Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
967/19.5T8ABT.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
DOLO
Data do Acordão: 10/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - Não decorrendo da acusação particular deduzida pela assistente que a arguida tivesse agido voluntariamente e que tivesse sido livre no seu processo de decisão, não poderá tal facto extrair-se indiretamente dos restantes factos alegados na acusação.

II - Face à falta de integração na acusação particular da vontade livre de praticar os factos, ainda que viessem a ser dados como provados em sede de julgamento todos os factos aí imputados à arguida, não estaria o julgador habilitado a concluir ter a mesma praticado o crime de injúria simples previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal de que vem acusada, pelo que deverá a acusação ser rejeitada nos termos do disposto no artigo 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d) do Código de Processo Penal.

(sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:



Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - Relatório.
Nos presentes autos de processo comum singular que correm termos no Juízo Local Criminal de Abrantes, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, com o n.º 289/02.0GTSTR, foi proferido despacho de não recebimento da acusação particular apresentada pela assistente (...) contra a arguida (...), em virtude de a ter considerado manifestamente infundada, com fundamento na falta de indicação dos elementos subjetivos do crime de injúria imputado à arguida em tal peça processual.
Inconformada com tal decisão, veio a assistente interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:
“a) A honra é a dignidade subjectiva, ou seja, o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui. Dizem assim respeito ao património pessoal e interno de cada um – o próprio eu
b) No que respeita ao tipo subjectivo, não é necessário que haja dolo específico de ofender a honra ou consideração, basta aqui o dolo genérico, enquanto conhecimento ou consciência por parte do agente de que as expressões ou palavras que utiliza podem ofender a honra ou consideração da pessoa visada e de que tal conduta é proibida por lei.
c) A AP em apreço poderá não ser modelar em matéria de imputação à arguida da intenção, mas, descreve factualidade temporal e espacialmente localizada, objectivamente lesiva da honra e consideração da recorrente, nela estão narradas as expressões ofensivas, as circunstâncias em que foram dirigidas à assistente, a actuação livre da arguida
d) De tal exposição factual resulta a consciência do carácter ofensivo das palavras proferidas, associadas à vontade de as proferir, o que se mostra, em nossa opinião, suficiente para, vindo a comprovar-se, perfectibilizar o tipo legal de crime em causa.
e) A ilicitude do tipo de ilícito em apreço, é de todos conhecida, mostra-se, mesmo, contrário à experiência e à realidade da vida, pôr em dúvida se o agente sabe que é proibido injuriar.
f) A mera tentativa de uniformização do jargão judiciário e de facilitação do labor dos profissionais forenses, não pode transformar-se em fórmula sacramental, perante cuja ausência tudo soçobra e nada faz sentido.
g) A AP em causa cumpre os requisitos elencados no nº3 do art.º 285º do CPP, designadamente quanto ao elemento subjectivo, desde logo, no art.º 9 quando se afirma que “A arguida sabe que, com tal comportamento, viola bens jurídicos protegidos legalmente, designadamente a honra e a dignidade da aqui assistente e o próprio direito de propriedade desta” continuando, no art.º14º:“Agiu de forma ínvia e astuciosa, pretendendo descredibilizar a aqui assistente” e ainda o próprio art.º15º quando se diz “Aderindo ao perigo de assim vir a ofender os direitos de identidade e personalidade da assistente, constitucionalmente protegidos e legalmente acautelados, por antecipação, nas exigências da lei substantiva penal.”
h) Com todo o respeito andou mal a Mm Juiz ao considerar a ausência de factualidade relativa ao elemento subjectivo do crime, pois não olvida a recorrente que para que exista crime, necessário é o elemento objectivo e o elemento subjectivo.
i) Andou mal o Tribunal a quo, ao rejeitar a AP, que o MP acompanhou, “por esta não conter, como devia, a descrição do respectivo elemento subjectivo”
j) Por fim, sempre se dirá que, atendendo à factualidade vertida na AP, nada obsta que o Tribunal colmate, eventuais imperfeições, na audiência de discussão e julgamento, completando a respectiva descrição.
k) Assim, e por todo o expendido deverá a decisão de rejeição da AP, ser revogada e consequentemente, ser substituída por outra que receba a AP apresentada pela assistente e acompanhada pelo MP, com as legais consequências
l) Tudo por a decisão colocada em crise violar os normativos legais plasmados nos art.º 311º, nº2 al. a) e nº3 al. d), 283º nº3 al. b) ex vi art.º 285º nº3 todos do CPP e art.º 180º e 181º do CP..”

Termina pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que receba a acusação particular por si apresentada.
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O recurso foi admitido.
Na 1.ª instância, o Ministério Público, pugnou pela improcedência do recurso e pela consequente manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:
1. O dolo é composto pelo elemento intelectual e pelo elemento volitivo, devendo
ambos estar presentes na acusação, não podendo a sua integração ser feita na fase de julgamento, e não podendo nenhum destes elementos ser presumido, tem que ser alegada na acusação a vontade e a intenção de cometer o facto sob pena de violação do direito de defesa.
2. A assistente, na acusação deduzida, imputou à arguida uma atuação consciente que sabia ser proibida e punida, mas não livre e voluntária, ficando por saber, a vontade e intenção da arguida e se podia ter agido de outro modo.
3. Referir que a arguida “agiu de forma ínvia e astuciosa”, não releva, sempre com ressalva do respeito devido por diversa opinião, para efeitos da arguida querer a realização do facto, ou seja, não demonstra a razão de atuação da arguida, da sua intenção de agir daquele modo.
4. Até porque, o adjetivo “ínvio”, significa “intransitável”; e astucia significa “habilidade, esperteza”, que em nada se coadunam a caracterizar a vontade de atuação relativamente a um crime de injúria.
5. A acusação está votada ao insucesso, pois que os factos que integram o seu objecto não constituem crime por não preencherem, integralmente, o tipo de ilícito imputado, sendo manifestamente infundada, nos termos do disposto na alínea d) do nº 3 do art.º 311º do C.Processo Penal, constituindo motivo de rejeição nos termos da alínea a) do nº 2 do referido artigo..”
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Também a arguida, contra-alegou, defendendo a manutenção da decisão recorrida.
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O Exmo. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da sua improcedência.
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Procedeu-se a exame preliminar.
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.
Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação.
II.I Delimitação do objeto do recurso.
Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.
Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.
No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, é apenas uma a questão a apreciar e a decidir, a saber:
- Saber se a acusação particular deduzida pela assistente deverá considerar-se manifestamente infundada, concretamente por falta de consignação do elemento subjetivo do tipo imputado à arguida e, consequentemente, se deverá ser rejeitada ou se, ao invés, a mesma contém todos os elementos necessários ao seu recebimento.

II.II - A decisão recorrida.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que releva para a apreciação do recurso:
“(…) Rejeição da acusação particular pela prática do crime de injúria.
Nos termos do artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do Código do Processo Penal, a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
Os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança são aqueles que preenchem os elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito, no caso, do crime de injúria.
Para que se possa considerar que tais crimes tiveram lugar, necessário é que o agente tenha agido com o dolo exigido pelo tipo, ou seja, que o agente tenha atuado livre, voluntária e conscientemente – cfr. artigo 14.º do Código Penal.
O elemento subjetivo do tipo referido é um dos elementos constitutivos do mesmo, pelo que descrever factos injuriosos omitindo-se o dolo tem como consequência descrever factos insuficientes para serem tipificados, isto é, é descrever factos que não constituem crime.
Não está em causa se os factos imputados na acusação ao arguido são objetivamente ofensivos da honra e dignidade do assistente e que, como tal, preenchem os elementos objetivos do tipo legal do artigo 180.º do Código Penal. Acontece que o crime de difamação é um crime doloso. A noção de dolo é-nos dada pelo artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal, segundo o qual age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, atuar com intenção de o realizar. Segundo o Prof. Germano Marques da Silva, in «Direito Penal Português», vol. II, pág. 162, pode definir-se o dolo como a vontade consciente de praticar um facto que preenche um tipo de crime, constando a vontade dolosa de dois momentos: a) a representação ou visão antecipada do facto que preenche um tipo de crime (elemento) intelectual ou cognoscitivo); e b) a resolução, seguida de um esforço do querer dirigido à realização do facto representado (elemento volitivo).
No caso concreto, é manifesto que a acusação de fls. 104 a 107 verso não contém o elemento subjetivo do tipo de crime imputada à arguida.
Com efeito, nada nela se diz quanto à vontade e consciência do arguido de praticar um facto que preenche um tipo de crime.
É certo que no artº 6º da aludida acusação se refere as palavras indiciariamente proferidas pela arguida, as quais atentam contra a honra da assistente. Mesmo assim não se pode dizer que este facto preenche o elemento volitivo do tipo legal de crime de difamação, pois este preenche-se com a vontade de realização do facto e não com a intenção com que o agente age.
O elemento subjetivo não pode resultar como extrapolação e efeito lógico do conjunto dos factos objetivos que são imputados ao arguido na acusação do assistente (Vide acórdão da Relação de Guimarães de 7 de Abril de 2003, CJ, ano XXVIII, tomo 2, pág. 292.)
Não é admissível a ideia de uma presunção do dolo resultante da simples materialidade de uma infração, isto sem embargo de se poder operar a comprovação do dolo pelo recurso a presunções legais, coisa bem diferente, mesmo porque, salvo os casos de confissão por parte do agente de um crime, a prova do dolo tem de se inferir do conjunto da prova produzida na audiência de julgamento e, nomeadamente, de presunções legais.
O n.º 3 do artigo 311.º do Código de Processo Penal estabelece que “a acusação considera-se manifestamente infundada se os factos não constituírem crime”.
Entende Maia Gonçalves, a este propósito, que “acusação manifestamente infundada é aquela que, em face dos seus próprios termos, não tem condições de viabilidade”, (in Código de Processo Penal Anotado, 8.ª Edição, pág. 512).
Deste modo, e, ainda que todos os factos constantes da acusação viessem a ser provados na audiência de julgamento, sempre o resultado teria de ser a absolvição do arguido, assim sendo, a acusação particular deve ser rejeitada nos termos do aludido artigo 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), do Código de Processo Penal. No caso vertente, a acusação particular deduzida pela assistente, ainda que contenha a descrição genérica dos factos consubstanciadores dos elementos objetivos do crime imputado, não contém, como devia, a descrição do respetivo elemento subjetivo. Ora, como se vem dizendo, são precisamente os elementos subjetivos do crime, com referência ao momento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objetivo de ilícito), que permitem estabelecer o tipo subjetivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respetiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo direto, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira.
Tanto assim que, como afirma Figueiredo Dias, “(…) também estes elementos cumprem a função de individualizar uma espécie de delito, de tal forma que, quando eles faltam, o tipo de ilícito daquela espécie de delito não se encontra verificado” – “Direito Penal - Parte Geral”, tomo 1, 2ª Ed., pag. 379.
Sem a indicação dos elementos subjetivos do crime não seria perfectibilizada a imputação criminosa e sendo assim, jamais poderia ser proferida sentença de condenação do arguido.
Pelo exposto, rejeito a acusação deduzida pela assistente (…) contra a arguida (...), nos termos do disposto no artigo 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), do Código de Processo Penal.(…)”.

***

II.III - Apreciação do mérito do recurso.
Sobre a rejeição da acusação, dispõe o artigo 311.º, nº 2.º, al. a) e nº 3 do CPP, da seguinte forma:
“Artigo 3º
Saneamento do processo
1 - (…)
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) Rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
(…)
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) quando não contenha a identificação do arguido;
b) quando não contenha a narração dos factos;
c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) se os factos não constituírem crime».
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O dever de fundamentação, cuja violação o preceito transcrito comina com a rejeição da acusação aquando do saneamento dos autos, encontra-se intrinsecamente ligado ao dever imposto ao acusador pelo artigo 283.º CPP, concretamente na alínea b) do seu nº 3, de integrar na acusação, sob pena de nulidade «(…) b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; (…)».
Emerge tal dever de fundamentação como uma decorrência lógica e inevitável da estrutura acusatória do processo penal português, com respaldo constitucional no artigo 32.º, nº 5.º da CRP, de acordo com a qual ao acusador compete formular a acusação, competindo o julgamento a órgão distinto, o tribunal, e não cabendo a este modificar a peça processual que recebeu, designadamente aditando factos essenciais como sejam os constitutivos de elementos do tipo penal imputado ao arguido.
Tal regra processual penal encontra consagração expressa no regime da alteração substancial dos factos descritos na acusação, legalmente previsto nos artigos 359.º e 1.º, al. f) CPP.
Sobre a matéria que agora nos ocupa, encontramos jurisprudência uniformizada, fixada pelo Acórdão Uniformizador da Jurisprudência n.º 1/2015, que veio dissipar quaisquer dúvidas que pudessem subsistir sobre o tema, clarificando-o da seguinte forma: «falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do CPP.»
*
“In casu” o Tribunal "a quo" considerou a acusação particular manifestamente infundada em virtude de ter entendido que os factos constantes da acusação não preenchem o elemento subjetivo do crime de injúria.
Analisemos, antes de mais, o crime imputado pela assistente à arguida na acusação particular rejeitada na decisão recorrida. Trata-se de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal. De acordo com a previsão de tal norma penal, comete o crime de injúria simples, quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração.
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Consignamos que, pese embora a assistente refira no final da acusação que deduziu, que imputa à arguida a prática, não só de um crime de injúria previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal, mas também de um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180.º, n.º 1 do mesmo código, estamos em crer que o fez por lapso, pois que nenhum facto fez constar de tal peça que integrasse os elementos objetivos ou subjetivos de tal ilícito penal. Consabidamente, o crime de difamação implica que o agente se dirija a terceiro, imputando a outra pessoa, um facto ou formulando sobre ela um juízo ofensivo da sua honra e consideração, o que de todo não sucede na situação dos autos, pois que a acusação em análise apenas descreve a direção de palavras da arguida diretamente à assistente, nem tão pouco referindo a presença no local de qualquer outra pessoa.
O despacho recorrido apenas se reporta à acusação pelo crime de injúria, que rejeitou, nada referindo relativamente à acusação pelo crime de difamação, situação que não foi posta em causa pela recorrente. Sempre se dirá, porém, que relativamente a tal crime procedem todas as razões invocadas na decisão impugnada, às quais acrescem as que consignámos no parágrafo precedente e que, por maioria de razão, sempre conduziriam à rejeição da acusação.
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O crime de injúria concretiza-se num ataque direto, sem a intromissão de terceiros, à pessoa do ofendido, estruturando-se, consequentemente, numa relação de existência comunicacional bipolar e distinguindo-se nestes termos da difamação.
O bem jurídico protegido pela incriminação da injúria é a honra nas suas múltiplas refrações.
O Professor Costa Andrade salienta a distinção entre a honra interior ou subjetiva – opinião ou sentimento de uma pessoa sobre o seu próprio valor – e a honra exterior ou objetiva – a representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa, a chamada reputação ou bom-nome.
De acordo com os ensinamentos de Beleza dos Santos[1], a honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale.
A consideração é aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se devem julgar necessários a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração ou ao desprezo público.
Ou seja, a honra refere-se ao apreço de cada um por si, à autoavaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral; já a consideração refere-se ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social, ou ao menos de o não julgar um valor negativo.
Igualmente importante é a contextualização dos factos, ou seja, o carácter injurioso de determinada palavra ou ato é fortemente tributário do lugar ou ambiente em que ocorrem, das pessoas entre quem ocorrem, do modo como ocorrem.
O tipo objetivo do crime de injúria preenche-se, assim, com a imputação de factos ou com a direção ao visado de palavras ofensivas da sua honra ou consideração.
No que diz respeito ao elemento subjetivo, resulta do disposto no artigo 13.º do CP que só é punível o facto praticado com dolo, em qualquer das suas modalidades, ou seja, com consciência e vontade de realização dos elementos objetivos do tipo incriminador, conforme expressamente dispõe o artigo 14.º do Código Penal.
O tipo subjetivo do crime de injúria de que a arguida está acusada nos autos pressupõe, assim, uma conduta dolosa, traduzida numa atuação voluntária quanto à imputação de factos ou à direção de palavras, com consciência pelo agente de que as palavras dirigidas ou os factos imputados são ofensivos da honra ou consideração do visado.
Ora, é precisamente quanto a tal atuação voluntária que a acusação particular em análise é omissa. Efetivamente, quanto à imputação subjetiva da conduta à arguida, em tal peça processual apenas encontramos as seguintes referências:
- No artigo 9.º alega-se que “A arguida bem sabe que, com tal comportamento, viola bens jurídicos protegidos legalmente, designadamente, a honra e dignidade da aqui assistente (…)”;
- No artigo 13.º alega-se que “Ao apelidar a assistente de “mentirosa” a arguida bem sabe que viola aquele mínimo ético necessário à salvaguarda sócio-moral da pessoa/assistente, da sua honra e consideração”;
- Nos artigos 14.º e 15.º alega-se que a arguida “agiu de forma ínvia e astuciosa (…) aderindo ao perigo de assim vir a ofender os direitos de identidade e personalidade da assistente”.
Da circunstância de se alegar na acusação particular que “a arguida bem sabe que, com tal comportamento, viola bens jurídicos protegidos legalmente, designadamente, a honra e dignidade da aqui assistente (…)” ou que “viola aquele mínimo ético necessário à salvaguarda sócio-moral da pessoa/assistente, da sua honra e consideração”, apenas se retira que a arguida sabia que as palavras que proferiu eram ofensivas da honra ou consideração da assistente e, portanto, injuriosas – o que se identifica como o elemento cognitivo do dolo.
De igual modo, a alegação constante dos artigos 14.º e 15.º, “agiu de forma ínvia e astuciosa” “aderindo ao perigo de assim vir a ofender os direitos de identidade e personalidade da assistente”, também em nada releva para efeitos de aí podermos encontrar a alegação da vontade da arguida de ter querido realizar os factos, ou de os ter realizado livremente, consubstanciando-se tal alegação apenas na descrição qualificativa do modo de atuação da agente e no conhecimento das eventuais consequências da sua conduta.
Não decorre assim da peça processual em análise que a arguida tivesse agido voluntariamente e que tivesse sido livre no seu processo de decisão, nem tal facto se poderá, a nosso ver, extrair indiretamente dos restantes factos alegados na acusação.
Partilhamos do entendimento expresso na motivação de recurso da assistente no sentido de que “A mera tentativa de uniformização do jargão judiciário e de facilitação do labor dos profissionais forenses, não pode transformar-se em fórmula sacramental, perante cuja ausência tudo soçobra e nada faz sentido” e quando refere que“No Direito forma e substância são como duas faces da mesma moeda. O Direito é, por natureza, formalista, radicando a sua matriz ontoantropológica no equilíbrio entre a segurança e a liberdade”. Sucede, porém, que a rejeição da acusação particular deduzida nos autos pela recorrente, ao contrário do que a mesma alega na referida motivação, não assentou na valorização excessiva da forma – através da consideração da inevitabilidade da utilização das chamadas “fórmulas sacramentadas” ou dos “jargões judiciários – ou na primazia da forma sobre a substância, encontrando-se, outrossim, suportada por uma análise cuidada dos factos invocados, com atenção ao seu significado, com vista a avaliar-se se nos mesmos caberia materialmente a alegação do elemento subjetivo do tipo formalmente em falta. Concluiu o julgador que a descrição factual não continha tal alegação, nem formal, nem materialmente, e cremos que concluiu com acerto.
Efetivamente, deveria a descrição dos elementos constitutivos do dolo ter sido feita através de factos concretos dos quais resultasse, de forma inequívoca, a modalidade do dolo (com a afirmação de que quis ofender; ou, tendo previsto que ofenderia, que ainda assim, decidiu agir; ou que, tendo admitido que pudesse ofender, se conformou com tal possibilidade), a acrescer aos factos relativos à consciência de que aquelas concretas palavras dirigidas à assistente eram ofensivas da sua honra ou do seu bom nome.
Convoquemos novamente a este propósito o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015, de 20 de Novembro, no qual podemos ler relativamente ao dolo, que a sua alegação deverá ser feita através de uma «fórmula em que se imputa ao agente o ter atuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).».
A verdade é que o modo como a acusação particular aqui sindicada se mostra elaborada não contempla todos os elementos do dolo com referência à atuação da arguida, pois que, como bem refere o Ministério Público nas suas contra-alegações, da leitura de tal peça retiramos que a arguida sabia que ao proferir as expressões aí mencionadas ofendia a honra e consideração da assistente, mas ficamos contudo sem saber se a arguida atuou com vontade que tal sucedesse.
Somos assim a concluir que a factualidade imputada à arguida na acusação particular deduzida nos autos pela assistente não preenche a totalidade dos elementos do tipo penal do crime de injúria, pois que, no que diz respeito ao elemento subjetivo, apenas se alegam factos que se traduzem no elemento cognitivo do dolo – conhecimento e consciência da arguida de que os factos que as palavras que dirigia à ofendida eram ofensivos da sua honra ou consideração – faltando na referida peça processual os factos que corporizariam o elemento volitivo do dolo – a vontade livre da arguida de praticar os factos.
Importa reter que, face à falta de integração na acusação particular da vontade livre de praticar os factos, ainda que viessem a ser dados como provados em sede de julgamento todos os factos aí imputados à arguida, não estaria o julgador habilitado a concluir ter a arguida praticado o crime de injúria simples previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal de que vem acusada.[2]

Nesta conformidade e não constituindo os factos consignados na acusação particular da assistente deduzida nos autos um crime de injúria simples, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal, não poderá tal acusação deixar de considerar-se manifestamente infundada, o que conduz necessariamente à sua rejeição, nos termos do disposto no artigo 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d) do Código de Processo Penal). ***
III- Dispositivo.
Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, em confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s. (art.º 515.º, n.º 1, alínea b) do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)

(Processado em computador e revisto pelo relator)

Évora, 26 de outubro de 2021
Maria Clara Figueiredo
Maria Margarida Bacelar
Sumário
I - Não decorrendo da acusação particular deduzida pela assistente que a arguida tivesse agido voluntariamente e que tivesse sido livre no seu processo de decisão, não poderá tal facto extrair-se indiretamente dos restantes factos alegados na acusação.
II - Face à falta de integração na acusação particular da vontade livre de praticar os factos, ainda que viessem a ser dados como provados em sede de julgamento todos os factos aí imputados à arguida, não estaria o julgador habilitado a concluir ter a mesma praticado o crime de injúria simples previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal de que vem acusada, pelo que deverá a acusação ser rejeitada nos termos do disposto no artigo 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d) do Código de Processo Penal.

[1] in “Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e de injúria”, RLJ, 92º -164.
[2] Vide, neste sentido, entre outros, os seguintes acórdãos: Acórdão desta Relação, que teve como relator o Desembargador Nuno Garcia de 12.01.2021, proferido no processo nº 482/19.7T9FAR.E; Acórdão da Relação de Lisboa de 27.01.2021, relatado pelo Desembargador Rui Teixeira no processo nº 1086/18.3LSB.L1-3, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.; Acórdão da Relação de Coimbra de 13.09.2017, relatado pela Desembargadora Brízida Martins, no processo nº 146/16.3CBR.C1; Acórdão da Relação de Coimbra de 07.03.2018, relatado pelo Desembargador Orlando Gonçalves, no processo nº 189/14.1PFCBR.C1 e Acórdão da Relação de Coimbra de 15.05.2019, relatado pelo Desembargador Vasques Osório, no processo nº 267/16.2T9PMS.C1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.