suscitada pelo MP assinalada no ponto 2..
3.1. Contradizendo a redação expressa do artigo 287.º, n.º 3 do CPP, o JIC rejeitou a abertura da instrução para apreciar uma nulidade que teria sido cometida durante o inquérito, sem que a situação se enquadrasse num dos três casos admitidos por aquele normativo[1].
O despacho recorrido não teve em consideração que o processo penal tem estrutura acusatória de acordo com o artigo 32.º, n.º 5 da CRP[2].
Ter o processo penal estrutura acusatória significa, de acordo com a CRP[3], a proibição de acumulações orgânicas de competências a montante do processo penal iniciado com a investigação do MP, a quem cabe deduzir a acusação ou arquivar o processo, definindo o seu objeto.
Se o juiz de instrução tivesse competência para investigar os crimes denunciados na fase do inquérito ao MP, permitir-se-lhe ia, que, concomitantemente com o MP e nessa fase, apreciasse a investigação, quando, nessa altura e de acordo com o princípio da legalidade, cabe à própria hierarquia do MP apreciar a validade ou invalidade dos atos praticados pela magistratura do Ministério Público.
A atuação do Tribunal recorrido confundiu a função do inquérito e da instrução, cumulou as competências orgânicas do MP com as do Juiz de Instrução e atribuiu ao JIC competências para a prática de atos que os artigos 17.º, 268.º e 269.º do CPP não lhe atribuem.
Os princípios da legalidade e da estrutura acusatória, previstos pelo artigo 32.º, n.º 5 da CRP, proíbem o Juiz de Instrução, antes de aberta a instrução, de declarar a omissão de pronúncia de factos cuja investigação cabe ao MP, bem como declarar a existência de nulidade insanável decorrida na fase investigatória do processo.
A este propósito cabe, ainda, acrescentar poderem as nulidades insanáveis, a que se refere o artigo 119.º do CPP, ser declaradas em qualquer momento do procedimento, exigindo-se, todavia, a avaliação da prévia competência de quem pratica os atos, pressupondo só ter competência para declarar a nulidade de atos praticados durante a investigação (como é o caso da omissão de atos que deveriam ter sido investigados), o órgão com competência para a determinar.
O princípio constitucional do processo penal de estrutura basicamente acusatória, significa, no plano material, a distinção entre acusação, instrução e julgamento. Proibindo-se, assim, acumulações orgânicas a montante do procedimento no seu todo, ou seja, no caso, quando o Juiz de Instrução possa ser também o órgão que avalie a legalidade da atuação do órgão acusatório, o qual durante o inquérito é, necessariamente, o MP.

3.2. Sustenta, ainda, a decisão recorrida que se o Juiz de Instrução não declarasse a nulidade insuprível da omissão de investigação dos factos denunciados, antes da abertura da instrução, estaria a praticar ato que, conduziria posteriormente e durante a instrução, a realizarem-se por seu turno atos também eles inúteis.
O problema suscitado pelo despacho de sustentação é em rigor de filosofia na aplicação prática do direito.
Não se pode colocar a questão da utilidade ou inutilidade superveniente de atos se estiver vedado, por falta da respetiva competência e previamente, ao Juiz de Instrução a competência para praticar o ato a que se seguiriam os posteriores presumíveis atos inúteis.
A averiguação da competência para praticar um ato tem precedência sobre a apreciação de julgar um ato como inútil.
Por isso, o despacho de sustentação da entidade recorrida e os fundamentos invocados não podem justificar que um Juiz de Instrução, sem competência para praticar um ato, possa julgar e decidir sobre a sua utilidade ou inutilidade posterior.
O Juiz de Instrução tem de se pronunciar, em regra, aberta a instrução, salvo nos casos admitidos por lei expressa, sobre os factos apurados no inquérito, mas fá-lo na fase de instrução e depois desta ser aberta e pode nessa fase conhecer de qualquer nulidade (artigo 308.º, n.º 3 do CPP), mas a decisão instrutória é sempre nula se se pronunciar alterando substancialmente o objeto do processo.

3.3. O despacho recorrido, ao considerar, de certa forma, o Juiz de Instrução como o sindicante permanente da atividade do MP na fase de inquérito não pode, assim, manter-se.
O Juiz de Instrução não podia ordenar a repetição de atos pelo MP na linha de investigação de atos denunciados àquele órgão acusatório não investigados.
Tendo o juiz de instrução o dever de declarar aberta a instrução, por não estar em causa qualquer situação que permitisse a sua rejeição, deveria tê-lo feito realizando as posteriores diligências instrutórias requeridas.
Revoga-se, desta forma, a decisão recorrida, devendo ser substituída pelo despacho de recebimento ou rejeição da instrução quando aos factos denunciados, por não ser legalmente admissível o Juiz de Instrução, declarar uma nulidade ocorrida durante o inquérito, sem ter aberto a instrução requerida, assim se dando provimento ao recurso interposto pelo MP.

III. DECISÃO
Nestes termos e com os fundamentos expostos:
1. Dá-se provimento ao recurso interposto pelo MP e em consequência, revoga-se o despacho recorrido, a ser substituído por despacho que rejeite ou admita a instrução requerida, seguindo-se as demais diligências instrutórias.
2. Sem custas.

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos signatários.
Évora, 21 de setembro de 2021.
Beatriz Marques Borges - Relatora
Maria Clara Figueiredo
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[1] O artigo 287.º do CPP sob a epigrafe “Requerimento para abertura da instrução” no seu n.º 3 estabelece o seguinte: “(…) O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.”.
[2] O artigo 32.º, n.º 5 da CRP sob a epígrafe “Garantias de processo criminal” prescreve “5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.”
[3] CANOTILHO, Gomes; MOREIRA, Vital – “Constituição da República Portuguesa Anotada. Coimbra Editora. 1993. 3.ª edição revista. P. 206. ISBN 972-32-0592-0.