Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2306/19.6T9PTM-A.E1
Relator: BEATRIZ MARQUES BORGES
Descritores: RECUSA DE JUÍZ
QUEIXA
Data do Acordão: 02/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Não é motivo de recusa de juiz o facto de o recusante (assistente) ter anteriormente apresentado queixa contra a Srª Juiz recusada, pela prática de um crime de denegação de justiça no âmbito de um outro processo, queixa essa que deu origem a inquérito que foi arquivado, tendo de seguida sido rejeitada a abertura de instrução pelo tribunal da Relação, confirmada pelo S.T.J., e não tendo aí sequer a Srª Juiz recusada sido constituída arguida ou notificada de qualquer decisão proferida.
Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na 2ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
1. Da Decisão
No Processo n.º 2306/19.6T9PTM, Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de Portimão - Juiz 3, por despacho judicial foi rejeitada a acusação particular deduzida pelo Assistente (…).
2. Do incidente de recusa contra Magistrada Judicial suscitado pelo Assistente (...)
Na sequência do despacho de rejeição da acusação particular deduzida pelo Assistente este suscitou o presente incidente de recusa da Mm. ª Juíza de Direito titular do Processo n.º 2306/19.6T9PTM, alegando, em suma, que (transcrição):
“I. Dos factos:
1. Com referência à Mm.ª Juiz Dra. (...), titular no processo Comum Tribunal Singular n.º 4189/17.1T9PTM,
E,
2. Na sequência do processo supra referido e após o assistente ter tido conhecimento do conteúdo despacho de recusa da acusação particular, este apresentou procedimento criminal contra a Mm.ª Juiz (...), que deu origem ao Processo n.º 2938/18.0T9PTM, a correr termos Tribunal da Relação de Évora Secção Criminal – 2ª subsecção, conforme consta do Doc. 1 e 2 , que ora se juntam e se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
3. É certo que o assistente se sentiu lesado ao perceber que na referida fundamentação do despacho de recusa da acusação no processo Comum Singular n.º 4189/17.1T9PTM existiam sérias suspeitas quanto à imparcialidade da Mmª. Juiz.
4. Acrescendo ao facto de que na sequência do processo referido no ponto 1 do presente incidente, existiu procedimento criminal apresentado pelo assistente contra a Mmª. Juiz.
5. Existindo de facto fortes fundamentos que justifiquem a sua imparcialidade, estamos perante um motivo sério e grave que culmina no presente incidente.
6. Ora, para que exista uma boa administração da Justiça é essencial de facto que um Tribunal seja independente e imparcial, sendo certo que não pode existir de todo desconfiança sobre a sua imparcialidade, conforme se consagra no artigo 203º da Constituição da República Portuguesa.
7. No decorrer do processo supra mencionado, o assistente sente que tal confiança e imparcialidade não foram de facto aplicadas, atendendo ao facto de que após ler a fundamentação do despacho de recusa do processo referido no .º 1, se sentiu ofendido na sua honra e brio com o teor de alguns excertos do douto despacho.
8. Muito estranhamente e verificando o conteúdo do referido despacho, lida de forma objectiva e sem reverência, torna-se algo anómalo não só ao processo judicial em causa, como, mais importante, flagrantemente violador da nobre função de imparcialidade.
9. Ora na perspetiva do assistente ficou claro, que as garantias de imparcialidade e a neutralidade da Mmª. Juiz perante o objecto em causa não foi respeitado, vejamos a título de exemplo o que foi dito na pág. 6 e 7, do referido despacho que o Assistente, ora Requerente tem um excesso de sensibilidade na sua personalidade, e que a expressão usada pelo Arguido nesse processo foi “um simples desabafo”, para além de referir que o Assistente “não socializa, não se relaciona com os demais pares, que é introvertido e reservado”, “não prima pela simpatia e não se relaciona com os demais” sendo essa a razão do arguido ter afirmado que o Assistente é “uma pessoa anti-social”, no contexto das declarações do arguido no processo 5616/15.8T9PTM que se transcrevem seguidamente; “relativamente ao relatado pelo denunciante, na ocorrência do dia 2013/12/28, recorda-se de ter cruzado com o denunciante, e de ter feito o gesto referido “manguito” na sua direção; o ora depoente nunca ameaçou o denunciante, aceitando tê-lo ofendido em diversas vezes, mas sempre com o sentimento de frustração, pela postura que o próprio denunciante mantém, revelando ser uma pessoa anti-social”;
10. Não poderia a Mm.ª Juiz ter chegado a essa conclusão porque ninguém faz “manguitos”, ofende alguém por este “não socializar, não se relacionar com os demais pares, ser introvertida e reservada”, “não primar pela simpatia e não se relacionar com os demais”;
11. Restando apenas o significado principal com que a generalidade das pessoas utiliza a palavra “anti-social” – contrário ou prejudicial à sociedade.
12. Mesmo na hipótese de no referido contexto o arguido ter utilizado a palavra “anti-social” com o significado que a Mm.ª Juiz (...) lhe atribuí; não poderia ter chegado a essa conclusão sem a realização da audiência de discussão e julgamento e sem conhecer de fato o ora Requerente;
13. Sem sequer existir produção de prova no processo nº4189/17.1T9PTM, com a recusa da acusação particular pretendeu a Mm.º Juiz não existir o significado principal da palavra “anti-social” – contrário ou prejudicial à sociedade.
14. Resta esclarecer que o significado que a Mm.ª Juiz atribui à palavra “anti- social” é expresso pela generalidade das pessoas pela palavra “insociável” – que foge ao convívio social, misantropo, solitário, retraído.
15. A Mm.º Juiz no processo emitiu juízos de valores sobre a personalidade do ora Requerente sem nunca ter privado com este quer a nível pessoal quer profissional no exercício das suas funções.
16. O ora Requerente é estimado socialmente, como uma pessoa cordata e educada.
17. A argumentação constante dos excertos do texto e proferida pela Mmª. Juiz ofenderam o ora requerente.
18. Tais circunstâncias podem prejudicar manifestamente o decurso do processo referido em epigrafe, Processo nº 2306/19.6T9PTM, do qual a Mmª. Juiz
19. O que nos permite, em relação a qualquer processo, afirmar que o juiz deve ser sempre reputado imparcial em razão dos fundamentos de suspeição verificados.
20. Pelo exposto e nos termos do artigo 43º CPP se requer a recusa da Mm.ª juíza (...) e a anulação do despacho de recusa da acusação particular no presente processo nº 2306/19.6T9PTM.
21. Por último, sendo a complexidade do presente processo e participação do assistente semelhantes não se compreende o critério de fixação da taxa de justiça pela Mm.ª Juiz (...): no despacho de 2018/06/07 de recusa da acusação particular referente ao proc. 4189/17.1T9PTM, no qual fixa ao Assistente o pagamento a titulo de taxa de justiça em 2 UC's e no despacho de 2020/10/20 de recusa da acusação particular referente ao proc. 2306/19.6T9PTM, fixa ao Assistente o pagamento da taxa de justiça em 3 UC's.
II-Do fundamento do requerimento de recusa de juiz e anulação do despacho de recusa da acusação particular:
22. A imparcialidade é a base que fundamenta um processo justo.
23. Como é defendido no Ac. do Tribunal da Relação de Évora (Clemente de Lima, processo n° 142/11.7GAOLH-A.E1, em http://www.dgsi.pt), datado de 14.07.2017, Ainda que a independência dos juízes seja, antes do mais, um dever ético-social, uma responsabilidade que tem a dimensão ou a densidade da fortaleza de ânimo, do carácter e da personalidade moral de cada juiz, não pode esquecer-se a necessidade de existir um quadro legal que promova e facilite aquela independência vocacional, por isso que é necessário, além do mais, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.
24. Citam-se, diversos autores como o Prof. Figueiredo Dias (em «Direito Processual Penal», 1, 1974, pág. 320), que considera tratar-se de (...) um verdadeiro princípio geral de direito, actuante no domínio da política judiciária, que se esconde atrás de toda a matéria respeitante aos impedimentos e suspeições do juiz: o de que é tarefa da lei velar por que, em qualquer tribunal e relativamente a todos os participantes processuais, reine uma atmosfera de pura objectividade e de incondicional jurisdicidade .
Manzini (citado por Figueiredo Dias, ob. cit, nota 33, pp. 315/316), invocava que o judex suspectus deve, em vista de qualquer motivo sério, ser dispensado como juiz num processo em que, tendo em conta a força média de resistências às causas internas que possam influir danosamente sobre o julgamento, seja razoavelmente de presumir que possa estar sujeito a paixões ou preocupações contrárias à recta administração da justiça.
25. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sufraga claramente o mesmo princípio a imparcialidade da jurisdição não é só a imparcialidade subjectiva.
É também a imparcialidade objectiva que deve ser assegurada (...). Afinal, trata-se da confiança que os tribunais de uma sociedade democrática devem inspirar às partes (...). Deve pois recusar-se qualquer juiz relativamente ao qual se possa legitimamente recear a existência de uma falta de imparcialidade (...). O elemento determinante consiste em saber se as apreensões do interessado podem ter-se como objectivamente justificadas (Caso Hauschildt, cit. no acórdão, do Tribunal Constitucional, n° 52/92, no DR, I-A, de 14-3-92).
26. Significa isto que o juiz antes de mais não se incline de antemão para nenhuma das partes e que se situe à frente de ambas sem nenhuma predisposição, de forma a não prejudicar nem favorecer nenhuma delas tratando todos com rigorosa igualdade e sem preferência de pessoas.
27. Afigura-se-nos que, teoricamente, só se pode afirmar que há motivo de recusa quando o posicionamento do julgador revele, de forma insofismável, algum comprometimento com um pré-juízo acerca do “thema decidendum”.
28. Assim o disse o Cons. Cabral Barreto in Documentação de Direito, 49/50, pág. 114, quando acentuou: “Deve ser recusado todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade, para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos”.
29. Sucede que, a imparcialidade do juiz tem de ter um lado objectivo sabendo que integrado num tribunal este demonstra determinação, pensa e pondera, no seu íntimo foro, perante um certo dado ou circunstância sendo certo que o objetivo nunca passa por favorecer ou desfavorecer uma das partes interessada na decisão.
30. A questão fundamental é saber se um homem médio colocado perante o processo e desconhecendo se o juiz é imparcial, ou não, pode, face a todas as circunstâncias, razoavelmente colocar em causa imparcialidade pressuposta.
31. Porque quer a aparência da justiça, quer a confiança são realidades fundantes da heterotutela do Estado democrático, constituindo um direito fundamental dos cidadãos na tutela dos seus direitos, sendo fundamental que nada a possa perturbar.
32. Por isso, também o estado português acolheu e tipificou situações em que tais características, essenciais à heterotutela, não se encontram reunidas (cfr. art. 43º, 1 CPP e 127º C.P.C).
33. Pode, por isso concluir-se que a recusa do juiz merece obter provimento quando se demonstre que a intenção do juiz no processo pode de alguma forma ser considerada suspeita, verificando, para tanto, que existem circunstâncias claras de que existe motivo sério e grave, adequando a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Juiz no respectivo processo.
34. Ou seja o exercício de facto de determinadas funções, como as do juiz, impõem em absoluto uma total transparência no exercício dessas funções. Não basta ser, é preciso parecer.
35. Pelo exposto e de acordo com os factos enunciados de 1 a 17 e o nos termos do disposto no artigo 43º CPP se requer a recusa da Mm.ª juíza (...) e a anulação do despacho de recusa da acusação particular no presente processo nº 2306/19.6T9PTM.
Termos em que se requer a V. Exas. Que
Deve o presente Requerimento de Recusa de Juiz e Anulação do despacho de recusa da acusação particular ser julgado procedente por provado e, em consequência ser decretada a cessação da intervenção da senhora juiz ora recusada nos autos supra identificados e anulado o despacho por se verificar que deles resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo com base no artigo 43º nº 1 e 5 do C.P.P. e;”.

3. Da resposta da recusada Juíza de Direito
A Mm.ª Juíza de Direito visada, nos termos prevenidos no artigo 45.º, nº 3, do CPP, respondeu, em suma, que (transcrição):
“Nos termos do disposto no art. 45º/3 do C.P.Penal cumpre pronunciar-nos relativamente ao requerimento apresentado.
Sustenta o assistente o pedido formulado na existência do Proc. 4189/17.1TAPTM, no qual a aqui signatária rejeitou a acusação particular deduzida.
Na sequência de tal despacho foi por (...) apresentada queixa crime contra a signatária por denegação de justiça, que correu termos sob o Proc. 2938/18.0T9PTM e veio a ser arquivado sem que tivesse sido constituída arguida.
Entende a signatária que a sua imparcialidade não foi colocada em causa nestes autos com a instauração da dita queixa crime, há muito arquivada.
Contudo, V. Exas. Venerandos Desembargadores, decidirão conforme for de Justiça!
Junte aos autos despacho de rejeição da acusação no Proc. 4189/17.1TAPTM, deixando-se consignado que não se junta comprovativo da queixa ou despacho final do Proc. 2938/18.0T9PTM, que correu termos do Tribunal da Relação de Évora, por nunca ter sido a signatária notificada de qualquer peça processual.”.


4. Da instrução do incidente de recusa
Foi determinada a incorporação neste incidente de recusa dos elementos pertinentes constantes do Processo n.º 2938/18.0T9PTM, de cuja leitura resultou o seguinte:
- O Sr. Procurador Geral Adjunto decidiu arquivar o inquérito;
- O arquivamento do inquérito motivou a apresentação de um requerimento para abertura da instrução formulado pelo Assistente (aqui Recusante).
- Por decisão de 19.12.2019 o Tribunal da Relação de Évora concluiu pela inadmissibilidade legal da instrução, decisão confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça, transitada em julgado em 5.11.2020.

5. Do Parecer do Ministério Público
Neste Tribunal da Relação de Évora, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto entendeu inexistir fundamento de recusa concluindo pelo seu indeferimento nos seguintes moldes (transcrição):
“Nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 43º do Código de Processo Penal, a intervenção de juiz num processo só pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
No presente caso, a recusa, requerida pela Ilustre mandatária do Assistente, funda-se, segundo decorre do respectivo requerimento, no facto daquele Assistente, oportunamente, e no âmbito de outro processo, ter participado criminalmente contra a Mm.ª Juíza que ora pretende recusar.
Saliente-se, contudo, que a referida participação criminal originou inquérito o qual culminou com despacho de arquivamento do Ministério Público, e que requerida a abertura de Instrução foi a mesma considerada inadmissível e, por isso, arquivado o procedimento.
Neste incidente a Mm.ª Juíza considera não existir motivo para a pretendida recusa.
E, quer do ponto de vista objectivo, quer do ponto de vista subjectivo, analisada a questão na perspectiva do homem médio, tendo em consideração a situação em concreto, mormente, o tipo legal de crime em questão e todo o circunstancialismo que lhe subjaz, entendemos que o fundamento alinhavado pelo requerente não se enquadra no conceito de seriedade e gravidade exigíveis pelo artigo 43º, n.º 1 do CPP.
A entender-se o contrário poderíamos chegar ao absurdo de pensar que, qualquer dos titulares do direito de pedir recusa, poder apresentar participação criminal contra o julgador e, com esse fundamento, pedir a recusa deste só por não pretender que o mesmo interviesse num determinado processo...
Por outro lado, não pode relevar, também, o facto da mesma magistrada ter intervindo noutro processo cuja decisão foi desfavorável ao Assistente porque, objectivamente, e por si só, tal circunstância não integraria, igualmente, aquele conceito de motivo grave e sério susceptível de gerar desconfiança sobre a imparcialidade da mesma (cfr., por exemplo Ac. TRC de 28.02.2009, in www.pgdl.pt/leis, em anotação ao art.º 43º do CPP).
Pelo exposto, p. se indefira a requerida recusa.”.

6. Da tramitação subsequente
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Questão a examinar
Analisado o incidente de recusa a questão a apreciar é a de aquilatar da verificação ou não de motivo de suspeição sobre a imparcialidade da Sr.ª Juíza de Direito que proferiu o despacho de rejeição da acusação particular apresentada pelo Assistente, aqui Recusante.

2. Apreciação do pedido de recusa
Como referido em II. ponto 1. deste Acórdão o Recusante pretende, ao abrigo do artigo 43.º do CP, a recusa da Sr.ª Magistrada Judicial, titular do processo 2306/19.6PTM-A.E1, por entender ser esta imparcial, em razão de ter apresentado contra a mesma queixa crime que deu origem ao Processo 2938/18.0T9PTM.
A este propósito o artigo 43.º do CPP, sob o título “Recusas e escusas”, dispõe:
“1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
2. Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º. (…).”.


Este normativo terá necessariamente de ser concatenado com o artigo 32.º, n.º 9 da CRP[1], ou seja, com princípio do Juiz Natural, consagrado na jurisdição penal, pressupondo tal princípio dever intervir no processo o Juiz que o deva fazer segundo as regras de competência legalmente estabelecidas para o efeito.
Perante, todavia, a possibilidade de ocorrência, em concreto, de vícios do princípio do Juiz Natural estabeleceu-se, no artigo 43.º do CPP, a possibilidade do seu afastamento em casos limite.
Tal sucederá apenas quando se evidenciem outros princípios ou regras que o ponham em causa, como sucede, a título de exemplo, quando o Juiz Natural não oferece garantias de imparcialidade e isenção no exercício das suas funções.
A questão a colocar é então a de saber quando é que um Juiz, legalmente competente para o efeito, não oferece garantias para atuar de forma imparcial e isenta num processo.
Segundo o apontado pelo artigo 43.º do CPP o Magistrado Judicial deixa de oferecer essas garantias quando:
– A sua intervenção no processo corra risco de ser considerada suspeita;
– Por se verificar motivo, sério e grave;
– O motivo for adequado a gerar desconfiança (estado de forte verosimilhança) sobre a sua imparcialidade (propósito de desfavorecimento de um certo sujeito processual, designadamente em favor de outro).
O conceito de imparcialidade tem sido associado pelas jurisprudência e doutrina[2] a duas dimensões, uma subjetiva e outra objetiva.
Na perspetiva subjetiva a imparcialidade do Juiz está relacionada com o que o Magistrado pensa no seu foro íntimo perante um determinado acontecimento da vida real. Nesta perspetiva se internamente o Magistrado Judicial tiver algum motivo para desfavorecer um sujeito processual em favor de outro, ou por outras palavras se tiver um preconceito sobre o mérito da causa, ocorrerá uma situação de parcialidade. A imparcialidade subjetiva dos juízes, contudo, presume-se até prova em contrário[3].
Sob o ponto de vista objetivo a imparcialidade do Juiz encontra-se relacionada com o comportamento exteriorizado pelo Magistrado Judicial, apreciado do ponto de vista do cidadão comum e das dúvidas fundadas sobre a sua conduta.
Só os factos objetivos evidentes, sérios e graves devem afastar a presunção de imparcialidade subjetiva do Juiz.
A gravidade e a seriedade do motivo de recusa deve ser óbvia, para um homem médio, pois do uso indevido de tal mecanismo resulta, a lesão do princípio constitucional do Juiz Natural com o consequente afastamento do Magistrado Judicial titular por motivo infundado.
O desagrado do Assistente em relação aos atos processuais praticados pelo Juiz que o afetem ou tenham afetado não são de molde a afastar o Magistrado Judicial do processo do qual este é titular. As situações de conflito entre a atuação funcional do Juiz e os interesses pessoais do Assistente são sindicáveis através de impugnação judicial, designadamente por via de recurso, e não através de um incidente de recusa.
Só são objetivamente parciais as condutas dos Magistrados Judicias que façam perigar, de forma séria e grave, a confiança pública na administração da justiça.
De outro modo, poder-se-ia estar a dar aval, com o pedido de escusa, a formas hábeis para um qualquer interveniente processual se libertar de um determinado Juiz, para fazer intervir o substituto legal deste, por quem, por exemplo, nutrisse mais empatia, ou seja, por motivo fútil.
No plano objetivo, são relevantes as aparências, que podem afetar, não rigorosamente a boa justiça, mas a compreensão externa sobre a garantia da boa justiça que seja mas também pareça ser, numa fenomenologia de valoração entre o “ser” e o “dever ser”[4].
Na vertente objetiva, importa, desde logo, afirmar que o alegado fundamento de recusa da Mm.ª Juíza visada, não tem a virtualidade de configurar “motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.
Na recusa agora em apreciação o Recusante invoca a existência de uma queixa crime por si apresentada em um outro processo contra a aqui Magistrada Judicial e com base nesse motivo entende ocorrer motivo para a recusa.
Da análise do expediente remetido a esta Relação e das averiguações realizadas junto do processo mencionado pelo Recusante constatou-se ter este, em tempos, apresentado queixa crime contra a Sr.ª Juíza de Direito Dr.ª (...), que deu origem ao processo n.º 2938/18.0T9PTM, pela prática do crime de denegação de justiça no Processo Comum Singular n.º 4189/17.1T9PTM.
Esse processo, contudo, foi desde logo arquivado primeiro pelo Sr. Procurador Geral Adjunto. Nessa sequência foi, ainda, rejeitada a abertura da instrução pelo Tribunal da Relação, cuja decisão foi confirmada pelo STJ, tendo transitado em julgado em 5.11.2020.
A Sr.ª Juíza de Direito recusada nunca foi condenada, pronunciada, acusada ou sequer constituída arguida pela prática de qualquer crime de denegação de acesso à justiça, em relação ao aqui requerente, no apontado processo. Aliás, perceciona-se até que, por nunca ter sido constituída arguida, nem sequer foi, a aqui recusada, notificada da queixa crime contra ela apresentada pelo aqui requerente, nem das decisões proferidas junto dos Tribunais Superiores (arquivamento, não pronuncia; confirmação da não pronuncia pelo STJ).
Não existem, assim, quaisquer provas permissíveis a demonstrar ou a indiciar qualquer predisposição de imparcialidade por parte da Mmª Juíza, imparcialidade essa que se presume até prova em contrário, tal como tem sido entendido pelo TEDH.
A recusa apresentada pelo Assistente aparenta traduzir o seu inconformismo relativamente aos fundamentos invocados pelo Tribunal de Primeira Instância para rejeitar a acusação particular por si apresentada.
Acresce que, na ótica do Recusante bastaria apresentar queixa crime contra um qualquer Magistrado Judicial titular para o afastar definitivamente do processo e assim colocar de lado o princípio constitucional do Juiz Natural, o que como atrás expendido não tem acolhimento legal.
Por outro lado, não pode relevar, também, o facto de a mesma Magistrada Judicial ter intervindo noutro processo cuja decisão foi desfavorável ao Assistente (n.º 2 do artigo 43.º do CPP). Objetivamente, por si só, tal circunstância não integra o conceito de motivo grave e sério suscetível de gerar desconfiança sobre a imparcialidade da mesma[5]. Por outras palavras, não se verifica o risco de ocorrer um reconhecimento público da parcialidade da Sr.ª Juíza, face aos motivos invocados pelo recusante.
Nestes termos, considera-se não terem os fundamentos referidos a virtualidade de fundamentar a requerida recusa, pela inverificação dos pressupostos enunciados no artigo 43.º, n.ºs 1 e 2 do CPP, afigurando-se o pedido de recusa em apreço, manifestamente infundado.
Não caberá conhecer das restantes questões suscitadas pelo Recusante, porquanto no incidente de recusa de juiz não se aprecia a validade dos atos processuais em si mesma (no caso a rejeição da acusação particular), nem a correção ou incorreção de determinado procedimento adotado pela Magistrada Judicial[6]. Para impugnar o despacho de rejeição da acusação particular e designadamente sindicar a condenação em custas, de cuja legalidade ou mérito o Assistente discorde o meio processual próprio é o da interposição de recurso, que aliás terá utilizado no exercício dos seus direitos processuais[7].

III. DECISÃO
Nestes termos e com os fundamentos expostos acordam em:
1. Negar provimento ao pedido de recusa da Mmª Juíza visada, Sr.ª Dr.ª (...).
2. Condenar o arguido requerente no pagamento da soma de 7 UC (artigo 45.º, n.º 7 do CPP).

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado e revisto pela relatora; tem voto de conformidade por parte do Exmo. Desembargador Adjunto, Dr.º João Martinho de Sousa Cardoso, atento o atual estado de pandemia da Covid-19.
Évora, 9 de fevereiro de 2021.
Beatriz Marques Borges – Relatora
Martinho Cardoso
Ana Brito

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[1] O artigo 32.º da CRP sob a epígrafe “Garantias de processo criminal” estabelece no seu n.º 9 que “Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.”.

[2] Cf. ALBUQUERQUE, Paulo Pinto – “Comentário do Código Processo Penal: À Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”. 4.ª edição atualizada. Universidade Católica Editora. P. 132 e segs. ISBN 978-972-54-0295-5.

[3] Cf. Acórdão do TEDH Piersack v. Bélgica, de 1.10.1982; Acórdão do TEDH Hauschildt v. Dinamarca, de 24.5.1989; Acórdão do TEDH Le Compte, Van Leuven e De Meyere v. Bélgica, de 23.6.1981 (Plenário; Acórdão TEDH Craxi v. Itália, de 5.12.2002) citados por ALBUQUERQUE, Paulo Pinto – “Comentário do Código Processo Penal: À Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”. 4.ª edição atualizada. Universidade Católica Editora. P. 132. ISBN 978-972-54-0295-5.

[4] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.04.2005, proferido no processo n.º 05P1138, disponível in www.dgsi.pt.

[5] Cf. por exemplo Ac. TRC de 28.02.2009 disponível para consulta em www.pgdl.pt/leis, em anotação ao artigo 43º do CPP.

[6] Cf. neste sentido Acórdão da RE de 8.3.2018 proferido no processo 13/18.6YREVR, relatado por João Amaro e disponível para consulta em www.dgsi.pt/jtre.

[7] Cf. neste sentido Acórdão da RG de 27.1.2020, proferido no processo 39/08.8PBBRG-K.G1, relatado por Paulo Serafim e disponível para consulta em www.dgsi.pt/jtrg.