Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
46/13.9TBGLG
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURO AUTOMÓVEL
REENVIO PREJUDICIAL
Data do Acordão: 06/16/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A questão de saber se as companhias de seguro são responsáveis pelas indemnizações devidas aos lesados pela circulação de veículos automóveis quando o sinistro tenha sido «dolosamente provocado» nem sempre obteve solução semelhante ao nível da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça. Porém, sobretudo desde 2007, tem-se consolidado o entendimento que defende uma resposta afirmativa a tal questão.
II - Não obstante, o caso dos autos encerra uma particularidade específica: a de saber se a precedente conclusão é aplicável ao caso em que o proprietário de um veículo automóvel e tomador do seguro é o lesado por danos que lhe foram causados pelo seu próprio veículo, conduzido por um terceiro que o furtara, e que com o mesmo, de forma intencional, o atropelou.
III - Em matéria de seguro de responsabilidade civil automóvel as disposições legislativas nacionais, à luz das quais se determina a existência e extensão do direito de indemnização do lesado vítima de um acidente de viação, não podem comprometer a efectividade das disposições de Direito da União Europeia relativas a este tipo de seguro, não se podendo ignorar que a ideia fundamental subjacente à acção directa é, precisamente a garantia e a protecção do lesado.
IV - Considerando que existem dúvidas fundadas quanto à conformidade dos artigos 14.º, n.º 2, alínea b), e 15.º, n.º 3, primeira parte do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, com o direito comunitário, e que nos termos do considerando 20 da Directiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Setembro de 2009, «deverá ser garantido que as vítimas de acidentes de veículos automóveis recebam tratamento idêntico, independentemente dos locais da Comunidade onde ocorram os acidentes», a fim de esclarecer estas dúvidas e assegurar o respeito pelos referidos princípios do Direito da União Europeia, entende este Tribunal ser conveniente suscitar, oficiosamente, o reenvio prejudicial previsto no artigo 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, previamente à decisão de mérito da causa, relativamente à questão que seguidamente se enuncia:
Em caso de acidente de viação do qual resultaram danos corporais e materiais para um peão que foi intencionalmente atropelado pelo veículo automóvel de que era proprietário, que se encontrava a ser conduzido pelo autor do respectivo furto, o direito comunitário, designadamente os artigos 12.º, n.º 3, e 13.º, n.º 1, da Directiva 2009/103/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, opõe-se à exclusão pelo direito nacional de qualquer indemnização ao referido peão em virtude de o mesmo ter a qualidade de proprietário do veículo e tomador do seguro?
Decisão Texto Integral:




Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1]:

I – RELATÓRIO
AA instaurou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário contra BB - Companhia de Seguros, SA, pedindo que a mesma seja condenada a pagar-lhe uma indemnização no montante total de € 210.641,00, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida dos juros legais, a contar da citação.
Em fundamento, alegou, em síntese, que no dia 26 de Abril de 2009, o seu veículo de matrícula VG-06-41 foi furtado, tendo o autor, que havia transferido a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros pelo referido veículo para a Ré, sido intencionalmente atropelado pela pessoa que o conduzia, sofrendo danos cujo ressarcimento reclamou.

2. Regularmente citada, a ré contestou, invocando a excepção de prescrição, uma exclusão de cobertura e impugnando alguns dos factos alegados pelo Autor, concluindo pugnando pela respectiva absolvição do pedido.

3. O autor replicou, defendendo não haver decorrido o prazo de prescrição, que no caso é de 5 anos, e concluiu pugnando pela improcedência das excepções deduzidas.


4. Foi realizada a audiência prévia conforme acta de fls. 236 a 243, na qual foi proferido despacho saneador, onde foi apreciada e considerada improcedente a excepção de prescrição alegada pela Ré e foi fixado o objecto do litígio e os temas da prova.

5. Realizada a audiência final, foi seguidamente proferida sentença que julgou improcedente a acção, absolvendo a Ré do pedido.

6. Inconformado, o autor apresentou o presente recurso da sentença proferida, com requerimento de subida per saltum para o STJ, encerrando as suas alegações com as seguintes conclusões:
«1 – Em 29 de Abril de 2009 (um desconhecido) furtou um veículo automóvel ao recorrente.
2 – De seguida, conduzindo esse veículo, o dito desconhecido atropelou o recorrente,
3 – Tendo-lhe causado as graves lesões e os consequentes prejuízos provados nos autos.
4 – Mas na douta sentença recorrida não se atribuiu qualquer indemnização ao recorrente, por se ter entendido que o recorrente não poderia ser ressarcido dos danos que sofreu, nos termos do nº 3 do artº 15º do Dec-Lei nº 291/2007, por ser o proprietário do veículo com que foi atropelado.
5 – Mas terá que fazer-se uma interpretação restritiva do nº 3 desse artº 15º, no sentido de que nele só se excluem as indemnizações dos danos materiais do proprietário do veículo nos casos de roubo, furto ou furto de uso de veículos, dado que o que o legislador pretendeu foi que o proprietário visse garantidos aqueles danos materiais sem ter contratado um seguro de danos próprios,
6 – Sendo certo que o legislador não previu a ocorrência dum acidente como o dos autos: roubar-se um carro e atropelar-se com ele o respectivo dono.
7 – A aplicação do dito nº 3 do artº 15º feita na douta sentença recorrida, sendo moralmente repugnante, é repugnada pelo Direito Comunitário.
8 – O Direito Comunitário e o Supremo Tribunal de Justiça português têm decidido uniformemente que o contrato de seguro obrigatório automóvel tem a natureza de garantia social ou de contrato a favor de terceiro lesado, que o seu objectivo central é o da protecção das vítimas de acidentes de viação, assegurando da forma mais alargada possível o ressarcimento dos danos sofridos por eles, e que o dito contrato assume uma feição de interesse público.
9 – Também que o primado desse contrato reside na protecção das vítimas corporais, ressarcindo todos quantos não sejam o próprio condutor, por acidente que não tenham causado.
10 – O cerne da questão da indemnização dos danos do recorrente reside na análise da sua posição no sinistro dos autos – que é inequivocamente de terceiro,
11 – Porque foi atropelado por um veículo conduzido por outrem.
Certo que esse veículo era seu, mas, quando foi atropelado, o recorrente tinha sido despojado da posse e detenção desse veículo, não tendo a direcção efectiva do mesmo. O recorrente foi de todo estranho à conduta do atropelante, ao comportamento que o lesou.
12 – A 3ª Directiva Automóvel, que já constitui direito interno português, fixou que o primado do seguro obrigatório automóvel é o da protecção das vítimas corporais, que deverão ser ressarcidas dos danos corporais de que forem vítimas de acidente rodoviário não por si próprias causado.
13 – Contrariamente ao entendimento anterior, hoje, em matéria de acidente de viação, terceiro é todo aquele que possa imputar a responsabilidade do acidente a outrem – não se podendo negar que o recorrente pode imputar ao desconhecido que lhe furtou o veículo a responsabilidade pelo atropelamento que sofreu,
14 – Consequentemente, o recorrente, neste caso, é terceiro e tem que ser tratado como terceiro, pelo que se deve condenar a recorrida a prestar ao recorrente a indemnização devida pelos danos corporais que sofreu, no montante que neste Tribunal se fixar; se assim se não entender deve ordenar-se a remessa dos autos ao Tribunal recorrido – para nele se determinar o montante daquela indemnização.
15 – A douta sentença recorrida violou os artºs 483º, 496º e 562º do Código Civil por ter julgado que o artº 15º-3 do Dec-Lei nº 291/2007 exclui o direito do recorrente ao ressarcimento dos seus danos.
16 – O valor desta causa é superior à alçada da Relação tal como o valor da sucumbência, que foi total – sendo portanto superior a metade da alçada da Relação – e só são suscitadas questões de direito neste recurso, pelo que se requer que suba directamente ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto no artº 678º do Cód. Proc. Civil.
Termos em que se deve promover este recurso».

7. A ré seguradora apresentou contra-alegações, que finalizou com as seguintes conclusões:
«I. Decidiu bem o Tribunal a quo ao considerar que, nos termos do art.º 15.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, “não caem no âmbito da responsabilidade das seguradoras, o pagamento das indemnizações devidas por acidentes provocados dolosamente com veículos furtados, em que o proprietário do veículo furtado é o tomador do seguro e é o lesado.”
II. A interpretação restritiva proposta pelo Recorrente para o referido art.º 15.º, n.º 3 (no sentido de que nele só se contemplam indemnizações dos danos materiais) carece de fundamento legal.
III. A interpretação proposta pelo Recorrente viola o n.º 1 do art.º 9 do Código Civil, porquanto, considerando os antecedentes históricos da norma (em particular o art.º 6.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 165/75, de 28 de Março, e o art.º 5.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 408/79, de 25 de Setembro) verificamos que foi intenção específica do legislador excluir todos os tipos de danos relativos a situações como a dos presentes autos.
IV. A interpretação proposta pelo Recorrente viola também o n.º 1 do art.º 9 do Código Civil, porquanto colidiria, em particular, com a unidade do próprio diploma e, em geral, com instituto da Responsabilidade Civil, pois, o seguro destina-se a garantir a responsabilidade de “Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos causados a terceiros por um veículo terrestre a motor…”, sendo que “A obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo,…”, pelo que admitir que a pessoa responsável pela introdução, em sociedade, do risco trazido pela mera existência (e suscetibilidade de circulação) de um veículo automóvel, ficasse protegida, ela própria, ao abrigo do instituto da Responsabilidade civil, como se de um terceiro se tratasse, seria a subversão completa de tal instituto, pois um seguro baseado na Responsabilidade Civil destina-se garantir os danos de terceiros, e não os daqueles cuja responsabilidade visa ele próprio garantir.
V. A interpretação proposta pelo Recorrente viola o n.º 2 do art.º 9.º do Código Civil, porquanto não encontra na letra da lei o mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
VI. A interpretação proposta pelo Recorrente viola o n.º 3 do art.º 9.º do Código Civil, porquanto a norma não distingue entre danos materiais e quaisquer outros (como sucede noutros artigos do mesmo diploma), devendo presumir-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
VII. Aplicando-se a interpretação proposta pelo Recorrente à norma em causa, verificar-se-ia que a seguradora ficaria obrigada a indemnizar também os danos corporais sofridos pelos autores do furto, os cúmplices, e os passageiros transportados que tivessem conhecimento da detenção ilegítima do veículo e de livre vontade nele fossem transportados!...
VIII. Aplicando-se a interpretação proposta pelo Recorrente à norma em causa, a mesma, relativamente ao proprietário, tornar-se-ia redundante, pois a exclusão de danos materiais do proprietário do veículo já está prevista no art.º 14.º, n.º 2, al. c), do mesmo diploma.
IX. Toda a jurisprudência citada pelo Recorrente nas sua doutas alegações é relativa à interpretação de outros artigos do regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, que não o que está em causa nos presentes autos.
Termos em que deve julgar-se improcedente o presente recurso, mantendo-se, na totalidade, a douta sentença recorrida, com as demais consequência legais. Decidindo-se assim, far-se-á JUSTIÇA.».

8. O Supremo Tribunal de Justiça considerou que não se mostram verificados os pressupostos para admissão do recurso per saltum, e determinou que os autos baixassem à Relação para apreciação do recurso interposto, uma vez que em caso de procedência da pretensão do autor cumprirá determinar o quantum indemnizatório.

9. Observados os vistos, cumpre decidir.

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II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[2], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, evidentemente sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, vistos os autos, a primeira questão a apreciar no presente recurso consiste em determinar se caem ou não no âmbito da responsabilidade das seguradoras, o pagamento das indemnizações devidas por acidentes provocados dolosamente com veículos furtados, em que o proprietário do veículo furtado é simultaneamente o tomador do seguro e o lesado nesse evento danoso.
Em caso de resposta afirmativa a esta questão, determinar o valor da indemnização a atribuir ao autor pelos danos sofridos em consequência do referido evento.
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III – Fundamentos
III.1. – De facto
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1. No dia 26 de Abril de 2009, o Autor e a sua mulher, CC encontravam-se numa herdade que possuem.
2. Num pátio dessa herdade encontravam-se dois automóveis: uma carrinha pertencente ao Autor de matrícula VG-00-00, e o auto ligeiro 00-00-SD pertencente à sua mulher.
3. Cerca das 18:00h o Autor e sua mulher aperceberam-se que o motor da referida carrinha começara a trabalhar.
4. O Autor, a sua mulher e um amigo do casal que estava junto deles dirigiram-se para o local em que estavam os veículos referidos.
5. Quando se aproximaram, viram que ao volante da carrinha estava um homem que não conheciam e que pôs a carrinha em marcha.
6. O Autor e sua mulher entraram imediatamente no SD e puseram-no em andamento e em perseguição do condutor da carrinha.
7. Chegado à zona do cruzamento da E.M com a EN, o condutor da carrinha VG parou, tendo o SD parado cerca de 20 metros atrás.
8. E o Autor saiu do SD para se dirigir ao condutor da carrinha.
9. Mas o condutor da carrinha fez marcha atrás e a carrinha embateu no lado direito do SD e no Autor, atirando-o ao chão.
10. De seguida, a carrinha andou para a frente e tornou a fazer marcha atrás repentinamente e depressa e tornou a atropelar o Autor, que acabara de se levantar do chão, passando por cima dele.
11. O Autor foi arrastado pela carrinha, de rojo, na extensão de cerca de 8 metros e ficou com a roupa toda rasgada e suja de óleo.
12. À data do acidente, a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros pela carrinha VG-00-00 encontrava-se transferida para a Ré, através da apólice nº 00658362.
13. Como consequência directa do acidente, o Autor sofreu:
- traumatismo torácico e raqui-medular, abdominal e da bacia, com fractura
complexa do acetábulo direito;
- fractura dos ramos ílio e isquipúbico à esquerda;
- fractura da tíbia direita;
- luxação de grau 2 acrómio clavicular à esquerda; e
- ferida do joelho direito.
14. Depois do acidente, o Autor foi assistido no Hospital, sendo depois, transferido, no dia 1 de Maio de 2009, para outro Hospital.
15. Nesse Hospital, no dia 06.05.2009 foi sujeito a tratamento cirúrgico para osteossíntese do acetábulo e ficou internado no Hospital até 11 de Maio de 2009.
16. Data em que foi transferido para o Hospital, onde esteve internado até ao dia 1 de Junho seguinte, data em que teve alta.
17. Foi depois seguido por conta da Ré, no Centro Hospitalar, S.A., tendo tido alta no dia 8 de Fevereiro de 2011.
18. O Autor sofreu 654 dias de doença e ficou com as seguintes sequelas:
• Claudicação na marcha à custa do membro inferior direito;
• Consolidação da fractura do acetábulo direito com calcificações periarticulares;
• Sinais de evolução para a necrose da cabeça do fémur direito;
• Luxação não reduzida da articulação acrómio-clavicular esquerda;
• Limitação da mobilidade do ombro esquerdo; • Limitação da mobilidade da anca direita, com flexão até aos 45º;
• Encurtamento de 2 centímetros do membro inferior direito.
19. As referidas sequelas conferem-lhe um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 15 pontos.
20. Ficou com um dano estético permanente fixável no grau 4/7.
21. O Autor era agricultor, amanhando e explorando uma herdade sua.
22. Os trabalhos agrícolas dessa herdade eram feitos directamente pelo Autor ou sob sua orientação.
23. No ano de 2008, os rendimentos líquidos do Autor tinham somado € 10.563,34
24. Em 2009, com os seus internamentos hospitalares, longa doença e incapacidade para trabalhar, o Autor não pôde executar nem orientar os trabalhos agrícolas.
25. Teve prejuízos de € 11.404,44.
26. O Autor nasceu no dia 8 de Setembro de 1955.
27. Antes do acidente, o Autor era saudável e trabalhador activo.
28. O Autor ao ser atropelado teve grandes sofrimentos físicos e psíquicos, dores, perturbações e angústia e ficou com limitações físicas, nomeadamente de locomoção e movimentação.
Em virtude dos documentos juntos aos autos com a contestação, mostra-se ainda provado que[3]:
29. O direito de propriedade sobre o veículo com a matrícula VG-00-00 mostra-se registado a favor do autor desde 8-8-1990.
30. Na apólice referida no ponto 12. o autor consta como Tomador do Seguro e Condutor habitual do veículo.
31. Na mesma apólice na PARTE I intitulada DO SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL, no CAPÍTULO I referente às DEFINIÇÕES, OBJECTO E GARANTIAS DO CONTRATO, constam as seguintes cláusulas:
CLÁUSULA 1.ª - DEFINIÇÕES
Para efeitos do presente contrato entende-se por:
a) Apólice, conjunto de Condições identificado na cláusula anterior e na qual é formalizado o contrato de seguro celebrado;
b) Segurador, a entidade legalmente autorizada para a exploração do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, que subscreve o presente contrato;
c) Tomador do Seguro, a pessoa ou entidade que contrata com o Segurador, sendo responsável pelo pagamento do prémio. (…)
e) Terceiro, aquele que, em consequência de um sinistro coberto por este contrato, sofra um dano susceptível de, nos termos da lei civil e desta Apólice, ser reparado ou indemnizado;
f) Sinistro, a verificação, total ou parcial, do evento que desencadeia o accionamento da cobertura do risco prevista no contrato, considerando-se como um único sinistro o evento ou série de eventos resultante de uma mesma causa; (…).
CLÁUSULA 2.ª - OBJECTO DO CONTRATO
1 - O presente contrato destina-se a cumprir a obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel, fixada no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.
2 - O presente contrato garante, até aos limites e nas condições legalmente estabelecidas:
a) A responsabilidade civil do Tomador do Seguro, proprietário do veículo, usufrutuário, adquirente com reserva de propriedade ou locatário em regime de locação financeira, bem como dos seus legítimos detentores e condutores, pelos danos, corporais e materiais, causados a Terceiros;
b) A satisfação da reparação devida pelos autores de furto, roubo, furto de uso de veículos ou de acidentes de viação dolosamente provocados.
CLÁUSULA 4.ª - ÂMBITO MATERIAL
1 - O presente contrato abrange:
a) Relativamente aos acidentes ocorridos no território de Portugal a obrigação de indemnizar estabelecida na lei civil;
CLÁUSULA 5.ª - EXCLUSÕES DA GARANTIA OBRIGATÓRIA
1 - Excluem-se da garantia obrigatória do seguro os danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente, assim como os danos decorrentes daqueles.
2 - Excluem-se igualmente da garantia obrigatória do seguro quaisquer danos materiais causados às seguintes pessoas:
a) Condutor do veículo responsável pelo acidente;
b) Tomador do Seguro;
4 - Excluem-se igualmente da garantia obrigatória do seguro:
a) Os danos causados no próprio veículo seguro;
5 - Nos casos de roubo, furto ou furto de uso de veículos e acidentes de viação dolosamente provocados, o seguro não garante a satisfação das indemnizações devidas pelos respectivos autores e cúmplices para com o proprietário, usufrutuário, adquirente com reserva de propriedade ou locatário em regime de locação financeira, nem para com os autores ou cúmplices ou para com os passageiros transportados que tivessem conhecimento da posse ilegítima do veículo e de livre vontade nele fossem transportados.
CLÁUSULA 31.ª - DIREITO DE REGRESSO DO SEGURADOR
Satisfeita a indemnização, o Segurador apenas tem direito de regresso:
a) Contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente;
b) Contra os autores e cúmplices de roubo, furto ou furto de uso do veículo causador do acidente, bem como, subsidiariamente, o condutor do veículo objecto de tais crimes que os devesse conhecer e causador do acidente.
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III.2. – O mérito do recurso
III.2.1. – Responsabilidade civil
Na presente acção o Autor alegou factos tendentes a demonstrar a culpa efectiva e exclusiva do condutor do veículo segurado na Ré na produção do acidente objecto dos presentes autos, ocorrido no dia 26 de Abril de 2009.
Nos termos genéricos do artigo 342.º do Código Civil[4], também afirmados a propósito da matéria referente à responsabilidade civil, no artigo 487.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, ao autor (lesado) incumbe a prova dos factos constitutivos do direito invocado, no caso, “a culpa do autor da lesão”, apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso – n.º 2 do citado artigo 487.º do CC.
Conforme decorre dos fundamentos de facto supra descritos, a matéria de facto alegada pelo autor relativamente à dinâmica do acidente logrou revelar-se provada em termos que determinaram a conclusão na sentença recorrida pela responsabilidade exclusiva do condutor do veículo segurado na Ré pela ocorrência do atropelamento do autor, conclusão que não vem posta em causa no presente recurso por nenhuma das partes, as quais não impugnaram a matéria de facto considerada provada, cujos termos, sublinhe-se, não consentem conclusão diversa.
Efectivamente não são discutidos em sede recursória os pressupostos da responsabilidade civil do condutor: o facto ilícito e, no caso, doloso; a existência dos danos; o nexo de causalidade entre o facto ilícito e os danos provados.
Ora, nos termos do disposto no artigo 483.º do CC “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".
Concluindo-se, como se concluiu na sentença, pela culpa do lesante - condutor do veículo segurado na ré -, na produção do acidente, assenta-se igualmente na sua responsabilidade pelo ressarcimento dos danos dele emergentes, nos termos deste preceito legal.
Sinteticamente efectuado o enquadramento genérico relativamente à verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, com a consequente obrigação de indemnizar por parte do lesante, vejamos agora como se articula o que vimos de referir com o regime do contrato de seguro porquanto o objecto do recurso está efectivamente circunscrito à determinação da relação entre o evento danoso gerador da responsabilidade do lesante e da consequente obrigação de indemnizar o lesado, e os limites e o âmbito do contrato de seguro celebrado pelo segurado com a Companhia de Seguros ora recorrida.
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III.2.2. – Seguro de responsabilidade civil
Nos termos do artigo 4.º do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, - que aprovou o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e transpôs parcialmente para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que alterou as Directivas n.ºs 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Directiva n.º 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis -, toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico (…) deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, impendendo a obrigação de segurar designadamente sobre o proprietário do veículo, nos termos do artigo 6.º do referido DL.
Conforme é comummente referido pela doutrina, «[n]este tipo de contratos, uma das partes - a seguradora -, obriga-se a garantir a cobertura dos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões materiais e corporais causados a terceiros pela contraparte - o segurado.
Deste modo, um dos contraentes obriga-se para com o seu co-contratante a realizar uma prestação a favor de um terceiro - o lesado e titular do direito à indemnização fundado em responsabilidade civil extracontratual. Em tal contexto encontramo-nos perante um quadro contratual denunciador de uma certa erosão ao princípio da relatividade dos contratos»[5].
Apesar de frequentemente classificado como um contrato a favor de terceiro[6] por via dos elementos caracterizadores da relação contratual, o certo é que diferentemente do que acontece no regime jurídico daqueles contratos, no domínio do contrato de seguro automóvel, o direito do lesado num acidente de viação não resulta do acordo contratual entre as referidas partes mas antes nasce da verificação dos requisitos da responsabilidade civil por factos ilícitos (artigos 483.º e segs. do CC), ou emergente de acidentes causados por veículos (artigos 503.º e segs. do CC).
«Todavia quem vai garantir a cobertura dos danos sofridos pelo lesado é a seguradora e não o agente responsável. (…)
Tal sucede porque em virtude do contrato de seguro, a responsabilidade do tomador do seguro transferiu-se para a seguradora. Deste modo, a qualidade do devedor assumida pela seguradora advém desta transferência contratual da responsabilidade, e não da circunstância de haver sido celebrado um contrato entre esta e o segurado, em virtude do qual tenha sido atribuído um direito a terceiro»[7].
Efectivamente, como é consabido, o regime legal do seguro obrigatório tem sofrido uma evolução determinada pelo Direito da União Europeia no sentido de reforçar e aperfeiçoar a protecção e indemnização das vítimas. Tanto assim é que já no regime estabelecido pelo DL n.º 522/85, de 31 de Dezembro, o legislador nacional adaptou o regime do seguro obrigatório às alterações entretanto introduzidas no artigo 508.º do CC quanto aos limites máximos da indemnização por acidentes de viação quando não haja culpa do responsável, alargando a cobertura do seguro a passageiros transportados gratuitamente, ainda que sejam parentes do condutor ou do tomador do seguro dando consequentemente cumprimento a disposições entretanto estabelecidas no Direito Comunitário, cuja evolução e alteração veio também a determinar as alterações constantes do diploma actualmente vigente.
Assim, não oferece hoje qualquer dúvida que o objectivo central do seguro obrigatório tal como se encontra conformado pelo Direito da União Europeia e pela interpretação que do mesmo é feita pelo Tribunal de Justiça da União Europeia é o de garantir a protecção das vítimas de acidentes de viação, assegurando da forma mais alargada possível o ressarcimento dos danos por elas sofridos, sendo «inegável a existência de uma tendência proteccionista do Tribunal de Justiça da União Europeia relativamente às vítimas de acidentes de viação – o que reflecte o desígnio das directivas relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis»[8].
Atenta esta particular conformação do regime legal relativo ao seguro obrigatório automóvel, a liberdade negocial entre seguradora e segurado - já de si fortemente limitada por estarmos perante contratos de adesão, sujeitos ao regime do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro, com as alterações que lhe foram sendo introduzidas, em regra mercê também de Directivas comunitárias -, está praticamente afastada. De tal modo assim é que basta atentar nas cláusulas insertas na apólice de seguro dos presentes autos para verificarmos que as mesmas são amiúde de teor idêntico ao texto legal.
Assim, “[p]erante regime legal tão apertado forçoso é concluir que pouco resta de contrato ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, calhando-lhe melhor a natureza de garantia social ou de contrato a favor de terceiro lesado que assume o papel de parte para poder exigir directamente da seguradora a concretização do seu direito à reparação....O seguro obrigatório realiza com a maior evidência o modelo de contrato a favor de terceiro, resultando de todo o seu enquadramento legal a possibilidade ou o direito que assiste ao lesado de accionar directamente a seguradora para obter a indemnização”[9].
Ora, resulta dos autos que à data do acidente a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo automóvel com a matrícula VG-00-00, encontrava-se segurada na Ré, através da apólice n.º 00658362.
Assim, por força do contrato de seguro celebrado entre o proprietário do veículo e a ré seguradora e titulado pela apólice junta aos autos, numa situação comum em que o lesado não fosse o proprietário do veículo nem o tomador do seguro, ou seja, fosse um terceiro à relação estabelecida entre o segurado e a companhia de seguros, a ré seria claramente responsável pela satisfação ao lesado dos danos emergentes do evento danoso decorrente de culpa exclusiva do condutor do veículo segurado na ré, já que nos termos do artigo 64.º, n.º 1, alínea a), do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, as acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório, como acontece no caso dos autos.
Referimos numa situação comum porquanto o caso dos autos encerra duas particularidades: a primeira, que decorre do facto de o evento danoso ter sido dolosamente provocado; e a segunda, que resulta da situação, que cremos ser inovadora, de o lesado e ora autor ser o proprietário e tomador do seguro do veículo que, tendo-lhe sido furtado, estava a ser conduzido pelo autor do furto que com aquele o atropelou.
Vejamos, pois, com mais detalhe, cada uma das referidas particularidades, porquanto, especialmente a segunda, nos terá forçosamente de conduzir a uma análise mais aprofundada do adquirido comunitário relativamente às linhas que classicamente caracterizavam as modalidades de seguro obrigatório desafiando-nos na interpretação da lei a um olhar mais alargado que não se pode cingir à mera apreciação da legislação nacional e terá de ter em consideração o direito e a jurisprudência da União Europeia.
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III.2.2.1. – Acidente dolosamente provocado
A questão de saber se as companhias de seguro são responsáveis pelas indemnizações devidas aos lesados pela circulação de veículos automóveis quando o evento tenha sido «dolosamente provocado» nem sempre obteve solução semelhante ao nível da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça. Porém, sobretudo desde 2007, tem-se consolidado o entendimento que defende uma resposta afirmativa a tal questão.
Efectivamente, a divergência não incidiu tanto sobre a interpretação do artigo 8.º, n.º 2, 2.ª parte do DL n.º 522/85, de 31 de Dezembro correspondente ao actual artigo 15.º, n.º 2, 2.ª parte do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, mas sobre a qualificação deste tipo de acontecimento ilícito como «acidente de viação».
Assim, «enquanto que nos acórdãos de 1/4/93 e de 18/12/96 (publicados no BMJ, nº 426, p. 132 e nº 462, p. 223, respectivamente) foi decidido que os factos sobre que incidiram, dolosamente provocados, constituíam «acidente de viação», como «fenómeno ou acontecimento anormal decorrente da circulação de um veículo», e como tal abrangidos pelo âmbito e garantias da obrigação de indemnização através do seguro obrigatório, o acórdão de 13/3/2007 (publicado na CJ (STJ), I, p. 108) decidiu, perante os factos que estavam em causa, que «não se encontra[va] caracterizado um acidente de viação», consequentemente, por isso, fora do âmbito da garantia do seguro obrigatório.
No acórdão de 1/4/93, seguido pelo acórdão de 18/12/96, argumentou-se que em face da evolução normativa que culminou no artigo 8º, nº 2 do Decreto-Lei nº 522/85, «não pode duvidar-se de que o legislador quis salvaguardar os interesses dos lesados, mesmo nos casos em que os danos advêm de acidente dolosamente provocado. É certo que a expressão “acidente dolosamente provocado”, para quem veja o acidente apenas na acepção tradicional de “acontecimento casual e fortuito”, será contraditória consigo própria. Simplesmente, e como decorre do pensamento do legislador espelhado nas normas […], a expressão acidente não está utilizada naquele sentido tradicional (o próprio legislador terá sentido a dificuldade e previsto a objecção ao empregar no Decreto-Lei n. 165/75 a expressão acto doloso), mas apenas no sentido mais geral de fenómeno ou acontecimento anormal decorrente da circulação de um veículo. E nesta acepção cabe o acidente dolosamente provocado, tendo sobretudo em vista o relevo dado ao interesse do lesado e ao ponto de vista deste. Deste ponto de vista prevalente tanto é acidente o acontecimento estradal fortuito e casual como o dolosamente provocado; num caso ou noutro é idêntico o interesse do lesado em ser indemnizado dos danos sofridos; e é esse interesse que a lei quer proteger».
Por sua vez, o acórdão de 13/3/2007, partiu da noção de “dano indemnizável”, que seria «sempre condicionado por uma relação de causalidade, mesmo indirecta com o facto em que se materializa o risco», e no caso, «não decorr[ia] dos factos provados que o acidente [tivesse] ocorrido devido aos riscos decorrentes da circulação do veiculo, nomeadamente do seu despiste ou colisão ou de qualquer razão que tenha a ver com o funcionamento do dito veiculo, mas sim perante a manifesta intenção de o condutor […] pretender ofender corporalmente o recorrido, utilizando o seu veículo, assim como poderia ter utilizado qualquer outro objecto móvel contundente». No caso não se estaria «perante um acidente, já que as lesões sofridas pelo recorrido ficaram a dever-se não a um acidente de viação, em que se funda o seguro obrigatório de responsabilidade civil, mas a uma conduta dolosa do seu condutor que utilizou a viatura para ofender corporalmente a vítima como poderia ter utilizado qualquer outro tipo de instrumento adequado a provocar lesões de contornos contundentes». «Assim, estas lesões originadas não pela normal circulação da viatura em causa, mas pela sua utilização desviada do fim a que se destinava, como utensílio ou arma, idónea a desferir lesões corporais, encontram-se fora dos riscos que a recorrente considerou quando da celebração do contrato de seguro»[10].
Porém, após este último acórdão citado, o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdãos proferidos em casos com factualidade semelhante, ou seja, em que o evento danoso foi intencionalmente provocado pelo condutor do veículo automóvel, tem considerado que os mesmos devem ser qualificados como constituindo «acidente de viação» e, como tal, abrangidos pela obrigação de indemnizar por parte da Companhia de Seguros[11].
Para o efeito, invocando designadamente as várias directivas europeias sucessivamente aprovadas em matéria relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, comummente denominadas «Directivas Automóvel»[12], e a jurisprudência comunitária que foi concretizando alguns dos respectivos preceitos, dissipando dúvidas que as mesmas haviam deixado - designadamente nos casos de 14.9.2000, Mendes Ferreira; de 30.6.2005, Katia Candolin; e de 19.4.2007, Elaine Farrel -, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo sempre a concluir que o regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel abrange a responsabilidade por danos dolosamente provocados pelo condutor do veículo, porquanto tal entendimento é o que corresponde ao sentido literal do texto legal e lhe confere sentido útil; o que se harmoniza com a exclusão dos danos causados “por um veículo terrestre a motor” do âmbito de aplicação do regime jurídico de protecção às vítimas de crimes violentos; e o que melhor respeita o objectivo de protecção da vítima de acidentes resultantes da circulação de veículos automóveis.
De facto, conforme observa o Conselheiro José Carlos Moitinho de Almeida, no relevante estudo efectuado sobre a matéria com o título “Seguro Obrigatório Automóvel: o direito português face à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias”[13], a disposição em causa, não sendo clara na sua formulação, foi inspirada na Convenção de Estrasburgo de 20 de Abril de 1959, relativa ao Seguro Obrigatório da Responsabilidade Civil no Domínio dos Veículos Automóveis e noutros direitos vigentes à época que, como o italiano, não fazem qualquer distinção quanto à modalidade na culpa na produção do «acidente», concluindo que há que efectuar a interpretação do artigo 8.º, n.º 2, 2.ª parte, do DL nº 522/85, de 31 de Dezembro, em conformidade com o direito comunitário e a jurisprudência do Tribunal de Justiça, considerando que «as directivas têm como objecto o seguro de responsabilidade civil que resulta da “circulação” de veículos automóveis, a qual pode dar origem a acidentes bem como ser utilizada intencionalmente para a prática de crimes, e nenhuma prevê a exclusão da cobertura de danos causados dolosamente a qual deve, assim, ser garantida».[14]
Efectivamente, concordamos com este entendimento que, como tem sido sublinhado pelo Supremo Tribunal de Justiça, encontra na letra do diploma que agora regula o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel um forte argumento literal, que ademais já encontrava assento no DL n.º 522/85, de 31 de Dezembro, cujos n.ºs 2 e 3 do artigo 8.º tinham redacção igual à actualmente vertida no artigo 15.º, n.º 2, do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, com a epígrafe, pessoas cuja responsabilidade é garantida, o qual estabelece que o seguro garante a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de acidentes de viação dolosamente provocados, sem prejuízo do disposto no número seguinte, que analisaremos mais adiante.
Aliás, essa referência à não exclusão do âmbito da garantia do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel dos danos resultantes de «acidentes de viação dolosamente provocados» encontra-se consagrada na legislação portuguesa desde o DL n.º 408/79, de 25 de Setembro, que inicialmente instituiu o regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, mantendo sempre a referida formulação até ao já indicado regime actualmente vigente, justificado pela transposição das referidas directivas comunitárias.
Assim, conforme se afirmou no citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-05-2009, sendo indiscutível que «o legislador quis em primeira linha proteger os interesses dos lesados, não pode duvidar-se, perante tão clara e terminante formulação legal, que esse desiderato subsiste mesmo naqueles casos em que os danos resultam de acidente dolosamente provocado, como na situação relatada nestes autos aconteceu. Pode assim afirmar-se com grande segurança que o segmento do art.º 8.º, n.º 2, do DL 522/85, de 31/12, que estamos a analisar deve ser objecto duma interpretação declarativa (não restritiva, nem extensiva), pois o sentido que dele imediatamente resulta traduz na perfeição o pensamento legislativo (artº 9º, nºs 1 e 2, do CC); há coincidência entre a letra e o espírito da lei».
E não se diga que este entendimento protege excessivamente os lesados relativamente às Companhias de Seguro uma vez que, no caso de «acidentes dolosamente provocados», existe o direito de regresso da seguradora contra o causador do acidente, conforme sucessivamente também previram os regimes anteriores que regularam a matéria e, actualmente, nos mesmos precisos termos, prevê o artigo 27.º, n.º 1, alínea a), do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, de acordo com o qual “satisfeita a indemnização, a seguradora tem direito de regresso contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente”.
Concluímos, portanto, pela consagração legal da obrigação da seguradora indemnizar os lesados em «acidentes de viação dolosamente provocados», evidentemente quando se mostrem verificados os requisitos da obrigação de indemnizar[15].
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III.2.2.2. – Lesado proprietário do veículo furtado e tomador do seguro
Somos, pois, chegados à questão central do caso em apreço: a de saber se as precedentes conclusões são aplicáveis ao caso em que o proprietário de um veículo automóvel e tomador do seguro é o lesado por danos que lhe foram causados pelo seu próprio veículo, conduzido por um terceiro que o furtara, e que com o mesmo, de forma intencional, o atropelou.
Para o efeito, importa genericamente lembrar que o tomador de seguro era, desde 08-08-1990, titular do registo de propriedade sobre a viatura VG-00-00 - como resulta do documento junto pela seguradora com a respectiva contestação -, circunstância que faz presumir a propriedade do veículo, sendo só por si bastante para fundar um interesse legalmente atendível na celebração do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel pelo respectivo tomador, simultaneamente seu proprietário, e isto independentemente de se ter ou não provado, em termos substanciais, a propriedade dessa viatura[16].
Acresce ainda que, da factualidade aditada decorre que o ora autor, sendo o proprietário do veículo e tomador do seguro, declarou ser o seu condutor habitual, ou seja, aquele que normalmente teria a sua direcção efectiva, aquele que, de facto, goza ou frui as vantagens dele, e a quem, por essa razão, especialmente cabe controlar o seu funcionamento, tendo interesse na sua utilização, interesse este que tanto pode ser material ou económico, como um simples interesse moral ou espiritual[17].
Certo é também que o Autor e ora Recorrente sofreu danos na sua esfera jurídica provocados pela actuação dolosa do condutor do veículo automóvel de que é proprietário, que violou ilicitamente o respectivo direito à integridade física, sendo a ilicitude do facto - no caso concreto ainda mais grave porque merecedora de tutela legal de natureza criminal -, princípio estruturante e transversal a todo o regime da responsabilidade civil extracontratual por actos ilícitos. Consequentemente, para efeitos deste regime legal, o autor é lesado.
Acontece, porém, que o artigo 15.º, n.º 3, do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, expressamente refere que «[n]os casos de roubo, furto ou furto de uso de veículos e acidentes de viação dolosamente provocados o seguro não garante a satisfação das indemnizações devidas pelos respectivos autores e cúmplices para com o proprietário, usufrutuário, adquirente com reserva de propriedade ou locatário em regime de locação financeira, nem para com os autores ou cúmplices, ou os passageiros transportados que tivessem conhecimento da detenção ilegítima do veículo e de livre vontade nele fossem transportados».
Tendo o caso dos autos uma configuração factual que cumula ambas as situações referidas na primeira parte do preceito, já que primeiramente ocorreu o furto do veículo com o qual o respectivo condutor atropelou em seguida e intencionalmente o Autor ora Recorrente, da literalidade do preceito parece efectivamente decorrer a intenção do legislador nacional em excluir da garantia do seguro a satisfação da indemnização devida pelo autor do furto e atropelamento para com este específico lesado, proprietário do veículo que o atropelou, exclusão que a ora Recorrida fez constar nos mesmos termos na apólice do contrato de seguro que celebrou com aquele.
Foi assim que a primeira instância concluiu, trazendo ainda à colação o preceituado no artigo 14.º, n.º 2, alínea b), do mesmo diploma legal, de acordo com cuja formulação se mostram também excluídos “da garantia do seguro quaisquer danos materiais causados (…) ao tomador do seguro (…)”, qualidade que o ora Recorrente também detém.
Nestes termos, terminou referindo que «em face do exposto e atento o normativo inserto no artigo 15.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 291/2007, forçoso é concluir que não caem no âmbito da responsabilidade das seguradoras, o pagamento das indemnizações devidas por acidentes provocados dolosamente com veículos furtados, em que o proprietário do veículo furtado é o tomador do seguro e é o lesado, o que foi justamente o que sucedeu no caso em apreço», não se constituindo consequentemente a Ré na obrigação de indemnizar o Autor pelos prejuízos sofridos.
Invoca o recorrente que o Direito Comunitário e o Supremo Tribunal de Justiça português têm decidido uniformemente que o contrato de seguro obrigatório automóvel tem a natureza de garantia social ou de contrato a favor de terceiro lesado, que o seu objectivo central é o da protecção das vítimas de acidentes de viação, assegurando da forma mais alargada possível o ressarcimento dos danos sofridos por eles, e que o dito contrato assume uma feição de interesse público, ressarcindo todos quantos não sejam o próprio condutor e considerando que o cerne da questão da indemnização dos danos do recorrente reside na análise da sua posição no sinistro dos autos - que é inequivocamente de terceiro -, porque foi atropelado por um veículo conduzido por outrem, não relevando para o efeito que o veículo fosse seu, uma vez que quando foi atropelado tinha sido despojado da posse e detenção desse veículo, não tendo a direcção efectiva do mesmo, sendo de todo estranho à conduta do atropelante, ao comportamento que o lesou.
Mais invocou que a 3.ª Directiva Automóvel, que já constitui direito interno português, fixou que o primado do seguro obrigatório automóvel é o da protecção das vítimas corporais, que deverão ser ressarcidas dos danos corporais de que forem vítimas de acidente rodoviário não por si próprias causado e que, contrariamente ao entendimento anterior, hoje, em matéria de acidente de viação, terceiro é todo aquele que possa imputar a responsabilidade do acidente a outrem – não se podendo negar que o recorrente pode imputar ao desconhecido que lhe furtou o veículo a responsabilidade pelo atropelamento que sofreu.
Por seu turno, a seguradora e ora Recorrida considera que a interpretação restritiva proposta pelo Recorrente para o referido art.º 15.º, n.º 3 (no sentido de que nele só se contemplam indemnizações dos danos materiais) carece de fundamento legal, violando o n.º 1 do art.º 9 do Código Civil, porquanto: considerando os antecedentes históricos da norma (em particular o art.º 6.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 165/75, de 28 de Março, e o art.º 5.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 408/79, de 25 de Setembro) verificamos que foi intenção específica do legislador excluir todos os tipos de danos relativos a situações como a dos presentes autos; colidiria, em particular, com a unidade do próprio diploma e, em geral, com o instituto da Responsabilidade Civil, e seria a subversão completa de tal instituto, pois um seguro baseado na Responsabilidade Civil destina-se garantir os danos de terceiros, e não os daqueles cuja responsabilidade visa ele próprio garantir.
Aduz ainda que a interpretação proposta pelo Recorrente viola o n.º 2 do art.º 9.º do Código Civil, porquanto não encontra na letra da lei o mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso; bem como o n.º 3 do art.º 9.º do Código Civil, porquanto a norma não distingue entre danos materiais e quaisquer outros (como sucede noutros artigos do mesmo diploma), devendo presumir-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Ademais, afirma, aplicando-se a interpretação proposta pelo Recorrente à norma em causa, a mesma, relativamente ao proprietário, tornar-se-ia redundante, pois a exclusão de danos materiais do proprietário do veículo já está prevista no art.º 14.º, n.º 2, al. c), do mesmo diploma.
Analisemos, pois, a questão central que o caso dos autos convoca.
É certo que, como a Seguradora sublinha, a interpretação proposta pelo Recorrente não encontra na legislação portuguesa um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso como exige o n.º 2 do artigo 9.º do CC.
Porém, não é menos certo que em matéria de seguro de responsabilidade civil automóvel as disposições legislativas nacionais, à luz das quais se determina a existência e extensão do direito de indemnização do lesado vítima de um acidente de viação, não podem comprometer a efectividade das disposições de Direito da União Europeia relativas a este tipo de seguro, não se podendo ignorar que a ideia fundamental subjacente à acção directa é, precisamente a garantia e a protecção do lesado[18].
Assim, «ao contrário de um pedido exclusivamente baseado no regime nacional de responsabilidade civil, tal direito está submetido às disposições do Direito da União - devendo as normas que o contemplam ser interpretadas e aplicadas nos termos definidos pela ordem jurídica europeia. É, portanto, defensável que o direito de acção do lesado contra a seguradora tem um carácter relativamente autónomo e está imbuído de valores próprios. Enquanto o direito de indemnização exclusivamente fundado na responsabilidade civil tem subjacente a ideia de compensação dos prejuízos sofridos, o direito exercido contra a companhia de seguros está imbuído também de ideias de repartição do risco e de solidariedade tendente a proteger a vítima do acidente»[19].
Deste modo, as soluções decorrentes das disposições das «Directivas Automóvel» e a sua interpretação pela Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, devem ser observadas e sopesadas pelo Juiz nacional porquanto as disposições nacionais neste âmbito não podem privar aquelas do seu efeito útil.
De facto, conforme resulta dos princípios gerais da ordem jurídica europeia, «os órgãos jurisdicionais estão obrigados a aplicar e interpretar o direito interno (disposições anteriores ou posteriores às directivas em vigor) à luz do texto e finalidades das directivas, a fim de atingir o resultado por elas prosseguido e cumprir, desta forma, com as obrigações decorrentes dos tratados»[20], sendo tal aplicação e interpretação devidas, independentemente da invocação do direito da União pelas partes porquanto o juiz nacional é o responsável pela sua correta aplicação[21].
Ora, conforme é conhecido, a aproximação das legislações dos Estados-membros no domínio do seguro automóvel teve por finalidade - anunciada logo nos considerandos da Primeira Directiva -, contribuir para concretizar a livre circulação de pessoas e mercadorias, tendo evoluído sempre no sentido de conferir uma maior protecção às vítimas de acidentes de viação, garantindo-lhes uma indemnização suficiente e um tratamento idêntico, independentemente do país da União em que o sinistro ocorresse.
Assim, enquanto a Primeira Directiva exigia fundamentalmente de cada Estado-Membro a adopção de todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resultasse da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território estivesse coberta por um seguro, determinando o âmbito da cobertura e as modalidades do mesmo, a Segunda Directiva, reconhecendo que subsistiam importantes divergências na legislação dos Estados-membros quanto à extensão do seguro obrigatório, procedeu ao alargamento da obrigação de segurar, nomeadamente à responsabilidade por danos materiais, fixou os montantes obrigatoriamente seguros e, «no interesse das vítimas, precisou que os efeitos de certas cláusulas de exclusão seriam limitados às relações entre a seguradora e o responsável pelo acidente, com salvaguarda de os Estados-membros poderem prever que, no caso de veículos roubados ou obtidos por meios violentos, o organismo de garantia poderia intervir para indemnizar a vítima.
Esta última directriz era cheia de consequências.
Para importantes efeitos, ela substituía a relação proprietário-segurador (típica do contrato de seguro), pela relação segurador-responsável pelo acidente.(...)
Por outro lado, a directiva resolvia a questão dos familiares do tomador do seguro. Os membros da família do tomador do seguro do condutor ou de qualquer pessoa cuja responsabilidade civil decorrente de um sinistro se encontrasse coberta pelo seguro não podiam, por força desse parentesco, ser excluídos da garantia do seguro relativamente aos danos corporais sofridos»[22].
Porém, considerando que persistiam lacunas na cobertura dos passageiros de veículos automóveis pelo seguro automóvel, o artigo 2.º da Terceira Directiva veio afirmar que, sem prejuízo da excepção relativa a veículos roubados ou obtidos por meios violentos, o seguro automóvel cobriria a responsabilidade por danos pessoais de todos os passageiros, excepto o condutor.
«Esta directiva, na parte que interessa, confirmou que a relação determinante, no que respeita a qualquer disposição ou cláusula contratual de exclusão do seguro, incide sobre o condutor e não sobre o proprietário»[23].
Não tendo a quarta Directiva relevância directa para o desenho da evolução relativa ao âmbito e extensão do regime do seguro de responsabilidade civil automóvel, importa atentar na relevância da quinta Directiva, quanto a duas importantes matérias: novamente a cobertura dos passageiros que desta feita se considerou não poderem ser excluídos dessa cobertura por terem ou deverem ter conhecimento de que o condutor do veículo estava sob a influência de álcool ou de outra substância tóxica; e a inclusão dos danos materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas.
Não obstante toda a evolução efectuada, foram persistindo dúvidas que o Tribunal de Justiça tem vindo sucessivamente a clarificar em decisões proferidas em reenvios prejudiciais provindos de Tribunais dos Estados-Membros, incluindo de tribunais portugueses, que «produzem uma espécie de efeito erga omnes de acto interpretado, devendo ser aplicadas, com idêntico sentido, por todos os tribunais de todos os Estados-membros»[24], as quais, por isso, têm necessariamente tido reflexos directos na jurisprudência portuguesa.
Para não nos alongarmos por casos interessantes que, porém, não importam à economia dos presentes autos, vamos deter-nos no caso que, a nosso ver, mais releva para o mesmo, trazendo depois à colação outros que ajudam à interpretação das normas internas num sentido conforme às «Directivas Automóvel». Trata-se do acórdão proferido em 30 de Junho de 2005, no processo C-537/03, conhecido como caso Candolin, referente à interpretação do artigo 1.º da Terceira Directiva, de acordo com o qual o seguro cobrirá a responsabilidade por danos pessoais de todos os passageiros, excepto o condutor, resultantes da circulação de um veículo.
Encurtando explicações quanto aos factos do caso, sobejamente conhecido, o que importa realçar é que o Supremo Tribunal de Justiça da Finlândia, submeteu ao Tribunal de Justiça várias questões prejudiciais suscitadas a título de interpretação conforme do direito finlandês que, no essencial, pretendiam esclarecer se os artigos 2.º, n.º 1, segundo parágrafo da Segunda Directiva e 1.º da Terceira Directiva, se opunham a uma legislação nacional que permitia que se excluísse ou limitasse a indemnização com base na contribuição do passageiro para a produção dos danos que veio a sofrer, e ainda se a resposta quanto a essa ponderação seria diferente no caso de o passageiro ser também proprietário do veículo.
Em resposta, o Tribunal de Justiça declarou que, em circunstâncias como as do processo principal, os referidos artigos, «opõem-se a uma regulamentação nacional que permita excluir ou limitar de modo desproporcionado, com fundamento na contribuição de um passageiro para a produção do dano que sofreu, a indemnização coberta pelo seguro automóvel obrigatório. O facto de o passageiro em causa ser o proprietário do veículo cujo condutor provocou o acidente é irrelevante» (itálico nosso).
Na fundamentação da declaração nestes termos efectuada, o Tribunal de Justiça afirmou o seguinte nos considerandos 32 a 34:
«Ao prever que o seguro de responsabilidade civil relativo à circulação dos veículos automóveis cobre a responsabilidade pelos danos físicos de todos os passageiros, que não os do condutor, o artigo 1.° da Terceira Directiva estabelece apenas uma distinção entre o condutor e os outros passageiros.
Além disso, os objectivos de protecção recordados nos n.°s 18 a 20 do presente acórdão impõem que a situação jurídica do proprietário do veículo que nele viajava no momento do acidente, não como condutor, mas como passageiro, seja equiparada à de qualquer outro passageiro vítima do acidente.
Esta interpretação é corroborada pela evolução do direito comunitário. O sétimo considerando da Segunda Directiva dispõe que é do interesse das vítimas que os efeitos de certas cláusulas de exclusão sejam limitados às relações entre a seguradora e o responsável pelo acidente. Com o objectivo de lhes conceder uma protecção comparável à de outros terceiros vítimas, conforme resulta do nono considerando da mesma directiva, o artigo 3.º desta última estendeu a cobertura do seguro aos membros da família do tomador do seguro, do condutor ou de qualquer outro responsável. O artigo 1.º da Terceira Directiva consagra uma fórmula ainda mais ampla, ao prever a indemnização dos danos pessoais de todos os passageiros, além do condutor. Por conseguinte, o proprietário do veículo, enquanto passageiro, tem direito a ser indemnizado».
Respeitando já esta jurisprudência comunitária, o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 16 de Janeiro de 2007, interpretou o artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 522/85 então vigente no sentido de que apenas se encontram excluídos da cobertura os danos causados ao condutor do veículo, ficando consequentemente abrangidos os que sofrer o proprietário nele transportado[25].
Para o efeito considerou designadamente nos pontos sumariados em 5. e 7. que «contrariamente ao entendimento anterior, hoje, “terceiro”, em matéria de acidente de viação, é todo aquele que possa imputar a responsabilidade do evento a outrem - e, não, como anteriormente, aquele que não era o tomador do seguro .
O proprietário e tomador do seguro que é transportado como passageiro no seu próprio veículo, sendo outrem o respectivo condutor, está coberto pela responsabilidade civil automóvel quanto aos danos decorrentes de lesões corporais que lhe advenham em virtude do acidente, por, na situação, ter a qualidade de terceiro».
Por seu turno, em acórdão proferido em 22 de Abril de 2008, o Supremo reiterou aquela interpretação, nos termos assim sumariados:
«I - Com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático, a que alude a parte final do n.º 4 do art. 8.º da CRP, a partir do momento da entrada em vigor na ordem jurídica comunitária, as normas comunitárias passam, automaticamente, a vigorar na ordem interna portuguesa.
II - Tendo primazia relativamente às normas internas.
III - As decisões do Tribunal de Justiça, em casos de reenvio prejudicial sobre a interpretação do Tratado, têm alcance geral, vinculando os tribunais internos ao acatamento do sentido e o alcance que elas conferiram à norma comunitária.
IV - No caso dos acidentes de viação com veículos a motor, as normas comunitárias vêm impondo que se atente preferencialmente na indemnização das vítimas em detrimento da actuação do agente.
V - A interpretação delas levada a cabo nos Acórdãos do TJ referentes aos casos Candolin e Elaine Farrel, sem pôr em causa o edifício da responsabilidade civil, afasta, em alguma medida, a rigidez dos pilares de betão em que assenta a construção emergente das nossas normas internas, incorporando neles materiais mais maleáveis e mais modernos que sustentam um tecto bem mais abrangente.
VI - Tendo confirmado, nomeadamente, o rompimento da conceptualização do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel como visando apenas a cobertura de danos causados a outrem.
VII - O qual abrange, assim, também os danos causados ao próprio tomador e proprietário do veículo, se passageiro não condutor do mesmo». [26]
A jurisprudência comunitária e portuguesa que acabamos de citar assume especial relevância para o caso em apreço, porquanto claramente revela que existe na jurisprudência comunitária uma mudança de paradigma relativamente ao contrato de seguro obrigatório automóvel.
Assim, mesmo que não se entenda como no citado acórdão de 2007 que hoje, “terceiro”, em matéria de acidente de viação, é todo aquele que possa imputar a responsabilidade do evento a outrem - e, não, como anteriormente, aquele que não era o tomador do seguro, “reconfigurando” a noção de terceiro, é inquestionável que existiu o rompimento da conceptualização do seguro obrigatório automóvel como visando apenas a cobertura dos danos causados a outrem, referida pelo acórdão de 2008, e que as Directivas se foram gradualmente afastando «das linhas que classicamente caracterizavam as modalidades de seguro obrigatório, em benefício de soluções de maior praticabilidade, como as que repousam na ideia de veículo segurado em vez de transferência de responsabilidade, na noção extensiva de passageiro ou na tarifação das cláusulas de exclusão»[27].
E para o caso dos autos esta evolução da garantia do seguro obrigatório automóvel é ainda mais importante se tivermos em conta a introdução pela Quinta Directiva da protecção relativa aos danos materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas.
Efectivamente, de acordo com o artigo 1.º-A da Terceira Directiva, introduzido pelo artigo 4.º da Quinta Directiva, o seguro automóvel «assegura a cobertura dos danos pessoais e materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas que, em consequência de um acidente em que esteja envolvido um veículo a motor, têm direito a indemnização de acordo com o direito civil nacional. O presente artigo não prejudica nem a responsabilidade civil nem o montante das indemnizações».
Esta disposição foi transposta no direito nacional pelo artigo 11.º, n.º 2, do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, nos seguintes termos: «o seguro de responsabilidade civil previsto no artigo 4.º abrange os danos sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas quando e na medida em que a lei aplicável à responsabilidade civil decorrente do acidente automóvel determine o ressarcimento desses danos», encontrando-se vertida no artigo 12.º, n.º 3, da Directiva 2009/103/CE, actualmente vigente, e que tem a epígrafe categorias específicas de vítimas.
No considerando 16 da Quinta Directiva e no considerando 22 da Directiva actualmente em vigor, assumiu-se que as indicadas pessoas constituem habitualmente a parte mais vulnerável num acidente, pelo que deverão ser cobertos pelo seguro obrigatório do veículo envolvido no acidente, caso tenham direito a indemnização de acordo com o direito nacional.
Acresce ainda salientar - retomando a parte final da citação do Estudo do Conselheiro Cunha Rodrigues quanto à tarifação das cláusulas de exclusão -, que a única excepção à obrigatoriedade de cobertura por seguro é a dos ocupantes de um veículo furtado ou utilizado por meios violentos. Porém, «tratando-se de uma disposição derrogatória, esta excepção dever ser objecto de interpretação estrita[28].
De facto, nos considerandos 18 a 23 do caso Candolin o Tribunal de Justiça, retoma considerações anteriores produzidas no acórdão Ruiz Bernáldez, afirmando:
«Foi à luz do objectivo de protecção das vítimas que o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 3.°, n.º 1, da Primeira Directiva se opõe a que a seguradora possa invocar disposições legais ou cláusulas convencionais para recusar indemnizar os terceiros vítimas de um acidente causado pelo veículo segurado (acórdão Ruiz Bernaldez, já referido, n.°20).
O Tribunal declarou igualmente que o artigo 2.°, n.º 1, primeiro parágrafo, da Segunda Directiva mais não faz do que evocar esta obrigação no que respeita às disposições ou às cláusulas de uma apólice que exclua do seguro a utilização ou a condução de veículos em situações especiais (pessoas não autorizadas a conduzir o veículo, pessoas não titulares de carta de condução ou pessoas que não preenchem as obrigações legais de ordem técnica relativamente ao estado e à segurança do veículo) (acórdão Ruiz Bernaldez, já referido, n.º 21).
Em derrogação dessa obrigação, o segundo parágrafo do referido artigo 2.°, n.º 1, prevê que certas vítimas poderão não ser indemnizadas pela seguradora, tendo em conta a situação que elas próprias tenham criado (pessoas ocupantes de um veículo que sabiam ter sido furtado) (acórdão Ruiz Bernaldez, já referido, n.º 21).
Todavia, tratando-se de uma disposição derrogatória de uma regra geral, o artigo 2.º, n.º 1, segundo parágrafo, da Segunda Directiva deve ser objecto de interpretação estrita.
Como correctamente salienta o advogado-geral no n.º 42 das suas conclusões, qualquer outra interpretação teria por consequência permitir aos Estados-Membros limitar a indemnização dos terceiros vítimas de um acidente de viação a certos casos, situação que as directivas têm precisamente como objectivo evitar.
Conclui-se que o artigo 2, n.º 1, segundo parágrafo, da Segunda Directiva deve ser interpretado no sentido de que uma disposição legal ou cláusula contratual constante de uma apólice de seguro que exclua do seguro a utilização ou a condução de veículos só é oponível aos terceiros, vítimas de um acidente de viação, se a seguradora provar que as pessoas que de livre vontade se encontravam no veículo causador do dano sabiam que o mesmo tinha sido roubado».
Olhando novamente o caso dos autos à luz destas considerações não podemos deixar de ter presente que o Autor e ora recorrente, aquando do acidente de viação em apreço, por um lado, se encontrava na qualidade de peão, ou seja, numa situação que desde a alteração introduzida pela Quinta Directiva é considerada como devendo ser objecto de especial protecção em razão da sua maior vulnerabilidade relativamente ao veículo envolvido no acidente e, por outro lado, não se encontrava a conduzir o veículo lesante nem, por qualquer forma, a utilizá-lo em seu proveito.
Ora, à semelhança do que acontece quanto à previsão relativa à indemnização devida aos passageiros transportados no veículo, também aqui a Directiva não faz depender o direito à indemnização do peão de nenhuma qualidade que não essa, nem o afasta se existir uma determinada qualidade. Apenas ressalva que a disposição em apreço não condiciona a responsabilidade civil nem o nível de indemnização por um acidente específico, a efectuar ao abrigo da legislação nacional. Por seu turno, a excepção à cobertura do seguro que a Companhia de Seguros pode opor em casos de roubo, apenas está prevista para os casos em que os passageiros de um veículo tinham conhecimento de que o mesmo fora roubado e no mesmo circulavam de livre vontade.
Acresce ainda que, no Acórdão de 17-03-2011, proferido no processo C-484/98, conhecido como caso Carvalho Ferreira Santos, o Tribunal de Justiça afirmou que «o legislador da União não pretendeu especificar o tipo de responsabilidade civil, por culpa ou pelo risco, decorrente da circulação de veículos, que deve estar coberta pelo seguro obrigatório». Porém, tal não afasta a obrigação dos Estados-membros de exercerem as suas competências «no respeito do direito da União» e garantirem que «a responsabilidade civil aplicável segundo o seu direito nacional esteja coberta por um seguro conforme com as disposições das (então) três directivas». Por isso, também neste acórdão (à semelhança do que já fizera nos casos Candolin e Farrel) o Tribunal de Justiça considerou que «uma legislação nacional, definida em função de critérios gerais e abstractos, não pode negar ou limitar de modo desproporcionado o direito de um passageiro a ser indemnizado pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, apenas com o fundamento de que este contribuiu para a produção dos danos».
Assim, convocando em apoio da sua decisão, a especial protecção concedida pelo artigo 1.º-A da Terceira Directiva aos peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas, que não obstante remete para o direito nacional da responsabilidade civil automóvel no que concerne à cobertura dos danos sofridos, o Tribunal de Justiça, concluiu que «uma vez que esta disposição prevê que os referidos danos são cobertos pelos seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, na medida em que as pessoas lesadas tenham direito a uma indemnização de acordo com o direito nacional, não pode ser de outro modo quando se trate do condutor de um veículo automóvel que seja simultaneamente vítima e co-responsável por danos corporais sofridos na sequência de um acidente com outro veículo».
Por seu turno, no Acórdão de 09-06-2011, proferido no processo C-409/09, no caso Ambrósio Lavrador, o Tribunal de Justiça voltou a realçar que as “Directivas Automóveis” ficariam privadas de efeito útil se, «apenas com fundamento na contribuição da vítima para a produção do dano, uma regulamentação nacional, definida com base em critérios gerais e abstractos, recusasse à vítima o direito de ser indemnizado pelo seguro automóvel ou limitasse esse direito de modo desproporcionado».
Ora, tendo presente o enquadramento do direito comunitário supra exposto, atento o disposto no artigo 15.º, n.º 3, primeira parte do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, cujo teor foi vertido nas cláusulas da apólice, afigura-se-nos que a exclusão das pessoas ali indicadas, designadamente, para o que agora releva, do proprietário do veículo, é definida com base em critérios gerais e abstractos, recusando à vítima de acidente de viação que seja proprietária do veículo, o direito a ser indemnizada pelo seguro obrigatório quanto aos danos sofridos nos casos de roubo, furto ou furto de uso de veículos e acidentes de viação dolosamente provocados, pelos respectivos autores e cúmplices.
Assim, considerando que «o princípio da igualdade, enquanto princípio geral da ordem jurídica europeia, exige que situações comparáveis não sejam tratadas de maneira diferente e que situações distintas não sejam tratadas da mesma forma – a não ser que o tratamento seja objectivamente justificado» (pág. 16), e sendo o objectivo anunciado das disposições em causa a protecção das vítimas acidentes de viação vulneráveis, atenta a jurisprudência comunitária produzida designadamente no caso Candolin relativamente à cobertura pelo seguro obrigatório dos danos sofridos pelo proprietário quando não é condutor do veículo, não vemos como pode este não ser coberto pela protecção do seguro obrigatório quando é o peão, só por deter aquela referida qualidade de proprietário.
Efectivamente, se se compreende que sejam tratadas de maneira diferente as pessoas referidas na segunda parte do normativo por serem os autores ou cúmplices do crime, bem como os passageiros transportados que tivessem conhecimento da detenção ilegítima do veículo e de livre vontade nele fossem transportados - porquanto tal tratamento distinto se encontra objectivamente justificado tanto mais que colhe tratamento distinto no referido parágrafo da Segunda Directiva -, já se nos suscitam sérias dúvidas, em face da sobredita jurisprudência do Tribunal de Justiça, que pela sua mera ligação ao veículo em virtude de direito de propriedade ou análogo uma vítima possa ser excluída da obrigação de indemnizar que o direito comunitário e nacional lhe confere pela sua categoria específica de vítima mais vulnerável - no caso, por se encontrar no momento do acidente na posição de peão -, em virtude da qualidade e da actuação do respectivo condutor, ou seja, por este ser autor de um furto e actuar dolosamente.
Assim, pensamos que existe uma impressiva similitude entre o caso do proprietário protegido pelo direito comunitário e nacional quando se encontra no veículo na qualidade de passageiro, e a situação do proprietário que na qualidade de peão, ou seja, sem qualquer domínio do seu próprio veículo e sem qualquer actuação ilícita que lhe possa ser imputável, é com ele intencionalmente atropelado pelo condutor que o furtou, afigurando-se-nos que existe identidade de razões entre aquelas que levaram à protecção da vítima em função da sua qualidade de transportada em veículo conduzido por outrem, independentemente da relação jurídica de propriedade que tivesse relativamente ao veículo, e à protecção da vítima que é um utilizador não motorizado da estrada, tanto mais que ambas as situações estão previstas no mesmo artigo 12.º da referida Directiva, aquelas no n.º 1 e estas no n.º 3.
E pelas mesmas razões, não nos parece que nestas concretas circunstâncias do caso, seja linear a exclusão da indemnização ao tomador do seguro, qualidade que o ora autor também apresenta, de quaisquer danos materiais, que se encontra prevista no artigo 14.º, n.º 2, alínea b) do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto e cujo teor também foi vertido nas cláusulas da apólice de seguro.
Efectivamente, a afirmação produzida quanto ao caso apreciado pelo Tribunal de Justiça de que «a protecção conferida pelo direito europeu é função da qualidade da vítima transportada em veículo conduzido por outrem, não podendo ser afastada em nome de qualquer outra qualidade jurídica que lhe seja imputável”: proprietário, tomador de seguro ou segurado»[29], poderá eventualmente ser considerada igualmente aplicável à situação que nos ocupa. De facto, visto o caso na perspectiva da vítima do acidente de viação que preside ao espírito das «Directivas Automóvel», nada indica que a protecção concedida ao proprietário que é vítima de um acidente da responsabilidade do respectivo condutor, quando é transportado no seu veículo automóvel, possa ser diverso para a respectiva protecção pelo seguro automóvel, se o mesmo for proprietário e simultaneamente tomador no contrato de seguro de um veículo, e seja colhido pelo condutor desse seu veículo, por si devidamente segurado, mas quando se encontra na qualidade de peão.
Porém, tratando-se de disposições que regulam a relação de cobertura entre a seguradora e o tomador do seguro, estamos claramente no domínio, não do direito nacional em matéria de responsabilidade civil mas das disposições legais nacionais que regem a relação de seguro ou cobertura e, como tal, objecto das «Directivas Automóvel» que visam a harmonização das legislações nacionais dos Estados-membros relativas ao seguro automóvel.
Ora, se é verdade que a interpretação do direito nacional deve efectuar-se em conformidade com as Directivas, independentemente até da sua transposição, funcionando como conformidade com as Directivas a interpretação destas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia[30], também não oferece dúvidas que nos termos do artigo 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (ex-artigo 234.º TCE), o Tribunal de Justiça da União Europeia é o competente para decidir, a título prejudicial, sobre a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.
Assim, sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie, sendo ainda que, sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.
Nestes termos, considerando que existem dúvidas fundadas quanto à conformidade dos sobreditos artigos 14.º, n.º 2, alínea b), e 15.º, n.º 3, primeira parte do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, com o direito comunitário, e que nos termos do considerando 20 da Directiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Setembro de 2009, «deverá ser garantido que as vítimas de acidentes de veículos automóveis recebam tratamento idêntico, independentemente dos locais da Comunidade onde ocorram os acidentes», a fim de esclarecer estas dúvidas e assegurar o respeito pelos referidos princípios do Direito da União Europeia, entende este Tribunal ser conveniente suscitar, oficiosamente, o reenvio prejudicial previsto no artigo 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, previamente à decisão de mérito da causa.
Na verdade, não estamos perante questão de direito resolvida por jurisprudência constante do Tribunal de Justiça nem de questão de interpretação evidente para o Juiz Nacional, como se demonstra pela singeleza da decisão proferida em primeira instância que se bastou com a integração dos factos provados nos indicados preceitos legais, aliás vertidos nas cláusulas da apólice do seguro em causa.
Trata-se, antes de uma questão de interpretação das normas comunitárias aplicáveis, sendo responsabilidade do Tribunal Nacional aquilatar junto da instituição comunitária competente, o Tribunal de Justiça, através do mecanismo do reenvio prejudicial, da correcta interpretação dos pertinentes artigos da Directiva actualmente vigente, a qual se apresenta como fulcral à decisão do presente caso, dela dependendo a confirmação ou a revogação da decisão recorrida, em conformidade com a resposta que venha a ser dada às questões colocadas.
*****
III.2.2.3. – Do reenvio prejudicial
Pelo exposto supra, e considerando que:
1 - A legislação portuguesa sobre o regime de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel prevê no artigo 14.º, n.º 2, alíneas b) e c) do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, a exclusão da garantia do seguro de quaisquer danos materiais causados ao tomador do seguro e a todos aqueles cuja responsabilidade é garantida, nos termos do n.º 1 do artigo seguinte 15.º, designadamente ao proprietário do veículo;
2 - A legislação portuguesa sobre o regime de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel estabelece no artigo 15.º, n.º 3, do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, que nos casos de roubo, furto ou furto de uso de veículos e acidentes de viação dolosamente provocados o seguro não garante a satisfação das indemnizações devidas pelos respectivos autores e cúmplices para com o proprietário, usufrutuário, adquirente com reserva de propriedade ou locatário em regime de locação financeira;
3 - A legislação portuguesa sobre o regime de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel prevê no artigo 11.º, n.º 2, do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, que o seguro de responsabilidade civil abrange os danos sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas quando e na medida em que a lei aplicável à responsabilidade civil decorrente do acidente automóvel determine o ressarcimento desses danos;
4 - A legislação portuguesa relativa à responsabilidade civil por factos ilícitos prevê a obrigação de indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação dos seus direitos por parte daquele que, de forma ilícita, e actuando com dolo ou mera culpa, os tenha atingido (artigo 483.º do Código Civil);
5 - O Tribunal de Justiça já decidiu que os artigos 2.º, n.º 1, segundo parágrafo da Segunda Directiva e 1.º da Terceira Directiva, opõem-se a uma regulamentação nacional que permita excluir ou limitar de modo desproporcionado, com fundamento na contribuição de um passageiro para a produção do dano que sofreu, a indemnização coberta pelo seguro automóvel obrigatório. O facto de o passageiro em causa ser o proprietário do veículo cujo condutor provocou o acidente é irrelevante;
6 - O Tribunal de Justiça já decidiu que o artigo 2.º, n.º 1, segundo parágrafo, da Segunda Directiva deve ser interpretado no sentido de que uma disposição legal ou cláusula contratual constante de uma apólice de seguro que exclua do seguro a utilização ou a condução de veículos só é oponível aos terceiros, vítimas de um acidente de viação, se a seguradora provar que as pessoas que de livre vontade se encontravam no veículo causador do dano sabiam que o mesmo tinha sido roubado;
7 - No caso dos autos, a vítima do acidente de viação é a proprietária do veículo e tomadora do seguro, tendo sido intencionalmente atropelada pelo condutor do seu veículo e autor do furto, quando se encontrava na estrada na qualidade de peão;
Impõe-se submeter à apreciação do Tribunal de Justiça a seguinte questão:
Em caso de acidente de viação do qual resultaram danos corporais e materiais para um peão que foi intencionalmente atropelado pelo veículo automóvel de que era proprietário, e que se encontrava a ser conduzido pelo autor do furto, o direito comunitário, designadamente os artigos 12.º, n.º 3, e 13.º, n.º 1, da Directiva 2009/103/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, opõe-se à exclusão pelo direito nacional de qualquer indemnização ao referido peão em virtude de o mesmo ter a qualidade de proprietário do veículo e tomador do seguro?
III.3. – Síntese conclusiva
I - A questão de saber se as companhias de seguro são responsáveis pelas indemnizações devidas aos lesados pela circulação de veículos automóveis quando o sinistro tenha sido «dolosamente provocado» nem sempre obteve solução semelhante ao nível da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça. Porém, sobretudo desde 2007, tem-se consolidado o entendimento que defende uma resposta afirmativa a tal questão.
II - Não obstante, o caso dos autos encerra uma particularidade específica: a de saber se a precedente conclusão é aplicável ao caso em que o proprietário de um veículo automóvel e tomador do seguro é o lesado por danos que lhe foram causados pelo seu próprio veículo, conduzido por um terceiro que o furtara, e que com o mesmo, de forma intencional, o atropelou.
III - Em matéria de seguro de responsabilidade civil automóvel as disposições legislativas nacionais, à luz das quais se determina a existência e extensão do direito de indemnização do lesado vítima de um acidente de viação, não podem comprometer a efectividade das disposições de Direito da União Europeia relativas a este tipo de seguro, não se podendo ignorar que a ideia fundamental subjacente à acção directa é, precisamente a garantia e a protecção do lesado.
IV - Considerando que existem dúvidas fundadas quanto à conformidade dos artigos 14.º, n.º 2, alínea b), e 15.º, n.º 3, primeira parte do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, com o direito comunitário, e que nos termos do considerando 20 da Directiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Setembro de 2009, «deverá ser garantido que as vítimas de acidentes de veículos automóveis recebam tratamento idêntico, independentemente dos locais da Comunidade onde ocorram os acidentes», a fim de esclarecer estas dúvidas e assegurar o respeito pelos referidos princípios do Direito da União Europeia, entende este Tribunal ser conveniente suscitar, oficiosamente, o reenvio prejudicial previsto no artigo 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, previamente à decisão de mérito da causa, relativamente à questão que seguidamente se enuncia:
Em caso de acidente de viação do qual resultaram danos corporais e materiais para um peão que foi intencionalmente atropelado pelo veículo automóvel de que era proprietário, que se encontrava a ser conduzido pelo autor do respectivo furto, o direito comunitário, designadamente os artigos 12.º, n.º 3, e 13.º, n.º 1, da Directiva 2009/103/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, opõe-se à exclusão pelo direito nacional de qualquer indemnização ao referido peão em virtude de o mesmo ter a qualidade de proprietário do veículo e tomador do seguro?
*****
IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em:
I - Suscitar perante o Tribunal de Justiça da União Europeia o reenvio prejudicial relativamente à questão que seguidamente se enuncia:
Em caso de acidente de viação do qual resultaram danos corporais e materiais para um peão que foi intencionalmente atropelado pelo veículo automóvel de que era proprietário, que se encontrava a ser conduzido pelo autor do respectivo furto, o direito comunitário, designadamente os artigos 12.º, n.º 3, e 13.º, n.º 1, da Directiva 2009/103/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, opõe-se à exclusão pelo direito nacional de qualquer indemnização ao referido peão em virtude de o mesmo ter a qualidade de proprietário do veículo e tomador do seguro?
II - Suspender a instância até ser proferida, a título prejudicial, decisão pelo Tribunal de Justiça da União Europeia quanto à questão colocada.
III - Notificar as partes para, no prazo de dez dias, efectuarem as sugestões que entendam por convenientes, no que tange ao presente pedido de reenvio.
*****
Transitado em julgado o presente acórdão de reenvio, deverá a secção:
- extrair certidão do acórdão; da petição inicial; da contestação e dos documentos a ela anexos (título de registo de propriedade e apólice do contrato de seguro);
- extrair fotocópias do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, e do artigo 483.º do Código Civil;
- remeter aquela certidão e estas fotocópias ao Tribunal de Justiça da União Europeia, com informação dos nomes e moradas dos advogados das partes e das próprias partes, conforme previsto no artigo 20.º do protocolo relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça.
*****
Évora, 16 de Junho de 2016


Albertina Pedroso [31]


Elisabete Valente


Bernardo Domingos








__________________________________________________
[1] Relatora: Albertina Pedroso;
1.º Adjunto: Elisabete Valente;
2.º Adjunto: Bernardo Domingos.

[2] Doravante abreviadamente designado CPC.
[3] Factos que se aditam nos termos do artigo 607.º, n.º 4, do CPC, aplicável aos acórdãos por via do disposto no artigo 663.º, n.º 2, do mesmo código, uma vez que resultam do título de registo de propriedade do veículo e da apólice do contrato de seguro.
[4] Doravante abreviadamente designado CC.
[5] Cfr. Filipe Albuquerque Matos, in Estudos dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio Brito de Almeida Costa, pág. 602.
[6] Cfr. nesse sentido, Diogo Leite de Campos, in Contrato a Favor de Terceiro, 2.ª edição, Coimbra, 1991, pág. 36 e Afonso Moreira Correia, no Estudo intitulado “Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel - Direito de Regresso da Seguradora”, in “Direito dos Seguros – Memórias – Coordenação de António Costa Martins”, pág.199.
[7] Cfr. Filipe Albuquerque Matos, ob cit., pág. 623, citando no mesmo sentido, Moitinho de Almeida, in O contrato de seguro no direito português e comparado, pág. 291 e segs.
[8] Cfr. Alessandra Silveira e Sophie Perez Fernandes, no estudo “O seguro automóvel. Considerações sobre a posição do Tribunal de Justiça da União Europeia em sede de reenvio prejudicial”, in Cadernos de Direito Privado, n.º 34 Abril/Junho 2011, pág. 6.
[9] Cfr. Afonso Moreira Correia, loc. cit.
[10] Cfr. síntese efectuada no Acórdão do STJ de 18-12-2008, processo n.º 08P3852, disponível em www.dgsi.pt. Este entendimento de que não estamos em casos desta natureza perante um «acidente de viação», é sufragado por Arnaldo Filipe da Costa Oliveira, in "Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel", pág. 53, onde afirma que "A obrigação de seguro do RCA é uma opção reguladora de enormes consequências jurídico-institucionais e ligada a um fim delimitado. Só constar da situação concreta do âmbito desse fim justifica a sua inclusão no âmbito de actuação do sistema de protecção de lesados regulado pelo DL 291/2007. Coerente com esta linha de entendimento parece-nos ser, portanto, igualmente, a exclusão do âmbito da cobertura do seguro obrigatório do dano causado pelo uso do veículo sujeito ao SORCA estritamente enquanto arma de um crime".
Em nota de rodapé cita, nesse sentido, o referido acórdão do STJ de 13-03-2007, processo 07A197, também disponível em www.dgsi.pt.
[11] Cfr., a título meramente exemplificativo, o referido acórdão de 18-12-2008; Acórdão de 17-10-2007, processo 07P3395; Acórdão de 07-05-2009, processo 09A0512; Acórdão de 06.07-2011, processo 3126/07.6TVPRT.P1.S1; Acórdão de 10-07-2012, processo n.º 2362/09.5TBPRD.P1.S1; Acórdão de 27-09-2012, processo 560/04.7TBVVD.G1.S1; Acórdão de 17-01-2013, processo 358/08.3TBVLP.P1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Neste mesmo sentido pronunciou-se também Maria José Rangel Mesquita, em anotação ao indicado Acórdão do STJ de 13-03-2007, in Cadernos de Direito Privado, n.º 25, Jan/Março de 2009, págs. 24 a 33
[12] Directivas 72/166/CE do Conselho, de 24 de Abril de 1972, 84/5/CEE do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983, 90/232/CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1990, 2000/26/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Maio de 2000, 2005/14/CE, de 11 de Maio de 2005, actualmente já revogadas pelo artigo 29.º da Directiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Setembro de 2009, que as substituiu, consolidando numa única Directiva as sucessivas disposições anteriores.
[13] In “Contrato de Seguro – Estudos”, Coimbra Editora 2009, págs. 205 a 224, também disponível em www.stj.pt Estudos.
[14] Estudo citado, págs. 220 e 221.
[15] Note-se a este respeito que a Jurisprudência do Tribunal de Justiça tem sempre significado que as «Directivas Automóvel» não visam harmonizar os regimes de responsabilidade civil dos Estados-membros e que, no estado actual do Direito da União, estes são livres de determinar o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos».
[16] Cfr. Acórdão STJ de 05-03-2015, processo 2007/09.3TVPRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[17] Cfr. Acórdão STJ de 21-01-2014, processo 258/08.7TCGMR.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[18] Cfr. Alessandra Silveira e Sophie Perez Fernandes, no estudo “O seguro automóvel. Considerações sobre a posição do Tribunal de Justiça da União Europeia em sede de reenvio prejudicial”, in Cadernos de Direito Privado, n.º 34 Abril/Junho 2011, pág. 6.
[19] Cfr. autoras e local citado.
[20] Cfr. autoras e estudo citado, pág. 17.
[21] Cfr. autoras citadas, no Estudo: Anotação aos acórdãos (TEDH) Ferreira Santos Pardal c. Portugal e (TJUE) Ferreira da Silva e Brito (ou do “grito do Ipiranga” dos lesados por violação do direito da União Europeia no exercício da função jurisdicional), in Julgar online, Outubro de 2015.
[22] Cfr. Cunha Rodrigues, in Seguro obrigatório e responsabilidade civil na jurisprudência comunitária, Revista do CEU, 2.º Semestre 2007, número 7, pág. 35.
[23] Cfr. Autor e Estudo citado, página 36.
[24] Cfr. Autoras e Estudo citado, pág. 4.
[25] Proferido no processo n.º 06A2892, e disponível em www.dgsi.pt.

[26] Acórdão proferido na Revista n.º 742/08, disponível em www.dgsi.pt.
[27] Cfr. Cunha Rodrigues, Estudo citado, pág. 52.
[28] Seguindo ainda a sua síntese e citando a afirmação da pág. 44.
[29] Cfr. Sofia Oliveira Pais, no Estudo “Da inaplicabilidade da jurisprudência Candolin e Farrel ao direito nacional em matéria de responsabilidade civil”, citando intervenção de Maria José Rangel Mesquita.
[30] Cfr. Acórdão STJ de 17-12-2015, processo 312/11.8TBRGR.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[31] Texto elaborado e revisto pela Relatora.