Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1564/11.9TBSSB-I.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSÃO DE BENS AOS CREDORES
PRAZO
Data do Acordão: 09/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Não se tendo efetivado a apreensão de rendimentos na pendência do processo de insolvência, o cumprimento pontual e escrupuloso por parte do devedor insolvente da obrigação a que alude o art.º 239.º, n.º 4, al. c), do CIRE após a prolação do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante, recebidas que sejam as quantias entregues, implica que se considere desde então em curso o período de cessão, ainda que não tenha sido declarado o encerramento do processo, conforme determina o art. 230.º, n.º 1, al. e), do CIRE.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1564/11.9TBSSB-I.E1

Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora

I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Insolvente: (…)

Recorridos / Credores: Banco (…), SA e outros

O presente processo consiste em processo de insolvência no âmbito do qual o devedor (…) foi declarado insolvente.

II – O Objeto do Recurso

Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferido o despacho de encerramento do processo no âmbito do qual se determinou o início do período da cessão para efeitos de exoneração do passivo restante.

Notificado de tal despacho, apresentou-se o Insolvente a invocar que desde 2012 vem entregando ao fiduciário AI os valores determinados, cumprindo desde então a obrigação de cessão de rendimentos, requerendo que o tribunal considere que o período de cessão se iniciou antes do encerramento do processo. Ouvido o AI, este deu conta de que as quantias foram entregues pelo Insolvente de junho de 2012 a janeiro de 2017, o que foi imputado nas contas e plasmado no mapa de rateio, tratando-se, porém, da cessão de rendimentos por via da apreensão de 1/3 do vencimento do Insolvente, nada tendo a opor, no entanto, a que o período da cessão seja reportado a junho de 2012.

Foi proferido o seguinte despacho:
«Veio o insolvente, notificado do despacho de encerramento, onde se determina o início do período de cessão quanto à exoneração do passivo restante, invocar que iniciou a entrega dos valores em 2012, cumprindo a obrigação de cessão de rendimentos fixada. Notificado veio o Sr. A.I. salientar que o mesmo procedeu de tal modo ao abrigo da apreensão de vencimento determinada nos autos.
Apreciando.
Nos presentes autos foi determinada na Assembleia de Credores a apreensão de 1/3 do vencimento durante o período da liquidação do activo, por despacho transitado em julgado.
No mapa de rateio é espelhada essa mesma situação sendo repartido o produto da apreensão de 1/3 do vencimento e não do rendimento cedido.
Assim, o período de cessão iniciou-se com o encerramento do processo de insolvência após liquidação e rateio final.
Nesta conformidade, indefiro ao requerido pelo insolvente, considerando o início o período de cessão na data do encerramento do processo.
Notifique.»

Inconformado, o Insolvente apresenta-se a recorrer pugnando pela anulação do referido despacho na parte em que declarou que o período de cessão teve o seu início no momento do encerramento do processo, na medida em que o insolvente, desde Setembro de 2012, data do despacho inicial de exoneração do passivo restante, cedeu (por transferência bancária para a conta da massa insolvente cujo NIB foi dado pelo Administrador de Insolvência para esse efeito) o equivalente a 1/3 do seu rendimento líquido, e substituição da decisão por outra que determine o início do período de cessão do rendimento disponível no mês imediatamente a seguir à prolação do despacho inicial de exoneração (Setembro de 2012); caso assim não se considere, porque a lei dispõe que o prazo de liquidação é de um ano a partir da data da assembleia de apreciação do relatório, o Apelante peticiona a anulação do despacho e a substituição da decisão por outra que determine o início do período de cessão do rendimento disponível no mês imediatamente a seguir a perfazer um ano desde a data da assembleia de aprovação do relatório, só assim se fazendo cumprir o prazo de um ano contemplado no art.º 169.º do CIRE.

Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«A. Vem o presente recurso interposto do Despacho notificado via citius em 04.11.16 nos autos referenciados, na parte em que “indefiro o requerido pelo insolvente, considerando o inicio do período de cessão na data de encerramento do processo.”. – cfr despacho que se junta como documento n.º 1.
B. São 3 as razões pelo qual entende o recorrente que o período de cessão do rendimento disponível já se encontrava iniciado no presente processo:
- Não coercibilidade dos valores cedidos (entrega voluntária pelo insolvente) entre Setembro de 2012 e a data de encerramento do processo;
- Prazo de 1 ano fixado pela lei para que o Senhor Administrador e Insolvência finde a liquidação;
- Alteração legislativa de 2012 (DL 16/2012 de 20 de Abril) que, ao adicionar a alínea e) do 230º do C.I.R.E, prevê o encerramento do processo aquando do despacho inicial de exoneração do passivo restante;
C. No que respeita à primeira, em nenhum momento o Administrador de Insolvência apreendeu ou encetou diligências de apreensão de parte dos rendimentos do insolvente.
D. Claramente a transferência dos valores resultou de um comportamento voluntário do insolvente similar à obrigação de cessão do rendimento disponível (art.º 239º do C.I.R.E) bem distinto da apreensão de parte dos rendimentos do devedor que é legalmente admissível por força do art.º 150º do C.I.R.E.
E. Os valores deliberadamente entregues pelo insolvente à massa insolvente não resultam de uma medida coerciva permitida ao Administrador de Insolvência pelo que nunca poderão ser definidos como apreensões para a massa insolvente.
F. No que respeita à segunda como se referiu, o insolvente estava convicto de que se encontrava em período de cessão do rendimento disponível, e todo o seu comportamento (prestando informação mensal dos valores por si auferidos e por si transferidos) coaduna-se com o comportamento exigível a quem se encontra em período de cessão do rendimento disponível (art.º 239º do C.I.R.E).
G. Atente-se que o insolvente procedeu a 56 transferências para a conta da massa insolvente transferindo, até ao último cêntimo, os valores a que estava obrigado, como se tivesse em período de cessão do rendimento disponível, criando legítimas expectativas de que se encontrava em cessão do rendimento disponível.
H. Nem outra coisa poderia ser de esperar, considerando que a lei fixa 1 ano como prazo para que a liquidação encerre, nunca colocou sequer a hipótese de ainda estar em período de liquidação.
I. Aliás, caso o insolvente tivesse consciência de que estaria a aguardar pelo fim da liquidação para iniciar o período de cessão do rendimento disponível, seguramente teria socorrido da norma contemplada no art.º 169º do CIRE no qual prevê a destituição do Sr. Administrador a requerimento de um interessado, caso a liquidação não seja encerrada decorrido um ano da data da assembleia de credores.
J. A sua convicção e as suas acções, manifestamente, enquadravam-se naquilo que é o período de cessão do rendimento disponível.
K. O facto de saber que o processo não se encontrava encerrado não era determinante, pois os tribunais portugueses de primeira instância cientes das dificuldades de escoamento dos bens integrantes das massas insolvente, em virtude dos problemas que atravessou e atravessa o mercado português e do sistema financeiro em geral, proferiram inúmeros despachos de encerramento única e exclusivamente para efeitos do período de cessão, decorrendo este, em conjunto, com a eventual liquidação, tratando-se de uma questão de justiça, ainda que social, pois os insolventes já são afetados pelos efeitos dos processos de insolvência quanto mais terem que aguardar anos a fio para ver os seus processos encerrados.
L. A terceira e último fundamento de Recurso, resulta da nova redacção do art.º 230.º, do CIRE, pela Lei 16/2012 de 20 de Abril, acrescentando a al. e), dispõe que o Juiz deve declarar o seu encerramento e) Quando esta ainda não haja sido declarado, no despacho inicial de exoneração do passivo restante referido na al. b) do art.º 237º do C.I.R.E.
M. Entende-se que a criação de um normativo como a aliena e) do n.º 1 do art. 230º do CIRE, visou precaver situações em que processos urgentes como os de insolvência se mantenham em Tribunal por 8, 9 ou 10 anos como acontecerá no caso em apreço se o Recurso não merecer provimento.
N. Importante será, também, perceber em que contexto o legislador procedeu à alteração legislativa de 2012 que motivou a aliena e) do art.º 230º do C.I.R.E,.
O. Cabe aplicar a alínea e), do n.º 1 do art .º 230.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, aditada pela Lei n.º 16/ 2012, de 20 de Abril e actualmente em vigor.»

Apenas o Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional (credora reclamante de € 100,39) apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão recorrida, alinhando as seguintes conclusões:
«1. Em Setembro de 2012, altura em que foi proferido nos presentes autos o despacho inicial de exoneração do passivo restante, a alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º do CIRE, introduzida pela Lei n.º 16/2012, de 20-4, já se encontra em vigor, sendo pois de aplicação possível a tal despacho.
2. Porém, tal norma não foi aplicada, ou seja, o processo não foi declarado encerrado ao seu abrigo, sendo de registar que o despacho transitou em julgado, pelo que, por força do caso julgado, é insusceptível de posterior modificação no mesmo processo (artigo 620.º do CPC), o que deverá motivar a improcedência do recurso.
3. Se assim não se entender, acrescenta-se que a introdução da referida alínea e) poderá ter tido dois objectivos, ou de permitir o início do período de cessão apesar de não estar terminada a fase da liquidação, porventura mais longa do que o desejável, ou, no segundo caso, de permitir o encerramento do processo numa situação processual até então não prevista pelo legislador.
4. A primeira hipótese implica que o mesmo processo seja encerrado duas vezes, primeiro apenas para permitir o início do período de cessão e depois, num encerramento propriamente dito, não se mostra defensável, já que qualquer encerramento tem os efeitos previstos do artigo 233.º do CIRE, entre os quais a recuperação da disponibilidade dos bens por parte do devedor e a cessação das atribuições por parte do Administrador de Insolvência, o que não se mostra compatível com a manutenção da liquidação.
5. Resta assim a possibilidade avançada pela doutrina de acordo com a qual a referida alínea se aplica apenas aos casos resultantes dos artigos 232.º, n.º 6 e 248.º, n.º 1 do CIRE, nos quais o encerramento do processo não era até então possível, enquanto vigorasse o benefício do diferimento do pagamento de custas concedido ao devedor, podendo agora o juiz, quando profere o despacho inicial de exoneração do passivo restante, declarar o processo encerrado, ao abrigo da mencionada alínea, assim se podendo iniciar desde logo o período de cessão.»

Assim, cumpre conhecer da seguinte questão: do momento em que se iniciou o período da cessão do rendimento disponível.

III – Fundamentos

A – Dados a considerar

Os que resultam do que se deixa exposto supra e, em face do que documentam os autos, o seguinte:
- o processo teve início em 2011;
- no âmbito da assembleia de credores que reuniu a 21/05/2012, foi proferido despacho determinando a apreensão de 1/3 do vencimento do devedor insolvente até ao encerramento da liquidação, o que apenas foi notificado aos sujeitos que se encontravam presentes na referida assembleia – cfr. ata respetiva e certidão que antecede;
- o insolvente e o respetivo mandatário não se encontravam presentes na referida assembleia – cfr. ata respetiva;
- a liquidação teve por objeto a venda de um bem imóvel;
- em setembro de 2012 foi proferido o despacho inicial no incidente de exoneração do passivo restante, inexistindo pronúncia sobre o encerramento do processo;
- desde junho de 2012 a outubro de 2014, o insolvente entregou ao AI o montante de 10.856,80 € e no período de novembro de 2014 a janeiro de 2017, o insolvente cedeu o montante de 10.908,16 € - cfr. informação prestada pelo AI;
- ao que procedeu mediante transferência bancária para a conta da massa insolvente;
- no mapa elaborado pelo AI em anexo às contas apresentadas e ao rateio final, consta a menção “valor a ceder: 1/3 do salário”, bem como o lançamento mensal da quantia “valor a ceder”, computando, a final, o total do “montante a ceder” e do “montante entregue” – cfr. doc. respetivo.

B – O Direito

Nos termos do disposto no art. 235.º do CIRE, “Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência se não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo”.

Entre essas disposições consta o art. 239.º do CIRE, cujo n.º 2 estatui que “O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considere cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores de insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte”.

Trata-se de uma medida de proteção do devedor pessoa singular, permitindo que se liberte do peso das suas dívidas, podendo recomeçar de novo a sua vida.[1] Destina-se, pois, a promover a “reabilitação económica” do devedor a que alude o preâmbulo do DL n.º 53/2004, de 18 de março. Não descurando, no entanto, os interesses dos credores, tal regime impõe ao devedor a cedência do seu rendimento disponível a um fiduciário nomeado pelo tribunal, que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos itens enunciados no art. 241.º n.º 1 do CIRE, designadamente distribuindo o remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência (cfr. al. d) da citada disposição legal).

Decorrido o período da cessão, proferir-se-á decisão sobre a concessão ou não da exoneração e, sendo esta concedida, ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados – cfr. arts. 241.º n.º 1 e 245.º do CIRE.

Ora, proferido que seja o despacho inicial da exoneração, o insolvente fica adstrito ao cumprimento das obrigações enumeradas no art. 239.º do CIRE, podendo a violação dolosa das mesmas, entre outras, determinar a cessação antecipada do procedimento de exoneração. Nos termos do disposto no art. 239.º n.º 4 do CIRE, «Durante o período da cessão, o devedor fica (…) obrigado a:
a) (…);
b) (…);
c) entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão;
d) (…).»

Feita esta referência, em traços gerais, ao incidente de exoneração do passivo restante, importa determinar quando se iniciou, neste caso concreto, o período da cessão.

Ora vejamos.

Decorre efetivamente do disposto no já citado art. 239.º n.º 2 do CIRE que o termo inicial do período de cessão se verifica aquando do encerramento do processo de insolvência. Aí se inicia a contagem do prazo fixo de cinco anos durante o qual ocorre a cessão do rendimento disponível do insolvente devedor. O encerramento do processo de insolvência, por sua vez, encontra-se regulado no art. 230.º do CIRE, cujo n.º 1 estabelece o seguinte:
«1 - Prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento:
a) Após a realização do rateio final, sem prejuízo do disposto no n.º 6 do artigo 239.º;
b) Após o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de insolvência, se a isso não se opuser o conteúdo deste;
c) A pedido do devedor, quando este deixe de se encontrar em situação de insolvência ou todos os credores prestem o seu consentimento;
d) Quando o administrador da insolvência constate a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente.
e) Quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237.º»

Vem sendo entendido que o encerramento do processo a coberto da al. e) do n.º 1 do art. 230.º do CIRE, no âmbito do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante, só pode ter lugar quando se verifique a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as respetivas dívidas, compaginando o referido preceito legal com o regime inserto no art. 232.º do CIRE.[2] Nesta senda, entende-se que existindo bens a partilhar e não estando concluída a respetiva liquidação, não se pode declarar o encerramento do processo e insolvência antes de concluída a liquidação; só se deve declarar o encerramento do processo de insolvência no despacho liminar de deferimento do pedido de exoneração do passivo restante se inexistirem bens a liquidar.[3] O que se alicerça, essencialmente, na seguinte fundamentação: as regras do CIRE «estabelecem o princípio de que a distribuição e o rateio final só terão lugar depois de encerrada a liquidação da massa insolvente, implicando, assim, que mesmo admitido liminarmente o impetrado incidente de exoneração do passivo restante, se já tiver ocorrido a liquidação, pode e deve decretar-se o encerramento do processo de insolvência, nos termos da alínea e), ao invés, na circunstância de a liquidação ainda não ter sido concluída, não há fundamento para a aplicação do regime estabelecido nesta alínea e) do artº. 230º, nº. 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), antes o regime regra prevenido na alínea a) do artº. 230º, nº. 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), ou seja, torna-se necessário aguardar pelo rateio final.
Resulta do normativo citado (artº. 230º, nº.1, alínea e), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), ser o próprio legislador que, implicitamente, admite como traduzindo ocorrência processual regular, a possibilidade de, em sede de prolação do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante, não declarar o juiz titular dos autos o encerramento do processo, ou seja, é o próprio legislador que entende existirem circunstâncias que obstam a que, no despacho liminar do incidente de exoneração do passivo restante a que alude a alínea b) do artº. 237º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), seja declarado o encerramento do processo. Tal como decorre da alínea a), do nº.1, do artº. 230º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento “Após a realização do rateio final, sem prejuízo do disposto no nº. 6, do artigo 239º”, donde podemos concluir que até ao encerramento da liquidação e rateio final, não deve o juiz declarar o encerramento do processo. Ademais, sublinhamos, não fazer qualquer sentido, uma declaração de encerramento do processo, com a inevitável cessação das atribuições do administrador da insolvência (artº. 233º nº.1, alínea b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)), num momento em que persiste ainda por realizar a proeminente função, a nosso ver, do administrador de insolvência, qual seja, a de promover e diligenciar pela alienação dos bens que integram a massa insolvente (artºs 55º nº. 1, alínea a) e artº. 158º, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)).»
[4]

Porém, a recente intervenção legislativa em sede do CIRE veio demonstrar ser diversa a orientação legal. Na verdade, por via do DL n.º 79/2017, de 30/06/2017 (pendente que estava o presente recurso), foi aditado o n.º 7 ao art. 233.º do CIRE, que regula os efeitos do encerramento do processo, estatuindo o seguinte: «O encerramento do processo de insolvência nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º, quando existam bens ou direitos a liquidar, determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível.» O que sinaliza que se pretende atribuir autonomia à al. e) do n.º 1 do art. 230.º do CPC, devendo ser declarado o encerramento do processo de insolvência no despacho inicial de exoneração do passivo restante, quando tal não tenha ainda ocorrido, sendo certo que, existindo bens ou direitos a liquidar, os efeitos do encerramento se repercutem unicamente no início do período de cessão do rendimento disponível. Coloca-se, assim, o devedor insolvente a salvo da demora desgastante em que frequentemente se traduz a atividade de liquidação e a própria tramitação do processo de insolvência, conferindo-se eficácia renovada ao incidente da exoneração do passivo restante: o princípio do “fresh start”, visando a reintegração plena do devedor na vida económica, não se compagina com a manutenção do devedor paralisado por longo período durante o qual ocorrem as vicissitudes do processo de insolvência, sendo antes imperioso que possa cumprir, desde logo e durante o prazo fixo de cinco anos, as obrigações legais que lhe permitirão alcançar a sua reabilitação económica.

Ora, no caso em apreço, aquando da prolação do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante inexistiu pronúncia sobre o encerramento do processo, não foi declarado o encerramento do processo. A questão não foi ali objeto de concreta apreciação (pelo que não se colocam inquietações atinentes ao caso julgado). No entanto, de junho de 2012 a janeiro de 2017, o devedor insolvente procedeu a transferência bancária para a conta da massa insolvente da quantia correspondente ao rendimento disponível, conforme quadro elaborado pelo AI. O que traduz o efetivo cumprimento, por parte do devedor insolvente, da obrigação de entrega ao fiduciário da parte dos seus rendimentos objeto de cessão, prevista na al. c) do n.º 4 do art. 239.º do CIRE.

É certo que foi ordenada a apreensão de 1/3 do salário do devedor. Trata-se de providência conservatória prevista no art. 149.º do CIRE, a levar a cabo nos moldes definidos nos arts. 150.º e 151.º do CIRE, de modo a apetrechar a massa insolvente de meios de satisfação dos créditos – cfr. art. 46.º do CIRE. A cada diligência de apreensão, a executar ou a promover pelo AI, há de corresponder um auto a juntar ao processo de insolvência, conforme previsto no art. 151.º do CIRE.

No quadro legislativo atual e atenta a jurisprudência dominante dos tribunais superiores não cabe já questionar a apreensibilidade de parte do rendimento salarial dos devedores. Na verdade, se por um lado importa não desincentivar o devedor ao exercício de qualquer atividade profissional (contando que ocorrerá o desconto de um terço do seu valor) e salvaguardar razões de humanidade que impedem a apreensão de parte do salário nos casos em que está em causa a subsistência do devedor e do seu agregado, por outro lado há que atender aos interesses dos credores. Assim, há que conciliar a satisfação dos interesses dos credores com as necessidades básicas do devedor, permanecendo intocável a parte dos rendimentos que se revele indispensável à subsistência do mesmo; a parte que exceda, sendo objeto de apreensão, integrará a massa insolvente, competindo ao juiz, em cada caso concreto, determinar de acordo com o critério de equidade o quantum que ficará sujeito à apreensão.[5]

Donde, decretada que seja a apreensão de salário ou outros rendimentos, vindo ela efetivar-se, reverte para a massa insolvente o produto da mesma, obtido na pendência do processo. Sendo este processo declarado encerrado, ainda que com o efeito mitigado agora expressamente estabelecido no art. 233.º n.º 7 do CIRE, cessam os efeitos da apreensão, iniciando-se o período da cessão em que o devedor se encontra adstrito ao cumprimento das obrigações enunciadas no art. 239.º n.º 4 do CIRE.

No âmbito dos presentes autos, porém, a decisão judicial de apreensão de 1/3 do salário do devedor insolvente nem sequer lhe foi notificada. Acresce que não teve lugar qualquer diligência de efetiva apreensão de rendimentos junto da entidade deles devedora. Antes o AI, na qualidade de fiduciário, recebeu do devedor as quantias mensalmente por ele transferidas para a massa insolvente, traduzindo o cumprimento pontual e escrupuloso da obrigação de entrega imediata da parte dos rendimentos disponível.

Ora, não obstante a inobservância do disposto no art. 230.º n.º 1 al e) do CIRE (dado que não foi declarado encerrado o processo no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante), não se afigura legalmente admissível, neste concreto circunstancialismo, que seja recebido e aceite o produto do cumprimento da obrigação decorrente do art. 239.º n.º 4 al. c) do CIRE e, bem assim, que se entenda que o período de cessão ainda não se iniciou (por não ter sido declarado encerrado o processo) fazendo ratear as importâncias entregues pelo devedor ao fiduciário em benefício da massa, implicando da dilatação excessiva e intolerável do período durante o qual o devedor procede ao cumprimento da obrigação de entrega da parte do rendimento disponível.[6] Pois «nas situações em que o despacho inicial de exoneração do passivo restante e o despacho de encerramento do processo de insolvência não são proferidos em simultâneo, e começando de imediato os insolventes a ceder o rendimento disponível segundo o decidido naquele despacho e o promovido pelo fiduciário (nos termos do art. 239.º n.º 4 al. e) do CIRE), é razoável uma interpretação extensiva do disposto no art. 239.º n.º 2 do CIRE, que permita considerar que o período de cessão (de 5 anos) e a referida cedência do rendimento disponível pode legalmente e de facto ocorrer, independentemente da prolação do despacho de encerramento, após o despacho de admissão liminar do pedido de exoneração do passivo.» - Ac. TRC de 18/10/2016.[7]

Por tudo o que se deixa exposto, as quantias entregues pelo insolvente após a prolação do despacho inicial de exoneração do passivo restante, neste caso concreto, deverão reverter para o fiduciário e não já para a massa insolvente.

Termos em que procedem as conclusões da alegação do recurso.

As custas recaem sobre os Recorridos – art.º 527.º n.º 1 do CPC.

Concluindo:
- a reabilitação económica do devedor insolvente visada pelo incidente de exoneração do passivo restante não se compagina com a manutenção do devedor paralisado por longo período durante o qual ocorrem as vicissitudes do processo de insolvência, culminando na liquidação e nas operações de rateio final;
- a recente intervenção legislativa em sede de CIRE, aditando o n.º 7 ao art. 233.º, sinaliza a orientação pretendida de que, ainda que existam bens ou direitos a liquidar, deve declarar-se o encerramento do processo de insolvência aquando da prolação do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante, o que determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível;
- não se tendo efetivado a apreensão de rendimentos na pendência do processo de insolvência, o cumprimento pontual e escrupuloso por parte do devedor insolvente da obrigação a que alude o art.º 239.º n.º 4 al. c) do CIRE após a prolação do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante, recebidas que sejam as quantias entregues, implica se considere desde então em curso o período de cessão, ainda que não tenha sido declarado o encerramento do processo, conforme determina o art. 230.º n.º 1 al. e) do CIRE.

IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se pela revogação da decisão recorrida na parte em que declarou que o período de cessão se iniciou com o encerramento do processo de insolvência após liquidação e rateio final, decretando-se, em substituição, que o período de cessão em que teve lugar a efetiva cedência do rendimento disponível se iniciou em Outubro de 2012.

Custas pelos Recorridos.

Évora, 28 de Setembro de 2017

Isabel de Matos Peixoto Imaginário

Maria da Conceição Ferreira

Rui Machado e Moura
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[1] V. Assunção Cristas, Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, Themis 2005, p. 167.
[2] Cfr., entre outros, Ac. TRE de 11/05/2017 (Bernardo Domingos).
[3] Cfr., entre outros, Ac. TRP de 07/11/2016 (Oliveira Abreu); Ac. TRC de 07/06/2016 (Arlindo Oliveira); Ac. TRE de 20/06/2013 (Mata Ribeiro). Ana Filipa Conceição, I Congresso do Direito da Insolvência, p. 56. Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 3.ª edição, p. 829.
[4] Ac. TRP citado, de 07/11/2016.
[5] Cfr. Ac. STJ de 15/03/2007 (Oliveira Rocha); Pedro de Sousa Macedo e Maria do Rosário Epifânio, obs. e loc. ali citados.
[6] Neste sentido, cfr. Ac. TRG de 21/05/2013 (Edgar Gouveia Valente).
[7] Relatado por Fonte Ramos.