Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
135/14.2GBABF
Relator: FERNANDO PINA
Descritores: BUSCA DOMICILIÁRIA
CONSENTIMENTO
ARRENDATÁRIO
PROPRIETÁRIO
Data do Acordão: 04/07/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O consentimento para a busca domiciliária deve ser prestado pelo arrendatário da casa e não pelo proprietário da mesma.
Ocorre manifesta violação do disposto nos artigos 34°, nº 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 174°, nºs 2, 3 e, 5, 177°, nº 1 do Código de Processo Penal se a busca não é autorizada pelo arrendatário que ali tem o seu domicílio.
O que tem por consequência a impossibilidade de utilização do que foi encontrado na casa, ou seja, a proibição de valoração, nos termos prevenidos pelo artigo 126°, nº 3, do Código de Processo Penal.
Decisão Texto Integral:


ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÂO DE ÉVORA:



I. RELATÓRIO

A –
Nos presentes autos de Inquérito que com o nº 135/14.2GBABF, correm termos na Comarca de F - P – Instância Central, 2ª Secção de Instrução Criminal - Juiz 1, recorre o Ministério Público, do despacho de não pronúncia dos arguidos FFS, BMBR e, ACSM, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro e, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º, nº 1, alínea c), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, pelos quais haviam sido acusados pelo Ministério Público.
Da respectiva motivação o recorrente retira as seguintes (transcritas) conclusões:

1. Constitui objecto do presente recurso a decisão instrutória proferida no processo supra referido, na parte em que o Mmo. Juiz não pronunciou os arguidos FFS, BMBR e ACSM pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art° 21°, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22-01 e, um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo art° 86°, nº 1, alínea c), da Lei nº 5/2006, de 23-02, pelos quais haviam sido acusados pelo Ministério Público.
2. Tendo em consideração os elementos indiciários recolhidos nos autos, o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos FFS, BMBR, LAS, HDC e ACSMs, imputando-lhes a prática em co-autoria material e na forma consumada, entre outros, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art° 21°, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22-01 e, de um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo art° 86°, nº 1, alínea c), da Lei nº 5/2006, de 23-02.
3. Em sede de requerimento de abertura da instrução veio o arguido FS alegar, em súmula, que as provas constantes dos autos são fracas, ilegais e manifestamente insuficientes para que possam amparar os factos aí descritos, referindo expressamente que não está suficientemente indiciado que o requerente da instrução tenha participado no sequestro de JMML ou participado nos factos de que foi vítima SJCV, referindo ainda que existem meios de prova indicados pela acusação que não podem ser considerados válidos, e por isso, insusceptíveis de apoiar a acusação.
4. Nada mais alegou o arguido FS, em sede de requerimento de abertura de instrução.
5. Em sede de debate instrutório, o arguido FS, por via do seu mandatário, e após sugestão do Mmo. Juiz de discussão da questão relacionada com a imputação do crime de tráfico de estupefacientes, acabou por alegar que a busca efetuada no dia 16-05-2014 à casa arrendada pelos arguidos FS e ACM é nula, pois que foi efetuada sem que tivesse sido obtida autorização dos visados, arrendatários da casa.
6. Na decisão instrutória, o Mmo. Juiz "a quo", após fazer menção às provas indiciárias recolhidas no inquérito, não pronunciou os arguidos FFS, BMBRe ACSM pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art° 21°, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22-01, e de um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo art° 86°, nº 1, alínea c), da Lei n° 5/2006, de 23-02.
7. Salvo o devido respeito pela posição defendida pelo Mmo. Juiz "a quo", não podemos concordar com o despacho de não pronúncia dos arguidos FFS, BMB e ACSMs.
8. A questão que V. Exas. são chamadas a resolver, por via da análise do recurso ora interposto, é a de saber, se a casa onde no dia 16-05-2014 foram encontrados os objectos constantes do auto de apreensão de fls. 1039 a 1043, era o domicílio dos arguidos FS, ACM e BMB, caso em que seguramente concordarão com o douto despacho de não pronuncia proferido pelo Mmo. Juiz "a quo", ou se aquela casa era apenas um armazém de depósito de objectos, caso em que V. Exas. seguramente concederão provimento ao recurso ora interposto, considerando que a apreensão de tais objectos não é nula.
9. No decurso do inquérito, foram realizadas pela Polícia Judiciária várias diligências com vista ao cumprimento dos mandados de detenção fora de flagrante delito emitidos pelo Ministério Público em 21-02-2014 (e renovados em 11-04-2014 e 13-05-2014) para detenção do arguido FS, por resultarem dos autos indícios da prática pelo mesmo do crime de sequestro e do crime de ofensas à integridade física, p. e p. nos art.s 158º e 143º do Código Penal, bem como, do crime de detenção de arma proibida p. e p. no art° 86°, nº 1, alínea c) da Lei nº 5/2006, de 23-02.
10. Em 12-05-2014 os Inspectores da Polícia que realizavam diligências no sentido de localizar o arguido FS e assim cumprir os mandados de detenção fora de flagrante delito emitidos pelo Ministério Público, apuraram junto da "EDP", em F, que a arguida ACM havia celebrado, em 16-01-2014, um contrato de fornecimento de electricidade, para a casa sita no Caminho Cerro do P Nº 10 - M, T, L;
11. Nesse mesmo dia – 12-05-2014 - os mesmos Inspectores da Polícia Judiciária deslocaram-se ao local, com vista ao cumprimento dos mandados de detenção que possuíam para cumprimento, tendo constatado que naquele local não se encontrava nenhuma viatura automóvel, não tendo detectado qualquer movimento de pessoas, sendo um local isolado, o que, na sua óptica, constituiria um bom local para alguém se esconder das autoridades.
12. No dia 13-05-2014, os mesmos Inspectores da Polícia Judiciária, deslocaram-se novamente para a casa sita no Caminho Cerro do P Nº 10 - M, T, L, local onde, nas suas imediações, montaram um dispositivo de vigilância, com vista a apurar se existiria algum movimento de pessoas e/ou veículos, tendo constatado a não ocorrência de qualquer movimento.
13. No dia 16-05-2014, vários Inspectores da Polícia Judiciária deslocaram-se ao Caminho Cerro do P N° 10 - M, T, L, local onde, em conversa com FL, proprietário aludida casa, foram informados que havia sido celebrado um contrato de arrendamento daquela casa com ACM, a qual estava acompanhada pelo seu marido, um indivíduo de nome F, e por um outro indivíduo, arrendamento por um ano, tendo aquele acordado verbalmente com a ACM e o F, que de proprietário e senhorio, poderia entrar na casa sempre que desejasse ou caso tivesse algum interessado na compra do imóvel, até porque lhes foi dito que os mesmos raramente vinham a Portugal, pois passavam largas temporadas em Espanha. Informou ainda o proprietário da casa que sempre que passou junto à mesma, esta encontrava-se vazia e sem qualquer iluminação nocturna.
14. Com vista a obter algum elemento informativo relativo à localização do arguido FS, que lhes permitisse cumprir os mandados de detenção fora de flagrante delito de que eram possuidores, e uma vez que já haviam obtido a informação de que o denunciado a capturar não utilizava a casa como sua habitação, os Inspectores da Polícia Judiciária solicitaram, então, ao proprietário da casa - FL - se lhes poderia facultar o acesso à aludida casa, tendo constatado, ao entrarem na mesma, entrada que foi realizada pela porta, com abertura da mesma através de chave de que FL era possuidor, que a mesma apresentava sinais de não ser utilizada há algum tempo, não dispondo mesmo de electricidade.
15. Foi na sequência da visita à supramencionada casa, que foram detectados os objectos constantes do auto de apreensão de fls. 1039 a 1043, que conduziram à acusação dos arguidos FS, ACM e BRpelos crimes de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art° 21° nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22-01 e, de detenção de arma proibida p. e p. pelo art° 86°, nº 1, alínea c), da Lei nº 5/2006, de 23-02.
16. Por douto despacho de 19-05-2014, o Magistrado do Ministério Público titular do Inquérito NUIPC 135/14.2GBABF validou os actos praticados pelo OPC.
17. No dia 04-07-2014, o Magistrado do Ministério Público titular do Inquérito NUIPC 135/14.2GBABF proferiu, nos autos, o seguinte douto despacho: "Consigna-se que se determinou a validação dos actos praticados pelo OPC a fls.1154, não apenas no que às apreensões efectuadas diz respeito, como mesmo à busca levada a cabo pela P J na casa, que não de habitação ou residência e que serviria apenas como armazém para depósito de armas e estupefaciente, por parte dos arguidos.
De facto, tal entrada em tal casa foi facultada pelo respectivo proprietário, sendo certo que os arguidos, arrendatários da mesma, tinham autorizado a entrada do senhorio na mesma sempre que o entendesse.
Isto, uma vez que a casa em causa não era obviamente habitação dos arguidos e era apenas utilizada como depósito e armazém, sendo certo que nem tinha electricidade e que nenhuma condição para habitação apresentava ou apresenta”.
18. Importa, pois, Alisar se a casa onde os Inspectores da Polícia Judiciária entraram, entrada que lhes foi facultada pelo proprietário da mesma, se enquadra no conceito de domicílio, tutelado pelo nº 1 do art° 177° do C.P.P.
19. O domicílio corresponde, segundo o entendimento dos nossos Tribunais Superiores - citados na motivação de recurso - a um local onde:
- "Recatadamente e livremente, se desenvolve toda uma série de condutas e procedimentos característicos da vida privada e familiar";
- Se praticam "actos relacionados com a vida familiar e com a esfera íntima privada";
- "Se faz a vida diária";
- "Se permanece";
- "Se vivem momentos de ócio";
- "Se descansa";
- "Se convive";
- "Se tomam as refeições";
- "Se pernoita";
- "Se desenvolve toda uma série de condutas e procedimentos característicos da vida privada e familiar".
20. Sendo este o conceito de domicílio protegido pelo art° 34°, n° 1, da Constituição da República Portuguesa, e subsequente protegido pelo art° 177° do C.P.P., é nosso entendimento, que a casa onde foram apreendidos os objectos arrolados a fls. 1039 a 1043 dos autos, não era o domicílio dos arguidos FS, ACM e B Rocha, nem sequer se tratava de uma casa habitada.
21. O proprietário da casa arrenda nunca viu qualquer movimento ou, sequer, luz no interior ou exterior da casa, apresentando a mesma sinais de não ser utilizada há algum tempo, não dispondo mesmo de electricidade.
22. De tal forma a casa apresentava sinais de não ser utilizada que o proprietário da mesma, conjugando essa circunstância com a falta de pagamento da renda e a ausência de notícia dos arrendatários, assumiu que os arrendatários nunca mais voltariam à casa.
23. Acresce que, questionamos mesmo que se considere que na casa supramencionada tenha sido realizada uma busca, no sentido técnico-jurídico consagrado no artº 174° n° 2 do C.P.P., pois que os Inspectores da Polícia Judiciária não procuravam naquela casa nenhum objecto relacionado com os crimes de sequestro, ofensas à integridade física e detenção de arma proibida, crimes esses em investigação no inquérito NUIPC 135/14.2GBABF, nem tão pouco o arguido FS, que sabiam não viver ali nem ali fazer a sua vida particular ou íntima.
24. Os arguidos não faziam naquela casa qualquer vida diária, não permaneciam nela, não conviviam nela, não tomavam refeições, não pernoitavam e não desenvolviam qualquer série de condutas e procedimentos característicos da vida privada e familiar, apenas a usando como armazém de objectos.
25. Afigura-se-nos que não se poderá considerar que aquela casa onde os objectos supramencionados foram apreendidos, era a casa de habitação dos arguidos ou era o seu domicílio.
26. Ainda que assim não se considere, sempre se deverá entender que os Inspectores da Polícia Judiciária entraram validamente na supramencionada casa, com autorização do proprietário da mesma, que para o efeito possuía chave, e se mostrava autorizado a nela entrar, sempre que o entendesse, e bem assim, a facultar o acesso à casa, a quem entendesse.
27. Assim sendo, os objectos arrolados a fls. 1039 a 1043 dos autos foram validamente apreendidos, tendo a apreensão sido validada por despacho da autoridade judiciária competente, motivo pelo qual, entendemos que da análise de todos os elementos indiciários recolhidos, resulta dos mesmos, na nossa modesta opinião, que os arguidos FS, ACM e BR devem ser pronunciados pelos crimes de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art° 21°, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22.01 e, de detenção de arma proibida p. e p. pelo art° 86°, nº 1, alínea c) da Lei nº 5/2006, de 23-02.
28. Ao não pronunciar os arguidos pela prática desses crimes, o Mmo. Juiz de Instrução a quo violou o disposto nos artigos 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22-01 e, 86°, nº 1, alínea c), da Lei nº 5/2006, de 23-02., bem como o disposto nos artigos 307° e 308°, nº 1l e 2 e 283° nº 1 e 2, todos do Código de Processo Penal.
Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogado o douto despacho ora recorrido e, em sua substituição, ser proferida decisão que pronuncie os arguidos FS, ACM e BRpelos crimes de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art° 21°, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22-01 e, de detenção de arma proibida p. e p. pelo art° 86°, nº 1, alínea c), da Lei nº 5/2006, de 23-02.
Decidindo assim, farão Vossas Excelências Justiça.

Notificados os arguidos nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413º, do Código de Processo Penal, apenas o arguido FFS, apresentou resposta ao recurso interposto, não contendo a mesma quaisquer conclusões, mas pugnando pela improcedência do mesmo.

Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, pugnou pela procedência do recurso interposto, conforme melhor resulta do seu parecer junto a fls. 2434 a 2448, dos autos.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

B -
O despacho de 11-12-2014, ora recorrido, relativamente aos factos porque os arguidos não foram pronunciados, encontra-se fundamentado nos seguintes termos (transcrição):
“1.2.3. A factualidade conexa com o que se encontrou na casa.
Data dos factos: Início de Janeiro de 2014.
Local: casa sita no Caminho do Cerro do P, nº 10, Sítio da M, T, L.
Imputa factualmente o Ministério Público aos arguidos FS, A C e BMB, em co-autoria, o seguinte:
a) A detenção de um conjunto de armas e munições, não manifestadas nem registadas, sem que qualquer estivesse habilitado para o efeito, projectando-se essa imputação também em relação a uma arma transformada e,
b) A detenção, com destino à cedência a terceiros, de 15 placas de cAbis (resina) com o peso líquido de 1.452,700g com um grau de pureza de 18,2%.
O arguido não prestou declarações quanto a estes factos.
O lastro probatório é composto pelos seguintes elementos:
(i) RDE de fls. 1019 datado de 12/05/2014 (obtenção da informação da celebração de contrato de electricidade por parte de A C em 16/01/2014);
(ii) RDE de 13/05/2014 (vigilância - não se apercebem de movimento na casa ou de viaturas no exterior) a fls. 1023;
(iii) Cota/juntada datada de 14/05/2014 (descoberta da identidade do proprietário da casa e que esta consta de publicidade existente na internet onde se anuncia estar à venda) a fls. 1026-1027;
(iv) Informação de serviço datada de 16/05/2014 a fls. 1037 e sgs;
(v) Auto de apreensão a fls. 1039 e sgs (refere-se aos objectos que se encontravam no interior da casa e sua localização - documentos, armas, produto estupefaciente, etc.);
(vi) Reportagem fotográfica a fls. 1059 e sgs;
(vii) Auto de pesagem e teste rápido a fls. 1074 e sgs;
(viii) Declarações de FL Soares Vieira M a fls. 1075 e sgs (proprietário da casa);
(ix) RDE datado de 19/05/2014 a fls. 1091 (geradores e tem interesse por haver contacto do F com o proprietário);
(x) Reportagem fotográfica das armas, munições e, outros objectos encontrados na casa;
(xi) Autos de exame directo a fls. 1445 e 1446 (aqui estão geradores e um deles funciona);
(xii) Relatório do exame pericial às armas e munições a fls. 1530-1552;
(xiii) Exame pericial ao produto estupefaciente a fls. 1741.
A defesa colocou em causa a validade da busca à casa por não ter sido antecedida de mandados e não ser válido o consentimento prestado pois este não foi dado por qualquer dos visados, nomeadamente, pelo arguido F dos Santos,
Cumpre apreciar.
Podemos, mediante a análise dos referidos elementos, adiantar as seguintes premissas:
Em primeiro lugar, é líquido que sobre a casa foi celebrado um contrato de arrendamento escrito com a ACSMs, teria a duração de um ano e a renda mensal de 390,00€, pelo proprietário da mesma cf. declarações deste a fls. 1076.
Em segundo lugar, é evidente que os investigadores entraram com autorização do proprietário que, para tanto, lhes franqueou a porta;
Em terceiro lugar, é certo que a entrada na casa serviu para verificar o que estava no seu interior, as divisões que a compunham e, inclusive, a que estava fechada à chave (como a despensa onde se encontraram e apreenderam as armas, as munições, o cAbis e a balança), como resulta do teor e das menções efectuadas no auto de apreensão de fls. 1039 e sgs;
Em quarto lugar, como decorrência também dos elementos acima referidos (pontos I a V e VIII), é circunstância indiscutível que a entrada na casa, pelos investigadores no terreno, não se processou com base no cumprimento de mandados de busca emitidos por qualquer autoridade judiciária;
Em quinto lugar, certo é, outrossim, que, além das armas, munições e produto estupefaciente que estavam depositados dentro da despensa fechada à chave, encontraram-se outras coisas/objectos que apontam para a utilização que se faz, habitualmente, de uma casa destinada a habitação, como por ex., o rolo de papel de cozinha, a garrafa de azeite ou a luva de forno, objectos colocados em cima da mesa e visíveis na fotografia de fls. 1070, ou ainda, os documentos dirigidos/relacionados com três pessoas (os arguidos F, A e B) destacando-se, entre estes documentos, o recibo/factura da farmácia sita em L datado de 01/03/2014.
Em relação, por exemplo, ao recibo/factura da farmácia sita em L, a sua presença no interior da casa apenas é compatível temporalmente, de acordo com as regras de experiência, com uma de duas hipóteses:
Ou se efectuou a compra na farmácia e nesse mesmo dia a A M foi para a casa;
Ou a deslocação para a casa foi em um dia qualquer depois de a compra na farmácia ter sido efectuada foi efectuada, portanto, depois de 01/03/2014, o que, em qualquer uma das duas situações, aponta para a utilização/ocupação da casa ainda durante o mês de Março;
Em sexto lugar, a circunstância de a electricidade ter sido cortada (e não se sabe concretamente quando é que isto aconteceu) também não possui grande relevância pois lá foram encontrados dois geradores e um deles estava em perfeitas condições de funcionamento.
Em sétimo lugar, e por último, o que já não é tão seguro, anote-se, ante as menções efectuadas no auto de apreensão e as poucas fotografias colhidas no interior da casa, é termos condições, minimamente objectivas, para saber o que mais estava, como estava, ou o que mais existia, se é que existia, nas outras divisões da casa (de facto, não há sequer fotografias do interior dos quartos, da casa de banho, etc.).
Isto dito, detenhamo-nos, agora, em uma análise as declarações do proprietário da casa, o Sr. FM, prestadas a fls. 1075 e sgs.
Vamos fazê-lo, no entanto, tendo sempre presente o dito contrato de arrendamento (na sua versão escrita) não está nos autos mas existiu (como se apura das suas declarações), e se assinalamos isto, é para que fique bem presente que falta o elemento objectivo que, de jeito definitivo, poderia projectar valências várias para os contornos do acordo de vontade que o contrato sempre corporiza, sabido como é que, espaços de dúvida razoável sobre factos incriminatórios e que se mostrem inultrapassáveis devem ser resolvidos em prol do sujeito processual arguido como decorrência das suas garantias de defesa, artigo 32°, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
Assim, da leitura das declarações de FL, a propósito da entrada, consta o seguinte:
«Ficou acordado o tal F, a A e o depoente que este ali podia entrar sempre que assim o desejasse ou tivesse algum interessado na compra do imóvel, até porque o F e a A C não utilizavam o imóvel para ali dormir ou pernoitar, pois sempre que passava ali o imóvel apresentava-se devoluto e sem qualquer iluminação nocturna, servindo apenas para depósito de objectos» (sic).
Que dizer?
A ser como a testemunha refere, pese embora toda a estranheza que tanto cause, nomeadamente, a entrada por parte da mesma sempre que o desejasse, o "quadro de autorização" recorta-se assim:
Ele (proprietário) podia lá entrar sempre que o desejasse;
Ele (proprietário) podia lá entrar com outra(s) pessoa(s) caso esta(s) estivesse(m) interessa(s) na compra da casa.
O mais que diz, além disto, são inferências que ele retira, acertadas ou não, de outras circunstâncias que extravasam o aludido quadro de autorização.
São inferências ou conclusões, designadamente, estas suas palavras: «até porque o F e a A C não utilizavam o imóvel para ali dormir ou pernoitar, pois sempre que passava ali o imóvel apresentava-se devoluto e sem qualquer iluminação nocturna, servindo apenas para depósito de objectos».
Das suas declarações infere-se ainda que a renda foi paga até ao final de Março, cf. fls. 1076, «altura em que deixou de os ver, bem como, de receber qualquer renda ou ter qualquer notícia dos mesmos», como referiu.
Porém, não foi bem assim pois no mesmo depoimento a testemunha disse que voltou a ser contactado pelo F em 24 e 28 de Abril, contactos onde este prometeu encontrar-se com o depoente para pagar a renda, mas faltou aos encontros, fls. 1076-1077.
Ora, o depoente está a prestar as suas declarações no dia 16/05/2014, precisamente, no mesmo dia em que foi contactado pelos investigadores e permitiu o acesso destes ao interior da casa.
Aqui chegados, duas ilações importa, desde já, retirar:
A primeira: é que a entrada dos investigadores não se ajustou ao aludido "quadro de autorização" de que dá nota o proprietário FM pois, como este bem sabia, estava perante Inspectores da Polícia Judiciária, em exercício de funções, e não perante potenciais compradores, cf. fls. 1077;
A segunda: é que nem um mês passara sobre o último contacto estabelecido com o F.
Tudo visto e ponderado, até este momento, resulta lídima esta única conclusão:
A entrada dos investigadores na casa não ocorreu em conformidade com o inusual acordo de que deu nota o proprietário, nem tão pouco, agora convocando os demais elementos acima discriminados, no cumprimento de mandados de busca, nem, muito menos, com base no consentimento do(s) visado(s).
A "busca" que aí se efectuou e que redundou na apreensão dos objectos discriminados no auto de apreensão a fls. 1039 e sgs, objectos que ora se esgrimem como provas para os factos imputados sob apreciação, a "busca", podemos antecipar, não se enquadra validamente no ordenamento constitucional e processual vigente.
Explicitemos as razões da antecipada afirmação.
Não sofre dúvidas, em termos objectivos e com base nos elementos recolhidos, considerar que se entrou em uma casa construída para habitação.
Casa que havia sido arrendada a A C e que quando lá se entrou ainda vigorava o contrato de arrendamento.
Por outro lado, inexiste, nos autos, qualquer elemento de cariz objectivo que possa firmar ter sido arrendada a casa para outro fim que não o da habitação do arrendatário. Donde, considerando as características da casa e ante a já firmada existência do arrendamento será legítimo presumir, à luz das regras de experiência comum, que o contrato seria de arrendamento habitacional, ou em todo o caso, a não poder excluir que fosse esse o uso acordado para a casa.
Ora, a leitura constitucional do domicílio e, por inerência, da «habitação», não se restringe ou limita ao uso continuado, ininterrupto, de um único espaço. Tanto é habitação a que se usa nos dias úteis, como aquela outra que se usa aos fins-de-semA, como também aquela outra que se usa nas férias de verão.
Em qualquer destas casas podem acoitar-se "sinais de vivência existencial" dos seus utilizadores, que serão projecções (dos direitos fundamentais) da intimidade, da reserva da vida privada, do direito a estar só, da limitação do conhecimento dos outros (autodeterminação informacional), etc., direitos fundamentais para cuja protecção e salvaguarda se consagrou a inviolabilidade do domicílio p. no artigo 34° da Constituição da República Portuguesa.
O conceito, aliás, conclusivo, «casa de recuo» que se utiliza na narração da acusação tem a sua génese no jargão policial. Apela para um certo tipo de utilização que uma pessoa dá a uma casa. E a casa por ser de «recuo», seja lá o que isto possa significar, não deixa de ser um espaço que não é livremente acessível a qualquer pessoa. A casa construída e apta à respectiva funcionalidade, portanto, desde logo dotada de portas e outros mecanismos destinados a vedar a entrada, será, sempre, um espaço onde não se pode entrar sem mais.
Não é, por nunca, um espaço franqueado aonde, passe a expressão, «qualquer um do povo», possa aceder unicamente por sua exclusiva vontade.
Doutra banda, a conclusão de se tratar de «casa de recuo» não invalida o arrendamento anterior do espaço, e as projecções que daqui advêm, nem afecta a natureza de espaço não livremente acessível.
De outro lado ainda, a conclusão de se tratar de «casa de recuo» é, nestes autos e face aos elementos que existem, uma daquelas que só se pode firmar a posteriori, isto é, após a "devassa" ter sido levada a cabo e em função do que ali se viu ou encontrou e das valorações e ilações que daí se possam retirar.
Assim, de tudo o exposto se conclui que a entrada na casa não se ajusta às normas de permissão pré-existentes a tanto, ocorrendo manifesta violação do disposto no artigo 34°, nº 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, dos artigos 174°, nºs 2, 3 e 5, 177°, nº 1, ambos do Código de Processo Penal, o que tem por consequência a impossibilidade de utilização do que foi encontrado na casa, ou seja, a proibição de valoração, nos termos prevenidos pelo artigo 126°, nº 3, do Código de Processo Penal.
Inexistindo, por outro lado, qualquer elemento diverso que possa sustentar os concretos factos imputados aos arguidos e relacionados com o que na casa se descobriu, segue-se que a respectiva factualidade fica desnudada em termos de lastro probatório o que, por sua vez, acarreta, e só pode acarretar, que se não considerem suficientemente esse mesmos factos.
(…)
3 – Consequências:
(…)
Obtém-se a verificação de um controlo negativo sobre a decisão de acusar o arguido FFS pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21°, nº 1, do DL. 15/93, de 22/01 e, de um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 86°, nº 1, al. c), da Lei 5/2006, ilícitos estes que haviam sido imputados, em co-autoria material com os arguidos BMBRe ACSMs.
Considerando, porém, as razões que conduziram ao controlo negativo (a proibição de prova, rectius, a proibição de utilização ou valoração da prova), portanto, esta trave mestra, a presente decisão irá abranger, nesta parte, ao abrigo do disposto no artigo 307°, nº 4, do Código de Processo Penal, os arguidos BRe, A M que não requereram a abertura da instrução.
V. Decisão.
Por tudo o exposto decido:
I) NÃO PRONUNCIAR os arguidos FFS, BMBRe ACSMs pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21°, nº 1, do DL. 15/93, de 22/01 e, de um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 86°, nº 1, al. c), da Lei 5/2006, ilícitos que lhes haviam sido imputados, em co-autoria material, na acusação pública.
II) (…)






II – FUNDAMENTAÇÃO

1 - Âmbito do Recurso

De acordo com o disposto no artigo 412º, do Código de Processo Penal e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19-10-95, publicado no D.R. I-A de 28-12-95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria) o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.
Assim, vistas as conclusões do recurso interposto, verificamos que a questão suscitada é a seguinte:

- Incorrecta interpretação no despacho recorrido, do disposto no artigo 177º, do Código de Processo Penal, relativamente à busca realizada na casa sita no Caminho Cerro do P Nº 10 - M, T, L.

2 - Apreciando e decidindo:
Dispõe o artigo 177º, nº 1, do Código de Processo Penal, que “a busca em casa habitada ou numa sua dependência fechada só pode ser ordenada ou autorizada pelo juiz e efectuada entre as 7 e as 21 horas, sob pena de nulidade”.
Nos termos do artigo 174º, do Código de Processo Penal, sempre que houver indícios de que quaisquer objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, se encontrem em lugar reservado ou não livremente acessível ao público é ordenada busca.
As buscas são, em princípio, ordenadas por autoridade judiciária, podendo no entanto ser levadas a cabo por órgão de polícia criminal (OPC) sem precedência de mandado nos casos previstos no nº 5 daquele mesmo artigo 174º, designadamente no caso de consentimento do visado, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma documentado, conforme disposição expressa da alínea b), do citado nº5, do artigo 174º.
O supra citado artigo 177º, do Código de Processo Penal, que regula especialmente a busca domiciliária, igualmente admite a realização da busca por OPC com consentimento do visado, sem precedência de mandado, sem qualquer especialidade face ao regime geral.
Assim, independentemente de se tratar ou não, de um domicílio definido nos termos referidos no artigo 34º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, certo e indiscutível é que se trata de um lugar reservado ou não livremente acessível ao público, que para ser objecto da realização de busca por um OPC, sem o competente mandado de busca emitido por autoridade judiciária, terá de ser expressa e documentalmente autorizada pelo visado, que será quem tiver a livre disponibilidade em relação a esse lugar e, não necessariamente, a pessoa visada com a diligência ou seja o arguido.
A lei exige que o consentimento fique documentado, o que, para além de afastar a possibilidade de o consentimento ser tácito ou presumido, parece admitir que o registo possa ter lugar em qualquer suporte compatível com a noção de documento, ou seja admite qualquer forma de documentação.
Então, cumpre aferir casuisticamente, da legitimidade para dar consentimento válido e eficaz, legitimidade que assiste ao titular dos valores ou interesses em nome de cuja salvaguarda a lei decretou a inviolabilidade do espaço e, não necessariamente o arguido dos autos.
Assim, em caso de arrendamento de imóvel, seja para fins habitacionais, comerciais, industriais, agrícolas, recreio ou, quaisquer outros legalmente admissíveis, o consentimento só pode ser dado pela pessoa cuja privacidade/intimidade se exprime e realiza através do arrendado, ou seja o arrendatário, sendo certo que em todas estas situações, são estes, e não o proprietário, quem pode dar o referido consentimento, sendo o consentimento do proprietário ilegítimo e ineficaz e, este arrendatário poderá ser ou não o arguido, referindo-se o termo visado constante dos do artigo 174º, nº 5, alínea b) e, 177º, nº 4, do Código de Processo Penal, ao afectado pela violação da intimidade legalmente tutelada e, não o visado pelo processo instaurado ou a instaurar.
O consentimento do visado não é uma simples formalidade, mas sim um pressuposto ou condição de validade da busca, que tendo lugar fora dos casos legalmente previstos e sem consentimento do visado geram proibição de prova nos termos dos artigos 126º, nº3 e, 118º, do Código de Processo Penal e, nos termos do artigo 32º, nº 8 da Constituição, que determina que “são nulas todas as provas obtidas mediante (…), abusiva intromissão (…) no domicílio, (…)”.
Nestes termos constando dos autos, em que o consentimento para a busca realizada pelos Srs. Inspectores da Polícia Judiciária, na casa sita no Caminho Cerro do P Nº 10 - M, T, L, foi prestado pelo proprietário da mesma, FLM, sendo que mesma tinha sido arrendada à arguida ACSM e, independentemente, do acordo existente entre ambos, relativamente ao acesso ao arrendado, para efeitos de realização de uma busca domiciliária, nos termos do disposto no artigo 177º, nº 4, do Código de Processo Penal ou, de uma outra busca, considerando-se como não habitacional o arrendado, nos termos do disposto no artigo 174º, nº 5, alínea b), também do Código de Processo Penal, sempre teria de ser a referida arrendatária a única visada pela realização da busca em causa, no sentido de sujeita à violação da sua intimidade legalmente tutelada e, por tal, a única pessoa que nos termos das supra citadas disposições legais, teria legitimidade para autorizar a realização da busca em causa.
Por tudo o exposto, bem andou o Exmo. Sr. Juiz de Instrução, ao considerar que “se conclui que a entrada na casa não se ajusta às normas de permissão pré-existentes a tanto, ocorrendo manifesta violação do disposto no artigo 34°, nº 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, dos artigos 174°, nºs 2, 3 e, 5, 177°, nº 1, ambos do Código de Processo Penal, o que tem por consequência a impossibilidade de utilização do que foi encontrado na casa, ou seja, a proibição de valoração, nos termos prevenidos pelo artigo 126°, nº 3, do Código de Processo Penal.
Inexistindo, por outro lado, qualquer elemento diverso que possa sustentar os concretos factos imputados aos arguidos e relacionados com o que na casa se descobriu, segue-se que a respectiva factualidade fica desnudada em termos de lastro probatório o que, por sua vez, acarreta, e só pode acarretar, que se não considerem suficientemente esse mesmos factos”.
Pelo exposto e nos termos sobreditos, improcede o recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo-se por isso, na sua integralidade o despacho recorrido.
Sem custas.


III – DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Julgam totalmente improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, mantêm na sua integralidade o despacho recorrido.

Sem custas.

Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto.
Évora, 07-04-2015
(Fernando Paiva Gomes M. Pina)
(Renato Amorim Damas Barroso)