Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
7931/19.2T8STB-A.E1
Relator: JOSÉ ANTÓNIO MOITA
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
CULPA GRAVE
Data do Acordão: 10/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Provando-se que num requerimento injuntivo o requerente fez constar conscientemente, por ter inequívoco conhecimento de qual a morada actual do requerido, uma outra morada onde este último não se encontrava já domiciliado há vários anos, bem como mencionou a existência de domicilio convencionado para efeitos de citação/notificação designadamente em caso de litígio, quando estava perfeitamente ciente da inexistência anterior de qualquer acordo entre ambos a tal propósito, o que viabilizou a notificação do requerido com base no artigo 12º-A e não do artigo 12.º (conduzindo rapidamente à aposição de fórmula executória no requerimento injuntivo), do regime da acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos e injunção, anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 01/09, justifica-se responsabilizar o requerente como litigante de má-fé com base na previsão constante das alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 542.º do Código de Processo Civil.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Apelação nº 7931/19.2T8STB-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal –
Juízo de Execução de Setúbal - Juiz 2
Apelante: (…) Anticorrosivas, Lda.
Apelada: (…) – Manutenção Industrial e Naval, (…), Lda.
***
Sumário do Acórdão
(da exclusiva responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC)
(…)
*
I – RELATÓRIO
(…) – Manutenção Industrial e Naval, (…), Lda., com domicílio na Rua (…), n.º 33, Foros da (…), 2840-058 (…), Executada nos autos de execução para pagamento de quantia certa, sob a forma de processo sumário, que lhe moveu a Exequente (…) Anticorrosivos, Lda., com domicílio no Parque Industrial (…), Lote 4, (…), Apartado 16, 2950-678 (…), deduziu oposição à execução mediante embargos de executado, pedindo a extinção da execução com fundamento, designadamente
a) na inexistência de título executivo por nulidade da notificação à Embargante do requerimento de injunção exequendo; e

b) na extinção da obrigação exequenda pelo pagamento.

A Embargante requereu, ainda, a condenação da Embargada como litigante de má-fé, pedindo indemnização de montante não inferior a € 5.000,00.
Notificada, a Embargada não contestou a oposição, pelo que se consideraram confessados os factos alegados pela Embargante no requerimento inicial, sem prejuízo do disposto nos artigos 568.º e 732.º, n.º 3, in fine, do Código de Processo Civil.
A Embargada respondeu ao incidente de litigância de má-fé, pugnando pela respetiva improcedência.
Seguiu-se o proferimento de sentença da qual consta o seguinte dispositivo:
“IV - DISPOSITIVO
Face ao exposto
a) julgo verificada a falta de notificação à Embargante (…) – Manutenção Industrial e Naval, (…), Lda. do requerimento de injunção dado à presente execução e, em consequência, decido:
(i) anular todos os atos subsequentes ao requerimento de injunção, incluindo a aposição da respetiva fórmula executória;

(ii) declarar a inexistência do título executivo contra a Embargante (…) – Manutenção Industrial e Naval, (…), Lda.; e

(iii) determinar a extinção da execução, com todas as consequências legais, designadamente, o cancelamento de penhoras; e
b) julgo procedente o incidente de litigância de má-fé deduzido pela Embargante (…) – Manutenção Industrial e Naval, (…), Lda. contra a Embargada (…) Anticorrosivas, Lda. e, em consequência, condeno a Embargada em multa, no montante de 5 UC’s, e em indemnização à Embargante, em montante a determinar ulteriormente nos termos do artigo 543.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
Fixo aos embargos de executado e ao incidente de litigância de má-fé, individualmente, o valor de € 9.830,51 (cfr. artigos 304.º, n.º 1 e 306.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil).
Custas dos embargos de executado pela Embargada.
Custas do incidente de litigância de má-fé pela Embargada, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC.
Registe e notifique.
Após trânsito, notifique a Embargante para, no prazo de 15 (quinze) dias, se pronunciar sobre o montante a fixar à indemnização devida pela litigância de má-fé.
Comunique à Sr.ª Agente de Execução.”
*
Inconformada, veio a Embargada (…), Lda. apresentar requerimento de recurso para este Tribunal da Relação circunscrito à decisão do incidente de litigância de má-fé em que foi condenada, nele exarando as seguintes conclusões:
“Em conclusão:
1- O tribunal recorrido errou ao tomar em consideração apenas os factos alegados pela recorrida quanto á decisão sobre a litigância de má-fé.
2- No articulado da recorrida não existe qualquer descrição da causa de pedir, limitando-se a remeter para a matéria dos embargos para fundamentar o respetivo pedido.
3- A recorrente não deduzido contestação aos embargos, mas em 02.06.2020, apresentou um articulado, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do C.P.C, no sentido de exercer o contraditório quanto à má-fé que lhe foi imputada pela recorrida (Referência n.º 35685208).
4- Acontece que o tribunal recorrido não tomou em consideração tal requerimento, nem os doze documentos juntos com o mesmo, com a alegação de que “se determinado facto alegado no requerimento inicial de embargos de executado se mostrar confessado por força de tal revelia, não poderá o julgador concomitantemente reputar esse mesmo facto não provado para efeitos de litigância de má-fé” (conforme despacho de 09.02.2021)
5- A sentença recorrida é nula, uma vez que refere que a recorrente respondeu à litigância de má fé, mas não tomou tal resposta em consideração, nem se pronunciou sobre a mesma, desconhecendo-se qual o “efeito” que a factualidade por aquela invocada e documentos por si juntos tiveram na decisão aqui impugnada, o que consubstancia uma obscuridade que a torna ininteligível, o que aqui se invoca, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do C.P.C..
6- Verifica-se a nulidade prevista na alínea d) do mesmo preceito, uma vez que o tribunal recorrido deixou de se pronunciar sobre os factos e documentos carreados pela recorrente, no exercício do direito previsto no artigo 3.º, n.º 3, do C.P.C., o que aqui também se invoca e cuja declaração se requer.
7- Por todo o exposto, desde já se invoca a nulidade parcial da sentença recorrida, no que à condenação de litigância de má-fé diz respeito, por violação do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil e artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
8- De acordo com o princípio do contraditório, previsto no artigo 3.º, n.º 3, do C.P.C., que a jurisprudência constitucional tem considerado ínsito no direito fundamental de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da C.R.P., tinha a recorrente o direito de se pronunciar quanto à litigância de má-fé contra si peticionada, não podendo o tribunal recorrido, indeferir ou não acolher tal direito, por manifesta violação dos referidos preceitos.
9- A indicação de domicílio convencionado resultou de um manifesto lapso do mandatário da recorrente, no preenchimento do formulário de injunção, a maior parte das vezes quase mecânico – ao que esta foi totalmente alheio.
10- Desse erro – não desejado –, nenhum benefício resultou para a recorrente, uma vez que o objetivo sempre foi o do pagamento da dívida.
11- A recorrida nunca pôs em causa a existência da dívida, nem se pronunciou sobre a mesma nos embargos, procedendo ao pagamento quase integral do valor reclamado pouco tempo depois da propositura dos presentes autos.
12- A indicação do domicílio da recorrida- que se comprovou não ser o atual à data da propositura da injunção, não trouxe qualquer utilidade à recorrente, nomeadamente, ao nível da citação e penhora de bens.
13- Não foi por conta desse lapso que a recorrente obteve o pagamento do valor em dívida, uma vez que a recorrida pagou voluntariamente tal valor.
14- Não ficou demonstrado que a recorrente tivesse conhecimento que a recorrida não se encontrava na morada indicada nos autos desde 2012.
15- A recorrente sempre dirigiu os seus serviços e documentos para a morada por si indicada na injunção, sendo que a morada das faturas objeto da injunção foi aquela onde os trabalhos foram executados e recebidos pela recorrida, o que ficou demonstrado.
16- A morada cuja alteração foi comunicada pela recorrida à recorrente não é nenhuma das por si indicadas na oposição.
17- E este facto deveria ter sido tomado em consideração pelo tribunal recorrido, uma vez que foi alegado pelo recorrente, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do C.P.C. e comprovado com documentos, o que não aconteceu.
18- Se a recorrida alterou a sua morada em novembro de 2012, não se compreende o motivo pelo qual os bens e serviços descritos nas faturas, datadas de 2017 foram prestados e entregues na morada nelas indicadas.
19- A convicção da recorrente e do seu mandatário sempre foi que a recorrida continuasse a laborar (também) na morada indicada na injunção e no requerimento executivo e, por esse motivo, que receberia as notificações que lhe fossem dirigidas, interpretando o silêncio da mesma como intenção de não pagar.
20- Ilação essa retirada do facto das faturas terem sido enviadas e não terem sido pagas e face à falta de resposta quanto à interpelação feita pelo mandatário da recorrente, para que procedesse ao seu pagamento.
21- A litigância de má-fé exige dolo ou negligência grave, isto é, a consciência de que não se tem razão.
22- Não se pode concluir pela verificação de dolo ou negligência grave por parte da recorrente, na busca de um objetivo ilegal, no impedimento da descoberta da verdade, no entorpecimento da ação da justiça ou no protelamento do trânsito em julgado.
23- Para isso era necessário que a recorrente tivesse agido com intenção maliciosa – o que não aconteceu- e não apenas com leviandade ou imprudência.
24- Quer o dolo, quer a negligência grave carecem de ser demonstrados, não podendo ser presumidos, sendo que a recorrida não conseguiu, de forma lógica, explicar um motivo razoável para essa atuação por parte da recorrente, de forma que saísse beneficiada de todo este processo com tal atuação.
25- Para haver condenação por litigância de má-fé não basta a constatação de um dos comportamentos indiciadores de tal litigância e enunciados no artigo 542.º do Código de Processo Civil, sendo indispensável que a parte tenha atuado com dolo ou negligência grave,
26- Ou seja, quando se conclui que a atuação de alguma das partes desrespeita de modo grave o tribunal ou a parte que lhe é contrária no processo, o que aqui não se verificou.
27- O manifesto gravame jurídico social que se lhe associa impõe que não haja dúvidas ao qualificar-se a conduta de parte como dolosa ou gravemente negligente.
28- A conduta negligente (consciente) é a conduta em que o agente prevê a produção do facto ilícito como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixou ou incúria crê na sua não verificação e só por isso não toma as providências necessárias para o evitar.
29- O que não se verificou no presente caso, sendo que do lapso cometido e do desconhecimento quanto à morada real/atual da recorrida não se pode concluir que a recorrente fez um uso reprovável do processo, o que aqui se invoca.
30- A indemnização prevista no artigo 543.º do C.P.C. não tem por objetivo dar “castigos” ao litigante de má-fé, mas, antes, compensar a parte que com ela sofreu, devendo ser fundamentada através da enunciação e prova de despesas efetuadas e prejuízos sofridos, conforme enunciado nas alíneas a) e b) daquele preceito.
31- A recorrida não fundamenta em que é que consiste a indemnização por si peticionada, pelo que deve improceder, por falta de factos que a sustentem, o que aqui se invoca, uma vez mais e cuja declaração nesse sentido se requer.
32- Andou mal o tribunal recorrido ao dar como provado os factos descrito na parte final do ponto 4º, 6º e 9º da sentença, uma vez que toda a prova vai em sentido em contrário.
33- Nessa medida, não podia o tribunal recorrido dar como provados tais factos, para efeitos de litigância de má-fé, o que aqui se invoca, no sentido de ser alterada a matéria de facto quanto a esta questão, uma vez que apenas é relevante em matéria de litigância de má-fé e em nada interfere com o mérito da causa, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 662.º do C.P.C..
34- Não podia o tribunal recorrido ter enquadrado a atuação da recorrente como sendo de litigante de má-fé, por não se enquadrar em nenhuma das alíneas previstas no artigo 542.º do C.P.C., essencialmente, no que ao seu elemento objetivo diz respeito, o que aqui se invoca e cuja declaração nesse sentido se requer.
Nestes termos e nos melhores de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência, ser a sentença recorrida ser parcialmente revogada, por nula e substituída por outra que conclua pela não verificação de litigância de má-fé por parte da recorrente, absolvendo-a da multa e indemnização peticionadas, assim se fazendo a Costumada JUSTIÇA!”
*
A Embargante não respondeu ao presente recurso.
*
O recurso foi recebido na 1ª Instância como de apelação, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
*
O recurso é o próprio e foi correctamente admitido quanto ao modo de subida e efeito fixado, nada impedindo o conhecimento de mérito do mesmo.
*
Correram Vistos.
*
II – QUESTÕES OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do disposto no artigo 635.º, n.º 4, conjugado com o artigo 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC), o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base em elementos constantes do processo, pelo que se impõe pronúncia sobre as seguintes questões:
1- Nulidades de sentença;
2- Impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
3- Reapreciação do mérito respeitante ao segmento decisório da sentença que conheceu da litigância de má-fé por parte da Apelante e consequências da mesma.
*
III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Consta o seguinte na sentença recorrida em sede de decisão relativa à matéria de facto:
“3.1. Fundamentação de Facto
3.1.1. Factos Provados
Com relevância para a boa decisão da causa, mostram-se provados os factos seguintes:
1. Por acordos verbais de 21.03.2017 e de 31.07.2017, a Embargada prestou à Embargante serviços no âmbito da sua atividade comercial, designadamente, tratamento anticorrosivo de perfis e escada e de bancadas de armários, na sequência do que emitiu à Embargante as seguintes faturas:
a. fatura n.º (…), de 21.03.2017, no montante de € 7.203,74; e

b. fatura n.º (…), de 31.08.2017, no valor de € 1.186,69.
2. As partes nunca celebraram entre si qualquer acordo escrito através do qual tenham convencionado o domicílio para notificações/citações em caso de litígio.

3. Antes de novembro de 2012, a Embargante laborava na Rua (…), Lote 10, 1.º-Dto., no Seixal.

4. Em novembro de 2012 a Embargante mudou as suas instalações para a Rua (…), n.º 8, em Queluz, o que era do conhecimento da Embargada à data da celebração dos acordos verbais aludidos em 1.

5. Em 23.07.2018, a Embargante alterou novamente as suas instalações para a Rua (…), n.º 33, Foros da (…), (…), onde se mantém até aos dias de hoje.

6. A Embargante apenas teve conhecimento das faturas identificadas em 1 em meados de 2019.

7. Por requerimento de injunção apresentado em 16.10.2019, a Embargada requereu a notificação da Embargante para proceder ao pagamento da quantia de € 8.390,43, correspondente ao valor das duas faturas identificadas em 1, acrescida de juros moratórios no montante de € 1.379,11, outras quantias no valor de € 102,00 e taxa de justiça, no montante de € 102,00.

8. Em tal requerimento, a Embargada indicou como morada da Embargante a Rua (…), Lote 10, 1.º-Dto., no Seixal, bem como a existência de domicílio convencionado.

9. A Embargada sabia que à data de tal requerimento, a Embargada tinha a morada referida em 5.
10. O referido procedimento de injunção correu os seus termos sob o n.º 96552/19.5YIPRT no Balcão Nacional de Injunções.

11. O Balcão Nacional de Injunção remeteu à Embargante notificação do requerimento de injunção que antecede através de carta registada simples com comprovativo de depósito no recetáculo.

12. A Embargante nunca recebeu a notificação que antecede.

13. Em virtude de não ter sido deduzida oposição pela aqui Embargante no âmbito do procedimento especial de injunção, em 21.11.2019 foi aposta fórmula executória ao requerimento de injunção descrito em 7.

14. Em 16.12.2019, a Embargante entregou à Embargada o montante de € 8.390,43 por conta das faturas aludidas em 1.
*
3.1.2. Factos Não Provados
Com pertinência para a decisão da causa, inexistem factos por provar.”
*
IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1-Analisemos a primeira questão objecto do recurso atinente às invocadas nulidades, partindo do pressuposto claramente evidenciado pela Apelante de que o recurso foi restringido, ao abrigo do permitido pelo n.º 2 do artigo 635.º do CPC, ao segmento decisório que apreciou o incidente de litigância de má-fé.
Decorre do artigo 615º, n.º 1, do Código de Processo Civil que:
“É nula a sentença quando:
[…]
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Relativamente à nulidade definida na alínea c), diz-nos António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, artigos 1.º a 702.º”, (2ª edição atualizada, 2020, Almedina), em anotação ao referido artigo 615.º, o seguinte:
“A nulidade a que se reporta a 1ª parte da alínea c), ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente” (cfr. página 763).
E acrescentam os referidos Autores na obra acabada de citar, relativamente à 2º parte da alínea c), que:
“A decisão judicial é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes” (cfr. página 764).
Por seu turno, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2.º, 4ª edição, 2019, Almedina), esclarecem o seguinte quanto a esta matéria (página 735):
“No regime atual, a obscuridade ou ambiguidade, limitada à parte decisória, só releva quando gera ininteligibilidade, isto é, quando um declaratário normal, nos termos dos artigos 236.º-1 e 238.º-1 do Código Civil, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar.”
Concordamos com a posição expressa pelos Autores referidos.
Volvendo, agora, ao caso concreto recordemos desde já o segmento da sentença que comportou a decisão sobre o incidente de litigância de má-fé, de que recorre a Embargada, ora Apelante, passando a transcrever na íntegra o mesmo:
“3.3. Do incidente de litigância de má-fé
Nos presentes embargos de executado, a Embargante deduziu incidente de litigância de má-fé, pedindo a condenação da Embargada em indemnização de montante não inferior a € 5.000,00.
A Embargada respondeu, sustentando a improcedência de tal pedido.
Cumpre apreciar e decidir.
Quando em juízo, as partes encontram-se adstritas aos deveres de cooperação, probidade e boa-fé no relacionamento com a contraparte e com o Tribunal ainda que a causa se evidencie complexa e que as posições entre as partes sejam extremadas. A imposição de tais deveres visa a obtenção da verdade material, a realização da Justiça, bem como o prestígio dos operadores judiciais e do sistema judicial globalmente considerado.
Assim, o legislador acolhe expressamente no artigo 7.º do Código de Processo Civil o princípio de cooperação segundo o qual os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes devem cooperar entre si na condução e intervenção no processo, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio. Também o artigo 8.º do mesmo diploma legal consagra que as partes devem agir de boa-fé e observar os mencionados deveres de cooperação.
A violação, com dolo ou negligência grave, dos mencionados deveres poderá importar a condenação da parte como litigante de má-fé em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir (cfr. artigo 542.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
No que concerne ao conteúdo da litigância de má-fé, estatui expressamente o n.º 2 do artigo 542.º do Código de Processo Civil o seguinte:
«Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão».
A doutrina tem classificado de má-fé material as condutas previstas nas alíneas a) e b) do referido preceito legal e de má-fé instrumental as demais. Cumpre esclarecer que o facto de a parte defender nos autos uma dada perspetiva jurídica sobre os factos que não vem a ser acolhida pelo Tribunal não revela, por si só, litigância censurável que justifique a aplicação do artigo 542.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil. Contudo, caso sejam desrespeitados os deveres de probidade, de cooperação e de boa-fé, aí sim, poderemos estar perante uma situação de litigância de má-fé. Há, pois, que fazer uma avaliação casuística de cada uma das situações.
Regressemos ao caso concreto.
Conforme decorre do acima explicitado, em 16.10.2019 a Embargada intentou contra a Embargante procedimento especial de injunção, tendo indicado que o domicílio desta se situava na Rua (…), Lote 10, 1.º-Dto., no Seixal. Mais afirmou terem as partes convencionado domicílio.
Todavia, acha-se igualmente apurado que a Embargada sabia que à data da injunção a Embargante não mais laborava naquela morada. Por outro lado, as partes nunca convencionaram entre si, por escrito, qualquer domicílio para efeitos de recebimento de notificações ou citações. A Embargada faltou, pois, à verdade.
Daqui se extrai, tendo por referência as regras da normalidade da vida e as máximas da experiência, que a Embargada atuou dolosamente ou, no mínimo, com negligência grave, alterando factos relevantes e fazendo um uso reprovável do procedimento de injunção, que lhe permitiu obter à revelia da Embargante um aparente título executivo e penhorar bens desta sem citação prévia, atropelando os direitos de defesa da Embargante.
A conduta processual da Embargada é, pois, censurável e não pode deixar de ser considerada como litigância de má-fé nos termos do disposto no artigo 542.º, n.º 2, als. b) e d), do Código de Processo Civil, devendo consequentemente ser condenada em multa e indemnização à Embargante.
No que concerne à multa processual, sopesando a gravidade da conduta da Embargada acima explicitada e a tramitação processual a que a mesma deu aso, reputamos adequado fixá-la em 5 UC’s (cfr. artigo 27.º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais).
Quanto à indemnização requerida pela Embargante, não reúnem os autos, por ora, elementos para se fixar o respetivo quantum, termos em que se relega a sua determinação para momento ulterior, depois de ouvidas as partes, nos termos permitidos pelo artigo 543.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil”.
Atendendo ao supra exposto, analisando os fundamentos plasmados no segmento decisório recorrido, não detectamos laivos de obscuridade nos passos seguidos na fundamentação fáctica e jurídica da decisão recorrida que sejam susceptíveis de conduzir à sua ininteligibilidade, revelando-se a mesma, com recurso à apelidada “teoria da impressão do destinatário” acima aflorada, compreensível e em coerência com os fundamentos que foram alinhados pelo Tribunal a quo.
Se houve erro de julgamento isso é questão diversa que será objecto de apreciação infra, mas não nesta sede em que não tem cabimento fazê-lo.
Isto dito improcede a arguida nulidade da sentença constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
Relativamente à nulidade prevista na alínea d) do aludido artigo 615.º do CPC, concretamente a chamada “Omissão de pronúncia”, a que alude a primeira parte da dita alínea, diz-nos António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, na obra acima citada, ainda em anotação ao mencionado artigo (página 764), que a omissão de pronúncia afere-se “seja quanto às questões suscitadas, seja quanto à apreciação de alguma pretensão. “E acrescentam ainda que “[…] o dever de decidir tem por referência as questões suscitadas e bem assim as questões de conhecimento oficioso”, não obrigando, todavia, “[…] a que se incida sobre todos os argumentos, pois que estes não se confundem com «questões» […]”.
Neste sentido saliente-se, entre vários outros, os acórdãos do STJ de 27/03/2014, proferido no Processo n.º 555/2002 e de 08/02/2011, proferido no processo n.º 842/04TBTMR.C1.S1 (ambos acessíveis para consulta in www.dgsi.pt).
Neste último aresto de 08/02/2011 decidiu-se de forma bastante clara o seguinte:
“Não há que confundir as questões colocadas pelas partes com os argumentos ou razões que estas esgrimem em ordem à decisão dessas questões em determinado sentido: as questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as excepções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio. Coisa diferente são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem questões…”.
E acrescenta-se ainda no dito acórdão que “Se na apreciação de qualquer questão submetida ao conhecimento do julgador este não se pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui qualquer nulidade da decisão por falta de pronúncia”.
Volvendo de novo ao caso concreto, percebemos que a Apelante entende que o Tribunal a quo deixou de se pronunciar sobre factos e documentos alegados e apresentados, respectivamente, por si na resposta endereçada aos autos sobre a litigância de má-fé invocada pela Embargante, ora Apelada, desse modo violando o artigo 3.º, n.º 3, do CPC e o artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (doravante apenas CRP), incorrendo, como tal, na nulidade prevista na alínea d), ora em causa.
Mas também quanto a esta nulidade não tem a Apelante qualquer razão.
A eventual falta de pronúncia sobre factos e documentos não se confunde com a falta de pronúncia sobre pretensões, causas de pedir e/ou questões excepcionais.
Acresce que a Apelante entra flagrantemente em contradição ao invocar a hipotética violação pelo Tribunal recorrido do artigo 3.º, n.º 3, do CPC, que destaca a importância da observância do principio do contraditório, sem embargo de simultaneamente referir que carreou os factos e documentos sobre a suscitada litigância de má-fé “no exercício do direito previsto no artigo 3.º, n.º 3, do C.P.C.” (cfr. o teor da conclusão 6 do recurso).
Sucede, ainda, que o facto de a parte visada pela alegada litigância de má-fé se pronunciar tal não significa que o Tribunal tenha inexoravelmente que considerar a sua versão dos factos, mais a mais quando os mesmos pretendam refutar factos que têm igualmente relevância para a apreciação do mérito da oposição por embargos deduzida e que foram considerados confessados na base de revelia relativa e operante da embargada, como sucede no caso vertente!
Tão pouco se vislumbra qualquer violação do artigo 20.º da CRP, sendo certo que a Apelante tão pouco ilustra em que medida é que a dita violação teria ocorrido.
Do exposto se conclui pela improcedência da invocada causa de nulidade da decisão recorrida com fundamento em omissão de pronúncia por parte do Tribunal recorrido, prevenida na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
2 – Vejamos de seguida a segunda questão que destacamos supra no segmento respeitante ao objecto do recurso respeitante a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
Insurge-se a Apelante nos pontos 32 e 33 das conclusões recursivas contra os pontos 4.º (parte final), 6.º e 9.º dos factos provados na sentença proferida pelo Tribunal recorrido sustentando que os mesmos não deveriam ter sido dados por provados “para efeitos de litigância de má-fé”, mais acrescentando dever ser alterada tal matéria de facto “uma vez que apenas é relevante em matéria de litigância de má-fé e em nada interfere com o mérito da causa.”
Dispõe o artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que “A relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Diz-nos sobre este preceito o Conselheiro Fernando Pereira Rodrigues (“Noções Fundamentais de Processo Civil”, Almedina, 2ª edição atualizada, 2019, páginas 463-464), o seguinte:
“A redação do preceito [662.º, n.º 1] não parece ter sido muito feliz quando manda tomar em consideração os “factos assentes” para proferir decisão diversa, que só pode ser daqueles mesmos factos considerados assentes, porque o que está em causa é modificar a decisão em matéria de facto proferida pela primeira instância.
[…]
A leitura que se sugere como mais adequada do preceito, salvaguardada melhor opinião, é que ele pretende dizer que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, “confrontados” com a prova produzida ou com um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Prevê, por seu turno, o artigo 640.º do CPC, que se debruça sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, o seguinte:
1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b), do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”
A este propósito sustenta o Conselheiro António Abrantes Geraldes (“Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 5ª ed., 2018, a páginas 168-169), que a rejeição total ou parcial respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve ser feita nas seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, alínea b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (artigo 640.º, n.º 1, alínea a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”,
esclarecendo, ainda, que a apreciação do cumprimento de qualquer uma das exigências legais quanto ao ónus de prova prevenidas no mencionado n.º 1 e 2, alínea a) do artigo 640.º do CPC, deve ser feita “à luz de um critério de rigor”.
Isto dito, apreciemos, então, no caso concreto, a impugnação relativa à matéria de facto apresentada pela Apelante.
Desde logo resulta da leitura do segmento da sentença respeitante à motivação do tribunal recorrido que a prova de qualquer um dos três factos vertidos sob os nºs 4, 6 e 9 do segmento dos factos provados assentou em confissão “por efeito da revelia” da ora Apelante, o que se revela acertado, desde logo porque confirmado pela própria Apelante, a qual deixou claro e por mais que uma vez na acção que não pretendeu contestar a petição de embargos, mostrando-se ainda inquestionável que qualquer um desses factos foi expressamente alegado na dita petição mormente nos segmentos da mesma intitulados “A. Da inexistência de título por nulidade de notificação” e “B. Da inexistência da alegada dívida”(cfr. artigos 6.º, 11.º, 22.º e 23.º do referido articulado), comportando ainda a referida petição um terceiro segmento (C), intitulado “Da litigância de má-fé”.
Por outro lado, ao contrário do que refere a Apelante, não é verdade que qualquer um dos factos descritos nos três pontos identificados, que pretendeu fossem dados como não provados, apenas tenha relevância para efeitos de análise do incidente da litigância de má-fé e não interfiram com o mérito da causa.
Com efeito, analisando cada um desses factos de per si e cotejados entre si conclui-se que a parte final do facto descrito sob o n.º 4 e o facto vertido sob o n.º 6 não revestem, sequer, relevância no contexto de apreciação da litigância de má-fé da Apelante, sendo, ademais, perceptível da análise do segmento decisório da sentença expressamente impugnado pela Apelante, atinente ao incidente de litigância de má-fé, que tais pontos de facto não constituíram fundamento de facto para tal decisório, mas apenas os factos vertidos na sentença sob os pontos 2.º, 5.º, 7.º, 8.º e 9.º.
Isto dito e por manifesta falta de cabimento legal para impugnar a matéria de facto vertida sob os pontos 4.º (parte final) e 6.º afigura-se ser de rejeitar a mesma.
Já quanto ao ponto de facto vertido sob o n.º 9, se é verdade que reveste particular interesse em sede de apreciação do incidente de litigância de má-fé, não é menos verdade que estando o mesmo (sublinha-se), abrangido pela confissão ficta e não tendo a Apelante sequer logrado em sede de motivação recursiva e menos ainda de conclusões recursivas especificar convenientemente qual, ou quais, os concretos documentos e respectivo teor, de entre os que carreou para os autos com o requerimento de 02/06/2020, que no seu entender justificavam uma decisão diferente da que foi tomada pelo Tribunal recorrido quanto a tal ponto de facto, desse modo incumprindo o ônus de impugnação decorrente da alínea b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, afigura-se ser de rejeitar a impugnação quanto a decisão da matéria de facto também quanto a este ponto de facto vertido sob o ponto 9.
Termos em que se decide rejeitar na totalidade a pretendida impugnação da matéria de facto descriminada na sentença e referenciada na decisão recorrida pelo Tribunal a quo, mantendo-se, assim, a mesma inalterada.

3 – Aqui chegados passemos, por fim, à reapreciação do mérito da decisão de condenação da Apelante como litigante de má-fé.
Sustenta a Apelante que não incorreu em litigância de má-fé e que de todo o modo sempre tal condenação teria que ser sustentada em factos concretos não sendo os factos considerados como assentes na sentença recorrida suficientes para chegar designadamente á conclusão de que houve uma actuação dolosa ou sequer gravemente negligente. Resulta do artigo 542.º do CPC, atinente à noção e responsabilidade no caso de má fé, o seguinte:
“1 – Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 – Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
[….]”
O Tribunal recorrido fundamentou juridicamente a condenação da ora Recorrente como litigante de má-fé na previsão da alínea b) e da alínea d), supra transcritas.
Diz-nos, a propósito destes fundamentos de litigância de má-fé, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (“Código de Processo Civil Anotado”, Volume 1, Almedina, 4ª ed, Fevereiro de 2019, página 457), o seguinte:
“Segundo o n.º 2, constituem actuações ilícitas da parte: […]
a apresentação duma versão dos factos, deturpada ou omissa, em violação do dever de verdade (alínea b)); […]
em geral, o uso reprovável do processo ou de meios processuais, visando um objetivo ilegal, o impedimento da descoberta da verdade, o entorpecimento da ação da justiça ou o protelamento, sem fundamento sério, do trânsito em julgado da decisão (alínea d))”, esclarecendo ainda os mencionados professores, uns parágrafos abaixo na mesma página, que:
“o autor ou o réu visa objetivo ilegal quando, também por exemplo, utiliza meios processuais, como a reclamação, o recurso ou simples requerimentos, para fins ilícitos, designadamente invocando fundamentos inexistentes.”
Ainda no ponto 4 do comentário ao preceito legal do artigo 542.º do CPC (pág. 457), acrescentam os referidos Autores que:
“É corrente distinguir má-fé material (ou substancial) e má-fé instrumental. A primeira relaciona-se com o mérito da causa: a parte, não tendo razão, atua no sentido de conseguir uma decisão injusta ou realizar um objetivo que se afasta da função processual. A segunda abstrai da razão que a parte possa ter quanto ao mérito da causa, qualificando o comportamento processualmente assumido em si mesmo. Assim, só a parte vencida pode incorrer em má-fé substancial, mas ambas as partes podem atuar com má-fé instrumental, podendo, portanto, o vencedor da ação ser condenado como litigante de má-fé.”
Por seu turno, segundo o entendimento de Paula Costa e Silva (“A Litigância de Má Fé”, página 394), a conduta prevenida na mencionada alínea b) do n.º 2 do artigo 542.º do CPC, pressupõe que a parte atue em seu benefício ao alterar a verdade dos factos ou omitir factos relevantes, comportando um tipo de ilícito quer doloso, quer negligente.
António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa (“Código de Processo Civil Anotado”, Volume I, Almedina, 2020, 2ª edição atualizada), salientam em comentário ao referido preceito legal (página 616), o seguinte:
“[…] não deve confundir-se a litigância de má-fé com:
a) A mera dedução de pretensão ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova, por a parte não ter logrado convencer da realidade por si trazida a juízo;
b) A eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar;
c) A discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, a diversidade de versões sobre certos factos ou a defesa convicta e séria de uma posição, sem, contudo, a lograr impor (RP 02-03-10, 615/09)”.
E como destaca António Meneses Cordeiro (“Litigância de Má-Fé, Abuso Do Direito de Ação e Culpa In Agendo, Almedina, 2016, página 65), alinhado com diversa jurisprudência das nossas Relações:
“Os preceitos atinentes às condutas relativas à litigância de má-fé têm uma aplicação restrita […] Exige-se que as condutas visadas sejam “manifestas” e “inequívocas”, requerendo uma quase certeza, por parte do julgador, dado o desmerecimento que envolvem e suscitando, a este, prudência e cuidado e especiais cautelas”.
Dito isto, regressemos, então, ao caso vertente, na certeza de que aderimos no essencial à doutrina e jurisprudência supra assinaladas.
Desde já impõe-se realçar que a decisão impugnada salientou os factos em que se estribou para responsabilizar a Apelante como litigante de má-fé, realçando designadamente os que foram descriminados no segmento da sentença atinente aos factos provados vertidos sob os pontos 2, 5, 7, 8 e 9.
Tal decorre da passagem que, de seguida, voltamos a recordar:
Conforme decorre do acima explicitado, em 16.10.2019 a Embargada intentou contra a Embargante procedimento especial de injunção, tendo indicado que o domicílio desta se situava na Rua (…), Lote 10, 1.º-Dto., no Seixal. Mais afirmou terem as partes convencionado domicílio.
Todavia, acha-se igualmente apurado que a Embargada sabia que à data da injunção a Embargante não mais laborava naquela morada. Por outro lado, as partes nunca convencionaram entre si, por escrito, qualquer domicílio para efeitos de recebimento de notificações ou citações.”
Com base nestes factos entendeu o Tribunal recorrido na decisão impugnada ter sido preenchida a previsão constante das alíneas b) e d), do n.º 2, do artigo 542.º, do CPC., fundamentando da forma que também ora voltamos a transcrever:
“Daqui se extrai, tendo por referência as regras da normalidade da vida e as máximas da experiência, que a Embargada atuou dolosamente ou, no mínimo, com negligência grave, alterando factos relevantes e fazendo um uso reprovável do procedimento de injunção, que lhe permitiu obter à revelia da Embargante um aparente título executivo e penhorar bens desta sem citação prévia, atropelando os direitos de defesa da Embargante.
A conduta processual da Embargada é, pois, censurável e não pode deixar de ser considerada como litigância de má-fé nos termos do disposto no artigo 542.º, n.º 2, als. b) e d), do Código de Processo Civil, devendo consequentemente ser condenada em multa e indemnização à Embargante.”
Aqui chegados não podemos deixar de convir que a indicação no requerimento injuntivo, por parte da ora Apelante, de uma morada que a Apelada deixara de ter em Novembro de 2012, ou seja, cerca de 4 anos e 4 meses antes de terem outorgado entre si o primeiro negócio jurídico verbal em litígio nos autos, conjugada com o conhecimento detido pela Apelante à data da propositura de tal requerimento da morada que a Apelada tinha desde 23/07/2018 (sem olvidar o conhecimento que, também, se provou ter da morada da Apelada entre Novembro de 2012 e 23/07/2018, que abrangeu a data em que celebraram entre si os contratos verbais subjacentes ao litigio desencadeado pelo requerimento injuntivo), aponta, quer numa perspectiva objectiva, quer numa dimensão subjectiva, no sentido de alteração da verdade de um facto relevante tendo em atenção a especificidade do procedimento adoptado pela Apelante, não podendo deixar de se qualificar a factualidade provada vertida sob o ponto 9 dos factos assentes na sentença e respaldado na decisão impugnada como ilustrador de uma conduta, no mínimo, patentemente descuidada e imprudente daquela, não devendo esquecer-se que para a responsabilização nos casos de má-fé previstos designadamente nas alíneas do n.º 1 do artigo 542.º do CPC, basta a negligência, ou seja a omissão de um dever de cuidado por parte do agente, (ainda que grosseiramente), não sendo necessário o dolo, que nos remete já para o plano da intencionalidade, ou, no mínimo, da conformação do agente com determinado resultado.
Por outro lado, a menção no requerimento injuntivo da existência de domicílio convencionado conjugado com o facto de Apelante e Apelada não terem acordado anteriormente entre si qualquer acordo escrito em que tivessem convencionado domicilio para efeito de citações ou notificações em caso de litígio, sabendo-se do impacto que tal convenção tem em termos de simplificação na demanda do requerido e consequente diminuição de garantias de defesa do mesmo, facilmente perceptível pelo simples cotejo entre a previsão dos artigos 12.º e 12.º-A do regime de procedimentos anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 01/09 (“Acção Declarativa Especial para Cumprimento de Obrigações Pecuniárias Emergentes de Contratos e Injunção”) permite igualmente e sem margem para rebuços qualificar tal conduta do ponto de vista objectivo e subjectivo como de utilização de meio processual para prosseguir um objectivo, ou fim, em concreto, ilícito, traduzido numa mais que expectante aposição de fórmula executória no requerimento injuntivo (como veio a suceder), por virtude da ora Apelada não ter tido conhecimento, por não a ter recepcionado, da notificação que lhe foi enviada (e consequentemente não ter reagido por oposição ao procedimento contra si dirigido), através da invocação de circunstâncias inexistentes, mormente a existência de domicilio convencionado do requerido, o que, repete-se, evidencia, no mínimo, uma flagrante omissão de dever de cuidado e incúria insusceptível de desculpabilização e menos ainda de aceitar como lapsus calami.
Perante o exposto e não obstante a parcimónia e cautela que o julgador deve sempre colocar na apreciação deste tipo de incidentes em que subjaz a apreciação de litigância de má-fé das partes, ou de uma delas, afigura-se-nos que a situação em apreço se enquadra em tal figurino e designadamente na previsão das alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 542.º do CPC, revelando-se, como tal, correcta a apreciação do Tribunal recorrido no segmento decisório da sentença impugnado que apreciou em concreto tal incidente, inclusive no tocante à quantificação da multa aplicável, não podendo olvidar-se que os limites em abstrato da mesma oscilam, segundo a previsão do artigo 27.º, n.º 3, do Regulamento das Custas Processuais, entre 2 UCS e 100 UCS, mais se acrescentando relativamente à indemnização, ainda por concretizar, que resultando dos autos ter sido expressamente peticionada pela Apelada nada há que alterar, também quanto a tal, na decisão recorrida.
Destarte, improcedem, em consequência e necessariamente, as conclusões recursivas da Apelante, sendo de negar provimento ao recurso interposto.
*
V - DECISÃO
Pelo exposto, julga-se totalmente improcedente o presente recurso de Apelação interposto por (…), Anticorrosivas, Lda. e, em consequência, decide-se:
a) Confirmar a sentença recorrida;
b) Fixar as custas a cargo da Apelante, nos termos do disposto no artigo 527.º, n.º 1 e 2, do CPC.
*
Évora, 28/10/2021
José António Moita (relator)
Silva Rato (1.º adjunto)
Mata Ribeiro (2.º adjunto)