Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
298/16.2T8OLH.E1
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: ARRENDAMENTO
TRANSMISSÃO DA POSIÇÃO DO ARRENDATÁRIO
CADUCIDADE
NRAU
Data do Acordão: 09/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I - Estando em causa a apreciação dos efeitos operados pela morte da arrendatária na relação contratual, no sentido de averiguar se ocorreu a caducidade do contrato de arrendamento ou a transmissão da posição contratual da falecida, é aplicável o regime legal em vigor à data do óbito;
II – Tratando-se de contrato de arrendamento para habitação celebrado antes da entrada em vigor do NRAU, aplica-se o regime previsto no artigo 57.º da Lei n.º 6/2006, de 27-02, na redação emergente da Lei n.º 31/2012, de 14-08, em vigor à data do óbito da arrendatária, ocorrido a 21-02-2014;
III - O descendente em 2.º grau, ainda que faça prova da alegada vivência em economia comum com a arrendatária no locado há mais de 10 anos, não se encontra em qualquer das situações previstas no indicado preceito, não lhe assistindo o direito à transmissão por morte da posição contratual.
Decisão Texto Integral:







ARRENDAMENTO
NOVO REGIME
TRANSMISSÃO DO ARRENDAMENTO

Processo n.º 298/16.2T8OLH.E1
Juízo de Competência Genérica de Olhão
Tribunal Judicial da Comarca de Faro

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


1. Relatório

BB e mulher, CC – entretanto falecida, tendo o autor sido declarado habilitado como sucessor, para prosseguir os termos da demanda –, intentaram a presente ação declarativa, com processo comum, contra DD, todos melhor identificados nos autos, formulando os pedidos seguintes: a) se reconheça o direito de propriedade dos autores sobre o prédio urbano destinado a habitação, sito na Rua … n.ºs … e …, em Olhão, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ….º da freguesia e concelho de Olhão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o n.º …; b) se condene a ré a proceder à restituição imediata aos autores do referido prédio urbano, livre de pessoas e bens, em perfeito estado de conservação e habitabilidade, e sem defeitos ou vícios; c) se condene a ré a pagar aos autores uma indemnização em consequência da ocupação ilegítima do imóvel, na medida em que estão impossibilitados do seu uso, gozo e fruição, impedidos, nomeadamente, de o arrendar e dele retirarem os seus rendimentos, num montante nunca inferior a € 10 por dia, desde a data da citação da ré até à restituição do referido imóvel, livre de pessoas e bens e sem quaisquer danos, defeitos ou vícios.
Alegam, em síntese, que são donos do prédio urbano em causa, o qual esteve arrendado desde 29-01-1964 até à data do óbito da inquilina EE, falecida em 21-02-2014, no estado de viúva de FF, sendo que a única filha da inquilina reside em França e não tem interesse no arrendado, encontrando-se o imóvel ocupado pela ré, a qual recusa entregá-lo aos autores e pretende assumir a qualidade de arrendatária.
A ré contestou, defendendo-se por exceção – invocando a transmissão da posição de arrendatária por efeito de vivência no locado, há mais de 10 anos, em economia comum com a arrendatária sua avó à data da morte desta – e por impugnação, como tudo melhor consta do articulado apresentado.
Notificados para o efeito, os autores apresentaram articulado, no qual se pronunciam no sentido da não verificação da exceção invocada na contestação.
Foi realizada audiência prévia, na qual, após comunicação de que o estado do processo permite decidir as questões suscitadas e conhecer do mérito da causa, se facultou às partes a discussão de facto e de direito, conforme consta da respetiva ata.
Foi proferida decisão, datada de 14-11-2017, na qual se fixou o valor à causa, se proferiu despacho saneador, após o que se discriminou os factos considerados provados e se conheceu do mérito da causa, tendo sido considerada não verificada a exceção arguida pela ré e a ação julgada parcialmente procedente, nos termos seguintes:
Por todo o exposto, e ao abrigo das disposições legais citadas, julgo parcialmente procedente, por parcialmente provada, a presente acção e, em consequência:
A. Condeno a Ré a reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio urbano destinado a habitação, sito na Rua … …, n.º … e …, composto por uma morada de casas térreas com quatro compartimentos e quintal, com área total de 47,80 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o n.º …/…, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia e concelho de Olhão;
B. Condeno a Ré a restituir aos Autores o prédio urbano identificado em A., livre de pessoas e bens;
C. Absolvo a Ré do demais peticionado.
*
Custas pelos Autores e pela Ré, na proporção de 1/3 (um terço) para os Autores e 2/3 (dois terços) para a Ré (cfr. artigo 527.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Inconformada, a ré interpôs recurso desta decisão, pugnando para que seja revogada e determinada a baixa dos autos ao Tribunal de 1.ª instância, para elaboração de novo despacho saneador, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«A. A primeira questão que se coloca a V. Exas., é: Se o despacho recorrido refere em diversas passagens que artigo 57.º faz parte do NRAU, sendo certo que o artigo 57.º é citado no despacho recorrido como artigo 57.º do NRAU, faz parte da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, por estar incluído na Secção III do Capítulo II do Titulo II da referida Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, Novo Regime do Arrendamento Urbano / NRAU,
B. E se segundo o n.º 2 do artigo 60.º da mesma Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro refere que as remissões legais para RAU consideram-se feitas para os lugares equivalentes do NRAU,
C. Porque é que a remissão constante do artigo 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio, não se considera feita para o artigo 57.º da Secção III do Capítulo II do Titulo II da referida Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, quando as próprias epígrafes do artigo 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio, e do citado artigo 57.º da Secção III do Capítulo II do Titulo II da referida Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, coincidem na menção à "Transmissão por morte do arrendamento", e na realidade e factos jurídicos a serem regulados;
D. A segunda questão que se submete a V. Exas. é, se o artigo 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio não foi revogado, como sucedeu, por exemplo com o artigo 7.º da mesma Lei n.º 6/2001 de 11 maio, por efeito do artigo 16.º da Lei n.º 82-E/14 de 31 de dezembro, como resulta do análise do Diário da República Eletrónico porque é que não se aplica ao disposto no artigo 57.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro;
E. A terceira questão que se submete é, se o artigo 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio vigorou durante a vigência do RAU, e se passou a vigorar na redacção do artigo 1106.º Código Civil para as relações contratuais futuras, e se o artigo 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio, não foi alvo de expressa revogação pelo artigo 60.º n.º 1 da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, porque é que não vigora para o presente contrato e por efeito de remissão legal para o artigo 57.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio, através do n.º 2 do artigo 60.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio;
F. As três questões que acima se colocam, relacionam-se com o entendimento prosseguido pelo despacho ora recorrido no excerto que acima se transcreveu, e que conduziu à conclusão de não transmissão da posição de arrendatária da avó da Ré para a Ré, num contexto de coabitação em economia comum no locado que corresponde ao imóvel objecto do processo.
G. Ressalvando o maior respeito por entendimento contrário, a ora Recorrente entende que a resposta às três questões que acima se colocam, coincidem quanto à aplicabilidade do previsto no artigo 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio ao previsto no citado artigo 57.º da Secção III do Capítulo II do Titulo II da referida Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, que até coincidem na menção à "Transmissão por morte do arrendamento", por efeito do artigo 60.º n.º 2 da mesma Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro.
H. E como tal, entende a ora Recorrente que, nos termos dos artigos 26.º n.º 2 e 57.º da mesma Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, o disposto no artigo 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio se aplica in casu, com a consequência de se julgar transmitida a posição de arrendatária da avó da Ré, para Ré, e tal facto ser uma excepção peremptória ao direito arrogado para a entrega do imóvel objecto dos presentes autos.
I. E entende a ora Recorrente, que ao não respeitar o comando do n.º 2 do artigo 60.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, de remeter o previsto no artigo 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio quanto ao RAU, para o lugar equivalente do NRAU, que é o artigo 57.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro NRAU, para efeitos de aplicá-lo in casu e julgar transmitido o arrendamento da avó da Ré, para a pessoa da Ré que vivia em económica comum com a sua avó pelo menos desde 2003, o despacho recorrido violou as normas do artigo 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio, dos artigos 26.º n.º 2, 57.º n.º 1, 60.º n.º 2 e 62.º todos da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro NRAU.
J. Faz - se notar que a Lei n.º 31/2012 de 14 de Agosto, não alterou o disposto nos artigos 59.º e 60.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, e que o artigo 60.º n.º 1 da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, não revogou expressamente o previsto na Lei n.º 6/2001 de 11 de maio.
K. Da leitura do diploma que corporiza a Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, verifica-se, de facto, que o citado artigo 57.º se encontra ínsito na Secção III do Capítulo II do Titulo II da referida Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro (Novo Regime do Arrendamento Urbano / NRAU), assim quando, o n.º 2 do artigo 26.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro remete para as regras constantes do artigo 57.º da mesma Lei, fá-lo para um artigo do NRAU, e fá-lo ao mesmo tempo que o n.º 2 do artigo 60.º da mesma Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro refere que as remissões legais para RAU consideram-se feitas para os lugares equivalentes do NRAU.
L. Se existe uma remissão constante do artigo 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio, para o artigo 85.º n.º 1 do RAU, sob a epigrafe "Transmissão do arrendamento por morte" com a previsão da transmissão do arrendamento por morte do arrendatário para pessoa que com ele vivessem em economia comum há mais de dois anos, e se o próprio artigo 57.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro NRAU, tem a epigrafe "Transmissão por morte no arrendamento para habitação", então, entende-se que o artigo 57.º da Lei n.º 6/2006 de 27 novembro NRAU, recebe duas remissões, uma do artigo 26.º n.º 2 da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, e outra do artigo 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio, via n.º 2 do artigo 60.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro.
M. E quando se interpreta o artigo 57.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro NRAU, para o aplicar o in casu, interpreta-se com o resultado das duas remissões que acima se mencionaram. É o que resulta do disposto nos artigos 26.º n.º 2 e 60.º n.º 2 da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, e 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio, e é o que resulta das epigrafes do citado artigo 57.º da Secção III do Capítulo II do Titulo II da referida Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, e do artigo 6.º Lei n.º 6/2001 de 11 maio, "Transmissão por morte no arrendamento para habitação" e "Transmissão do arrendamento por morte".
N. Por isso, entende a Recorrente que para efeitos dos presentes autos, à luz dos artigos 26.º n.º 2 e 60.º n.º 2 da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, e 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio, se deve ler no artigo 57.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro NRAU, o resultado de uma remissão para RAU, que por efeito do n.º 2 do artigo 60.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro conduz para o artigo 57.º do NRAU, e assim o artigo 57.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro deve ser lido, como contendo a alínea prevista no artigo 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio, ou seja: O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobrevive: Pessoa que com ele vivesse em economia comum há mais de dois anos.
O. Cabe esclarecer novamente que, ao contrário do entendimento do despacho recorrido, com a entrada em vigor da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, a remissão do artigo 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio passa fazer-se por efeito do artigo 60.º n.º 2 da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro para os lugares equivalentes do NRAU, que por identificação de epígrafes, e por identificação de objecto se fazem do artigo 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 maio, para o artigo 57.º do NRAU.
P. Note-se que o artigo 62.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro republicou parte do Código Civil, e esta parte do Código Civil republicada ficou como anexo à Lei n.º 6 /2006 de 27 de novembro, e se o artigo 1106.º do Código Civil a que se refere o despacho recorrido, como destino da remissão do artigo 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio, está num anexo da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, anexo este, que corresponde a uma republicação do Código Civil que foi aprovado pelo Decreto Lei n.º 47 444 de 25 de novembro de 1966, Percebe-se que o n.º 2 do artigo 60.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro redireciona sim, as remissões legais do RAU para o NRAU, ou seja para a Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro.
Q. E assim o n.º 2 do artigo 60.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro não manda remeter as remissões legais do RAU para o Código Civil, ou para as disposições legais republicadas pelo artigo 62.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, ou para o anexo da Lei n.º 6 /2006 de 27 de novembro, a remissão constante do n.º 2 do artigo 60.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, direciona o previsto no artigo 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio para o artigo 57.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro NRAU.
R. Acabando o despacho recorrido por violar o disposto nos artigos 60.º n.º 2 e 62.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, ao considerar que o artigo 60.º n.º 2 da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro remete a norma do artigo 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio para o artigo 1106.º do Código Civil.
S. Porque o artigo 1106.º do Código Civil, estando incluído num conjunto de disposições legais republicadas por efeito do artigo 62.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, sob a parte do capitulo IV do titulo II do livro II do Código Civil em anexo à presente lei, não depende, nem necessita de remissões legais que anteriormente se consideravam realizadas para o RAU, constitui o trabalho acabado de síntese que o Legislador quis no Código Civil, logo o artigo 1106.º do Código Civil aplica-se pela sua própria redacção, e por efeito da republicação pelo previsto no artigo 62.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, já sintetiza o previsto no artigo 85.º da redacção original do RAU conferida pelo Decreto - Lei n.º 321-B/90 de 15 de outubro e o previsto no artigo 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio.
T. Da leitura deste preceitos legais resulta que o artigo 57.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro corresponde à aplicação do artigo 85.º do RAU na redacção original, por manifesta identificação das situações jurídicas previstas nas duas disposições legais ora em análise, porquanto se vislumbra que até situação da união de facto que já estava prevista no artigo 85.º RAU na redacção original, é objecto de tratamento no artigo 57.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, percebendo-se que o artigo 57.º do NRAU foi redigido em função do que estava previsto no artigo 85.º do RAU, procurando-se acautelar e prever as situações já previstas desde de 1990.
U. O que se verifica que falta no artigo 85.º RAU na redacção original de 1990 e ao artigo 57.º do NRAU, é a situação prevista no artigo 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 maio, e dai compreendermos que as remissões legais redirecionadas do RAU para o NRAU, previstas no n.º 2 do artigo 60.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, não possam ter como destino de remissão os artigos da republicação do artigo 62.º do mesmo diploma que constitui um trabalho de síntese final.
V. Mas sim as normas do NRAU, como o artigo 57.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, artigo 57.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, que mantendo os casos previstos no artigo 85.º do RAU na redacção original, como já se demonstrou, por coerência lógica e sistemática, recebe o previsto no artigo 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio, como remissão legal que era feita para o RAU, e que por efeito do n.º 2 do artigo 60.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, passa a ser feita para NRAU, para o lugar equivalente do NRAU, que é por excelência o artigo 57.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro NRAU.
W. Ao artigo 1106.º do Código Civil, o intérprete não tem de fazer remissão legal do RAU por efeito do artigo 60.º n.º 2 da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, porque o artigo 1106.º faz parte do Código Civil, e o mesmo não precisa de remissão porque a mesma seria redundante atento à redacção do referido artigo 1106.º do Código Civil, o disposto quer no artigo 26.º, quer no artigo 59.º, quer no artigo 60.º, todos da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, não afastam a aplicação às normas transitórias do NRAU, das remissões legais para o RAU que passam a ser feitas para o NRAU nos lugares equivalentes.
X. O disposto no artigo 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio subsistiu no ordenamento jurídico através da vigência da sua remissão para o RAU. O disposto no artigo 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio subsiste no ordenamento jurídico através da manutenção da remissão para o artigo 57.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, por efeito do previsto no n.º 2 do artigo 60.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, quando prevê que as remissões legais para RAU consideram-se feitas para o lugar equivalente do NRAU, que é por excelência o artigo 57.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro. E o disposto no artigo 6.º da Lei nº 6/2001 de 11 de maio subsistirá no ordenamento jurídico através da redacção conferida ao artigo 1106.º do Código Civil pelo artigo 62.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro que republicou o artigo 1106.º do Código Civil como parte do Capitulo IV, do Titulo II, do Livro II do Código Civil.
Y. Pelo que à terceira questão que se submete a V. Exas., o entendimento da ora Recorrente é que se o artigo 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio vigorou durante a vigência do RAU, e se passou a vigorar na redacção do artigo 1106.º Código Civil para as relações contratuais futuras, e se o artigo 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio não foi alvo de expressa revogação pelo artigo 60.º n.º 1 da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro, não existe nenhuma razão para não vigorar para o presente contrato e por efeito de remissão legal para o artigo 57.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio, através do n.º 2 do artigo 60.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio;
Z. Concluindo-se que o despacho recorrido violou as normas do artigo 6.º da Lei n.º 6/2001 de 11 de maio, dos artigos 26.º n.º 2, 57.º n.º 1, 60.º n.º 2 e 62.º todos da Lei n.º 6/2006 de 27 de novembro NRAU.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes:
i) do regime aplicável;
ii) da caducidade do contrato de arrendamento;
iii) da transmissão por morte da posição de arrendatário.
Corridos os vistos, cumpre decidir.


2. Fundamentos

2.1. Decisão de facto

A 1.ª instância considerou provados os factos seguintes:
1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão, sob o n.º …/…, o prédio urbano destinado a habitação, sito na Rua … …, n.º … e …, composto por uma morada de casas térreas com quatro compartimentos e quintal, com área total de 47,80 m2, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia e concelho de Olhão.
2. Pela Ap. 3639 de 18.03.2011 foi inscrita a aquisição, por sucessão hereditária de GG e HH, da propriedade do prédio urbano referido em 1 a favor de CC casada no regime de comunhão geral de bens com BB.
3. O prédio referido em 1 foi dado de arrendamento a FF e EE, em data anterior a 2003, ano em que faleceu o arrendatário FF.
4. Com o falecimento de FF sucedeu-lhe, na posição de arrendatário, a sua viúva EE.
5. EE faleceu em 21 de Fevereiro de 2014, no estado de viúva de FF.
6. Após o falecimento da arrendatária EE, a Ré, sua neta, continuou a ocupar o prédio referido em 1.
7. A Ré recusa-se a entregar aos Autores o prédio referido em 1.
8. O prédio referido em 1 foi avaliado pelas Finanças em 2015, tendo-lhe sido atribuído o valor patrimonial atual de € 13.460,00.

2.2. Apreciação do objeto do recurso

Vem posta em causa na apelação a decisão que considerou não verificada a exceção arguida pela ré, por se ter entendido que não decorre da factualidade que alega a transmissão da posição de arrendatária que invoca e, em consequência, que ocorreu a caducidade por morte da arrendatária do contrato de arrendamento em causa, assim não dispondo a recorrente de título que legitime a detenção do prédio urbano reivindicado nos presentes autos, a cuja restituição foi condenada.
Não questionando a recorrente o direito de propriedade dos autores sobre o locado, cumpre averiguar se o contrato de arrendamento para habitação a que aludem os pontos 2. e 3. de 2.1., celebrado em data anterior a 2003, caducou por morte da arrendatária ocorrida a 21-02-2014 ou se, a provar-se a factualidade alegada, decorre da vivência em economia comum com a arrendatária há mais de dez anos, no locado, à data da respetiva morte, a transmissão para a ré da posição contratual de arrendatária.
O artigo 1051.º do Código Civil estabelece várias causas de caducidade do contrato de locação, aplicáveis ao contrato de arrendamento, entre elas a morte do arrendatário, situação prevista na alínea d) do preceito. Todavia, essa caducidade não ocorre se o contrato de arrendamento se transmitir, pelo que cumpre aferir se, no caso presente, ocorreu a transmissão da posição de arrendatário.
A apreciação da questão suscitada impõe a prévia determinação do regime aplicável, dada a sucessão de leis no tempo.
Estando em causa a apreciação dos efeitos operados pela morte da arrendatária na relação contratual, no sentido de averiguar se ocorreu a extinção do contrato ou a transmissão da posição contratual da falecida, é aplicável o regime legal em vigor à data do óbito, conforme decorre do disposto no artigo 12.º, n.º 1, do Código Civil. Considerando que a transmissão da posição contratual invocada pela ré se baseia na morte da arrendatária sua avó, o direito em causa, a existir, nasceu na esfera jurídica da ré no momento de tal falecimento, assim devendo ser aplicada a lei em vigor nessa data. [1][2]
Estabelece o artigo 59.º, n.º 1, da Lei n.º 6/2006, de 27-02 (NLAU), que o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), “se aplica aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias”; por outro lado, resulta do estatuído no artigo 65.º, n.º 1, da mesma Lei, que aquele regime entrou em vigor (“120 dias após a sua publicação”) a 28-06-2006.
Tendo o contrato em causa sido celebrado antes da entrada em vigor do NRAU e subsistindo nessa data a relação jurídica dele emergente, cumpre atender ao regime transitório fixado para os antigos contratos de arrendamento urbano.
No que respeita ao regime da transmissão por morte da posição contratual do arrendatário habitacional, consagra o NRAU duas diferentes soluções: a prevista no artigo 1106.º do Código Civil, aplicável aos arrendamentos celebrados após a sua entrada em vigor, e a constante do artigo 57.º da NLAU, aplicável aos arrendamentos celebrados anteriormente, quer tenham sido celebrados antes quer depois da entrada em vigor do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15-10, conforme resulta do disposto no artigo 26.º, n.º 1, aplicável por força do estatuído nos artigos 27.º e 28.º, n.º 1, da citada Lei. [3][4]
Esclarece o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-06-2013, proferido na revista n.º 653/07.9TBTVR.E1.S1-1.ª Secção (relator: Gregório Silva Jesus) – cujo sumário se encontra publicado em www.stj.pt –, que a explicação para tal dicotomia residirá, para o regime introduzido pelo artigo 1106.º do Código Civil, no sistema da renovação automática dos contratos de arrendamento para habitação, ao passo que o regime transitório do artigo 57.º do NRAU visou aperfeiçoar as regras de transmissão do arrendamento, no âmbito do cariz vinculístico da grande maioria dos contratos a que era aplicável, diminuindo em algumas circunstâncias a possibilidade de transmissão do arrendamento.
No caso presente, tratando-se de um contrato de arrendamento para habitação celebrado em data anterior a 2003, isto é, antes da entrada em vigor do NRAU, aplica-se o regime previsto no artigo 57.º da NLAU (na redação emergente da Lei n.º 31/2012, de 14-08, em vigor à data do óbito da arrendatária, ocorrido a 21-02-2014), norma que regula a transmissão por morte no arrendamento para habitação nos termos seguintes:
1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado;
b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano;
c) Ascendente em 1.º grau que com ele convivesse há mais de um ano;
d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior;
e) Filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.
2 - Nos casos do número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respectivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o ascendente, filho ou enteado mais velho.
3 - O direito à transmissão previsto nos números anteriores não se verifica se, à data da morte do arrendatário, o titular desse direito tiver outra casa, própria ou arrendada, na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respetivo concelho quanto ao resto do País.
4 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, quando ao arrendatário sobreviva mais de um ascendente, há transmissão por morte entre eles.
5 - Quando a posição do arrendatário se transmita para ascendente com idade inferior a 65 anos à data da morte do arrendatário, o contrato fica submetido ao NRAU, aplicando-se, na falta de acordo entre as partes, o disposto para os contratos com prazo certo, pelo período de 2 anos.
6 - Salvo no caso previsto na alínea e) do n.º 1, quando a posição do arrendatário se transmita para filho ou enteado nos termos da alínea d) do mesmo número, o contrato fica submetido ao NRAU na data em que aquele adquirir a maioridade ou, caso frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou de cursos de ensino pós-secundário não superior ou de ensino superior, na data em que perfizer 26 anos, aplicando-se, na falta de acordo entre as partes, o disposto para os contratos com prazo certo, pelo período de 2 anos.
Não se encontrando a recorrente, descendente em 2.º grau da arrendatária, em qualquer das situações previstas nas alíneas do n.º 1 deste preceito, não lhe assiste o direito à transmissão da posição de arrendatária, ainda que faça prova da alegada vivência em economia comum há mais de 10 anos, pelo que cumpre concluir pela caducidade do contrato de arrendamento por morte da avó da ré, conforme considerou a decisão recorrida.
A 1.ª instância conheceu do mérito da causa no despacho saneador, por se ter entendido que o estado do processo o permitia, sem necessidade de mais provas, conforme previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 595.º do Código de Processo Civil.
Esta desnecessidade de mais provas verificar-se-á, entre outras situações, quando não existam factos controvertidos, estando em causa unicamente matéria de direito, mas também nos casos em que da factualidade controvertida não resulte o efeito jurídico pretendido pela parte que a alegou, não assumindo tal matéria de facto relevo à luz das várias soluções plausíveis da questão de direito. Nestes casos, perante a inconcludência do pedido, não se podendo retirar da matéria de facto alegada o efeito jurídico pretendido, esclarece José Lebre de Freitas (A Ação Declarativa Comum: À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, p. 183) que “é inútil produzir prova sobre os factos alegados, visto que eles nunca serão suficientes para a procedência do pedido”.
Pretendendo a recorrente lhe seja reconhecido o direito à transmissão por morte da posição contratual do arrendatário habitacional, mediante a invocação de factualidade integradora de fundamento ao qual a lei aplicável não atribui tal efeito, a apreciação da pretensão deduzida não exige a produção de prova sobre tal factualidade, assim podendo concluir-se que o estado do processo permitia o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador, nos termos efetuados pela decisão recorrida.
Improcede, assim, a apelação.


Em conclusão:
I - Estando em causa a apreciação dos efeitos operados pela morte da arrendatária na relação contratual, no sentido de averiguar se ocorreu a caducidade do contrato de arrendamento ou a transmissão da posição contratual da falecida, é aplicável o regime legal em vigor à data do óbito;
II – Tratando-se de contrato de arrendamento para habitação celebrado antes da entrada em vigor do NRAU, aplica-se o regime previsto no artigo 57.º da Lei n.º 6/2006, de 27-02, na redação emergente da Lei n.º 31/2012, de 14-08, em vigor à data do óbito da arrendatária, ocorrido a 21-02-2014;
III - O descendente em 2.º grau, ainda que faça prova da alegada vivência em economia comum com a arrendatária no locado há mais de 10 anos, não se encontra em qualquer das situações previstas no indicado preceito, não lhe assistindo o direito à transmissão por morte da posição contratual.


3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Notifique.

Évora, 13-09-2018
Ana Margarida Leite
Silva Rato
Mata Ribeiro

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[1] Em anotação ao artigo 1051.º do Código Civil, explicam Laurinda Gemas/Albertina Pedroso/João Caldeira Jorge (Arrendamento Urbano – Novo Regime Anotado e Legislação Complementar, 3.ª edição, 2009, Lisboa, Quid Juris, p. 239) que “sendo as regras sobre caducidade do contrato normas de direito substantivo, por força do disposto nos art.ºs 59.º, n.º 1, da NLAU, e 12.º do CC, o regime da caducidade do contrato de arrendamento é o resultante da lei vigente à data em que ocorre o facto que a determina, e não o decorrente da lei em vigor à data da celebração do mesmo”.
[2] Neste sentido, podem indicar-se, a título exemplificativo, os acórdãos seguintes: o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-05-2014, proferido na revista n.º 7507/06.4TBCSC.L1.S1 - 1.ª Secção (relator: Gregório Silva Jesus), o acórdão da Relação do Porto de 29-05-2008, proferido no processo n.º 0832054 (relator: Ataíde das Neves), os acórdãos desta Relação de Évora de 14-05-2015, proferido no processo n.º 4633/11.1TBPTM.E1 (relator: Bernardo Domingos), de 30-06-2016, proferido no processo n.º 832/13.0TBALR.E1 (relator: Manuel Bargado), e de 15-12-2016, proferido no processo n.º 340/15.4T8STB-A.E1 (relator: Silva Rato, ora 1.º adjunto), e o acórdão da Relação de Lisboa de 12-04-2018, proferido no processo n.º 30642/16.6T8LSB.L1-8 (relatora: Carla Mendes), publicados em www.dgsi.pt.
[3] Reportando-se aos contratos habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano e aos contratos não habitacionais celebrados depois do DL n.º 257/95, de 30 de setembro, esclarece Luís Menezes Leitão (Arrendamento Urbano, 6.ª edição, 2013, Coimbra, Almedina, p. 188), que “determina o art. 26.º, n.º 1, que eles passam a estar sujeitos imediatamente ao NRAU, salvo quanto a alguns aspectos essenciais do regime, em relação aos quais se instituem regras específicas de direito transitório material (…)”, acrescentando que a “primeira regra específica respeita à transmissão por morte do arrendamento, a qual não é sujeita ao regime agora instituído nos arts. 1106º e 1113º, mas antes ao regime dos arts. 57º e 58º NRAU”.
[4] Em anotação ao mencionado artigo 1106.º do Código Civil, afirma Elsa Sequeira Santos (CÓDIGO CIVIL: Anotado, Coord. Ana Prata, volume I, 2017, Coimbra, Almedina, p. 1367) que “este regime não é aplicável aos contratos celebrados antes do NRAU, valendo para estes o regime transitório previsto no art. 57.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, que estabelece condições muito restritivas para a transmissão mortis causa do arrendamento habitacional”.