Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
950/15.0T9BJA.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: FALSIDADE DE TESTEMUNHO
MEIOS DE PROVA
Data do Acordão: 06/26/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I – Para efeitos de imputação à arguida do crime de falsidade de testemunho o meio idóneo de prova do facto típico é a certidão extraída do processo em que esse depoimento falso tenha sido prestado.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO

Nos presentes autos de processo comum (tribunal singular) com o nº 950/15.0T9BJA, do Tribunal Judicial da Comarca de Beja (Juízo Local Criminal de Beja), e mediante pertinente sentença, foi decidido:

“a) Condenar a arguida AB, como autora material, pela prática de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360º, nº 1, do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz a quantia total de € 600,00 (seiscentos euros);

b) Condenar também a arguida no pagamento das custas do processo fixando-se em 2 UC a taxa de justiça (artigos 513º e 514º ambos do Código de Processo Penal e artigo 8º do Regulamento das Custas Processuais e tabela III ao mesmo anexa)”.
*
Inconformada com a decisão, dela recorreu a arguida, extraindo da respetiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

“A - Nenhuma prova foi produzida ou examinada em audiência de julgamento e a sentença refere, enganosamente, que a convicção foi criada pela conjugação com elementos de prova produzidos em julgamento.

B - Foi feita valoração proibida do documento que encerra o depoimento da arguida em fase de inquérito perante órgão de policia criminal noutro processo, no dia 13 de fevereiro de 2008, pelas 15.00h.

C - Não foi feita a verificação da inexistência de qualquer causa que exclua a ilicitude ou a culpa - elemento subjetivo do tipo (a vontade e intenção).

D - Consequentemente, foi flagrantemente violado o princípio do contraditório, pois a arguida nenhuma possibilidade teve de exercer o contraditório relativamente ao teor de tal documento (depoimento em sede de inquérito).

E - Foi também violado o princípio da imediação.

F - O Tribunal a quo violou, designadamente, os artigos 327º e 355º do CPP, 360º do CP, 20º e 32º da CRP e 6º da CEDH.

Termos em que, sempre com o mui douto suprimento de V/Exªs, deve ser declarado procedente o presente recurso e, em consequência, ser a arguida absolvida, pois assim fariam V/Exªs a costumada Justiça”.

A Exmª Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância apresentou resposta ao recurso, formulando as seguintes conclusões (em transcrição):

“1º - Inconformada com a douta sentença proferida nos presentes autos e que a condenou pela prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360º, nº 1, do Código Penal, veio a arguida dela interpor recurso, por considerar ter sido violado o disposto nos artigos 327° e 355° do Código de Processo Penal, 360° do Código Penal e artigos 20° e 32° da Constituição da República Portuguesa.

2º - Alega, em síntese, que nenhuma prova foi produzida ou examinada em Audiência de Julgamento, foi feita valoração proibida do documento que encerra o depoimento da arguida em fase de inquérito perante órgão de polícia criminal e foi violado o princípio do contraditório.

3º - Segundo a recorrente, a certidão contendo as declarações da arguida em audiência de julgamento e em fase de inquérito num outro processo e que deu origem aos presentes autos pela indiciada prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360º, nº 1, do Código Penal, constitui prova documental que não foi apresentada em audiência de julgamento.

4º - Embora com alguma dificuldade em seguir o raciocínio da recorrente/arguida, parece ser seu entendimento que as certidões supra referidas deveriam ter sido exibidas e/ou analisadas em audiência, não se percebendo bem como, em termos factuais, mas talvez passando o processo de mão em mão entre os diversos intervenientes no julgamento, pois, por absurdo que tal pareça, não vislumbramos que outra interpretação se possa dar ao alegado pela recorrente.

5º - É que, na verdade a recorrente foi notificada do despacho de acusação e teve sempre ao seu dispor a análise dos autos e dos documentos deles constantes, pelo que tal alegação não tem qualquer fundamento legal, uma vez que as certidões constam dos autos e toda a matéria de facto nelas contida foi vertida no despacho de acusação proferido.

6º - Da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e da prova carreada para os autos resultou provado que a arguida faltou à verdade num dos momentos em que depôs sobre os mesmos factos sobre os quais foi inquirida após ter sido ajuramentada, conduta por cuja prática foi condenada.

7º - Alega também a recorrente que não lhe foi concedida a possibilidade de exercer o contraditório relativamente à certidão contendo as suas declarações em sede de inquérito, mas valem aqui também os argumentos supra referidos, ou seja, a recorrente foi notificada do despacho de acusação e teve sempre ao seu dispor a análise dos autos e dos documentos deles constantes.

8º - A recorrente não apresentou contestação nem indicou qualquer meio de prova nos autos que pudesse pôr em causa a matéria da acusação.

9º - A douta decisão ora recorrida fez uma correta apreciação da prova produzida, aplicou corretamente o Direito aos factos e não enferma de qualquer vício que a afete na sua legalidade e validade.

Por todo o exposto, deverá ser negado provimento ao recurso e mantida na íntegra a douta sentença recorrida”.
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Neste Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, pronunciando-se no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso.

Notificada a arguida, nos termos do disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, a mesma não apresentou resposta.
Foram colhidos os vistos legais.
Procedeu-se à conferência, cumprindo, agora, apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso.
Tendo em conta as conclusões enunciadas pela recorrente, as quais delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal, são duas, em breve síntese, as questões que estão suscitadas no presente recurso:

1ª - Valoração proibida da certidão extraída do inquérito onde a ora arguida prestou depoimento, enquanto testemunha, perante órgão de polícia criminal, por violação do princípio do contraditório e do princípio da imediação.

2ª - Falta de prova dos elementos subjetivos do tipo legal de crime em apreço (o dolo, quer quanto à vontade, quer quanto à intenção delitiva), e não ponderação, na sentença revidenda, da existência de causas que excluam a ilicitude ou a culpa.

2 - A decisão recorrida.
A sentença revidenda é do seguinte teor (quanto aos factos, provados e não provados, e quanto à motivação da decisão fáctica):

“2.1. Factos Provados
Discutida a causa, ficou provado, com relevância para a decisão de mérito, que:

1. No dia 17 de junho de 2015 a ora arguida foi inquirida na qualidade de testemunha na Instância Central Criminal - J2 de Beja, no âmbito da audiência de julgamento do Processo Comum Coletivo nº 4/07.2ZCLSB.

2. Nesse processo respondiam como arguidos, entre outros, BB na qualidade de representante legal da sociedade A, Lda., CC, entre outros, pela prática de crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art. 160º do Código Penal.

3. Antes de prestar depoimento como testemunha, a ora arguida jurou dizer a verdade e foi advertida de que, se o não fizesse, incorria em responsabilidade criminal.

4. Questionada se quando veio pela primeira vez trabalhar para Portugal em 2007 pagou a alguém pela celebração de um contrato de trabalho, respondeu que não, “Paguei só lá na Roménia o visto e paguei lá na capital e paguei o caminho para cá, de autocarro. Porque a pessoa disse que se eu ficar contente é que se lhe quiser pagar, pago. Se não quiser pagar eu não pago nada. Então eu não paguei nada. Disse obrigado e pronto”.

5. No dia 13 de fevereiro de 2008, pelas 15.00h, a arguida foi inquirida no Departamento de Investigação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras como testemunha no âmbito do inquérito que originou o supra indicado processo.

6. Questionada sobre como obteve o contrato de trabalho para vir para Portugal afirmou então:

- (...) era sua vontade sair da Moldávia para trabalhar noutro país;
- (...) para ir para Itália teria de pagar cerca de 4.500 e, no entanto, para Portugal os pais pagaram a quantia de 1.500 €;
- (...) uma amiga da mãe lhe deu o número de telefone de alguém que arranjava contratos para vir trabalhar para Portugal e desconhece o nome da pessoa, morada ou contacto.

7. Ao prestar os depoimentos em sede de inquérito e de julgamento supra referidos, cujos conteúdos são contraditórios, bem sabia a arguida que pelo menos um deles não correspondia à verdade e que agia de forma livre, deliberada e consciente de alterar a versão dos factos por si já relatada, com o propósito de prejudicar o Estado na administração da justiça, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Mais se apurou que:

8. A arguida não tem antecedentes criminais.

2.2. Factos Não Provados

Não ficaram factos por provar com relevo para a decisão da causa.

2.3. Motivação da Decisão da Matéria de Facto
Nos termos do disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente.

Refere o Professor Figueiredo Dias (in "Lições Coligidas de Direito Processual Penal", edição de 1988/1989, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p.141) que «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada "verdade material" - de tal sorte que a apreciação há de ser, em concreto, recondutível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e controlo».

Assim, a motivação do tribunal no que respeita à matéria fáctica considerada provada e não provada assentou na análise conjugada dos elementos de prova produzidos nos autos e em sede de audiência de julgamento conjugada e criticamente analisada segundo as regras da experiência comum e juízos de normalidade.

Concretizando:
A fixação dos factos provados teve por base a globalidade da prova documental junta aos autos, certidão de fls. 3 a 10 e transcrição das declarações da arguida a fls. 15 a 27 por referência ao suporte magnético junto aos autos.

Do confronto entre a certidão e a transcrição resultou de forma inequívoca o carácter contraditório dos depoimentos então prestados pela arguida.

A partir dos factos dados como provados, por inferência e atendendo às regras da experiência comum, num processo lógico e racional, o Tribunal ficou convencido de que a arguida agiu consciente da reprovabilidade da sua conduta e com o propósito consumado de prestar falso testemunho. É que, embora não tenha sido possível apurar se a arguida mentiu quando prestou declarações em sede de inquérito ou em sede de julgamento, certo é que os depoimentos são, como é evidente, contraditórios, e, como tal, ou os dois são falsos ou um deles é falso, visto que não podem os dois ser verdadeiros.

Relativamente à ausência de antecedentes criminais da arguida teve-se em conta o Certificado de Registo Criminal de fls. 123”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) Da valoração dos documentos juntos ao processo.
Alega a recorrente que o tribunal a quo valorou, indevidamente, a certidão extraída do inquérito onde a ora arguida prestou depoimento enquanto testemunha (e perante órgão de polícia criminal), pois que tal prova foi produzida sem respeito pelos princípios do contraditório e da imediação, e, além disso, constitui prova proibida, tal como previsto no artigo 355° do C. P. Penal.

Há que decidir.

Sob a epígrafe “proibição de valoração de provas”, dispõe o artigo 355º do C. P. Penal:

1 - Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.

2 - Ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em atos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes”.

Ora, e com o devido respeito pelo alegado na motivação do recurso, o depoimento da ora arguida, prestado em sede de inquérito num outro processo, não é aqui, em sentido rigoroso, um meio de prova, mas é antes, ele próprio, elemento do crime (constituindo facto típico).

Assim sendo, o meio idóneo de prova desse “facto típico” é a transcrição do depoimento da arguida, depoimento que foi prestado na fase de inquérito do processo nº 4/07.2ZCLSB e depoimento que está transcrito no documento de fls. 16 a 27 destes autos.

Ou seja, o depoimento da arguida (oportunamente prestado no âmbito de um outro processo e transcrito - e certificado - nos presentes autos) está sujeito, para todos os efeitos, ao regime próprio da prova documental.

A isso não constitui obstáculo a circunstância de tal depoimento ter sido produzido perante órgão de polícia criminal, porquanto o tipo incriminador (tal como descrito no artigo 360º do Código Penal) abarca, também, uma tal hipótese (o depoimento pode ser prestado “perante tribunal ou funcionário competente” para o receber como meio de prova).

É entendimento pacífico na jurisprudência portuguesa (ao que julgamos saber) que a valoração da prova documental não se encontra sujeita às mesmas restrições que a prova pessoal, não estando dependente da sua exibição, leitura ou audição em audiência de discussão e julgamento (sobretudo quando tal prova documental sempre esteve nos autos e é até fundamento, explícito, da acusação deduzida, como sucede in casu).

Por isso, e ao contrário do alegado na motivação do recurso, não existe aqui qualquer valoração de prova proibida, nem qualquer violação do preceituado no artigo 355º do C. P. Penal.

Em conclusão: é lícita, à luz das normas relevantes da lei processual penal, a valoração feita pelo tribunal a quo do depoimento testemunhal prestado pela ora arguida no âmbito do inquérito que originou o Processo Comum Coletivo nº 4/07.2ZCLSB (da Instância Central Criminal de Beja - Juiz 2), o qual se mostra certificado nos presentes autos.

À luz do que vem de dizer-se, mostra-se inteiramente válido o juízo de prova formulado na sentença revidenda e que assentou na valoração do aludido depoimento.

De igual modo, a valoração probatória do depoimento em questão não ofende, minimamente, os princípios do contraditório e/ou da imediação.

Com efeito, estando a transcrição desse depoimento, desde há muito tempo (antes da dedução da acusação), junta aos presentes autos, e sendo tal transcrição indicada (expressamente) como meio de prova na própria acusação (cfr. fls. 81), sempre a arguida dela teve conhecimento, sempre a pôde contraditar e sempre sobre ela se pôde pronunciar.

Ou seja, à arguida foi concedido um contraditório pleno, efetivo e atempado.

E, como é óbvio, a arguida, desde sempre (nos presentes autos), teve contacto e imediação com a aludida transcrição e com o respetivo teor.

Na verdade, e se mais não fosse, a ora arguida foi notificada do despacho de acusação e, pelo menos desde então, teve sempre ao seu dispor a análise dos autos e dos documentos deles constantes (entre os quais consta a transcrição do seu depoimento prestado no inquérito que teve lugar no âmbito do Processo Comum Coletivo nº 4/07.2ZCLSB).

Mais: foi (até e também) com base na transcrição do depoimento prestado pela ora arguida no inquérito em causa que foram descritos os factos delitivos vertidos no despacho de acusação proferido nos presentes autos.

Por conseguinte, e com o devido respeito, carece totalmente de sentido a alegação da recorrente segundo a qual não lhe foi concedida a possibilidade de exercer o contraditório relativamente ao teor do documento contendo o seu aludido depoimento prestado em sede de inquérito, bem como carece de sentido a alegação de que a Exmª Juíza, ao valorar o conteúdo de tal elemento probatório (que, repete-se, traduz prova documental), violou o princípio da imediação.

Face ao predito, e nesta primeira vertente, o recurso da arguida é totalmente de improceder.

b) Da prova dos elementos subjetivos do crime.
Invoca a recorrente que não foi feita qualquer prova atinente aos elementos subjetivos do tipo legal de crime em apreço, além de que o tribunal recorrido não se pronunciou, como devia, sobre a existência (ou não) de causas que excluam a ilicitude ou a culpa.

Cumpre decidir.

A arguida vem condenada, em primeira instância, pela prática de um crime de falsidade de depoimento, p. e p. pelo artigo 360º, nºs 1 e 3, do Código Penal.

Trata-se de um crime doloso, ou seja, exige-se, para verificação dos elementos subjetivos do mesmo, a consciência, pelo agente, da falsidade do depoimento prestado e a vontade em proferir esse depoimento falso.

O agente tem de atuar, pois, com conhecimento de todos os elementos objetivos do tipo, e, ainda, com vontade de realização do facto.

Além disso, o agente tem de possuir consciência da ilicitude da sua conduta.

Alega a recorrente que, na audiência de discussão e julgamento, não foi produzida qualquer prova relativamente aos elementos constitutivos do dolo (elementos acabados de enunciar - de forma simples e resumida -).

Com o devido respeito, nenhuma razão assiste à recorrente nesta sua alegação.

Em termos de factualidade objetiva, resultou provado, nestes autos, que a arguida, ouvida como testemunha no inquérito a que se procedeu no âmbito do Processo Comum Coletivo nº 4/07.2ZCLSB, questionada sobre como obteve o contrato de trabalho para vir para Portugal, afirmou, então, que, para esse efeito, os seus pais pagaram a quantia de 1.500 euros (a alguém que arranjava contratos para cidadãos como a arguida virem trabalhar para Portugal, desconhecendo a arguida o nome dessa pessoa, sua morada ou contacto), e, em sede da audiência de discussão e julgamento a que, depois, se procedeu nesse Processo Comum Coletivo nº 4/07.2ZCLSB, após ter prestado juramento legal, a arguida, questionada se quando veio trabalhar para Portugal pagou a alguém pela celebração do contrato de trabalho, respondeu, taxativamente, que não (“a pessoa disse que se eu ficar contente é que se lhe quiser pagar, pago. Se não quiser pagar eu não pago nada. Então eu não paguei nada. Disse obrigado e pronto”).

Perante tais depoimentos (um prestado pela ora arguida em sede de inquérito e outro prestado pela ora arguida em sede da audiência de discussão e julgamento), tão flagrantemente contraditórios entre si, é de concluir que a arguida, agindo desse modo, sabia que prestava testemunhos contraditórios, sabia que faltava à verdade, atuou com esse propósito e sabia que a sua conduta era proibida e punível por lei.

Os elementos do tipo subjetivo do crime de falsidade de depoimento imputado à arguida provam-se, pois, por prova indireta, ou seja, a partir da mera constatação dos factos objetivos, conjugada com as regras da experiência comum.

Por outras palavras: face à prova da materialidade da conduta da arguida e respetiva imputação objetiva, a conclusão sobre o preenchimento dos elementos do tipo subjetivo de ilícito é, in casu, óbvia.

Com efeito, e como muito bem se escreve no Ac. do T.R.P. de 23-02-1983 (in BMJ, nº 324, pág. 620), “dado que o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto, de natureza subjetiva, insuscetível de direta apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infração. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência”.

Na maioria dos casos, o dolo, o conhecimento do seu sentido ou significação, acaba por ser dado como provado por intuição e convicção do tribunal, sem que haja testemunhas - nem as há - disso mesmo. O dolo, em função da sua natureza, e na generalidade dos casos, surge provado como circunstância conatural dos factos que constituem os elementos objetivos do crime.

Isto significa que, não derivando imediatamente da prova, mas deduzindo-se desta, constituindo uma ilação extraída dos factos objetivos, ou um prolongamento destes, não pode, como nos parece evidente, o tribunal fundamentar diretamente (em elemento de prova direta) a convicção de que o agente atuou com dolo.

Contudo, qualquer cidadão (não inimputável) sabe que, enquanto testemunha num determinado processo, não pode afirmar um determinado facto (claro e objetivo - “pagou a alguém para vir trabalhar para Portugal” -) em fase de inquérito (facto que responsabiliza criminalmente o arguido) e, depois, em audiência de discussão e julgamento, afirmar exatamente o contrário desse facto (“então eu não paguei nada. Disse obrigado e pronto”), de forma a tentar isentar o arguido de responsabilidade criminal.

Mais: qualquer cidadão (de são entendimento), além de saber ser proibida por lei uma tal conduta, sabe ainda que incorre em responsabilidade criminal se a adotar.

Na motivação do presente recurso parece esquecer-se, a propósito da questão agora em análise, que é lícito ao tribunal recorrer à prova por presunção judicial (ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido - artigo 349º do Código Civil -).

Como escreve a este propósito o Prof. Cavaleiro Ferreira (in “Curso de Processo Penal”, 1986, Vol. II, págs. 289 e 290), “(...) a verdade final, a convicção, terá que se obter (neste caso) através de conclusões baseadas em raciocínios, e não diretamente verificadas; a conclusão funda-se no juízo de relacionação normal entre o indício e o facto probando (…). Por outro lado, um indício revela com tanto mais segurança o facto probando, quanto menos consinta a ilação de factos diferentes”.

Ora, no caso destes autos, a Exmª Juíza, para decidir da matéria de facto, ponderou todas as provas de que dispunha, e avaliou-as à luz das regras da experiência comum, de acordo com juízos de normalidade, com a lógica das coisas e com a experiência da vida.

Como bem se salienta no Ac. do S.T.J. de 08-11-1995 (in BMJ, nº 451, pág. 86), “um juízo de acertamento da matéria de facto pertinente para a decisão releva de um conjunto de meios de prova, que pode inclusivamente ser indiciária, contanto que os indícios sejam graves, precisos e concordantes”. E acrescenta o mesmo acórdão que “as regras da experiência a que alude o artigo 127º têm um importante papel na convicção do Tribunal”.

À luz do que vem de dizer-se, foi dado como provado na sentença revidenda, e muito bem, que, “ao prestar os depoimentos em sede de inquérito e de julgamento supra referidos, cujos conteúdos são contraditórios, bem sabia a arguida que pelo menos um deles não correspondia à verdade e que agia de forma livre, deliberada e consciente de alterar a versão dos factos por si já relatada, com o propósito de prejudicar o Estado na administração da justiça, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”.

Ficaram provados, pois, como deviam, todos os elementos do dolo, sendo de improceder o recurso em todo este segmento.

Numa outra ordem de ideias, alega-se na motivação do recurso que o tribunal recorrido não se pronunciou, como devia, sobre a existência (ou não) de causas que excluam a ilicitude ou a culpa.

Em primeiro lugar, e ao invés do que vem alegado na motivação do recurso, a sentença revidenda pronunciou-se, expressamente, sobre a inexistência de causas que excluam a ilicitude ou a culpa, porquanto nela se escreveu o seguinte: “não se verificam quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, nem falta qualquer condição de punibilidade. Impõe-se, pois, concluir que a arguida incorreu, efetivamente, na prática, como autora material, do crime de falsidade de testemunho”.

Em segundo lugar, a arguida não alegou, em momento algum do processo, a existência de qualquer causa (ou causas) que excluam a ilicitude ou a culpa (a arguida não apresentou contestação, não suscitou, na audiência de discussão e julgamento, qualquer questão a tal propósito, e, na motivação do presente recurso, também não nos diz que causa de exclusão da ilicitude ou da culpa se verifica neste concreto caso).

Ora, não sendo invocada, pelos sujeitos processuais, a existência de causa (ou causas) que possam excluir a ilicitude ou a culpa, nem tal existência se vislumbrando numa apreciação oficiosa levada a efeito pelo tribunal, não tinha o tribunal a quo de se pronunciar, expressa e detalhadamente, sobre todas as eventuais circunstâncias excludentes da ilicitude ou da culpa, sob pena de a sentença se transformar num inútil exercício académico, onde são debatidos assuntos que ninguém trouxe à discussão e assuntos que, manifestamente, são totalmente deslocados da realidade das coisas e do próprio objeto da cognição judicial.

O que na sentença tem de se assegurar é que todos os factos alegados e todas as questões suscitadas (relevantes), quer pela acusação, quer pela defesa, e aqueles que resultaram da discussão da causa, sejam objeto de investigação e apreciação pelo tribunal, o que aconteceu in casu, não competindo ao tribunal a quo, num exercício académico, inócuo e inútil, analisar, um a uma, afastando-as, todas as inúmeras eventuais circunstâncias excludentes da ilicitude ou da culpa.

A apreciação, em substância, de tais circunstâncias (excludentes da ilicitude ou da culpa) só deve fazer-se, pois, quando as mesmas possam configurar-se (minimamente, ou em hipótese) em determinada situação, quando forem questionadas e/ou questionáveis, quando o seu conhecimento for relevante para a decisão sobre o mérito da causa, quando possuam alguma pertinência e base de sustentação, e não, como parece entender-se na motivação do recurso, de modo automático, obrigatório e generalizado.

Face ao exposto, também a segunda vertente do recurso não merece provimento.

Por tudo o predito, o recurso interposto pela arguida é totalmente de improceder.

III - DECISÃO
Nos termos expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso, mantendo-se integralmente a sentença recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.
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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 26 de junho de 2018

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(João Manuel Monteiro Amaro)

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(Maria Filomena de Paula Soares)