Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
379/14.7TBSTR-D.E1
Relator: MATA RIBEIRO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
Data do Acordão: 11/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - No âmbito da exoneração do passivo restante, da cessão do rendimento disponível do insolvente, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, é excluído entre outros, o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, normalmente, três vezes o salário mínimo nacional.
2 - Na fixação deste valor a excluir da cessão haverá que ter-se em conta o número de membros do agregado familiar dependente do rendimento do insolvente, bem como que a subsistência com um mínimo de dignidade é assegurada, no limite, por montante equivalente à retribuição mínima mensal garantida.
Sumário do Relator
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 379/14.7TBSTR-D.E1 (2ª secção cível)




ACORDAM 0S JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


(…) apresentou-se à insolvência, na Comarca de Santarém, tendo requerido exoneração do passivo restante.
Apreciada liminarmente esta pretensão o Julgador considerou não existirem motivos para o seu indeferimento liminar, tendo, assim, admitido o pedido de exoneração do passivo restante e determinado, designadamente, que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência devem ficar excluídos do rendimento disponível a ceder ao fiduciário o “montante necessário pra assegurar o sustento minimamente digno do insolvente, o qual fixo no valor líquido equivalente a um salário mínimo nacional”.
*
Inconformado com tal decisão, veio, o insolvente, interpor recurso terminando por formular as seguintes conclusões que se transcrevem:
I - O Insolvente requereu aquando da sua apresentação à insolvência lhe fosse concedido o benefício da exoneração do passivo restante, nos termos do disposto nos artigos 235º a 248º do CIRE;
II - O Insolvente aufere mensalmente uma pensão de reforma que ascende a 1.156,03 Euros;
III - Alegou o Insolvente/Devedor que tem diversas despesas, entre as quais a renda da habitação que ascende a 300,00 Euros;
IV - O Tribunal a quo ficou ao Insolvente um rendimento disponível correspondente a um salário mínimo nacional;
V - O Insolvente tem como outras despesas fixas, mensais, a que decorrem do condomínio, avio em farmácia, água, electricidade e gás, encargo não inferior a 100,00 Euros, encargos que não foram valorados pelo Tribunal recorrido;
VI - Considerando-se o período de cessão de rendimentos uma contrapartida do Insolvente pela exoneração do seu passivo, verdade é também que tal exoneração terá sempre limites mínimos que se relacionam com a dignidade humana;
VII - O valor sobrante, contabilizados os encargos mensais, não poderá fixar-se em 85,00 Euros, que são insuficientes para fazer face às necessidades básicas de prover ao seu sustento (alimentação) e bem assim, pelo menos aos mais elementares cuidados básicos de higiene;
VIII - A decisão recorrida é nula por não se pronunciar de facto e de direito quanto às diversas despesas apresentadas pelo Devedor, no seu articulado, que não mereceram qualquer referência na decisão recorrida;
IX - Atentas as despesas que apresentou o Insolvente, - que deveriam ter sido consideradas pelo Tribunal Recorrido, para efeito do disposto na alínea b) (iii) do artigo 239º, nº.3 do CIRE - fica o insolvente com um rendimento disponível de 85,00 Euros, que viola os mais elementares princípios da dignidade humana;
X - Carece pois o Insolvente atenta a factualidade vertida nos autos lhe seja fixado o rendimento disponível de 785,00 Euros;
XI - Foram violados os Artigos 239º, do CIRE, 77º, nº.1, 608º, nº.2, 615º, nº.1, al. d) e 738º, todos do Código de Processo Civil e artigos 1º e 59º, nº.1 da Constituição da República Portuguesa.
*
Apreciando e decidindo
Como é sabido o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso.
Assim, a questão que importa apreciar cinge-se em saber, se é adequado, ou não, o valor fixado pelo Julgador, a partir do qual se deve encontrar o rendimento disponível a que alude o artº 239º do CIRE.
*
Na 1ª instância teve-se em conta o seguinte circunstancialismo factual:
1. (…) nasceu no dia 25 de Junho de 1948 e é divorciado.
2. Encontra-se reformado e aufere uma pensão mensal de € 1.156,03.
3. Vive em casa arrendada da qual paga uma renda mensal de € 300,00.
4. Da lista provisória de credores constam créditos no valor de € 860.084,69.
5. O insolvente apresentou-se à insolvência em 27 de Fevereiro de 2014.
6. Os créditos de que o insolvente é devedor resultam de obrigações por este contraídas enquanto legal representante de uma sociedade comercial.
7. A insolvência da sociedade comercial da qual o ora insolvente era legal representante foi declarada por sentença proferida a 23 de Novembro de 2013.
8. Do certificado do registo criminal do insolvente não consta qualquer registo.

Conhecendo da questão
O recorrente defende que a decisão recorrida não lhe proporciona os suficientes meios para a manutenção duma vida condigna, ao agregado familiar, composto por si, ao excluir apenas do rendimento disponível a quantia equivalente ao “ordenado mínimo nacional.”
O incidente de exoneração do passivo restante surge no processo de insolvência que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, como um bónus concedido ao devedor a fim de, para futuro, lhe possibilitar a reabilitação económica.
Conforme se salienta no preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE “o Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência (…) é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante».
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos – designado período de cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos.
Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (…), que afetará os montantes recebidos ao pagamento aos credores. No termo deste período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.”
Na sequência desta enunciação fez-se consignar no artº 239º do CIRE:
Cessão do rendimento disponível
1 - Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial, na assembleia de apreciação do relatório, ou nos 10 dias subsequentes.
2 - O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.
3 - Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua atividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
4 - Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
5 - A cessão prevista no n.º 2 prevalece sobre quaisquer acordos que excluam, condicionem ou por qualquer forma limitem a cessão de bens ou rendimentos do devedor.
6 - Sendo interposto recurso do despacho inicial, a realização do rateio final só determina o encerramento do processo depois de transitada em julgado a decisão.”

O legislador no âmbito da exclusão do rendimento disponível alude a uma porção que no âmbito do rendimento do devedor lhe possa assegurar minimamente e com dignidade o sustento bem como o do seu agregado familiar.
No entanto, tal dignidade do devedor/insolvente deverá ser equacionada no âmbito processo de insolvência, pelo que não se pode deixar de ter presente que este tipo de processo não pretende proteger o insolvente, mas sim os credores, motivo pelo qual a prioridade não é que o insolvente fique livre das dívidas que tinha, mas que o maior número de credores seja pago, nesse período de 5 anos.
O recorrente chama à colação em defesa do aumento do valor fixado para o rendimento indisponível o facto das suas despesas mensais ascenderem ao valor aproximado de € 989,84, muito embora não tivesse junto qualquer sustentáculo probatório de tal afirmação, à excepção da quantia de 300,00 euros despendida a título de pagamento da renda da casa em que habita.
Em face da pretensão do recorrente não podemos deixar de concluir que ele pretende continuar a viver nos mesmos moldes que até então vivia, olvidando que, presentemente, se encontra na situação de insolvência, devendo adequar a sua vivência e o seu nível de vida, a tal realidade, pelo menos durante o período de cinco anos, em que decorre a cessão.
Não podemos esquecer que o legislador no âmbito do CIRE, fixou no equivalente a três salários mínimos nacionais (presentemente designada por retribuição mínima mensal garantida) o que entendeu ser no máximo razoavelmente necessário para o sustento condigno do devedor/insolvente, deixando ao critério, aberto, do Julgador a fixação do montante mínimo desse sustento.
Na fixação deste montante mínimo há que atender ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana a que se alude no artº 1º da CRP, designadamente na vertente da garantia de condições dignas de existência, sendo de salvaguardar um quantitativo monetário que seja apto a uma sobrevivência humanamente condigna, quantitativo este que jurisprudencialmente o TC [1] tem entendido ser o equivalente ao do salário mínimo nacional em consonância com o que resulta das disposições combinadas nos artº 1º, 59º n.º 2 e 63º n.º 1 e 2 da CRP.
Assim, não vemos razões para divergir desta posição, pelo que deve entender-se que a retribuição mensal mínima garantida é o limite que assegura a subsistência com um mínimo de dignidade. [2]
No caso em apreço, constatamos que o Julgador a quo tendo por referência tal elemento - a retribuição mensal mínima garantida – entendeu que “considerando a alegação produzida pelo insolvente quanto às suas necessidades pessoais e à composição do seu agregado familiar” considerou como “adequado, proporcional e justo fixar no valor líquido equivalente a um salário mínimo nacional o montante do rendimento destinado a assegurar o sustento do requerente.”
Se é certo que a satisfação dos credores não pode prejudicar a subsistência do insolvente e do seu agregado familiar com um mínimo de dignidade há que ter em atenção o critério de razoabilidade e de proibição do excesso, não olvidando que o incidente de exoneração do passivo é um bónus concedido ao devedor a fim de, para futuro, lhe possibilitar a reabilitação económica, mas que não pode esquecer que é insolvente e que o seu nível de vida tem de ser adequado a essa situação, devendo, apenas, proporcionar-lhe os meios essenciais à vivência condigna do seu agregado familiar.
O montante mensal a ser dispensado ao insolvente não visa assegurar o padrão de vida que porventura teria antes da situação de insolvência, ou por si almejado, não obstante a situação em que se encontra, mas, tão só, uma vivência minimamente condigna, cabendo-lhe fazer a concreta adequação à especial condição de modo a viver com modéstia e particular contenção de gastos, ajustando todo o seu nível de vida, bem como o do seu agregado familiar, à nova realidade que não pode esquecer.
Sendo o agregado familiar, do recorrente, composto apenas por ele próprio, entendemos, no seguimento de jurisprudência deste Tribunal Superior, bem como deste Colectivo, [3] mostrar-se ajustado o montante fixado na decisão impugnada, pois o relevante não são as despesas que o insolvente apresenta como necessárias a alimentar o padrão de vida que tinha, mas apenas despesas necessárias a proporcionar-lhe os meios essenciais à vivência condigna, sendo certo que nem daquelas despesas o requerente se dignou fazer prova da sua existência (certamente, por isso, delas não houve valoração pelo tribunal recorrido) à exceção dos gastos em renda e casa, se bem que não tivesse apresentado um único recibo.
No que se refere a estes gastos não podemos deixar de notar, conforme emerge do teor do contrato de arrendamento que o imóvel onde o requerente habita é um T2 que foi arrendado totalmente mobiliado e equipado (dois quartos mobilados, cozinha e casa de banho mobilados e equipados, sala totalmente mobilada), o que, diga-se, nos parece exceder até as necessidades essenciais do requerente cujo agregado familiar é composto apenas por ele, justificando-se que fosse mais modesto na escolha da casa para habitar de modo a adequar os gastos com a habitação à situação de insolvente em que se encontra, pelo menos durante o período que decorre a cessão.
Nestes termos, o quantitativo fixado, quanto a nós satisfaz o exigido pelo princípio da dignidade humana, contido no primado do e Estado de Direito afirmado no artº 1º da CRP e aludido, também, no seu artº 59º, n.º 1, al. a).
Irrelevam, assim, as conclusões do recorrente, não se mostrando violados os preceitos legais e constitucionais, cuja violação foi invocada, impondo-se, por isso, a confirmação da decisão impugnada.
*
Para efeitos do n.º 7 do artº 663º do Cód. Processo Civil, em conclusão:
1 – A exoneração do passivo restante traduz-se na libertação definitiva do devedor quanto ao passivo que não possa ser integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento.
2 – No âmbito da exoneração do passivo restante, da cessão do rendimento disponível do insolvente, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, é excluído entre outros, o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, normalmente, três vezes o salário mínimo nacional.
3 – Na fixação deste valor a excluir da cessão haverá que ter-se em conta, o número de membros do agregado familiar dependente do rendimento do insolvente, bem como, que a subsistência com um mínimo de dignidade é assegurada, no limite, por montante equivalente à retribuição mínima mensal garantida.
*
DECISÂO
Pelo exposto, decide-se, nos termos supra citados, julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela massa insolvente.

Évora, 05 de Novembro de 2015

Mata Ribeiro

Sílvio Teixeira de Sousa

Rui Machado e Moura


__________________________________________________
[1] - v., nomeadamente, Ac. n.º 318/99 de 26/04 in DR, II Série de 22/10/1999; n.º 117/2002, de 23.04.2002, in DR I-A, de 02.07.2002; n.º 96/2004, de 11.02.2004, in DR, II, de 01.04.2004.
[2] - v. Ac. TRP de 15/09/2011 e Ac. TRC de 28/09/2010, in www.dgsi.pt, respectivamente nos processos 692/11.5TBVCD-C.P1 e 1826/09.5T2AVR-C.C1.
[3] - v. Ac. de 01/03/2012 no processo 2025/11.1TBPTM.E2; Acs. de 05/06/2014 e 26/06/2014, respectivamente nos processos 1184/13.3TBABT.D.E1 e 858/13.3T2STC-D.E1.