Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
259/12.0PAABT.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DIREITO À INFORMAÇÃO
DIREITO AO SILÊNCIO
ARREPENDIMENTO
Data do Acordão: 02/25/2014
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO
Sumário:
1. Quando o arguido opta, em julgamento, pela não prestação de declarações sobre os factos imputados, não viola o direito ao silêncio a circunstância de o tribunal ponderar na sentença, em sede de determinação da pena, a “ausência de arrependimento”.

2. A prova do arrependimento não se faz apenas por declarações de arguido, e o direito ao silêncio, uma vez exercido, não impõe que o tribunal, por sua vez, “silencie” na sentença aquela circunstância ou a ausência dela. [1]
Decisão Texto Integral:
DECISÃO SUMÁRIA – arts. 417º, nº 6 – b) e 420º, nº 1 –a) do Código de Processo Penal

1. No Processo n.º 259/12.0PAABT do 3º juízo do Tribunal Judicial de Abrantes foi proferida sentença em que se decidiu condenar os arguidos A e B, cada um deles, como co-autores de um crime de ofensa à integridade física simples do art. 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão suspensa na execução pelo período de 1 (um) ano.

Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, concluindo:

1) Foi o Arguido doutamente condenado pela prática em co-autoria material e na forma consumada, de 1 crime de ofensas à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º, n.º1 do C.P., além do mais, na pena de 8 meses de prisão, suspensa pelo período de 1 ano, nos autos à margem referenciados e não se conformando com a douta sentença, dela vem interpor recurso;

2) Assentou o Tribunal a quo a sua convicção nas declarações do Ofendido, as quais aceitou como credíveis. Ora tal, pese embora o nosso grande respeito pela douta decisão, merece a nossa total discordância, de uma vez que das declarações do Ofendido em suporte áudio e para as quais se remete, facilmente se conclui que foi evasivo nas suas declarações e pouco seguro, não se recordando da sequência das agressões e ao contrário do descrito na douta sentença, não declarou ter sido agredido no café, mas sim, perto do café, na rua; e

3) Assentou ainda o douto Tribunal a quo a sua decisão nos testemunhos de J e N, quando em simultâneo descreveu os seus testemunhos como não sendo totalmente isentos e credíveis, sofrendo ainda as mesmas testemunhas de défices cognitivos.

4) O Tribunal a quo sentiu necessidade de interromper a sessão de audiência de julgamento para, oficiosamente, requerer a notificação de outra testemunha – L. Porque entendeu o tribunal «a quo» que a prova até então produzida era, manifestamente, insuficiente para fundar a sua decisão, ou pelo menos persistia uma dúvida séria o suficiente para ser promovida prova oficiosamente;

5) Não se sentiu o douto Tribunal a quo, suficientemente esclarecido pelas testemunhas e declarações do Ofendido, carreadas para os autos por indicação da Acusação e até então prestadas. Falta de esclarecimentos que tendo sido reconhecidos com a decisão de chamar outrém, oficiosamente, a depor, demonstra que no espírito do julgador existiam sérias dúvidas quanto aos factos vertidos na douta acusação.

6) As testemunhas, J e N, não prestaram depoimentos coincidentes, nem dos seus relatos era possível retirar qualquer conclusão sobre os factos imputados ao Arguido.

7) A testemunha J, refere o Tribunal a quo na douta Fundamentação da matéria de facto, que o mesmo declarou que se encontrava no café e que se veio embora sem ter visto nada, embora tivesse confirmado que a polícia foi chamada ao café, tendo declarado não saber porque razão tal ocorreu, o que serviria – exactamente – para fundamentar decisão diversa e oposta à vertida na douta sentença ora recorrida.

8) A testemunha N, refere o Tribunal a quo na douta Fundamentação da matéria de facto, que o Ofendido é que veio para fora do café com uma cadeira para agredir os Arguidos, mas que o dono do café impediu. Tendo dito a certa altura, que os Arguidos terão pontapeado o Ofendido.

9) Perante as declarações de ambas as testemunhas arroladas pela Acusação, é compreensível e até louvável a iniciativa do Mmo. Juíz a quo em requerer que fosse ouvido o dono do café para cabal esclarecimento do que de facto terá acontecido.

10) Se o Tribunal a quo se considerasse esclarecido e sem dúvidas, teria baseado a sua douta decisão apenas em ambas as testemunhas, J e N, carreadas para os autos pela Acusação.

11) A testemunha L, inquirida por iniciativa do Tribunal, esclareceu não ter estado no local na altura dos alegados confrontos, tendo sabido por «ouvir dizer» que teriam ocorrido desacatos (cfr. depoimento gravado em suporte áudio para o qual se remete). Logo, nada de novo trouxe aos autos, persistindo a dúvida que levou a que tal testemunha fosse chamada.

12) Nenhuma das testemunhas corroborou os factos constantes da douta Acusação, nem mesmo o Ofendido foi coerente com a douta Acusação. Tanto assim, que o Digníssimo Procurador do Ministério Público, requereu em Acta certidão das declarações das 3 (três) testemunhas, bem como das declarações do Ofendido, para instauração de Inquérito afim de aferir acerca do cometimento de um crime de falsas declarações por parte de cada um dos intervenientes supra referidos. Temos, então, uma decisão condenatória – ora recorrida – baseada em declarações que o próprio MP reputa de falsas!

13) Fundamenta ainda o Tribunal a quo a sua convicção no facto de entender a falta de esclarecimentos das testemunhas com o temor relativamente aos Arguidos. Salvo o devido respeito por opinião contrária, tal afigura-se absurdo.

14) Da audição das testemunhas, nada denota qualquer receio de retaliações por banda dos Arguidos. Além de que, estes se encontram detidos à ordem de um outro processo, não consubstanciando por isso qualquer perigo para os depoentes, sendo certo que em nenhum momento qualquer das 2 testemunhas referidas disse ou demonstrou ter medo dos Arguidos, desde logo, porque se esse fosse o caso o Mmo. Juíz teria ordenado a saída dos Arguidos da sala para que o depoimento das testemunhas fosse livre, o que não fez.

15) Assenta ainda, a douta sentença, no juízo de que os Arguidos não revelaram qualquer arrependimento pela prática dos factos. O que se afigura no mínimo, estranho!

16) Os Arguidos optaram pelo silêncio. Não prestando quaisquer declarações e tal não pode ser usado contra si (art. 61.º, n.º1 al. d) do CPP). O que o Tribunal a quo fez, foi utilizar o silêncio dos Arguidos para retirar do mesmo uma conclusão contra os próprios, numa clara violação dos mais básicos princípios de Direito Penal e da própria Constituição da República Portuguesa.

17) «A génese do direito ao silêncio não assenta num intuito de beneficiar o arguido, antes decorrendo do princípio do acusatório, que impõe à acusação o dever de provar os factos que lhe são imputados, facultando ao arguido um comportamento que, em última análise, poderá obstar a que se auto-incrimine. No entanto, se o uso do direito ao silêncio não poderá em caso algum prejudicar o arguido, também o não deverá beneficiar» - vd. Douto Ac. RC de 13/01/2010;

18) «Tem entendido o Supremo Tribunal de Justiça que o silêncio, sendo um direito do arguido, não pode prejudicá-lo, mas também dele não pode colher benefícios.» - vd. Douto Ac. STJ de 10/01/2008;

19) O tribunal «a quo» interpretou o silêncio do Arguido como «não arrependimento». O que fere a douta sentença ora recorrida de nulidade, que ora se invoca.

20) O silêncio é um direito concedido ao Arguido, na sequência da qualidade processual que assume e é um direito reconhecido como forma de evitar, no extremo, que o Arguido se auto-incrimine. Logo, do silêncio do arguido não se pode tirar qualquer conclusão, nem que o prejudique, nem que o beneficie.

21) Ao retirar conclusões do silêncio a que o Arguido se remeteu, violou a douta sentença recorrida um elementar direito de defesa do arguido, cfr. artigo 61.º, 343.º e 345.º do CPP. O que fere de nulidade a douta sentença, que – por essa via – vem a fundamentar a sua decisão em prova proibida.

22) Mas, se se admitisse a condenação do Arguido, sempre haveria de atender a uma circunstância atenuante que resultou da prova produzida em audiência.

23) O ofendido, inquirido de forma ampla sobre os factos, contou como terá começado o seu envolvimento na questão em julgamento, dizendo que «apenas» «mandou uma boca», provocação essa que, foi confirmada no depoimento da testemunha J que afirma, referindo-se ao que o Ofendido «começou a pegar com eles», e mais adiante refere que o ofendido dirigindo-se em voz alta aos Arguidos terá dito «estes já aqui estão outra vez».

24) Assim, estamos perante a circunstância prevista na al. b) do n.º2 do artigo 72.º do CP, o que, diminui substancialmente a eventual culpa do agente. Circunstância que não foi dita em conta, mas que deveria ter sido.

25) Assim, a douta sentença ora recorrida violou, além do mais, o disposto nos artigos 61.º do CPP, 72.º do CP, 379.º do CPP, art. 410.º do CPP.

26) Devendo por isso ser a douta sentença ora recorrida revogada e substituída por outra que absolva o Arguido, por insuficiência da matéria de facto para a decisão condenatória, devendo o mesmo ser absolvido em respeito ao princípio in dubio pro reo; caso V.Exa. assim não entenda sempre teria de ser a pena especialmente atenuada face à circunstância de o Arguido haver sido provocado, com o que será feita a desejada JUSTIÇA.”

O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência e concluindo por seu turno:

“1- A decisão recorrida não padece de quaisquer vicios de erro notório na apreciação da prova ou de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

2- A decisão recorrida não enferma de erros de julgamento.

3- A decisão recorrida não padece de quaisquer vicios

4- Não há lugar, no presente caso, a atenuação especial da pena.”

Neste Tribunal, a Sra. Procuradora-geral Adjunta reviu-se na resposta do Ministério Público em 1ª instância.

2. Na sentença consideraram-se os seguintes factos provados:

“1. No dia 28 de Agosto de 2012, cerca das 21:30horas, quando o ofendido C se encontrava no estabelecimento, denominado, por “Café X” sito nas Barreiras do Tejo, área desta comarca, foi inesperadamente abordado pelos arguidos A e B, os quais, de comum acordo e em conjugação de esforços, no âmbito de um plano previamente delineado, desferiram vários murros na face e no tronco do ofendido, bem como, ainda lhe desferiram vários pontapés no seu corpo, o que provocou a sua queda.

2. Agressões estas que só cessaram porque se aproximaram pessoas que vieram em auxílio do ofendido, impedindo a sua continuidade.

3. Como consequência da conduta supra descrita, o ofendido para além das dores, sofreu duas escoriações paralelas na face anterior do ombro esquerdo, uma com 4cm e outra com 3cm; hematoma na área renal esquerda; uma escoriação com 1cm na região superior do ombro direito e ainda duas escoriações com 0,5cm de diâmetro no ângulo externo do olho direito.

4. Tais lesões determinaram um período de 5 dias de doença, com afetação da capacidade para o trabalho em geral e 2 dias com afetação da capacidade para o trabalho profissional.

5. Os arguidos agiram em comunhão de esforços, com o propósito concretizado de ofender o corpo e a saúde do ofendido, o que conseguiram.

6. Os arguidos agiram sempre livre, consciente e voluntariamente, em conjugação de esforços e de intenções, bem, sabendo que as suas condutas eram adequadas a provocar as lesões descritas e verificadas.

7. Os arguidos sabiam que tais comportamentos eram proibidos e punidos por lei, mas, apesar de o saberem, quiseram atuar da forma descrita e maltratar o corpo e a saúde do ofendido.

- Em relação ao arguido B. resultou ainda provado que:

8. Tem o 12.º ano de escolaridade.

9. Encontra-se sujeito à medida de coação de prisão preventiva à ordem de outro processo-crime, desde há cerca de três meses.

10. Na altura em que ficou privado da liberdade não tinha qualquer atividade profissional.

11. Quanto em liberdade, vivia em casa própria com a companheira e uma filha, com quatro anos de idade.

12. Tem antecedentes criminais, tendo sido condenado:

- Em 07/01/2008, na pena de 2 anos e 4 meses de prisão suspensa, no processo n.º ---/06.2 PAABT, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Abrantes, por um crime de furto simples, praticado em 23/08/2006.

- Em 03/04/2009, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de € 6,00, no processo n.º --/08.1 PAABT, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Abrantes, por um crime de furto simples, praticado em 31/01/2008.

- Em 29/06/2009, na pena de 7 meses de prisão substituída por 210 dias de multa à taxa diária de € 7,00, no processo n.º --/08.5 PBSTR, do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Abrantes, por um crime de furto qualificado, praticado em 10/01/2008.

- Em 08/06/2010, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 2,50, no processo n.º --/07.8 PAABT, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Abrantes, por um crime de ofensa à integridade física simples, praticado em 01/01/2007.

- Em 04/07/2011, na pena de 3 anos e 9 meses de prisão suspensa, no processo n.º ---/09.9 PAABT, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Abrantes, por um crime de furto qualificado, praticado em 29/08/2009.

- Relativamente ao arguido A. resultou ainda provado que:

13. O arguido tem a 4.ª classe de escolaridade.

14. Encontra-se sujeito à medida de coação de prisão preventiva à ordem de outro processo-crime, desde há cerca de dois meses.

15. Na altura em que ficou privado da liberdade não tinha qualquer atividade profissional, dedicando-se à prática de crimes contra o património.

16. Quanto em liberdade, vivia em casa própria com a companheira e uma filha, com um ano de idade.

17. O arguido tem antecedentes criminais, tendo sido condenado:

- Em 07/01/2008, na pena de 2 anos e 4 meses de prisão suspensa, no processo n.º ---/06.2 PAABT, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Abrantes, por um crime de furto simples, praticado em 23/08/2006.

- Em 29/06/2009, na pena de 6 meses de prisão substituída por 180 dias de multa à taxa diária de € 7,00, no processo n.º --/08.5 PBSTR, do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Abrantes, por um crime de furto qualificado, praticado em 10/01/2008.

- Em 5/11/2009, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de € 6,50, no processo n.º ---/09.3 PAABT, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial deAbrantes, por um crime de condução sem habilitação legal, praticado em 17/10/2009.

- Em 08/06/2010, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 4,00, no processo n.º --/07.8 PAABT, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Abrantes, por um crime de ofensa à integridade física simples, praticado em 01/01/2007.

- Em 22/03/2010, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão suspensa, no processo n.º ---/09.7 PAABT, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Abrantes, por um crime de furto qualificado, praticado em 06/03/2009.

- Em 17/11/2010, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão suspensa com regime de prova, no processo n.º --/09.6 GASEI, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Seia, por um crime de furto qualificado, praticado em 27/01/2009.

- Em 11/12/2012, na pena de 75 dias de multa à taxa diária de € 7,00, no processo n.º --/09.2 PAABT-A, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Abrantes, por um crime de condução sem habilitação legal, praticado em 03/11/2009.”

Na sentença, motivou-se assim a matéria de facto:

“Para a formação da sua convicção, na indicação dos factos provados e não provados acima transcritos, o tribunal analisou de forma livre, crítica e conjugada a prova produzida em audiência de discussão e julgamento de acordo com o art. 127.º do C.P.P., respeitando os critérios da experiência comum e da lógica.

Deste modo, foram tidos em conta:

Os documentos juntos aos autos, e cuja genuinidade ou veracidade não foi posta em causa, nomeadamente, o relatório de exame médico-legal de fls. 4 e 5, e os certificados de registo criminal de fls. 128 e segs. e 150 e segs..

No que se refere à atuação imputada ao arguido, o tribunal atendeu sobretudo às declarações do ofendido C, que confirmou, na sua globalidade, os factos descritos na acusação, negando apenas que se tenha apercebido de também ter sido agredido com paus, tendo prestado um depoimento que se afigurou totalmente isento e credível.

Para o efeito, este declarou que os arguidos o abordaram quanto se encontrava no café, tendo ato contínuo começado a receber murros e pontapés por parte dos mesmos, atingindo no tronco e na face, na sequência do que caiu ao chão, só tendo os arguidos parado porque entretanto foi auxiliado por vizinhos que se encontravam no local. Quanto aos motivos de tais agressões, o ofendido associa as mesmas ao facto de ter proferido a expressão “só são bons quando se juntam todos” (por ter visto os arguidos e “à briga” com as testemunhas J e N), e porque anteriormente um tio seu ter ido dizer ao arguido B que o ofendido tinha dito que os arguidos lhe tinham roubado um relógio (o que refere não corresponder à verdade), asseverando contudo ao Tribunal que não ocorreu qualquer troca de palavras com os arguidos, tendo estes simplesmente se dirigido a si e começado a agredi-lo.

Prestaram ainda depoimentos as testemunhas J e N, os quais prestaram depoimentos que não se afiguraram totalmente isentos e credíveis, revelando animosidade para com o ofendido e uma atitude marcadamente proteccionista dos arguidos. Foi ainda evidente pelas respostas que foram dadas que ambas as testemunhas padecem de défices cognitivos, o que, apesar de não lhes retirar capacidade para testemunhar, não pode deixar de ser constituir um fator adicional a ter em conta pelo tribunal na ponderação da veracidade do que pelos mesmos foi dito.

Assim, a testemunha J referiu que no dia em causa nos autos se encontrava no café e que se veio embora sem ter visto nada, apesar de ter confirmado que a polícia foi chamada ao café, afirmando não saber porque tal ocorreu. Já a testemunha N (irmã da testemunha anterior), referiu estar «chateado» com o ofendido pelo facto deste o ter indicado como testemunha, tendo inicialmente declarado que o ofendido é que veio para fora do café com uma cadeira para “dar em cima deles”, mas que o dono do café lha tirou das mãos. No entanto, quando instado com maior insistência quanto ao comportamento tido pelos arguidos nesse dia, acabou por confirmar que ambos haviam desferido pontapés no ofendido.

Por último, foi ainda inquirida a testemunha L que, pese embora tivesse sido referida pelo ofendido como estando no local na altura dos factos e que a tudo havia assistido, negou ao longo do seu depoimento ter assistido a qualquer facto, referindo que nesse dia só esteve no café durante cerca de 10 minutos entre as 18 e 18.30 horas.

Porém, a testemunha sempre confirmou ter ouvido falar que nesse dia “houve briga”, tendo contudo negado saber quais os envolvidos, alegando não ter nada a ver com tal assunto e por isso não se ter interessado por saber em concreto o que se tinha passado.

No que respeita aos arguidos, os mesmos não desejaram prestar declarações quantos aos factos, fazendo uso do seu direito, apenas o tendo feito quanto às suas condições pessoais, sociais e económicas, as quais se revelaram credíveis.

Assim, pese embora no caso em apreço as únicas testemunhas presenciais da factualidade imputada aos arguidos tenham sido o próprio ofendido e a testemunha N, sendo que este prestou um depoimento não totalmente credível (não por ter denotado estar a proteger o ofendido, mas sim os próprios arguidos) o certo é que o depoimento do ofendido se afigurou integralmente isento e credível, desde logo atenta a forma espontânea como foi prestado, merecendo por isso credibilidade por parte do Tribunal, levando o mesmo a fundar convicção no sentido de que os arguidos efetivamente praticaram os factos dados como provados, para o que também contribuiu os elementos clínicos juntos aos autos, que comprovam as lesões por si sofridas.

Ademais, e pese embora os arguidos tenham optado por não prestar declarações quanto aos factos, revelou-se apodítico o comportamento do arguido A. que, no momento em que se encontrava a ser afastado da sala de audiências para que o ofendido prestasse depoimento sem a sua presença, se dirigiu ao Tribunal dizendo “pergunte a essa pessoa o motivo”, dando a entender que o comportamento imputado aos arguidos teria tido origem em alguma atitude do próprio ofendido, encontrando-se assim «justificado».

Por último, foi ainda evidente no comportamento adotado pelas testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento a existência de algum receio em relação aos arguidos, temendo vir a sofrer represálias no futuro, tendo o Tribunal ficado convicto que viram e/ou sabiam mais do que aquilo que afirmaram.

Em suma, atendendo a todo este circunstancialismo e ponderada a globalidade da prova produzida em sede de julgamento e realizada a respetiva análise crítica, não restou qualquer dúvida a este tribunal de que os arguidos praticaram os factos dados como provados.

Quanto aos antecedentes criminais foi relevante o C.R.C. juntos aos autos.

Quanto ao facto dado como não provado tal deveu-se à circunstância de nenhuma prova ter sido feita quanto ao mesmo, não tendo o próprio ofendidoconfirmado a utilização de um pau por parte dos arguidos.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar são o erro notório na apreciação da prova, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e a atenuação especial da pena.

O recorrente invoca o erro notório na apreciação da prova mas impropriamente, estribando-se na circunstância da convicção ter assentado nas declarações do ofendido consideradas credíveis.

A aceitação destas declarações pelo tribunal mereceu a sua “total discordância, uma vez que das declarações do ofendido em suporte áudio e para as quais se remete, facilmente se conclui que foi evasivo nas suas declarações e pouco seguro”

Como se vê, o recurso interposto confunde impugnação da matéria de facto com recurso à prova gravada (art. 412º, nº3 do Código de Processo Penal) com oposição à decisão de facto por via da arguição do vício de texto (art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal).

Uma coisa é o erro notório na apreciação da prova, que resultará logo evidente da simples análise da sentença; outra, o erro não notório, detectável apenas por via do acesso à prova apreciada no julgamento (prova pessoal gravada ou prova real documentada no processo).

O erro notório, como erro evidente, tem de ser detectável facilmente no texto da decisão, e resultar deste, ou do encontro deste com a experiência comum. Consistiria em considerar-se provado algo notoriamente errado, que não poderia ter acontecido, algo de ilógico, arbitrário ou notoriamente violador das regras da experiência comum. Seria uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si (…) Há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se respeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis” (Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 2007, p. 74).

Ora, no caso presente, os enunciados descritos na sentença como “factos provados” decorrem natural, lógica e racionalmente da motivação da matéria de facto da sentença.

Nesta se descreve um processo de formação de convicção, de “provado” e de “não provado” relativamente aos factos considerados como tal, que não padece de qualquer erro de raciocínio evidente.

Note-se que, no recurso, nem se procede à especificação de tal erro notório, dizendo-se em que consistiria.

A motivação da sentença apresenta-se modelar.

É certo que uma sentença convenientemente motivada de facto apenas explica porque é que o juiz se convenceu, não garantindo, por si só, que o juiz se convenceu bem. E o recorrente pretende afinal a sindicância da adequação do convencimento do julgador, o que só o recurso efectivo da matéria de facto viabiliza. Este distingue-se da fiscalização através do texto – dirigida essencialmente a testar a capacidade do juiz se expressar devidamente – sendo antes uma fiscalização através das provas.

Cumpre sindicar a sentença por via do recurso à prova gravada (e a outras provas examinadas em audiência - art. 412º, nº3 do Código de Processo Penal) pois foi essa a iniciativa do recorrente.

Impõe, então, o art. 412º, nº3 do Código de Processo Penal que, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e/ou as que deviam ser renovadas. Essa especificação deve fazer-se por referência ao consignado na acta indicando o recorrente concretamente as passagens em que se funda a impugnação (nº4).

Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente,” segundo jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 (AFJ nº 3/2012).

Apesar das deficiências, aceita-se como cumprido o ónus de especificação das concretas provas, uma vez que o recorrente procedeu à identificação das passagens por referência à gravação na aplicação informática.

Já quanto ao ónus de especificação dos “pontos de facto”, o recorrente incumpre-o totalmente, o que deveria determinar, também por isso, a rejeição. No entanto, considerando-se a pretensão ainda perceptível, no sentido de se pretender impugnar a matéria de facto na globalidade, conhecer-se-á do recurso.

O recorrente insurge-se contra o facto da convicção ter assentado nas declarações do ofendido, que o tribunal aceitou indevidamente como credíveis, o que mereceu a sua “total discordância, uma vez que das declarações do ofendido em suporte áudio e para as quais se remete, facilmente se conclui que foi evasivo nas suas declarações e pouco seguro”.

A forma como o recurso se apresenta desenquadra-o logo do modelo de recurso da matéria de facto do Código de Processo Penal. A improcedência é manifesta.

Como se tem reiterado sem discordância (na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, das Relações e em artigos doutrinários), o recurso efectivo da matéria de facto visa a detecção do erro de facto e não é, nem pode ser, um segundo julgamento.

Este erro de facto tem de ser correctamente situado no recurso – no(s) concreto(s) facto(s) ou no ponto de facto – e acompanhado das concretas provas que alegadamente imponham decisão oposta à tomada na sentença.

Esta exigência de demarcação/confinamento do objecto do recurso não significa que a Relação esteja impedida apreciar todas as provas, ou mesmo que todas as provas possam ser, no caso, as concretas provas indicadas pelo recorrente, sempre de acordo com o objecto do recurso por ele definido.

Só que, mesmo nestas situações em que o recorrente indica como concretas provas todas as provas – e sempre com a exigência (ónus) de especificação – a segunda instância não as pode reapreciar na exacta medida em que o fez o juiz de julgamento, ou seja, não pode proceder a um segundo julgamento.

Desde logo, porque o objecto do recurso não coincide com o objecto da decisão do tribunal de julgamento – este decide sobre uma acusação, aquele decide sobre a (correcção da) sentença (de facto). Mas também porque a segunda instância não se encontra na mesma posição do juiz de julgamento perante as provas: não dispõe de imediação total (embora tenha uma imediação parcial, relativamente a provas reais e à componente voz da prova pessoal) e está impedida de interagir com a prova (ou seja, de questionar a prova pessoal).

Assim, e sempre de acordo com o modelo de recurso de facto que é o do Código de Processo Penal, à Relação só pode pedir-se que efectue um controlo do julgamento, e não que o repita ou reproduza. Os poderes de decisão de facto estão agora direccionados para a (sindicância da) sentença de facto (e sempre de acordo com o objecto do recurso definido pelo recorrente).

É permitido (exigido) proceder ao confronto e análise das concretas provas, nada impedindo até que as “concretas provas” possam ser todas as provas, ou consistam na transcrição integral de depoimentos, desde que tal se revele necessário ao recorrente para demonstrar o erro de facto e viabilizar a detecção deste.

A actuação da Relação, dentro do mandato assim definido, restringe-se à detecção do erro de facto nos moldes expostos, o que não abrange reapreciações da prova a um certo nível, ou seja, ao nível de uma certa credibilidade justificada, que o tribunal conferiu a depoimentos, e que soube explicar compreensivelmente na decisão, sem erros de raciocínio e de lógica.

A pretensão de substituição, sem mais, da convicção do tribunal de julgamento, pela convicção do recorrente, é totalmente vedada por esta via processual.

Nenhum dos argumentos invocados pelo recorrente fragiliza a decisão de facto, no sentido de se poder agora concluir que o tribunal deveria ter permanecido na dúvida quanto à ocorrência de factos dados como provados.

É claro que o ofendido relatou as agressões perpetradas pelos arguidos na sua pessoa. Estas declarações, que se afiguraram credíveis ao tribunal por razões que a motivação explica, foram ainda corroboradas por prova pericial (decorrente de exame médico à pessoa da vítima).

A sentença esclarece também os motivos da desvalorização de outros depoimentos de registo contrário, e também não fragiliza esta decisão a circunstância de nada se ter retirado de depoimento oficiosamente prestado em julgamento. A sentença convence e explica-se por si.

Face à prova produzida em julgamento, a matéria de facto consentiria melhor precisão apenas num ponto. Como o recorrente refere, do relato do ofendido resulta que os factos terão ocorrido junto ao estabelecimento de café. Na matéria de facto, refere-se que ocorreram “quando o ofendido C. se encontrava no estabelecimento, denominado, por “Café X”. Independentemente da circunstância do locus delicti se situar no interior ou no exterior, inexiste dúvida a respeito da sua ocorrência, sendo certo que na sentença também não se situam os factos “no interior” do café. Assim, a precisão em causa nada alteraria na decisão de direito, não se repercutiria nela, nem ao nível da ilicitude nem da culpa.

Não se destinando o direito ao recurso ao aprimoramento de decisões, mas tão só à reparação de erros judiciários, conclui-se que a matéria de facto fixada na sentença se deve considerar como definitivamente estabilizada.

Invoca, ainda, o recorrente uma “nulidade de sentença” mas não a especifica, limitando-se a fazer uma alusão genérica ao art. 379º do Código de Processo Penal.

Alega ter sido violado o seu direito ao silêncio por o tribunal ter consignado, em sede de determinação da pena, que o arguido não demonstrou arrependimento. Esta alegação também não fragiliza a decisão na parte da determinação da pena.

A ausência de arrependimento é, apenas, isso mesmo, ou seja, a ausência de uma circunstância atenuante. E o tribunal não revela ter ido para além disso.

Os arguidos não comprovaram em julgamento o seu arrependimento. E podiam tê-lo feito por qualquer via lícita, por prova testemunhal ou documental, por demonstração de uma satisfação pecuniária (ou outra) à pessoa do ofendido, o que não ficou demonstrado.

A prova do arrependimento não se faz apenas por declarações de arguido, e o direito ao silêncio, uma vez exercido, não impõe que o tribunal silencie também a temática do arrependimento na sentença.

Por último, considera dever ter beneficiado de atenuação especial de pena, decorrente do ofendido ter dirigido aos arguidos a expressão – “estes já aqui estão outra vez” – “provocação” que terá despoletado a acção. Invoca, por isso, o art. 72º, nº2, alínea b) do Código Penal.

Este facto não consta da matéria de facto provada e também não se revela necessário à decisão de direito. Ele não poderia relevar juridicamente do modo pretendido pelo recorrente.

A atenuação especial da pena, a que o Código Penal de 1886 (art. 94º) chamava de “extraordinária”, implica a verificação de circunstâncias que importem diminuição significativa ou acentuada da culpa ou da necessidade da pena. O catálogo legal de circunstâncias previstas no art. 72º do Código Penal é exemplificativo e de funcionamento não automático.

No caso concreto, nem a prolação das expressões hipoteticamente verbalizadas pelo ofendido configurariam “provocação”, nem as circunstâncias globais integrariam um quadro de diminuição de culpa ou de desnecessidade de pena. Os motivos agora sinalizados como pretensamente despoletadores da acção, poderiam até, no reverso e atenta a sua futilidade, funcionar contra o arguido.

E se algo existe na sentença que se mostre justificado de modo mais frágil, tal seria a opção por pena suspensa, que não compete no entanto sindicar face à ausência de impulso processual do acusador nesse sentido.

4. Face ao exposto, decide-se rejeitar o recurso atenta a sua manifesta improcedência (arts. 420º, nº1, al. a) e 417º, nº 6 –b) do Código de Processo Penal).

Custas pelo recorrente que se fixam em 3UC (art. 420º, nº3 do Código de Processo Penal

Évora, 25.02.2014

Ana Maria Barata de Brito
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[1] - Sumariado pela relatora