Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2216/15.6T8PTM.E1
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
FACTO INÓCUO
ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO DO ACIDENTE
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
Data do Acordão: 10/31/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I Impugnando a recorrente a decisão sobre a matéria de facto, por entender que à mesma devem ser aditados determinados pontos, que, depois de analisados, se constata que, alguns deles, consubstanciam juízos conclusivos ou apreciativos, e que, nessa qualidade, nunca poderão ser levados à fundamentação factual, improcede liminarmente a impugnação deduzida, em relação a tais pontos.
II – Só os factos que produzam ou tenham consequências jurídicas devem ser objeto de prova e de reapreciação da prova, caso contrário, estar-se-ia a praticar atos inúteis, sem qualquer incidência prática, o que se mostra proibido pelo artigo 130.º do Código de Processo Civil.
III – Os ónus de alegação e prova das situações que permitem descaracterizar o acidente de trabalho, recaem sobre quem pretende beneficiar do regime legal previsto no artigo 14.º da LAT.
IV – A descaracterização do acidente prevista na alínea a) do nº1 do artigo 14º da Lei nº 98/2009, exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (i) existência de regras de segurança desrespeitadas por parte do destinatário/trabalhador; (ii) atuação voluntária/consciente do destinatário/trabalhador, embora não intencional, por ação ou omissão e sem causa justificativa; (iii) nexo de causalidade entre a conduta voluntária e o acidente.
V – A exclusão do direito à reparação do acidente prevista na aludida alínea, alicerça-se na consciência da inobservância do dever de cumprimento de regras sobre segurança, sem causa justificativa, do ponto de vista do sinistrado.
VI – Para que se verifique a situação que exclui o direito à reparação pelo acidente prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, mostra-se necessário o preenchimento dos seguintes requisitos: (i) que se verifique negligência grosseira do sinistrado; (ii) que essa negligência grosseira constitua a causa exclusiva do acidente.
VII – O sinistrado que viu uma peça de pavimento em cimento (pavê) caída por baixo da máquina paletizadora com que estava a trabalhar e que reage automaticamente e de imediato, tentando retirar a peça para evitar que a máquina encravasse, com a máquina em funcionamento, sem consciencializar que estava a violar normas de segurança e sem que tenha ficado provado que lhe tenha sido dada formação em matéria de segurança sobre o funcionamento da máquina ou tenha recebido ordens específicas de segurança, beneficia do regime de proteção legal dos acidentes de trabalho, por falta de demonstração, pela seguradora responsável, de que o comportamento do sinistrado se subsume às alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 14.º da LAT.
(Sumário da relatora)
Decisão Texto Integral: P.2216/15.6T8PTM.E1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]

1. Relatório
BB, patrocinado pelo Ministério Público, instaurou ação com processo especial de acidente de trabalho, contra CC, S.A. (que incorporou a Companhia de Seguros…, S.A.), pedindo que a ré seja condenada a reconhecer o evento descrito nos autos como acidente de trabalho, a transferência de responsabilidade pela reparação dos danos decorrentes do mesmo em função da retribuição auferida, no valor anual de € 11.571,00 e, em função disso, a pagar ao autor: a) uma pensão anual e vitalícia de € 6.479,76, devida desde 02.06.2016; b) o montante de € 9.390,73, relativo à indemnização legal devida pelo período de incapacidade temporária; c) um subsídio por situações de elevada incapacidade permanente, no valor de € 4.371,62; d) o montante de € 2.656,44, relativo a despesas suportadas pelo sinistrado, devido a consultas e exames médicos, medicamentos e tratamentos clínicos e transportes.
Em súmula, alegou ter sofrido um acidente de trabalho, em 10 de abril de 2015, do qual derivaram lesões e sequelas incapacitantes, sendo a seguradora demandada a entidade responsável pela reparação do acidente.
A ré contestou, alegando, em síntese, que o acidente em apreço nos autos deve ser descaracterizado e a ré absolvida do pedido.
Discordou, ainda, do modo de cálculo das despesas de transporte peticionadas, pois, no seu entender, ao sinistrado competia alegar e provar as despesas efetivamente incorridas, uma vez que o regime de pagamento dos transportes aos funcionários do Estado não se mostra aqui aplicável.
O Instituto de Segurança Social, I.P. – Centro Distrital de Faro, citado nos termos do disposto no artigo 1º do Decreto-Lei nº 59/89, de 22 de fevereiro, veio deduzir pedido de reembolso, reclamando o pagamento da quantia de € 17.434,49, correspondente ao subsídio de doença pago por aquela entidade ao autor, no período compreendido entre 13.04.2015 e 03.12.2017
Foi proferido despacho saneador, no qual se fixou a incapacidade do autor, selecionaram-se os factos assentes e organizou-se a base instrutória.

Após a realização do julgamento e resposta à base instrutória, foi proferida sentença, com o dispositivo que se transcreve:
«Nos termos expostos e em conformidade com as disposições legais citadas, julga-se a ação procedente porque provada e, em consequência, julga-se o autor BB, por via do acidente de trabalho de que foi vítima a 10.04.2015, afetado de 11.04.2015 até 31.05.2016 de uma ITA (incapacidade temporária absoluta), e afetado de uma incapacidade permanente parcial (IPP) de 30%, com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH), desde 01.06.2016, sendo as sequelas físicas de que ficou a padecer subsumíveis ao item 8.4.1.b), do Capítulo I da Tabela Nacional de Incapacidades aprovada pelo Decreto-Lei nº 352/2007, de 23 de outubro, e, por via disso:
a) Condena-se a ré “CC, S.A.”, a pagar ao autor BB a quantia de € 9.336,05 (nove mil, trezentos e trinta e seis euros e cinco cêntimos), a título de indemnização devida pelo período de incapacidade temporária absoluta (417 dias) a que o sinistrado esteve sujeito, acrescidas de juros contados sobre cada importância diária desde o dia respetivo em que é devida;
b) Condena-se, ainda, a ré “CC, S.A.” a pagar ao autor a pensão anual, vitalícia e atualizável de € 6.479,76 (seis mil, quatrocentos e setenta e nove euros e setenta e seis cêntimos), devida desde 02.06.2016, acrescida dos juros de mora contados à taxa legal;
c) Condena-se a ré “CC, S.A.”, a pagar ao autor a quantia de € 4.371,62 (quatro mil, trezentos e setenta e um euros e sessenta e dois cêntimos), a ser paga de uma só vez, a título de subsídio de elevada incapacidade permanente;
d) Condena-se a ré “CC, S.A.” a pagar ao autor a quantia de € 1.894,56 (mil, oitocentos e noventa e quatro euros e cinquenta e seis cêntimos) a título de despesas suportadas pelo autor em consequência do acidente;
e) Condena-se a ré “CC, S.A.” a reembolsar o “Instituto da Segurança Social, I.P. – Centro Distrital de Faro” pelas prestações respeitantes a subsídio de doença pago ao autor no período compreendido entre 13.04.2015 e 03.12.2017, no montante global de € 17.283,51 (dezassete mil, duzentos e oitenta e três euros e cinquenta e um cêntimos), a deduzir das prestações devidas pela ré ao autor;
f) A ré seguradora vai também condenada no pagamento de juros de mora sobre as prestações pecuniárias em atraso, à taxa anual de 4%.
(…)
Fixa-se à ação o valor de € 98.163,07 (cf. artigo 120º, nos 1e 2, do Código de Processo do Trabalho). (…)»

Não se conformando com esta decisão, veio a ré interpor recurso da mesma, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
a. O Tribunal a quo não efetuou uma correta apreciação da prova produzida, nem uma ajustada interpretação dos factos, e, por conseguinte, uma adequada subsunção jurídica, bem como uma apropriada aplicação do direito.
b. Ora, perante a prova produzida, impunha-se decisão diversa da proferida, pois das declarações de parte do Autor conjugada com a factualidade dada como provada, bem como dos restantes elementos de prova constantes dos autos resultou prova bastante para se descaracterizar o acidente de trabalho sofrido pelo Autor e, assim, ficar excluído o direito deste à reparação dos danos decorrentes do acidente em causa e o direito ao reembolso do Instituto da Segurança Social.
c. O meio probatório que se entende ter sido erradamente apreciado e cujo reexame se solicita agora em sede recursiva é o seguinte:
-Declarações de parte do Autor, gravado em CD único, produzido em sede de audiência de julgamento, dos minutos 06:55 a 07:25/07:12 a 07:15 e 07:26 a 07:28/04:43 a 05:33/04:31 a 04:41/09:09 a 09:11 e 09:17 a 09:18/07:56 a 08:07/09:39 a 09:43)
d. Pois bem, salvo o devido respeito por diverso entendimento, na sequência do citado elemento probatório, deveria o Tribunal a quo ter considerado provado que:
1. O Autor trabalhava com a máquina de cintar há 10/12 anos;
2. O Autor tinha claro conhecimento acerca do modo de funcionamento da máquina;
3. O Autor não desligou a máquina antes do início da operação de retirada da peça de pavé caída por baixo da máquina;
4. O Autor sabia que deveria proceder à retirada da peça de pavê caída com a máquina desligada;
5. O Autor colocou a mão por baixo da rede da máquina, para de lá retirar a peça de pavê que tinha caído, de forma voluntaria e com a consciência que a máquina estava em funcionamento;
6. O Autor nunca tinha, em data anterior ao acidente, colocado a mão por baixo da rede da máquina para de lá retirar as peças de pavê que caiam;
7. O acidente ocorreu por força da violação, consciente e voluntaria, por parte do Autor, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora e/ ou previstas na lei, e pela negligencia grosseria pelo mesmo protagonizada; e
8. O acidente foi consequência direta e necessária da conduta do Autor, já que ocorreu devido ao facto do Autor ter introduzido a mão por baixo da rede da máquina de cintar sem acionar previamente o botão de paragem da referida máquina.
Na verdade,
e. Conforme resulta das declarações prestadas pelo Autor, transcritas, aliás, nas alegações do presente recurso, o Autor trabalhava com a máquina de cintar há cerca de 10/12 anos.
f. Como qualquer técnico que trabalha diariamente com um equipamento, o Autor conhecia os componentes e o modo de funcionamento da máquina em questão.
g. Na data e hora do sinistro a máquina estava sob o domínio exclusivo do Autor, uma vez que este trabalhava sozinho.
h. Apesar de conhecer as características e o modo de funcionamento da máquina e de, bem assim, ter a perceção do alcance das condições de segurança que era suposto observar, o Autor introduziu a mão por baixo da rede da máquina para retirar de lá a peça que tinha caído, sem acionar previamente o botão de paragem da máquina.
i. E fê-lo de forma voluntaria e consciente, sabendo que a máquina estava ligada e que estava a aceder a uma zona perigosa da mesma, constituída por elementos movíveis.
j. Mais, fê-lo não só sem ordem nem autorização expressa para tal (nomeadamente emanada pela sua entidade patronal), como sem qualquer necessidade, ou seja, sem causa justificativa.
k. Mesmo que, eventualmente, não fosse possível, por hipótese, acionar o botão de paragem da máquina, o Autor nunca poderia colocar a mão por baixo da rede da máquina encontrando-se esta em funcionamento.
l. É de senso comum que tal ato é muitíssimo perigoso.
m. Sendo o Autor um técnico experiente é-lhe particularmente exigível que cumpra as mais elementares regras de segurança na execução do seu trabalho.
n. A conduta praticada pelo Autor - colocar a mão por baixo da rede da máquina com esta em funcionamento e sem acionar previamente o botão de paragem da máquina- é altamente reprovável, indesculpável e injustificada à luz das mais elementares regras de prudência e de senso comum e, por isso é constitutiva de culpa grave.
o. Trata-se de uma conduta perigosa, arriscada, imprudente, audaciosa, arrojada, intrépida que não tem fundamento, nem pode ser tutelada pela ordem jurídica.
p. Acresce que, conforme resulta das declarações por si prestadas, em sede de audiência de discussão e julgamento, o Autor nunca tinha colocado a mão por baixo da rede da máquina para apanhar as peças que lá caiam, o que nos permite concluir que, in casu, a conduta do Autor não resulta da habitualidade por parte deste ao perigo do trabalho executado, à confiança na sua experiência profissional nem aos usos e costumes da profissão.
q. Salvo o devido respeito por opinião diversa, só uma pessoa especialmente descuidada e incauta poderia praticar o comportamento resultante do acidente em causa.
r. Face ao circunstancialismo supra descrito, e confessado pelo próprio Autor, em sede de audiência de discussão e julgamento, referente à dinâmica do acidente, só ao próprio Autor pode ser imputada a ocorrência do acidente em apreço.
s. Isto porque, caso o Autor tivesse acionado o botão de paragem da máquina, como lhe era exigido fazer, o tabuleiro que desliza entre os rolamentos não se mexia e não teria “entalado” a mão do Autor, não sofrendo este as lesões e sequelas que, infelizmente, veio a sofrer.
t. Ademais, atente-se na factualidade dada como provada e transcrita para o presente recurso, da qual resulta que na empresa existe um manual de funcionamento da máquina de cintar e que só depois de ficar gravemente ferido é que o Autor se deslocou ao painel de comandos para acionar o botão de paragem da máquina – cfr. pontos 5 e 16 da factualidade dada como provada e constantes da sentença objeto do presente recurso.
u. Face a toda a factualidade supra exposta, e sempre com o máximo respeito por diverso entendimento, impunha-se que o Tribunal a quo considerasse que o Autor atuou de forma voluntária e consciente quando violou normas de segurança, o que desde já se alegada para os devidos efeitos legais.
Por outro lado,
v. Na sequência do citado elemento probatório, o Tribunal a quo deveria ter dado como não provado os factos vertidos nos pontos:
- 6. do elenco da factualidade dada como provada, na parte “pelo que lhe pareceu seguro retirar a peça do modo descrito”; e
- 8. do elenco da factualidade dada como provada, na parte “o que lhe pareceu seguro fazer”.
De facto,
w. Da prova produzida e constantes dos autos, não resulta que, no momento em que o Autor colocou a mão por baixo da rede da máquina, sem acionar previamente o botão de paragem do aludido equipamento, o tenha feito com a consciência de que tal conduta não causaria o acidente sub judice.
x. Ao contemplar diverso entendimento, a sentença proferida pelo Tribunal a quo incorre em verdadeiro erro na apreciação da prova produzida e, consequentemente, em erro de julgamento.
y. Da propugnada reapreciação da decisão sobre a matéria de facto resultará, necessariamente, a drástica modificação da decisão de mérito da causa, o que desde já se requer.
Posto isto,
z. A matéria de facto considerada provada e a prova produzida em sede de audiência de julgamento são suficientes e adequadas para que se considere descaracterizado o acidente de trabalho em apreço nos presentes autos, por via da aplicação do vertido no artigo 14º, nº1, als. a), 2ª parte e b) da Lei de Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (doravante designada LAT).
aa. No que diz respeito à aplicabilidade do artigo 14º, nº1 al a) da LAT, é entendimento pacífico na jurisprudência e na doutrina que a aplicação do identificado preceito legal pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
1. A existência de regras ou condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou pela lei;
2. A prática, por parte do sinistrado, de uma conduta – ato ou omissão – violadora dessas regras ou condições de segurança;
3. A voluntariedade desse comportamento, ainda que não intencional, e sem causa justificativa, por parte do sinistrado; e
4. A existência de um nexo causal entre o ato ou omissão do sinistrado e o acidente ocorrido - Neste sentido, cf. Acórdão desta Secção, do STJ, datado de 15/4/2015, proferido no âmbito do processo de Revista nº 1716/11.1TTPNF.P1.S1, Relatado por Melo Lima e disponível em www.dgsi.pt.
bb. Mais considera a nossa jurisprudência que a lei não faz depender a descaracterização do acidente com fundamento na violação das regras de segurança, previsto no artigo 14, nº1, al a) da LAT, na intensidade com que a violação é praticada pelo sinistrado, bastando que a mesma tenha ocorrido sem causa justificativa (acórdãos do STJ de 17.05.2017, processo nº 827/06.0TTVNG.P1.S1 e do Tribunal da Relação do Porto, de 31/03/2018, proferido no âmbito do processo 0745797)
cc. Já no que concerne à voluntariedade do ato ou omissão que justifica a descaracterização do acidente de trabalho, a nossa jurisprudência e doutrina, de forma dominante, tem entendido que entre os requisitos da alínea a) do nº 1, do 14º da LAT, deverá constar a prática do ato ou omissão voluntaria e consciente.
dd. In casu, atento o referido elemento probatório – que se entende ter sido erradamente apreciado pelo Tribunal a quo – que constitui um verdadeiro atropelo, sem causa justificativa, das regras de segurança previstas no nº 1 das als a) e b) do artigo 17º do Regime Jurídico da Promoção da Segurança e Saúde no Trabalho, no nº1 do artigo 19º, do Decreto-Lei nº 50/2005, de 25/02 e do artigo 46° do Regulamento Geral de Segurança e Higiene do Trabalho nos Estabelecimentos Industriais – regido pela Portaria nº 53/71, de 3/2, alterada pela Portaria nº 702/80, de 22/9, encontram-se preenchidos todos os pressupostos previstos no artigo 14º, nº1 al a) da LAT (veja-se a decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, a 15.04.2015, processo nº 1716/11.1TTPNF.P1.S1, num caso análogo ao do presentes autos)
Sem prescindir,
No que concerne à aplicabilidade do disposto no artigo 14º, nº1 al b) da LAT, a nossa jurisprudência tem entendido que para haver lugar à descaracterização do acidente de trabalho nestes termos é necessário provar que ocorreu um ato/omissão temerários em alto e relevante grau por parte do sinistrado, injustificado pela habitualidade ao perigo do trabalho executado, pela confiança na experiencia profissional ou pelos usos e costumes da profissão e, além disso, que o acidente tenha tido como única causa essa atuação.
ee. No caso, e face à factualidade supra exposta, o Autor não observou o cumprimento dos mais elementares deveres de cuidado, o que não pode deixar de ser objeto de um fortíssimo juízo de censura.
ff. Na verdade, se o Autor tivesse acionado previamente o botão de paragem da máquina, o tabuleiro que desliza entre os rolamentos não se mexia e não teria “entalado” a mão do Autor, não sofrendo este as lesões e sequelas que, infelizmente, veio a sofrer.
gg. Foi o comportamento altamente temerário do Autor que exclusivamente contribui para a eclosão do acidente em causa.
hh. Por fim, realça-se o facto de, segundo as declarações prestadas pelo próprio Autor, este nunca tinha, em datas anteriores, colocador a mão por baixo da rede da máquina para a retirada das peças que lá caíam, pelo que o comportamento temerário em alto e relevante grau praticado pelo Autor não se consubstanciou num ato resultante da habitualidade por parte deste ao perigo do trabalho executado, à confiança na sua experiência profissional nem nos usos e costumes da profissão.
ii. Nessa conformidade, deverá ser descaracterizado o acidente de trabalho em causa, absolvendo-se a Ré dos pedidos contra si formulados.
TERMOS EM QUE DEVERÁ SER CONCEDIDO INTEGRAL PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA:
SER ADITADA A SEGUINTE FACTUALIDADE À MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA, A SABER:
1. O AUTOR TRABALHAVA COM A MÁQUINA DE CINTAR HÁ 10/12 ANOS;
2. O AUTOR TINHA CLARO CONHECIMENTO ACERCA DO MODO DE FUNCIONAMENTO DA MÁQUINA;
3. O AUTOR NÃO DESLIGOU A MÁQUINA ANTES DO INÍCIO DA OPERAÇÃO DE RETIRADA DA PEÇA DE PAVÉ CAÍDA POR BAIXO DA MÁQUINA;
4. O AUTOR SABIA QUE DEVERIA PROCEDER À RETIRADA DA PEÇA DE PAVÊ CAÍDA COM A MÁQUINA DESLIGADA;
5. O AUTOR COLOCOU A MÃO POR BAIXO DA REDE DA MÁQUINA, PARA DE LÁ RETIRAR A PEÇA DE PAVÊ QUE TINHA CAÍDO, DE FORMA VOLUNTARIA E COM A CONSCIÊNCIA QUE A MÁQUINA ESTAVA EM FUNCIONAMENTO;
6. O AUTOR NUNCA TINHA, EM DATA ANTERIOR AO ACIDENTE, COLOCADO A MÃO POR BAIXO DA REDE DA MÁQUINA PARA DE LÁ RETIRAR AS PEÇAS DE PAVÊ QUE CAIAM;
7. O ACIDENTE OCORREU POR FORÇA DA VIOLAÇÃO, CONSCIENTE E VOLUNTARIA, POR PARTE DO AUTOR, DAS CONDIÇÕES DE SEGURANÇA PREVISTAS NA LEI, E PELA NEGLIGENCIA GROSSERIA PELO MESMO PROTAGONIZADA; E
8. O ACIDENTE FOI CONSEQUÊNCIA DIRECTA E NECESSÁRIA DA CONDUTA DO AUTOR, JÁ QUE OCORREU DEVIDO AO FACTO DO AUTOR TER INTRODUZIDO A MÃO POR BAIXO DA REDE DA MÁQUINA DE CINTAR SEM ACCIONAR PREVIAMENTE O BOTÃO DE PARAGEM DO ALUDIDO EQUIPAMENTO.
SER DADO COMO NÃO PROVADO OS FACTOS VERTIDOS NOS PONTOS:
6, DO ELENCO DA FACTUALIDADE DADA COMO PROVADA, NA PARTE “PELO QUE LHE PARECEU SEGURO RETIRAR A PEÇA DO MODO DESCRITO”; E 8, DO ELENCO DA FACTUALIDADE DADA COMO PROVADA, NA PARTE “O QUE LHE PARECEU SEGURO FAZER”
E, BEM ASSIM, DEVERÁ:
CONSIDERAR-SE DESCARACTERIZADO O ACIDENTE DE TRABALHO SOFRIDO PELO AUTOR, REVOGANDO-SE A SENTENÇA PROFERIDA E, CONSEQUENTEMENTE, ABSOLVENDO-SE A RÉ DOS PEDIDOS CONTRA SI FORMULADOS.»
Contra-alegou o sinistrado, propugnando pela improcedência do recurso.
Admitido o recurso pelo tribunal de 1.ª instância, o processo subiu ao Tribunal da Relação.
Tendo a secção aberto “Vista” ao Ministério Público, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta esclareceu que estando o sinistrado a ser patrocinado pelo Ministério Público, davam-se por integralmente reproduzidas as contra-alegações oferecidas.
Mantido o recurso, elaborado o projeto de acórdão, e colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Objeto do Recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil aplicáveis por remissão do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho).
Em função destas premissas, as questões suscitadas no recurso são:
1.ª Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
2.ª Saber se o acidente que se aprecia nos autos deve ser descaracterizado, extraindo-se da conclusão a que se chegue, as devidas consequências.
*
III. Matéria de Facto
O tribunal de 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:
1. O autor BB é trabalhador da empresa “DD, Ldª”, exercendo a profissão de condutor de empilhador e operador de máquina paletizadora, funções que desempenha no Pavilhão … onde, com a ajuda do equipamento industrial disponível, fabrica e transporta pavê (peças de cimento). (alínea A) da matéria assente)
2. No dia 10 de abril de 2015, pelas 14h00, o autor encontrava-se no seu local de trabalho a fabricar, cintar e retirar para a rua, paletes com as referidas peças de pavimento, operando para o efeito uma máquina empilhadora e uma máquina de cintar, quando viu uma peça de pavê caída no chão, por baixo da máquina paletizadora. (alínea B) da matéria assente)
3. Para evitar que a máquina encravasse, o autor meteu a mão por baixo da rede da máquina para retirar a referida peça. (alínea C) da matéria assente)
4. Quando estava a tentar agarrar a peça, o tabuleiro, que desliza sobre rolamentos, voltou automaticamente para a zona da peça caída e embateu contra a mão do autor, entalando-a e provocando esfacelo do punho e da mão direita. (alínea D) da matéria assente)
5. Só depois de ficar gravemente ferido é que o sinistrado se deslocou ao painel de comandos para acionar o botão de paragem da máquina paletizadora. (2º da base instrutória)
6. Na altura em que decidiu introduzir a mão por baixo da rede, a máquina tinha o tabuleiro recolhido, pelo que lhe pareceu seguro retirar a peça do modo descrito e assim evitar parar a linha de produção. (3º da base instrutória)
7. Já depois do acidente, foi colocada na referida máquina uma rede protetora até ao chão, a qual presentemente impede o acesso ao ponto onde o sinistrado tinha a mão quando foi atingido. (4º da base instrutória)
8. Mas na altura do acidente não existia essa rede, pelo que o sinistrado resolveu retirar a peça de cimento por aquela zona do equipamento, o que lhe pareceu seguro fazer. (5º da base instrutória)
9. Com o acidente, o sinistrado sofreu traumatismo do membro superior direito com esfacelo do punho e mão, com lesão osteoarticular, tendinosa e vascular. (alínea E) da matéria assente)
10. Após estabilização das lesões sofridas, ocorrida em 01.06.2016, o sinistrado mantém, relativamente ao membro superior direito “complexo cicatricial extenso, facilmente ulcerável no dorso do antebraço, punho e mão com 14/14 cm. Rigidez acentuada do punho. Rigidez metacarpo-falângica dos 2º, 3º e 4º dedos. Rigidez das e articulações do 5º dedo. Rigidez interfalângica do 1º dedo. Rigidez dos dedos”, o que lhe determina uma incapacidade permanente parcial (IPP) de 30%, com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH). (alínea F) da matéria assente)
11. O sinistrado foi portador de incapacidade temporária absoluta desde 11.04.2015 até 31.05.2016. (alínea G) da matéria assente)
12. Na altura em que ocorreu o acidente, o sinistrado auferia uma retribuição anual no montante de € 11.571,00 [(€ 705,00×14)+(€ 61,00×14)+(€ 3,50×242)]. (alínea I) da matéria assente)
13. A entidade patronal do sinistrado tinha a sua responsabilidade infortunística por acidentes de trabalho ocorridos com o autor transferida para a seguradora Companhia de Seguros …, S.A. (entretanto incorporada na “CC, S.A.”), através de contrato de seguro titulado pela apólice nº …. (alínea J) da matéria assente)
14. A entidade seguradora não pagou ao sinistrado qualquer montante a título de indemnização legal relativa ao período de incapacidade temporária sofrido. (alínea K) da matéria assente)
15. No período compreendido entre 13.04.2015 e 03.12.2017, o Instituto da Segurança Social, I.P. – Centro Distrital de Faro, pagou ao sinistrado, a título de subsídio de doença, o montante total de € 17.434,49. (alínea L) da matéria assente)
16. O trabalhador que, antes do autor, operava a máquina em questão, explicou ao autor o funcionamento da mesma, sendo que existe na empresa um manual de operação daquele equipamento. (6º da base instrutória)
17. Em consequência das lesões sofridas no acidente, o autor teve despesas com medicamentos, exames, tratamentos, transportes e consultas, sendo:
i) € 23,23 relativos a medicamentos;
ii) € 831,05 relativos a consultas, meios complementares de diagnóstico, tratamentos e taxas moderadoras;
iii) € 637,20 relativos a transportes que utilizou para se deslocar para as referidas consultas, exames e tratamentos; e, ainda
iv) nas datas constantes dos documentos de fls. 117, 118, 121, 122, 124, 184, 197, 204, 221, 239, 244, 251, 259, 291, 295 e 309, o autor efetuou as deslocações aí descritas, em viatura própria de sua casa para o local onde tinha acesso aos transportes públicos ou, na falta destes, diretamente para o local das consultas, exames e tratamentos, sendo que a distância a percorrer entre São Bartolomeu de Messines e Loulé é de cerca de 36,4 km (em cada percurso e incluindo 29 km em auto-estrada), entre São Bartolomeu de Messines e Tunes é de cerca de 13,7 km (em cada percurso), entre São Bartolomeu de Messines e Lisboa é de cerca de 237 km (em cada percurso e incluindo 226 km em autoestrada) e entre São Bartolomeu de Messines e Faro é de cerca de 49,4 km (em cada percurso e incluindo 36 km em autoestrada). (7º da base instrutória).
18. O autor BB nasceu no dia 28 de dezembro de 1965. (documento de fls. 3)
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IV. Impugnação da matéria de facto
Em sede de recurso, a apelante impugna a decisão sobre a matéria de facto, proferida pela 1.ª instância, sustentando que, com fundamento nas declarações prestadas pelo Autor, deverá ser aditada, ao conjunto de factos assentes, a materialidade que expressamente indica, e que os pontos 6 e 8 dos factos assentes, deverão ser alterados, de modo, a que não se considere provado o que consta da parte final dos mesmos, ou seja, respetivamente, o seguinte:
- «pelo que lhe pareceu seguro retirar a peça do modo descrito»;
- «o que lhe pareceu seguro fazer».
Entendendo-se que foi observado o ónus de impugnação previsto no artigo 640.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável ao processo laboral, nada obsta à apreciação da impugnação.
Como nota introdutória, porém, importa clarificar que esta Secção Social vem entendendo, desde há muito, que a reapreciação da matéria de facto por parte do Tribunal da Relação, baseada em meios de prova sem força probatória vinculativa, deve ser levada a efeito com especiais cautelas tendo em conta os princípios da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova.
«A efetivação do segundo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não implica a repetição do julgamento pelo tribunal de 2.ª instância – um novo julgamento, no sentido de produzir, ex novo, respostas aos quesitos da base instrutória –, mas, apenas, verificar, mediante a análise da prova produzida, nomeadamente a que foi objeto de gravação, se as respostas dadas pelo tribunal recorrido têm nas provas suporte razoável, ou se, pelo contrário, a convicção do tribunal de 1.ª instância assentou em erro tão flagrante que o mero exame das provas gravadas revela que a decisão não pode subsistir» – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de Junho de 2007, processo 06S3540, acessível em www.dgsi.pt.
Deste modo, o segundo grau de apreciação da matéria de facto, visa, unicamente, colmatar eventuais erros de julgamento, nos concretos pontos de facto que a recorrente assinala.
Posto isto, passemos, de imediato, à apreciação da impugnação deduzida.
Percorrendo a “alegada” factualidade que a apelante pretende ver aditada, de imediato se constata que o teor dos pontos 2 [O autor tinha pleno conhecimento acerca do modo de funcionamento da máquina], 7 [O acidente ocorreu por força da violação, consciente e voluntária, por parte do autor, das condições de segurança previstas na lei, e pela negligência grosseira pelo mesmo protagonizada] e 8 [O acidente foi consequência direta e necessária da conduta do autor, já que ocorreu devido ao facto do autor ter introduzido a mão por baixo da rede da máquina de cintar sem acionar previamente o botão de paragem do aludido equipamento], é constituído por evidentes juízos conclusivos.
Ora, é consabido que a decisão sobre a matéria de facto deve incidir sobre factos.
É certo que, como refere Alberto Augusto Vicente Ruço[2], não obstante a referência constante nas leis processuais a factos, estas não definem o que são os factos.
Mas, continua este autor: «No entanto, quando aludimos a factos, o senso comum, diz-nos que nos referimos a algo que aconteceu ou está acontecendo na realidade que nos envolve e percecionamos.»
Nesse sentido intuitivo captado pelo senso comum, poderemos afirmar, reproduzindo as palavras de Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[3] que os factos para efeitos da decisão sobre a matéria de facto «abrangem as ocorrências concretas da vida real», aqui cabendo «os acontecimentos do mundo exterior (da realidade empírico-sensível, diretamente captável pelas perceções do homem)», assim como os «eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do individuo (v.g. vontade real do declarante (…))»
Deste modo, juízos valorativos ou conclusivos e questões de direito não podem integrar o acervo factual.
Como corolário deste princípio, os juízos de valor, conclusões e questões de direito que sejam proferidos no âmbito da decisão sobre a matéria de facto devem, inclusive, ser considerados como não escritos pelo Tribunal da Relação, por constituírem uma deficiência do julgamento da matéria de facto que há que suprir[4].
Volvendo à concreta impugnação da decisão factual, resta-nos concluir que perante a evidente natureza conclusiva e apreciativa dos aludidos pontos 2, 7 e 8, que se pretendiam fazer constar do conjunto de factos provados, improcede liminarmente a impugnação deduzida, nesta parte.
A parte restante da impugnação, respeitante ao visado aditamento, propõe que seja acrescentada à factualidade assente, a seguinte materialidade:
- O autor trabalhava com a máquina de cintar há 10/12 anos;
- O autor não desligou a máquina antes do início da operação de retirada da peça de pavê caída por baixo da máquina;
- O autor sabia que deveria proceder à retirada da peça de pavê caída com a máquina desligada;
- O autor colocou a mão por baixo da rede da máquina, para de lá retirar a peça de pavê que tinha caído, de forma voluntária e com a consciência que a máquina estava em funcionamento;
- O autor nunca tinha, em data anterior, colocado a mão por baixo da rede da máquina para de lá retirar as peças de pavê que caíam.
Ora, desde logo se nos afigura que acrescentar ao conjunto de factos julgados provados que o autor, agora apelado, não desligou a máquina antes de retirar a peça de pavê caída por debaixo da máquina paletizadora e que o fez de forma voluntária e com consciência de que a máquina estava em funcionamento, seria uma manifesta e inútil redundância, pois tal materialidade já consta ou se extrai da conjugação da factualidade descrita nos pontos 2 a 6 e 8 dos factos assentes.
E, estando este tribunal, por imperativo legal – artigo 130.º do Código de Processo Civil – proibido de praticar atos que se revelem inúteis, decide-se não tomar conhecimento da impugnação da decisão da matéria de facto, quanto à referida materialidade, uma vez que tal conhecimento se traduziria num ato perfeitamente inútil, sem qualquer incidência prática.
Quanto à restante matéria factual invocada, a mesma não foi alegada pelas partes nos seus articulados.
O tribunal a quo nada refere na decisão da matéria de facto, sobre a eventual discussão da materialidade em causa, nos termos e para os efeitos do artigo 72.º do Código de Processo do Trabalho.
A apelante também não invoca o mencionado preceito legal, designadamente a verificação dos pressupostos aí previstos e a sua desconsideração pelo tribunal a quo.
Ora, como é sabido os recursos são meios de impugnação e de correção de decisões judiciais e não vias alternativas para suprir eventuais deficiências de alegação dos factos constitutivos do direito reclamado.
Não compete à Relação ampliar o elenco dos factos provados com outros, que não tendo sido alegados, adquira por força da reapreciação da prova, nem pode ordenar à 1.º instância que o faça, na medida em que o poder de reenviar o processo à 1.ª instância para ampliação da matéria de facto está reservado para as situações em que os factos foram alegados (cfr texto disponível em http://www.stj.pt/ficheiros/coloquios/coloquios_STJ/V_Coloquio/int2014/juiza_assessora_i.pdf, sob o título “DISCUSSÃO E JULGAMENTO DA CAUSA PODERES DO JUIZ”).
Sobre esta temática, escreveu-se no Acórdão da Relação de Coimbra proferido no P. 297/12.3TTCTB.C1:
«Funda [o A./recorrido] esta sua pretensão no teor do depoimento da testemunha CC que parcialmente transcreve.
Em primeiro lugar há a dizer que em direito processual do trabalho ainda vigora o princípio do dispositivo.
O tribunal só pode valer-se dos factos articulados pelas partes, salvo se estes forem de conhecimento oficioso ou tenha sido utilizado em 1ª instância o mecanismo a que alude o artigo 72º do Cód. Proc. Trabalho, o que no caso não foi feito conforme se constata da ata de julgamento.
Por isso, não basta que uma ou outra testemunha tenha dito isto ou aquilo para que essa matéria, tendo interesse para a decisão da causa, possa ser considerada como provada pelo tribunal.»
(o excerto citado consta reproduzido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03/06/2015, P. 297/12.3.TTCTB.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt).
No mesmo sentido, v.g. os acórdãos da Relação do Porto de 16/01/2017, P. 2311/14.9T8MAI.P1; da Relação de Coimbra de 28/04/2017, P. 2282/16.7T8LRA.C1; e, da Relação de Évora de 24/05/2018, P. 1870/16.6T8FAR.E1.
Face ao exposto, inexiste fundamento legal para ponderar a visada inserção da factualidade não alegada invocada pela apelante, no conjunto da factualidade assente.
Finalmente, resta apreciar a impugnação direcionada para os pontos 6 e 8, parte final, dos factos assentes.
A materialidade abrangida pela impugnação resultou da resposta dada, respetivamente, aos quesitos 3.º e 5.º da base instrutória, que foram considerados “Provados”.
E, depreende-se da motivação da convicção que as declarações do autor foram essenciais para que se tivesse considerado verificada a factualidade em questão.
Ouvimos, integralmente, tais declarações, e estando em causa, na parte abrangida pela impugnação, eventos do foro interno do sinistrado, afigura-se-nos que as suas declarações sustentam a decisão proferida pela 1.ª instância.
Depreende-se das mesmas que o sinistrado viu a peça de pavê no chão, por baixo da máquina paletizadora e de imediato e “à pressa”, foi retirá-la, parecendo-lhe que o podia fazer em segurança. O tabuleiro estava recolhido e tinha livre acesso à peça. Além disso, a rede que a máquina tinha data do acidente, ficava a 30 cm do chão, o que talvez induzisse, admite-se, uma sensação de aparente segurança ao nível do chão. Acresce que, como explicou o autor e não foi infirmado por qualquer outro meio probatório, não havia sinalização na rede informando da proibição de pôr a mão por baixo.
Em suma, face às declarações do autor, consideramos que não se verifica o apontado erro de julgamento, pelo que se mantém o teor dos pontos 6 e 8 dos factos assentes.
Nesta conformidade, julga-se improcedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
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V. Descaracterização do acidente
Propugna a apelante pela descaracterização do acidente que se aprecia nos autos, invocando, para tanto, a verificação da circunstância prevista na parte final da alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (LAT), bem como a particularidade do acidente ter sido exclusivamente causado por negligência grosseira do sinistrado [alínea b) do n.º1 do aludido artigo 14.º].
Analisemos a questão.
De harmonia com o preceituado no artigo 14.º, n.º 1, alínea a) da LAT, inexiste direito de reparação dos danos decorrentes do acidente que «for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu ato ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei.»
Para efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1, estipula o n.º 2 do normativo que se considera «que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento, ou tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la».
Esta causa excludente do direito à reparação não constitui novidade introduzida pela Lei nº 98/2009, pois já na Lei nº 2127, de 3 de agosto de 1965, Base VI, sob a epígrafe “Descaracterização do acidente”, se consagrava:
«1- Não dá direito a reparação o acidente:
a) Que for dolosamente provocado pela vítima ou provier de seu ato ou omissão, se ela tiver violado, sem causa justificativa, as condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal.»
Também a Lei nº 100/97, de 13 de setembro, no artigo 7.º, subordinado à mesma epígrafe, dispunha:
«1. Não dá direito a reparação o acidente:
a) Que for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu ato ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei.»
Sobre a matéria, escreveu-se, com interesse, no Acórdão da Relação de Lisboa, de 19/12/2012, P. 686/10.8TTLRS.L1.4:
«Confrontando essas normas, vê-se que na evolução da Lei n.º 2127, para a lei 107/97, as únicas inovações consistiram em acrescentar – na alínea a) - que a violação das condições de segurança pode incidir quer sobre as estabelecidas pela entidade empregadora (na terminologia anterior, entidade patronal), quer em relação às “previstas na lei”; e, para além disso, que foi acrescida uma norma procurando clarificar quando se deve entender “existir causa justificativa da violação das condições de segurança” (o art.º 8º n.º 1 do D.L. n.º 143/99). Por último, constata-se que daquela última lei para a atual não resultou qualquer inovação, apenas havendo alterações de redação e terminologia (empregador, em vez de entidade empregadora), para além da inclusão do n.º 2, no art.º 14.º, em resultado da opção legislativa pela inclusão de normas regulamentadoras na própria lei, deixando de existir um diploma regulamentador autónomo.
Feita esta constatação, é seguro afirmar-se que mantêm inteira validade e atualidade os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais suscitados pela interpretação e aplicação desta causa excludente do direito à reparação, desde a mais longínqua Lei 2127, passando pela mais recente, mas também já revogada, Lei n.º 100/97.
Na esteira do que já era entendido na Lei n.º 2127, acima expresso pelas palavras de Cruz de Carvalho, há um entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, respaldada também na doutrina, no que respeita à causa excludente do direito à reparação, a que se reporta a al. a), do art.º 7.º da lei n.º 100/97. Elucida-o o recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Dezembro de 2012, onde a propósito se pode ler o seguinte:
- «Assim, a causa excludente do direito à reparação do acidente a que se alude na segunda parte da alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º, tal como se afirmou no acórdão deste Supremo Tribunal, de 17 de Maio de 2007 (Revista n.º 53/2007, da 4.ª Secção), exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (i) existência de condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; (ii) ato ou omissão do sinistrado que importe a violação dessas condições de segurança; (iii) voluntariedade desse comportamento, ainda que não intencional, e sem causa justificativa; (iv) nexo causal entre o ato ou omissão do sinistrado e o acidente.
Em suma: a lei não fez depender tal descaracterização do acidente do grau de culpa do sinistrado, antes optou por considerar que a simples violação, sem causa justificativa, das condições de segurança é razão suficiente para a operar.
Como salienta PEDRO ROMANO MARTINEZ (Direito do Trabalho, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 851-852), neste caso, «o legislador exige somente que a violação careça de “causa justificativa”, pelo que está fora de questão o requisito da negligência grosseira da vítima; a exigência dessa culpa grave encontra-se na alínea seguinte do mesmo preceito. A diferença de formulação constante das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 7.º da LAT (correspondentes às mesmas alíneas do n.º 1 do artigo 290.º do Código do Trabalho) tem de acarretar uma interpretação distinta. Por outro lado, há motivos para que o legislador tenha estabelecido regras diversas. Na alínea a) só se exige a falta de causa justificativa, porque atende-se à violação das condições de segurança específicas daquela empresa; por isso, basta que o trabalhador conscientemente viole essas regras.»
E, mais adiante, conclui, «[s]e o trabalhador, conhecendo as condições de segurança vigentes na empresa, as viola conscientemente e, por força disso, sofre um acidente de trabalho, não é de exigir a negligência grosseira do sinistrado nessa violação para excluir a responsabilidade do empregador. Contudo, a responsabilidade não será excluída se o trabalhador, atendendo ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento das condições de segurança ou se não tinha capacidade de as entender (artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 143/99).»
Note-se que, na mesma linha fundamental de entendimento, o sobredito acórdão de 17 de Maio de 2007, referindo-se à segunda situação prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º, afirma que «[s]e a lei se basta, na espécie, com o pressuposto assinalado — ausência de causa justificativa — é porque recai sobre o trabalhador um especial dever de observar […] as condições de segurança que lhe são impostas», dever especial que «é tanto mais evidente quanto é certo que a lei só justifica a omissão quando seja de concluir que o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento da norma impositiva ou tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la — artigo 8.º, n.º 1, supra citado».

[Proferido no processo 827/06.0TTVNG.P1.S1, Pinto Hespanhol; no mesmo sentido, vejam-se, ainda os Acórdãos do STJ seguintes: 17-05-2007, Proc.º 07S053, Sousa Grandão;22-11-2007, Proc.º 07S3657, Pinto Hespanhol; 19-12-2007, Proc.º 07S3381, Bravo Serra; 25-03-2009, Proc.º 09S0227, Pinto Hespanhol; 3-06-2009, Proc.º 1321/05.1TBAGH.S1, Bravo Serra; 9-12-2010, Proc.º 838/06.5TTMTS.P1.S1, Mário Pereira;18-05-2011, Proc.º 1368/05.8TTVNG-C1.S1, Pinto Hespanhol; 3-10-2012, Proc.º 54/03.8TBPSR.E1, Gonçalves Rocha; 28-11-2012, Proc.º 181(07.2TVFIG.C1.S1, Pinto Hespanhol, todos eles disponíveis em http://www.dgsi.pt/jstj
Não vislumbramos qualquer razão para divergir do que vem sendo a jurisprudência pacífica e estabilizada do Superior Tribunal. A comprová-lo, veja-se um acórdão um pouco mais recente, proferido em 19/11/2014, P. 177/10.7TTBJA.E1.S1, disponível na base de dados da dgsi, em que se escreveu:
«O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente (…de trabalho, necessariamente, como tal havido, por definição, o que se verifique no local e no tempo de trabalho, ut art. 8.º/1 da NLAT) que provier de ato ou omissão do sinistrado que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei – assim reza a hipótese legal estampada na predita alínea a).
Destarte, havendo condições de segurança pré-estabelecidas que se mostrem violadas, é mister averiguar, por um lado, da sua adequação causal (o acidente tem de resultar, numa relação de causa-efeito, de ato ou omissão do sinistrado que configure afronta das condições de segurança existentes); por outro, há que indagar se o desrespeito das ditas condições de segurança assenta numa qualquer razão ou motivo que, no contexto, o possa justificar.
A violação, por ação ou omissão, há-de constituir-se numa atuação voluntária, subjetivamente grave, relativamente à qual a eventual existência de causa justificativa, mais ou menos relevante segundo as circunstâncias, sempre poderá constituir atenuação atendível, se não mesmo desculpar a violação.
No plano da causalidade importa saber, em concreto, se as circunstâncias de facto que integram a violação das condições de segurança estabelecidas pelo empregador foram a causa próxima do acidente.
[Lembramos, parenteticamente, em breve nota, que na indagação da relação de causa-efeito foi adotada entre nós a teoria da causalidade adequada.
Como emerge do teor do art. 563.º do Cód. Civil, a fórmula nele usada deve interpretar-se no sentido de que não basta que o evento tenha produzido (naturalística ou mecanicamente) certo efeito para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável, como quem diz, adequada desse efeito.
E, assim, considerados os contornos de facto, veremos, a essa luz, se o desrespeito, in casu, das preditas condições de segurança podem ser havidas, em abstrato, como causa ou condição necessária da verificação do dano/sinistro].»
Em síntese, podemos afirmar que a descaracterização do acidente prevista na alínea a) do nº1 do artigo 14º da Lei nº 98/2009, exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (i) existência de regras de segurança desrespeitadas por parte do destinatário/trabalhador; (ii) atuação voluntária/consciente do destinatário/trabalhador, embora não intencional, por ação ou omissão e sem causa justificativa; (iii) nexo de causalidade entre a conduta voluntária e o acidente.
Reportando-nos agora ao concreto caso dos autos e com arrimo nos factos assentes, desde logo, não se extrai do circunstancialismo apurado que tenham sido transmitidas ou divulgadas, pela empregadora, específicas instruções de segurança relacionadas com a máquina paletizadora.
Apenas resultou provado que o trabalhador que anteriormente operava a máquina em questão explicou ao sinistrado o funcionamento da máquina e que existia um manual de operação do equipamento, o que é manifestamente insuficiente para se inferir que existiam especificas regras de segurança estabelecidas pelo empregador, respeitantes ao trabalho e manuseamento da aludida máquina.
No que concerne às normas de segurança previstas na lei, a que alude a referida alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º, esta Secção Social tem entendido, seguindo, aliás, a linha jurisprudencial manifestada pelo Supremo Tribunal de Justiça, que o preceito legal não visa abranger todas e quaisquer regras de segurança independentemente dos seus destinatários. O que está em causa na norma são as específicas regras de segurança previstas na lei para a execução do trabalho que o sinistrado se obrigou a prestar e que, como tal, constituem condições específicas de segurança da atividade ou da profissão – cfr. Acórdão da Relação de Évora, de 28/04/2017, P. 758/15.2T8STC.E1.
Para o caso concreto, entendemos que existiam específicas condições de segurança estabelecidas pela lei. As mesmas encontram-se previstas no artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 50/2005, de 25 de fevereiro [Regime da utilização de máquinas e equipamentos de trabalho] e nos artigos 40.º e 46.º do Regulamento Geral de Segurança e Higiene do Trabalho nos Estabelecimentos Industriais.
Todavia, não iremos desenvolver qualquer análise sobre estas regras de segurança e sobre a sua eventual violação pelo sinistrado, por tal não se nos afigurar necessário no específico caso dos autos, tendo em consideração o princípio da utilidade dos atos processuais.
Expliquemos.
Escreveu-se na sentença posta em crise:
«Revertendo ao caso dos autos, há que reconhecer que, muito embora seja evidente a existência de um ato do sinistrado que é causal em relação ao acidente (o facto de ter colocado a mão por baixo da rede da máquina paletizadora – o que fez com que fosse atingido pelo tabuleiro da mesma), e sendo certo que o mesmo redunda em incumprimento das regras de manuseamento da máquina – tanto assim que existia uma rede protetora – não pode seguramente afirmar-se que essa atuação momentânea, claramente potenciada pela habituação ao uso do equipamento, constitui uma injustificada e indesculpável imprudência.
Na verdade, é duvidoso que essa ação reflexa do sinistrado, ao tentar alcançar a peça de pavê caída no chão, de modo a evitar o encravamento da máquina e aproveitando o momento em que o respetivo tabuleiro se encontrava recolhido, possa sequer qualificar-se como um ato consciente do mesmo, no sentido de que este se tenha dado conta, no momento em que o fez, de que se encontrava a violar regras de segurança.
Note-se que, apesar de existir a referida rede protetora, a mesma não impedia que qualquer pessoa (e por isso também o sinistrado) colocasse a mão por baixo da mesma, alcançando o espaço onde se encontrava caída a peça de pavê, ao que acresce que a formação prestada ao sinistrado quanto ao manuseamento da máquina em questão parece ter-se resumido aos conselhos do colega de trabalho que anteriormente operava a máquina (e ao que, eventualmente, fosse ditado pelo senso comum) – o que torna compreensível que o sinistrado se tivesse convencido de que, aproveitando o recuo do tabuleiro, seria seguro remover a peça caída no chão.
Assim, em face do circunstancialismo apurado, é de considerar que a eventual inobservância de regras de segurança resulta claramente da falta de reflexão sobre as circunstâncias, que produziu a convicção de que a atuação seguida seria segura, mas que não é bastante para afastar a obrigação de reparação dos danos decorrentes do acidente de trabalho.»
Subscrevemos, sem reservas, esta apreciação.
Não basta a mera violação das regras de segurança pelo sinistrado, para que o acidente seja descaracterizado. É necessário que essa infração ocorra por culpa grave do trabalhador; é fundamental que este tenha consciência da violação.
Naturalmente, que a culpa tem de ser aferida sempre em concreto e não em abstrato.
Ora, no caso vertente o que a factualidade assente nos revela é que ao ver a peça de pavê caída no chão, o sinistrado teve um ato reflexo e imediato. O breve instante entre a visão da peça no chão e a sua reação, que se lhe afigurou mentalmente segura, não comportou uma decisão voluntária, consciente, de violar as regras de segurança. Foi tudo muito rápido e muito reativo.
Ora, não podemos olvidar que competia à seguradora demonstrar que o sinistrado atuou voluntariamente em relação à eventual violação das regras de segurança, de harmonia com o preceituado no artigo 342.º do Código Civil.
Destarte, não tendo a apelante logrado concretizar essa prova, concluímos que não se verifica, in casu, a causa excludente prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º da LAT.
Avancemos para a apreciação da eventual verificação da situação prevista na alínea b) do mencionado normativo.
De harmonia com esta norma, o empregador (ou a seguradora para quem tenha sido transferida a responsabilidade emergente de acidente de trabalho) não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado.
Respeitando a terminologia utilizada pelo legislador, em tal situação, considera-se o acidente “descaracterizado”.
Importa destacar que a utilização da expressão “provier exclusivamente”, utilizada pelo legislador implica a existência de um nexo de causalidade adequada e exclusiva entre o comportamento caracterizável como negligência grosseira, assumido pelo sinistrado, e o evento lesivo. Neste sentido, podem consultar-se, por exemplo, o Acórdão do STJ de 22/06/2005, CJ/STJ, 2005, 2.º, pág. 269 e Acórdão da Relação do Coimbra de 27/01/2005, P. 3591/04).
Relativamente à definição do que seja “negligência grosseira”, é o próprio legislador que refere no n.º 3 do artigo 14.º: «Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.»
Conforme refere Carlos Alegre, in “Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais - Regime Jurídico”, 2.ª edição, pág. 187: «”Comportamento temerário” e “alto e relevante grau” são conceitos vagos que dificilmente se podem analisar, a não ser ponderando situações concretas, com pessoas concretas e em locais concretos. Significa isto que entendemos que tais conceitos não devem ser “medidos” face ao comportamento ideal do “bónus pater familiae”. Por outro lado, o uso indiscriminado do conceito temerário pode punir atos de abnegação e heroísmo, normalmente caracterizados pela sua temeridade, e não premiá-los como seria de justiça.»
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, na análise dos diversos casos concretos que têm sido submetidos à sua apreciação, tem balizado e enriquecido o conteúdo do conceito geral e abstrato utilizado na lei.
No Acórdão de 21/03/2013, Proc. nº 191/05.4TTPDL.P1.S1, sobre a tema, escreveu-se o seguinte:
«(…) a lei acolheu a figura da negligência grosseira que corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objetivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo.
Trata-se de uma negligência temerária, configurando uma omissão fortemente indesculpável das precauções ou cautelas mais elementares, que deve ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima e não em função de um padrão geral, abstrato de conduta»
No Acórdão de 24/10/2012, Proc. n.º 1087/07.0TTVFR.P1.S1, definiu-se o conceito abstrato utilizado da lei, nos seguintes termos:
«A negligência grosseira é uma modalidade de negligência qualificada.
(…)
A negligência grosseira pressupõe um desrespeito pelo dever de cuidado especialmente censurável, em grau particularmente elevado, centralizado numa indiferença acentuada do agente perante o perigo inerente ao exercício da atividade que prossegue comportando uma dimensão de temeridade, materializado na omissão de cumprimento das precauções e cautelas mais elementares.
No entender de MENEZES LEITÃO, “de acordo com o critério de apreciação da culpa em abstrato, a culpa grave corresponde a uma situação de negligência grosseira, em que a conduta do agente só seria suscetível de ser realizada por uma pessoa especialmente negligente, uma vez que a grande maioria das pessoas não procederia da mesma forma”.
A negligência grosseira, operativa para efeitos de descaracterização do acidente de trabalho deve ser apreciada caso a caso, em função das particularidades da situação em causa, tomando como pontos de referência a forma como o sinistrado se posiciona perante o perigo decorrente da sua conduta e a dimensão da censura que a sua indiferença perante a potencialidade de ocorrência do sinistro justifica.
Também aqui o Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, no n.º 2 do seu artigo 8.º nos apresenta um critério para o preenchimento do conceito.
Refere-se naquela norma que se entende “por negligência grosseira o comportamento temerário em alto grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão”.
Deste modo, afirma-se que a negligência grosseira se materializa num comportamento temerário em alto e elevado grau, mas depois retira-se do espaço daquela forma de negligência as situações em que esse comportamento temerário deriva da «habitualidade ao perigo do trabalho executado», “da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão”, elementos que delimitam por sua vez negativamente aquela forma de negligência, tornando-a não censurável, o que leva a que a mesma nestas situações não descaracterize o acidente.
Ao excluir do espaço da negligência grosseira e ao afastar a descaracterização do acidente, a lei contemporiza com elementos desculpabilizantes típicos no mundo do trabalho, tais como a habituação ao risco, a confiança na experiência como fator de controlo do risco inerente à atividade profissional e aos usos e costumes da profissão que poderão em certas situações potenciar alguma dimensão de temeridade causal do acidente e que contribuem por esta via para a ocorrência de acidentes.
A Lei n.º 100/97, substituiu o conceito de conceito de “falta grave e indesculpável da vítima”, que constava da alínea b) do n.º 1 da Base VI da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, pelo conceito de “negligência grosseira” acima referido, vindo, contudo, depois o legislador do Decreto-Lei n.º 143/99, a utilizar para delimitação negativa do conceito de negligência grosseira que especifica, os elementos que o Decreto n.º 360/71, de 21 de Agosto, utilizava no seu artigo 13.º para delimitar aquele conceito de falta grave e indesculpável da vítima.
Referia-se naquela norma que “não se considera falta grave e indesculpável da vítima do acidente o ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão”.
A descaracterização do acidente com este fundamento exige, pois, que se demonstre não só que o acidente resultou, de forma exclusiva, de negligência do sinistrado, mas também que tal falta de diligência no cumprimento do dever geral de cuidado, tal como se tenha configurado no caso, é suscetível de permitir a consideração da conduta do sinistrado como um “comportamento temerário em alto e elevado grau” e que se demonstre igualmente que tal forma de agir não resulta da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão».
Não obstante, os acórdãos citados se reportarem ao anterior regime de reparação dos acidentes de trabalho, a sua fundamentação continua aplicável ao atual regime vigente.
Tentando sintetizar, de algum modo, o que resulta da jurisprudência citada, é possível afirmar que uma atuação com negligência grosseira é configurável sempre que se verifique:
- um comportamento temerário (arriscado, imprudente, perigoso, arrojado);
- em alto e relevante grau (o risco do comportamento é elevado, importante, significativo);
- e que não resulte: (i) da habitualidade ao perigo do trabalho executado (o contacto frequente, normal, com o risco inerente a um determinado trabalho tende a fazer “baixar” as defesas e cautelas do trabalhador); (ii) da confiança na própria experiência profissional (o conhecimento adquirido pela prática e a superação das dificuldades que vão surgindo nesse contexto, é geradora de confiança quer no evitar da concretização de riscos quer na obtenção de respostas e soluções para qualquer problema que surja); (iii) dos usos e costumes da profissão (práticas habituais, reiteradas ao longo do tempo, de uma forma generalizada e que implicam uma certa convicção da sua obrigatoriedade).
Posto isto, passemos à análise do concreto sinistro que se aprecia.
Em causa, está um trabalhador que no dia 10 de abril de 2015 estava a desenvolver normalmente o seu trabalho, que consistia em fabricar, cintar e retirar para a rua, paletes com peças de pavimento em cimento (pavês) quando viu uma peça de pavê caída no chão, por baixo da máquina paletizadora. De imediato, e para evitar que a máquina encravasse, meteu a mão por baixo da rede da máquina para retirar a peça, sem desligar a máquina. O acesso ao local onde se encontrava a peça foi possível porque a rede protetora da máquina não chegava ao chão. Na altura em que o sinistrado introduziu a mão por baixo da rede, a máquina tinha o tabuleiro recolhido. Quando estava a tentar agarrar a peça, o tabuleiro, que desliza sobre rolamentos, voltou automaticamente para a zona da peça caída e embateu contra a mão do autor, entalando-a e provocando esfacelo do punho e da mão direita. Só depois de ficar ferido é que o sinistrado se deslocou ao painel de comandos para acionar o botão de paragem da máquina.
De novo, se salienta, que o ónus probatório da alegada situação excludente competia à seguradora- artigo 342.ºdo Código Civil.
E, afigura-se-nos que também esta prova não foi concretizada.
A situação ocorrida revela a ocorrência de um agir sem pensar, em prol da boa execução e produtividade do serviço.
Ainda que em termos de senso comum, o comportamento do sinistrado de colocar a mão por baixo de uma máquina em funcionamento, que tinha um tabuleiro com rolamentos que se deslocava automaticamente para a zona onde se encontrava a peça, tenha sido imprudente ou negligente, para efeitos da descaracterização do acidente é necessário algo mais.
Como ensina o, agora, Juiz Conselheiro Júlio Gomes, na sua obra “O acidente de trabalho – O acidente in itinere e a sua descaracterização”, Coimbra Editora, pág. 267-268 «(…) desde a sua génese que os sistemas de reparação dos acidentes de trabalho assentam na normal coexistência entre o risco (ou a responsabilidade objetiva do empregador) e a culpa do sinistrado []: boa parte dos acidentes de trabalho decorre de distrações, inadvertência, imperícia, mas também desatenção e mesmo desrespeito de regras de segurança. Só em casos excecionais é que a responsabilidade do empregador deve ser excluída nestas situações – em suma, a descaracterização do acidente deve restringir-se a situações muito graves também do ponto de vista do juízo de censura ao sinistrado – sob pena de a pessoa que trabalha e que, como pessoa que é, comete erros, com maior ou menor frequência, ficar desprovida de proteção por um erro momentâneo».
Ora, na concreta situação dos autos, a seguradora não logrou provar, como lhe competia, que o sinistrado tenha tido formação especifica sobre segurança em relação à máquina em questão, ou que lhe tenham sido dadas instruções de segurança, pela empregadora, no sentido de só aceder à zona onde se encontrava a peça de pavê caída com a máquina desligada e que o sinistrado atuou com elevada e inaceitável indiferença aos conhecimentos que possuía e/ou às ordens recebidas, motivado por razões alheias ao trabalho que estava executar.
Como tal, a negligência demonstrada não pode considerar-se grosseira.
Em suma, considerando o acervo factual assente, não é possível afirmar que o acidente proveio exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado.
Por conseguinte, improcede igualmente o fundamento do recurso agora analisado.
Concluindo, o recurso mostra-se improcedente.
*
VI. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Notifique.

Évora, 31 de outubro de 2018
Paula do Paço (relatora)
Moisés Silva
João Luís Nunes

[1] Relatora: Paula do Paço; 1.º Adjunto: Moisés Silva; 2.º Adjunto: João Luís Nunes
[2] “Prova e Formação da Convicção do Juiz”, Almedina-Coletânea de Jurisprudência”, 2016, pág. 55
[3] “Manual de Processo Civil”, 2.ª edição, Coimbra Editora, págs. 406-407
[4] Neste sentido, a título de exemplo, acórdãos da Relação do Porto de 9/7/2014, P. 833/11.2TVPRT.P, e de 2/3/2015, P.1099/12.2TVPRT.P1.