Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2725/19.8T8STR-D.E1
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL
Data do Acordão: 08/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Em matéria de fixação do rendimento indisponível, no incidente de exoneração do passivo restante, o ponto fulcral é sempre o mesmo: em tese, terá necessariamente que haver um custo na qualidade e teor de vida do insolvente, e um custo que se veja (ao ponto a que deixou degradar a sua situação económica e financeira, o insolvente alguma coisa de substancial terá que pagar aos credores, baixando, correlativamente, o seu teor/qualidade de vida).
Decisão Texto Integral: RECURSO Nº 2725/19.8T8STR-D.E1 – APELAÇÃO (JUÍZO de COMÉRCIO de SANTARÉM)

Acordam os juízes nesta Relação:

Os Insolventes/Apelantes (…) e mulher, (…), residentes na Avenida D. (…), n.º 214, 4º-Dto., em Fátima, vêm, nos presentes autos de insolvência, por si instaurados e a correrem termos no Juízo de Comércio de Santarém-Juiz 2, interpor recurso do douto despacho proferido em 16 de Abril de 2020 (ora a fls. 127 a 133), na parte em que fixou o valor de 2,5 salários mínimos nacionais, como necessário e suficiente para assegurar o sustento minimamente digno do agregado familiar dos insolventes – com o fundamento que aí é aduzido de que “Considerando a composição do agregado familiar dos devedores (composto pelo casal e um filho menor de idade), entende-se ser necessário para satisfação das necessidades do mesmo o montante mensal correspondente a 2,5 SMN, atenta a inexistência de qualquer despesa extraordinária fixa atendível –, intentando agora a sua revogação e que seja revertida a decisão, fixando-se o valor em três salários mínimos nacionais, para o que apresentam alegações que rematam com a formulação das seguintes Conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto do Douto Despacho Inicial de Exoneração do Passivo Restante no qual o Tribunal a quo fixou como rendimento indisponível 2,5 SMN, tendo por base os critérios abstratos da jurisprudência e da escala de Oxford da OCDE.
2. O critério geral e abstrato de “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”, previsto no artigo 239.º, n.º 3, alínea b)-i, do CIRE, terá que ser densificado e aplicado casuisticamente em função do caso concreto e das circunstâncias do Insolvente e do respetivo agregado familiar, tendo como subjacente o reconhecimento do “princípio da dignidade humana”.
3. A opção do legislador, no que toca a considerar por mínimo necessário ao sustento digno do devedor, foi pois a de utilizar um conceito aberto tendo em vista poder ser aplicado e adaptado a cada caso concreto.
4. O agregado dos Insolventes, para além destes, é composto pelo filho menor de ambos que possui quadro clínico de Perturbação de Hiperactividade e Défice de Atenção (PHDA), tendo de frequentar regularmente consultas de neuropediatria, um acompanhamento terapêutico de um médico especializado e, bem assim, a necessidade de aquisição e toma de fármacos dedicados ao controlo dos sintomas diagnosticados.
5. Em virtude da situação de saúde do filho menor dos Insolventes, mensalmente têm despesas que, embora extraordinárias, são regulares.
6. O instituto da exoneração do passivo restante tem como objetivo primordial conceder uma “segunda oportunidade” ao devedor singular que caia em situação de insolvência, de recomeçar vida nova no fim do período de cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência.
7. Os Insolventes recorreram a este instituto para beneficiarem desta “segunda oportunidade”, contudo precisam de conseguir sobreviver durante os 5 anos de cessão sem comprometer a saúde e as necessidades básicas do filho menor de ambos.
8. Considerando-se a especificidade do agregado dos Insolventes, entende-se que não se pode aplicar, sem mais, a regra geral de 1 SMN por adulto e 0,5 SMN por menor.
9. O conceito “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”, previsto no artigo 239.º, n.º 3, alínea b)-i, do CIRE, deve ser densificado e aplicado tendo em conta as necessidades dadas como provadas no Douto Despacho Inicial de Exoneração do Passivo Restante do agregado.
10. Deve, assim, por imperativo legal e de justiça, ser o artigo 239.º, n.º 3, alínea b)-i, do CIRE aplicado tendo em conta o caso concreto e não apenas uma fórmula aritmética, devendo, em consequência, ser fixado como rendimento indisponível 3 SMN, ficando os Insolventes a ceder durante os 5 anos todo o valor que exceder aquele montante, determinar-se ainda a retroatividade dos efeitos do despacho de encerramento proferido.

NESTES TERMOS,
E nos demais de direito aplicáveis, e sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, no sentido das conclusões e, em consequência, ser o despacho recorrido revogado e substituído por outro que determine a elevação do rendimento indisponível a 3 SMN, tudo sob pena de total atropelo do espírito da lei que subjaz ao instituto da exoneração do passivo restante e de atirar os Insolventes para uma situação.

Não foram apresentadas contra-alegações.
*

Provam-se os seguintes factos e datas, com interesse para a decisão:

1. Por douto despacho proferido a 16 de Abril de 2020 – no incidente de exoneração do passivo restante requerido pelos insolventes, agora recorrentes, (…) e sua mulher, (…) – foi-lhes o mesmo admitido liminarmente e fixado o rendimento mensal indisponível em 2,5 SMN [“considerando a composição do agregado familiar dos devedores (composto pelo casal e um filho menor de idade), entende-se ser necessário para satisfação das necessidades do mesmo o montante mensal correspondente a 2,5 SMN atenta a inexistência de qualquer despesa extraordinária fixa atendível; a jurisprudência dos tribunais superiores e o que tem sido prática nesta secção de comércio, no sentido de 1 SMN ser valor suficiente à vivência minimamente condigna do sujeito insolvente; o apelo que a mesma faz da escala de Oxford da OCDE, que define o valor de referência de 0,5 como sendo o necessário à subsistência do menor dependente”], ao mesmo tempo que se decidiu que “as quantias auferidas pelos insolventes a título de subsídios, reembolsos ou outros ganhos pecuniários deverão ser somadas aos rendimentos laborais mensais, para efeitos de contabilização do rendimento disponível” – vide o douto despacho de fls. 127 a 132 dos autos, que aqui se dá por inteiramente reproduzido, tendo-se considerado provado o seguinte:
“Assim, considerando a prova documental junta aos autos pelo insolvente e sobretudo o teor do relatório do Sr. Administrador da Insolvência, que não mereceu qualquer oposição do mesmo, o Tribunal dá como provados os seguintes factos:
1) … e …, casados, apresentaram-se à insolvência, tendo a mesma sido decretada.
2) Os insolventes possuem três filhos, um dos quais menor – 13 anos de idade – e dependente dos mesmos.
3) …, de 53 anos de idade, é (…), auferindo um valor mensal ilíquido de € 974,12 (novecentos e setenta e quatro euros e doze cêntimos).
4) …, de 51 anos de idade, possui vínculo laboral com a Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários de (…), como socorrista TAS/pessoal de ambulâncias, auferindo um valor mensal ilíquido de € 805,00 (oitocentos e cinco euros).
5) Os insolventes e o filho menor de ambos residem num apartamento arrendado em (…), pelo qual pagam mensalmente a quantia de € 580,00 (quinhentos e oitenta euros).
6) O filho menor de ambos os insolventes possui quadro clínico de Perturbação de Hiperactividade e Défice de Atenção (PHDA), tendo de frequentar regularmente consultas de neuropediatria, ter um acompanhamento terapêutico de um médico especializado, bem como adquirir e tomar fármacos dedicados ao controlo dos sintomas diagnosticados”.
2. No mais, fundamentou assim a decisão:
“(…)
Dispõe o artigo 235.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que, ‘Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste (…)’.
O requerimento deve ser feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação, devendo declarar expressamente que preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas.
Na assembleia de apresentação do relatório, ou no momento legalmente previsto, é dada aos credores e ao administrador de insolvência a possibilidade de se pronunciarem sobre o requerimento, e perante o requerimento, o juiz deve proferir despacho inicial se não existir motivo para o indeferimento liminar (artigo 239.º do CIRE).
O despacho inicial determina que durante os 5 anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período da cessação), o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade (designada por fiduciário) escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores de insolvência.
Por sua vez, o artigo 238.º do CIRE estabelece os motivos de indeferimento liminar.
No caso, o pedido de exoneração do passivo é tempestivo, não se verificando a condição prevista na alínea a), nem consta do processo que o devedor já tenha beneficiado da exoneração do passivo [alínea c)]. Por outro lado, não consta que o devedor tenha obtido crédito ou subsídios de instituições públicas, ou que tenha sido condenado criminalmente [alíneas b) e f)].
Entende-se, igualmente, que não violou os deveres de informação, apresentação e colaboração [alínea g)], uma vez que não existe qualquer indício em sentido contrário, sendo que os mesmos costumam ser veiculados para os autos pelo Administrador da Insolvência, por ser quem tem contacto mais próximo com a insolvente.
Relativamente à alínea e), não constam do processo, pelo menos por ora, elementos que indiciem, com toda a probabilidade, a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
Importa ter em consideração, por último, o disposto na alínea d).
O pedido é indeferido se o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos 6 meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica. (…) Não tendo qualquer dos credores demonstrado a existência de prejuízos concretos pelo atraso na apresentação, entende-se que a mesma, por si só, ou pelo simples facto de aumentar os juros em dívida, é insuficiente para motivar o indeferimento do pedido de exoneração do passivo.
No que tange à oposição do M.º Público, considera o Tribunal que a indisponibilidade dos créditos tributários não pode sustentar o indeferimento liminar do instituto, quando os mesmos estão legalmente salvaguardados dos efeitos do despacho final de exoneração do passivo restante – artigo 245.º, n.º 2, alínea d), do CIRE.
Pelo exposto, entendo que o pedido de exoneração do passivo não é de indeferir liminarmente.
(…)
Nos termos do artigo 239.º do CIRE:
– O rendimento disponível que o devedor venha a auferir durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, é cedido ao fiduciário, cargo que será desempenhado pelo Sr. Administrador de Insolvência.
(…)
Neste sentido vide o Ac. do TRG de 14-01-2016, proc. n.º 218/10.8TBMNC.G1, cujo sumário se transcreve: «I) - O pedido de exoneração do passivo restante tem como objectivo primordial conceder uma ‘segunda oportunidade’ ao devedor singular que caia em situação de insolvência, de recomeçar vida nova no fim do período de 5 anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, permitindo que este se liberte do passivo que possui e que não consiga pagar no âmbito daquele processo. II) - Na determinação do rendimento indisponível a que alude a subalínea i) da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE, o legislador estabeleceu dois limites: um limite mínimo, avaliado por um critério geral e abstracto (o sustento minimamente condigno do devedor e seu agregado familiar), a preencher pelo juiz em cada caso concreto, conforme as circunstâncias particulares do devedor; um limite máximo, obtido através de um critério quantificável e objectivo (o equivalente a 3 salários mínimos nacionais), o qual, excepcionalmente, poderá ser excedido em casos que o justifiquem. III) - Consistindo a exoneração do passivo restante na concessão ao insolvente, pessoa singular, de um benefício que se traduz num perdão de dívidas com a inerente perda, para os credores, dos correspondentes créditos, forçoso é encontrar um equilíbrio entre o ressarcimento desses credores e a garantia do mínimo necessário ao sustento digno do devedor e do seu agregado familiar. IV) - O montante mensal que há-de ser dispensado ao insolvente no período da cessão não visa assegurar o padrão de vida que porventura teria antes da situação de insolvência, mas apenas uma vivência minimamente condigna, cabendo ao visado adequar-se à especial condição em que se encontra, ajustando as despesas ou encargos e o seu nível de vida, em geral e na medida do possível, à nova realidade que enfrenta. V) - O valor a fixar terá de levar em consideração as particularidades de cada caso, devendo ponderar-se, por um lado, que se está perante uma situação transitória, durante a qual o insolvente deverá fazer um particular esforço de contenção de despesas e de percepção de receitas de molde a atenuar ao máximo as perdas que advirão aos credores da exoneração do passivo restante e, por outro lado, atender ao que é indispensável para, em consonância com a consagração constitucional do respeito pela dignidade humana, assegurar as necessidades básicas do insolvente e do seu agregado familiar. VI) - O salário mínimo nacional será um valor referencial a ter em conta como indicativo do montante mensal considerado como essencial para garantir um mínimo de subsistência condigna, cabendo ao tribunal fazer uma apreciação casuística das situações submetidas a escrutínio.»
(…)
Uma vez que foi requerido por um dos credores, atribui-se ao Sr. fiduciário a tarefa de fiscalizar o cumprimento pela devedora das obrigações que sobre esta impendem, nos termos e para os efeitos do artigo 241.º, n.º 3, do CIRE.
(…)”.
*

Vejamos, então, a questão que demanda a apreciação e decisão da parte deste Tribunal ad quem, e que passa por saber se o Tribunal a quo apreciou bem a problemática do cálculo, mensal, dos montantes que os insolventes teriam que entregar à fidúcia – em ordem ao cumprimento dos deveres que legalmente se lhes impõem por força de se encontrarem no período em que têm que ceder os rendimentos percebidos ao fiduciário, em vista, a final, da exoneração do seu passivo restante, rectius se a decisão recorrida da 1.ª instância foi bem ou mal feita, de acordo ou ao arrepio dos factos e das normas legais que a deveriam ter informado. É isso que hic et nunc está em causa, como se extrai das conclusões alinhadas no recurso apresentado e que supra já se deixaram transcritas para facilidade de percepção da problemática que lhe subjaz.
[Pois, como é sobejamente conhecido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (vide artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do CPC), naturalmente sem prejuízo das questões cujo conhecimento ex officio se imponha (vide artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, desse Código).]

E, assim, os Apelantes querem passar a reter, por mês, um montante de € 1.905,00 – valor correspondente a três salários mínimos nacionais (para o ano de 2020, naturalmente) –, em vez dos € 1.587,50 que foram fixados na sentença recorrida – valor correspondente a dois salários mínimos nacionais e meio, para os dois membros do casal (uma diferença, portanto, de € 317,50 mensais).
[O valor do salário mínimo nacional é, a partir de 01 de Janeiro de 2016, de € 530,00 (quinhentos e trinta euros), mensais, nos termos fixados no artigo 2º do Decreto-lei n.º 254-A/2015, de 31 de Dezembro; a partir de 01 de Janeiro de 2017, de € 557,00 (quinhentos e cinquenta e sete euros), mensais, nos termos do artigo 2.º do Decreto-lei n.º 86-B/2016, de 29 de Dezembro; a partir de 01 de Janeiro de 2018, de € 580,00 (quinhentos e oitenta euros), mensais, nos termos do artigo 2.º do Decreto-lei n.º 156/2017, de 28 de Dezembro; a partir de 01 de Janeiro de 2019, de € 600,00 (seiscentos euros), mensais, nos termos do artigo 2.º do Decreto-lei n.º 117/2018, de 27 de Dezembro; a partir de 01 de Janeiro de 2020, de € 635,00 (seiscentos e trinta e cinco euros), mensais, nos termos do artigo 2.º do Decreto-lei n.º 167/2019, de 21 de Novembro; a partir de 01 de Janeiro de 2021, de € 665,00 (seiscentos e sessenta e cinco euros), mensais, nos termos do artigo 2.º do Decreto-lei n.º 109-A/2020, de 31 de Dezembro; a partir de 01 de Janeiro de 2022, de € 705,00 (setecentos e cinco euros), mensais, nos termos do artigo 3.º do Decreto-lei n.º 109-B/2021, de 7 de Dezembro; e a partir de 1 de Janeiro de 2023, de € 760,00 (setecentos e sessenta euros), mensais, nos termos do artigo 3.º do Decreto-lei n.º 85-A/2022, de 22 de Dezembro.]

Mas nem deixando de cair-se aqui, em qualquer dos casos, numa situação praticamente teórica, pois como é que os insolventes pretendem reter para si um valor de € 1.905,00, mensais, se então tinham ordenados que não ultrapassavam os € 1.779,12 ilíquidos, por mês (líquidos, pouco mais de € 1.500,00, em média, conforme à documentação que fizeram juntar aos autos a fls. 32 a 47)? E como é que se têm conseguido governar com estes ordenados mensais se apresentam despesas, também mensais, de € 580,00 (de renda de casa), entre € 130,00 e € 200,00 (de água, gás e luz), entre € 350,00 e € 450,00 (de alimentação), assim como com os valores que nem sequer quantificaram de deslocações diárias para o trabalho, de telecomunicações e com um animal doméstico (cão), a que tudo acrescem as despesas com o filho de 13 anos de € 989,26 (entre Janeiro e Julho de 2020), como alegam na douta petição inicial de apresentação à insolvência (a fls. 27 a 29 dos autos)?
É certo que os € 1.500,00 líquidos que percebem mensalmente dão para tais despesas. E também assim é com os € 1.587,50 fixados na douta sentença.

Assim, só se entende a presente pretensão recursiva como uma maneira de não entregarem nada aos credores. Mas não entregar nada aos credores não é a finalidade do período da cessão e da exoneração do passivo restante, indo contra o respectivo espírito, como se dirá.
Pois se os interessados vêm alegar, no ponto 27 do seu recurso, que “Os insolventes temem que o rendimento indisponível fixado pelo Tribunal a quo seja manifestamente insuficiente para garantir um estilo de vida saudável e minimamente condigno”, isso não acrescenta nada ao que aqui temos ainda que decidir, pois tal já acontece mesmo antes de qualquer decisão, em face dos valores líquidos que percebem no fim do mês, pelo que mesmo sem entregarem nada à massa insolvente, dados os valores que auferem, sem qualquer fixação do Tribunal, eles já estão nesse patamar de subsistência insuficiente para uma vida saudável e minimamente condigna, pelo que não é por causa da fixação do valor pelo Tribunal que tal acontece (tal acontece porque não ganham para o que alegadamente, depois, gastam) – e, no entanto, apesar de tudo, subsistem.
Mas passemos ao enquadramento legal da situação apresentada. Na previsão do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), subalínea i), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante C.I.R.E.), aprovado pelo Decreto-lei n.º 53/2004, de 18 de Março – alterado e republicado no Decreto-lei n.º 200/2004, de 18 de Agosto e, ultimamente, também, pela Lei n.º 16/2012, de 20 Abril, Decreto-lei n.º 26/2015, de 06 de Fevereiro, Decreto-Lei n.º 84/2019, de 28 de Junho, Lei n.º 99-A/2021, de 31 de Dezembro, Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro e Decreto-Lei n.º 57/2022, de 25 de Agosto –, “Integram o rendimento disponível [a ser cedido naturalmente para a satisfação dos débitos] todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional”.
E a intenção do legislador, ao criar este instituto jurídico da exoneração do passivo restante (afinal, tão inovador no nosso sistema), só poderá ter sido a de que, verificado ter o devedor feito um significativo esforço durante um certo tempo para pagar o que deve – e pague mesmo –, permitir que volte a ‘levantar a cabeça’ e possa regressar à actividade económica, também a bem do País, sem o referido ‘passivo restante’ a entorpecer-lhe decisivamente tal recomeço (o que não aproveitaria a ninguém).
E daí que se trate realmente de um perdão, mas de um ‘passivo restante’, do que resta, não de todas as dívidas de quem não se apresenta a fazer esforço algum para as pagar ou atenuar. Doutra maneira, quase que se daria aqui, então, cobertura a uma fraude, pois se não poderá esquecer que este mecanismo legal funciona sempre em favor dos devedores e sempre contra os credores (e não se pretende que ele se erija num prémio a quem não cumpre ou num incentivo ao acumular das dívidas).
Por isso que a lei se rodeou de especiais cautelas na sua aplicação, que o intérprete não pode deixar de conferir nos casos concretos que se lhe coloquem.
E conferi-lo rigorosamente.
Nesse sentido, prevê, justamente, o n.º 4 do artigo 239.º do CIRE, sob a epígrafe de cessão do rendimento disponível, uma série de situações a que o devedor insolvente terá que sujeitar-se no período da cessão, aqui interessando a previsão dos seus seguintes pontos:
Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; (…)
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão. (…)”.

Destarte, volvendo ao caso sub judicio, temos que os insolventes aduzem uma série de situações a apoiar a sua pretensão – desde logo, que têm despesas correntes fixas, mensais, que incluem € 580,00 de renda de casa e de saúde com o seu filho menor de 13 anos – daí concluindo que os 2,5 salários mínimos que podem reter face à douta sentença não seriam suficientes para lhes garantir uma vida condigna.
A 1ª instância veio a considerar tudo isso e fixou a retenção num valor de € 1.587,50 mensais (correspondentes a 2,5 salários mínimos nacionais).

E fê-lo bem, no enquadramento fáctico que tinha por demonstrado.
Pois que os visados até poderiam ter apresentado e justificado despesas de igual ou superior montante, que não era por isso que se iriam eximir, logo de forma automática, às suas responsabilidades, nada pagando agora aos credores (ou entregando-lhes quantias diminutas e retendo para si o principal dos seus rendimentos). Vai nesse sentido, justamente, a jurisprudência que vem citada na douta sentença recorrida.
Decorrentemente, ainda que se considerasse provada uma série de outras despesas que os visados consideram que o estariam, a solução seria a mesma.
O ponto fulcral é sempre o mesmo: em tese, terá necessariamente que haver aqui um custo na sua qualidade e teor de vida, e um custo que se veja (ao ponto a que deixaram degradar a sua situação económica e financeira, os agora insolventes alguma coisa de substancial terão que pagar aos credores, baixando, correlativamente, o seu teor/qualidade de vida).
Pois que é a exoneração final justamente um prémio para quem se esforça dentro das suas possibilidades, ainda que poucas, mas não deixa de tentar.

E foi assim enquadrada que decidiu a 1ª instância, acabando por tomar a decisão que se lhe impunha prolatar em face das circunstâncias, vindo a fixar a quantia mensal a reter em dois salários mínimos nacionais e meio – como o faz, também, agora, esta 2ª instância.

Razões pelas quais, nesse enquadramento fáctico e jurídico, se terá agora que manter, intacta na ordem jurídica, a douta decisão da 1ª instância que assim veio a optar, e improcedendo o presente recurso de Apelação.
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Decidindo.

Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em negar provimento ao recurso e confirmar a douta sentença recorrida.
Custas pela massa insolvente (artigo 304.º do CIRE).
Registe e notifique.
Évora, 08 de Agosto de 2023
Mário João Canelas Brás (Relator)
José Manuel Lopes Barata (1º Adjunto)
Artur Daniel Tarú Vargues (2º Adjunto)