Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
317/09.9GFSTB.E2
Relator: ALBERTO JOÃO BORGES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PODER - DEVER DE EDUCAÇÃO OU CORRECÇÃO
Data do Acordão: 03/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSOS PENAIS
Decisão: NÃO PROVIDOS
Sumário:
I - A educação ou correcção dos filhos não se compadecem, nos tempos que correm e nas sociedades atuais, com quaisquer formas de violência física ou mental que atentem contra a dignidade da pessoa, em tudo contrárias ao dever de proteção que recai sobre os pais, enquanto responsáveis pelo seu desenvolvimento equilibrado e harmonioso.

II - O poder-dever de educar ou corrigir supõe, sempre, por um lado, que o agente atue com essa finalidade e, por outro, que os castigos infligidos sejam criteriosamente ponderados e proporcionais à falta ou faltas cometidas, o que é de todo incompatível com a violência física, com castigos corporais ou com castigos humilhantes e atentatórios da dignidade do menor, pois estes nunca serão adequados ou justificados pelo dever de educar.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, 3.º Juízo Criminal, correu termos o Proc. Comum Singular n.º 317/09.9GFSTB, no qual foram julgados os arguidos A. (filho de..., solteiro, nascido em 27.4.1973, natural de São Jorge de Arroios, Lisboa, residente em Rua..., Alcochete) e B (filha de..., nascida em 5.11.1981, solteira, natural de S. Sebastião, Setúbal, residente em Rua..., Alcochete), pela prática, em co-autoria, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152 n.ºs 1 al.ª d) e 2 do Código Penal.

A final veio a decidir-se:

1) Condenar o arguido, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152 n.ºs 1 alínea d) e 2 do Código Penal, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, condicionada ao pagamento da quantia de €600 ao COI, no prazo de 4 meses;

2) Condenar a arguida, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152 n.ºs 1 alínea d) e 2 do Código Penal, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, condicionada ao pagamento da quantia de €600 ao COI, no prazo de 4 meses;

3) Condenar os demandados no pagamento solidário, ao Centro Hospitalar de Setúbal, EPE, da quantia de €978,87, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido de indemnização civil até efetivo e integral pagamento (o Centro Hospitalar de Setúbal, EPE, havia deduzido pedido de indemnização civil, pedindo a condenação dos arguidos no pagamento do crédito hospitalar resultante dos cuidados de saúde prestados, no montante de €978,87, mais juros de mora legais até efetivo pagamento).

2. Recorreram os arguidos daquela sentença, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:

2.1. A arguida B (fol.ªs 402 a 407):

1 – Não pode o tribunal a quo limitar-se a elencar os factos da acusação, bem como a condição sócio económica dos arguidos, aquando da fundamentação dos factos provados e não provados; tem de ter em conta os factos que surjam na audiência de discussão e julgamento e que sejam relevantes para a boa apreciação da causa.

2 – A realidade é que no decorrer da audiência de discussão e julgamento foram levantadas várias questões relevantes, as quais não foram valoradas.

3 – Os roubos de dinheiro por parte do C – admitidos por este – motivo que terá originado alguns dos castigos.

4 – Estando aqui em causa, como a própria sentença afirma, o facto da atuação dos arguidos estar dentro dos poderes-deveres de educação, não pode o tribunal a quo omitir-se de valorar os comportamentos desviantes do menor, de forma a poder fundamentar em que moldes os referidos poderes foram excedidos.

5 – O facto do menor praticar karaté, prova documental junta pela arguida, que o douto tribunal a quo não dá como provado.

6 – O desempenho escolar do C, que também foi um ponto bastante focado e não se encontra em lado nenhum da matéria de facto.

7 – O direito de defesa da arguida viu-se, desde o início, melindrado.

8 – Todas estas imprecisões da acusação foram passadas para a matéria de facto dada como provada.

9 – Como é que se pode a arguida defender de factos como: ocasionalmente; a partir do ano de 2009; algumas ocasiões; em várias ocasiões.

10 – Estamos perante uma série de situações que, alegadamente, aconteceram, mas que não ficou provado, nem quando nem em que moldes.

11- Como pode a arguida defender-se e justificar que os castigos que aplicava ao C eram ou não excessivos e desproporcionados se estes não se encontram concretizados?

12 – Como pode o tribunal fazer esta avaliação sem saber quantas vezes o menor ficava de castigo? Quais eram os castigos em concreto dados ao menor? Os castigos eram proporcionais e socialmente aceitáveis?

13 – Dá a douta sentença como provado (ponto 30) que a partir de setembro de 2010 o C passou a viver em total isolamento, contradizendo-se logo de seguida (no ponto 31), dizendo que apenas lhe concediam autorização para sair do seu quarto para ir à escola, à casa de banho e à cozinha.

14 – Será que podemos considerar que o menor viveu nesses meses em total isolamento se o horário da escola do menor o levava a estar a maior parte do dia fora de casa?

15 – Será que isto é “sem qualquer acesso ao mundo exterior”?

16 – No que respeita aos pontos 30 e 34 limita-se a copiar a acusação, não se preocupando com as contradições que esta tinha nem com a prova produzida em sede de audiência de julgamento.

17 – Foi efetuada uma alteração não substancial dos factos, ponto 26 dos factos provados (alterando-se a data de um dos factos da acusação) com base nas declarações dos arguidos, não se alterando, no entanto, o facto de “tais lesões determinarem para se curar um período de 15 dias de doença”.

18 – A realidade é que ficou provado que o menor só ficou internado no hospital por se recusar a ir para casa e não haver vaga na instituição COI, e não devido a qualquer tipo de lesões sofridas.

19 – A sentença tem, como requisito essencial, entre outros, o dever de fundamentação, o que deriva do art.º 205 da CRP e 374 n.º 2 do CPP.

20 – A douta sentença procede à motivação da matéria de facto elencando de forma sucinta aquilo que as testemunhas disseram e fundamenta o mesmo em 35 linhas, que mais não são do que um resumo dos depoimentos.

21 – Não se pode, assim, considerar que tenha sido dado cumprimento à exigência legal de fundamentação constante do art.º 374 n.º 2 do CPP; a fundamentação deverá ser uma súmula das razões da convicção do tribunal, através do exame crítico das provas que serviram para formar essa convicção.

22 – Não só da falta de fundamentação a recorrente não consegue depreender os motivos da sua condenação, como não consegue depreender por que factos concretos foi condenada.

23 – Aquando do enquadramento jurídico a douta sentença distingue três momentos:

- O primeiro, no qual diz que os arguidos agiram dentro do poder-dever de educar;

- O segundo, que considera estar no limite e que, isolados, se encontrariam dentro do exercício do poder educacional:

- Um terceiro, que não vem identificado, podendo-se depreender (e tão somente depreender) que serão os restantes.

24 – A arguida foi condenada pelo crime de violência doméstica pelos factos ocorridos a partir de setembro de 2010? Por todos os factos da acusação? Ou por uma conjugação de factos abstratos?

25 – Se, pelo enunciado dos factos provados, a acusação dos arguidos foi constante, a partir de que momento é que passaram a agir com dolo?

26 – A que título é que foi condenada? Como co-autora ou como cúmplice?

27 – Pela medida da pena depreende a arguida que foi condenada como co-autora material do crime, mas o mesmo não decorre do texto da douta sentença, onde se diz que “os arguidos agiram em execução de um plano arquitetado pelo arguido A. e a que a arguida aderiu”; ora, salvo melhor opinião, esta é a definição de cumplicidade, não de co-autoria.

28 – É entendimento da recorrente que o título a que esta é condenada não deve nem pode limitar-se a ser depreendido, este tem de estar expressamente escrito na sentença e não pode estar em contradição com a fundamentação da mesma.

29 – Estamos, assim, perante uma sentença manifestamente infundada, não só porque não esclarece o raciocínio lógico com que formou a convicção, mas porque não concretiza os factos pelos quais a arguida foi condenada, não esclarece quais os comportamentos da arguida que são lícitos e os que são ilícitos e, por fim, condena a arguida como co-autora(?), quando do seu texto se depreende que esta, quanto muito, terá sido cúmplice.

30 – No que respeita à medida da pena, foi a arguida condenada na pena de 2 anos e dois meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob a condição de pagamento de 600,00 € no prazo de quatro meses à Fundação COI, fundamentando-se esta condição com a personalidade dos arguidos.

31 – No entanto, não se explica qual ou quais os aspetos ou características da personalidade da arguida que levaram o tribunal a julgar razoável e proporcional a aplicação da condição supra mencionada.

32 – Relativamente ao pedido de indemnização civil, foi ainda a arguida condenada, solidariamente, a pagar os serviços do Centro Hospitalar de Setúbal, nos termos do art.º 495 n.ºs 1 e 2 do Código Civil.

33 – Diz-nos a lei que quem causa a lesão é responsável pelo pagamento do tratamento e assistência às vítimas.

34 – Ficou demonstrado que o internamento do menor ficou-se a dever, não às lesões que este pudesse ter, mas sim ao facto de não haver vaga na instituição para onde este iria, o que por si torna impossível enquadrar estas despesas hospitalares no âmbito do artigo mencionado.

35 – Acresce que decorre da sentença que a condenação se baseará nos factos ocorridos após setembro de 2010, por os anteriores se enquadrarem dentro dos poderes-deveres de educação arguida, mãe do menor, quando os factos que deram origem à emissão da fatura em causa são datados de 31.05.2010, ou seja, em data anterior, pelo que não pode a arguida ser condenada no âmbito do pedido cível em processo penal pelo pagamento da mesma.

36 – Deve dar-se provimento ao recurso e, consequentemente:

- ser a arguida absolvida do crime de violência doméstica;

- ser declarada nula a sentença, por violação do art.º 379 n.º 1 al.ª c) do CPP;

- ou, caso assim não se entenda, ser a arguida considerada cúmplice e a pena especialmente atenuada;

- ser a condição da suspensão da pena considerada nula, por falta de fundamentação;

- ser a arguida absolvida do pedido de indemnização civil.
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2.2. O arguido A. (fol.ªs 420 a 424):

1 – O arguido vinha acusado da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152 do CP, ou seja – tal como constava da acusação - pela prática de maus tratos físicos infligidos pelo menos sete vezes.

2 – O tribunal a quo vem dar como provado apenas um – em 26 de maio de 2010 – com fundamento no depoimento da co-arguida e prova documental junta aos autos.

3 - O co-arguido teve intervenção neste episódio: agarrou, pressionando, o ofendido pelo braço, o que lhe deixou uma marca visível.

4 - A conduta do co-arguido foi motivada pelo facto do ofendido nesse dia lhe ter retirado o cartão de crédito, utilizando-o para aceder a sites pornográficos, onde assistiu a práticas sexuais em direto.

5 – Tal conduta consubstanciou apenas um ato de repreensão do ofendido, o qual terá, certamente, ocorrido juntamente com a natural chamada de atenção, elucidando o ofendido para o desvalor da sua conduta.

6 – Não teve nunca qualquer intenção de ofender o menor no seu corpo ou saúde.

7 – A conduta do arguido integra os poderes-deveres atribuídos por lei no âmbito do regular exercício das responsabilidades parentais.

8 – O co-arguido pretendeu apenas exercer esses poderes-deveres, pelo que não agiu com dolo, agiu com mero intuito de educar, de contribuir para que o menor adquirisse as competências para que, mais tarde, pudesse desenvolver a sua vida, não praticou qualquer crime de violência doméstica, não infligiu ao menor maus tratos físicos, psicológicos ou qualquer outro tipo de mau trato.

9 – O co-arguido e ofendido residiram pacificamente durante quatro anos, o ofendido nunca reconheceu autoridade ao arguido, sempre reagiu de forma rebelde e intransigente, tendo começado a adotar um comportamento com indícios de pré-delinquência, propositadamente.

10 – O ofendido, não logrando nos resultados desejados – afastar o arguido da sua mãe – retirou várias quantias de dinheiro ao recorrente e também utilizou durante diversas vezes o cartão de crédito do recorrente, até que, no dia 26.05.2010, o utilizou em sites pornográficos.

11 – Foi a atitude do ofendido que deu causa à factualidade do dia 26.05.2010.

12 – No crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152 do CP, a ação típica tanto se pode revestir de maus tratos físicos, como sejam as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, nomeadamente, humilhações, provocações, molestações, ou outros maus tratos, como sejam as ofensas sexuais e as privações de liberdade, d3esde que os mesmos correspondam a atos, isolada ou reiteradamente praticados, reveladores de um tratamento insensível ou degradante da condição humana da sua vítima, o que não se verificou no caso concreto.

13 – O recorrente não preenche, nem objetiva nem subjetivamente, o tipo legal incriminador, pautando a sua atitude em conformidade com os seus poderes-deveres de educador.

14 – Acresce que decorre da sentença que a condenação se baseará nos factos ocorridos após setembro de 2010, uma vez que os factos anteriores se enquadram dentro dos poderes-dever de educação.

15 – A douta sentença procede à motivação da matéria de facto elencando de forma sucinta os depoimentos das várias testemunhas, a única diferença relativamente á sentença originária são dois parágrafos, na página 19, cujo conteúdo, salvo o devido respeito, não é suficiente para fundamentar a sentença - isto porque a fundamentação não se deve resumir a uma súmula da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, existindo o dever de identificar as razões da convicção do tribunal, por via de um exame crítico das provas.

16 – Ficou provado que o menor só ficou internado no hospital por se recusar a ir para casa e não haver vaga na instituição COI, e não devido a qualquer tipo de lesões sofridas.

17 – Assim, quanto ao pedido de indemnização cível, foi ainda o arguido condenado, solidariamente, a pagar os serviços do Centro hospitalar de Setúbal, nos termos do art.º 495 n.ºs 1 e 2 do CC.

18 – Diz-nos a lei que quem causa a lesão é responsável pelo pagamento do tratamento e assistência às vítimas; ficou demonstrado que o internamento do menor ficou a dever-se, não às lesões de que pudesse ter padecido, mas sim ao facto de não haver vaga na instituição para onde este iria, o que por si só torna impossível enquadrar estas despesas hospitalares no âmbito do artigo mencionado.

19 – Acresce que decorre da sentença que a condenação se baseará nos factos ocorridos após Setembro de 2010, por os anteriores se enquadrarem dentro dos poderes-dever de educação, quando os factos que deram origem à emissão da fatura em causa são datados de 31 de maio de 2010, ou seja, em data anterior, pelo que não pode o arguido ser condenado no âmbito do pedido cível em processo penal perlo pagamento da mesma.

20 – Deve revogar-se a sentença recorrida e substituir-se por outra que absolva o arguido.

3. Respondeu o Ministério Público aos recursos interpostos, concluindo a sua resposta nos seguintes termos:

3.1. Quanto ao recurso interposto pela arguida

1 – Não existe nenhuma insuficiência de prova, podendo, quando muito, falar-se em omissão de pronúncia quanto a alguns factos invocados pela recorrente, no entanto, os factos que a recorrente pretende ver aditados à matéria de facto provada são irrelevantes, porquanto nunca poderiam constituir uma justificação para a conduta pela qual veio a ser condenada.

2 – Embora apenas se tenha conseguido fixar a data de uma das agressões ao menor, ficou delimitado o período temporal em que se verificaram agressões que puderam ser concretamente situadas no tempo.

3 – Embora a apreciação da prova feita na sentença seja sintética, dela constam as razões que levaram à formação da convicção a que se chegou, não se tendo dado credibilidade á versão do recorrente por ser parcialmente contrariada pelas declarações da co-arguida, totalmente antagónicas às declarações da vítima, às quais foi dadas credibilidade e que encontram apoio nos outros depoimentos e prova documental.

4 – A sentença é muito clara ao referir que a recorrente foi condenada pelos factos descritos nos pontos 2.1.13 a 2.1.35 da matéria de facto dada como provada.

5 – Não se coloca também nenhuma dúvida quanto aos factos descritos nos pontos 2.1.13 a 2.1.29, já que o que se diz é tais factos, teórica e isoladamente considerados, poderiam ainda ser justificados pelo comportamento do menor, mas que esse não é o caso dos autos.

6 – Por fim, quanto à medida da pena, esta foi fixada apenas em dois meses acima do seu limite mínimo e a personalidade da recorrente não foi o único fato ponderado.

7 – Seja como for, resulta claro da sentença que se entendeu que essa personalidade é de molde a tê-la feito desconsiderar a dignidade do menor enquanto pessoa humana, pelo que deve negar-se provimento ao recurso.

3.2. Quanto ao recurso interposto pelo arguido

1 – Embora o recorrente aponte à sentença o vício de erro notório na apreciação da prova, insuficiência para a decisão da matéria de facto e contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação da decisão, fá-lo de um modo indistinto e confuso, que baralha também com alegada falta de fundamentação.

2 – Quanto ao erro notório na apreciação da prova, embora seja isso o invocado pelo recorrente, a verdade é que o mesmo não cumpriu o disposto no art.º 412 n.º 3 do CPP e ataca a convicção formada na sentença recorrida.

3 – O recorrente pretende fazer valer a sal versão dos factos, diametralmente oposta à que foi relatada pela vítima e em parte contrariada pela co-arguida, sem nunca invocar nenhum elemento de prova que, por si só, imponha decisão diversa da que foi tomada.

4 – Quanto à alegada contradição entre os pontos 2.1.8 e 2.115 da matéria de facto provada, claramente demonstrada a sua inexistência, se tivermos em conta que os factos em causa se reportam a períodos temporais distintos, o que resulta claramente do ponto 2.1.10.

5 – Não se verifica qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto, porquanto foi produzida prova quanto a toda a matéria constante dessa mesma decisão.

6 – Embora a apreciação da prova feita na sentença seja sintética, dela constam as razões que levaram à formação da convicção a que se chegou, não se tendo dado credibilidade à versão do recorrente por ser parcialmente contrariada pelas declarações da co-arguida, totalmente antagónica às declarações da vítima, ás quais foi dada credibilidade e que encontram apoio nos outros depoimentos e prova documental.

7 – A sentença é muito clara ao referir que o recorrente foi condenado pelos factos descritos nos pontos 2.1.13 a 2.1.35 da matéria de facto provada.

8 - Não se coloca também nenhuma dúvida quanto aos factos descritos nos pontos 2.1.13 a 2.1.29, já que o que se diz é tais factos, teórica e isoladamente considerados, poderiam ainda ser justificados pelo comportamento do menor, mas que esse não é o caso dos autos.

9 – Por fim, quanto à medida da pena, esta foi fixada apenas em dois meses acima do seu limite mínimo e a personalidade da recorrente não foi o único fato ponderado.

10 – Seja como for, resulta claro da sentença que se entendeu que essa personalidade é de molde a tê-la feito desconsiderar a dignidade do menor enquanto pessoa humana, pelo que deve negar-se provimento ao recurso.

4. Nesta instância o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência dos recursos (ambos os recursos) – fol.ªs 448 a 451.

5. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos legais, cumpre decidir, em conferência (art.º 419 n.º 3 al.ª c) do CPP).

6. Foram dados como provados na decisão recorrida os seguintes factos:

«2.1.1. C, nascido em 30.4.1997, é filho de B e de C.

2.1.2. O menor foi confiado à guarda e cuidados da arguida, sua mãe, por sentença de 5.5.2001.

2.1.3. Os arguidos, A. e B, iniciaram vida em comum como se de marido e mulher se tratassem no ano de 2006, passando a residir na Rua..., no Pinhal Novo.

2.1.4. Com o casal residia também o C.

2.1.5. No rés-do-chão esquerdo do mesmo edifício reside a mãe da arguida B e avó do C, de nome MC.

2.1.6. Passados alguns meses de vida em comum, o arguido A, por entender que o C não se alimentava corretamente nem cumpria com as regras de educação e de estudo que considerava corretas, resolveu impor-lhe novas regras, ao que a criança, não lhe reconhecendo autoridade para o efeito, se revoltou contra o mesmo, tornando, evidentemente, mais difícil o seu cumprimento.

2.1.7. Deste modo, o arguido resolveu que, ao pequeno-almoço, o C apenas podia comer cereais com leite, escolhendo cereais que contivessem maiores quantidades de fibras.

2.1.8. Também nas demais refeições o arguido passou a obrigar o C a comer saladas e outros vegetais, controlando a criança para que esta efetuasse uma alimentação equilibrada, comportamento que o C não aceitou de bom grado.

2.1.9. Logo o arguido começou também a controlar as atividades escolares do C, impondo-lhe horário de estudo obrigatório e proibindo-o de ver televisão nesses períodos.

2.1.10 No entanto, tais imposições efetuadas não surtiram bom resultado, já que o menor tentava arranjar forma de escapar aos ditos controlos, desobedecendo com frequência.

2.1.11. Entendeu então o arguido justificada outra atuação, começando a desferir castigos físicos ao C.

2.1.12. Nos anos de 2007 e de 2008 fê-lo ocasionalmente.

2.1.13. No entanto, esta conduta, a que a arguida e mãe do menor foi prestando a sua conivência e também colaboração, começou a tomar proporções distintas, frequentes, a partir do ano de 2009, deixando marcas no corpo do C.

2.1.14. Como mencionado, entendeu o arguido tomar a seu cargo a educação do C, filho da sua companheira, ao que esta anuiu.

2.1.15. Para o efeito, impôs-lhe regras, cortes na alimentação, horários e castigos.

2.1.16. Se num primeiro período se limitavam a negação de brincadeiras como andar a brincar na rua ou ver televisão, passaram, nomeadamente a partir do ano de 2009, a envolver castigos físicos, privações de liberdade e isolamento.

2.1.17. Assim, e a partir desta data, com frequência, e sempre que o C não tinha a nota esperada num teste que efetuava na escola, o arguido dava-lhe chapadas, empurrões, batia-lhe em diversas partes do corpo com as mãos ou com pontapés e utilizando ainda nalgumas ocasiões uma colher de pau.

2.1.18. Também o proibia de sair, de trazer colegas para dentro de casa e de contactar com a avó MC, que mora no rés-do-chão e com quem o C conseguia comunicar enviando bilhetes que atirava pela janela do primeiro andar ou que fazia descer por um fio e agarrados a uma mola.

2.1.19. A todos estes factos assistia, impávida, a arguida B, que não só assentia como prestava colaboração a toda esta atividade, batendo também no seu filho e utilizando para o efeito uma colher de pau.

2.1.20. No dia 26 de maio de 2010, depois de o C ter estado ao computador, na internet, tendo utilizado para o efeito um cartão visa, não tendo por isso feito os trabalhos de casa, os dois arguidos zangaram-se com ele, tendo-lhe a arguida lhe batido com uma colher de pau no rabo e o arguido agarrado violentamente pelos braços e desferido um par de bofetadas.

2.1.21. Todos estes castigos corporais eram acompanhados de várias outras privações.

2.1.22. Sempre que o repreendia o arguido obrigava o C a ficar de castigo no seu quarto, por vezes durante todo o dia, e dando-lhe apenas para comer uma sanduíche. Proibia-o de ver televisão e de quaisquer outras atividades ou jogos.

2.1.23. Em consequência desta atuação do arguido o C começou a demonstrar nervosismo sempre que tinha de ir para casa.

2.1.24. Na escola que frequentava, Escola Preparatória do Pinhal Novo, os professores evitavam o envio de quaisquer recados para casa dos arguidos pelo medo que o C evidenciava e depois de verificaram, em várias ocasiões, que a criança apresentava nódoas negras ou contava castigos a que era sujeito, por vezes mesmo ao apresentar em casa um teste com uma nota de “Bom”.

2.1.25. Numa ocasião refugiou-se em casa de um amigo, pedindo à mãe do mesmo para chamar a GNR, que não queria ir para casa.

2.1.26. No dia 31.5.2010, depois do ocorrido em 20, o C foi para a escola e contou o sucedido. Deste estabelecimento foi encaminhado para o Centro de Saúde e daqui para o Centro Hospitalar de Setúbal, onde foi examinado e internado, recebendo alta no dia 8.6.2010.

2.1.27. Na ocasião o C apresentava as seguintes lesões físicas: equimose com cerca de 3 cm de diâmetro, com hematomas a nível do antebraço esquerdo e no braço direito com cerca de 1 cm, lesão circular ao nível da nádega esquerda de contorno eritematoso e aulo central mais claro com cerca de 5 cm de diâmetro. Na nádega direita apresentava várias lesões verticais e lineares paralelas e eritematosas. Tais lesões determinaram para se curar um período de 15 dias de doença.

2.1.28. Foi submetido a tratamento psicológico.

2.1.29. No dia 8.6.2010 o C recolheu a uma instituição, Fundação COI, onde esteve cerca de um mês.

2.1.30. A partir do mês de setembro de 2010, e com o reinício do ano escolar, os arguidos decidiram colocar o C em total isolamento, no interior da sua residência.

2.1.31. Apenas lhe concediam autorização para sair do seu quarto para ir à escola, para ir à casa de banho e à cozinha buscar a sua alimentação.

2.1.32. Obrigavam-no a permanecer sempre no seu quarto, onde também passou a tomar as refeições sozinho.

2.1.33. Ali permanecia sem televisão ou qualquer distração.

2.1.34. Sem qualquer acesso ao mundo exterior, nomeadamente, através do telefone ou da internet.

2.1.35. Toda a factualidade supra descrita determinou a que no dia 15.12.2010, no âmbito do Processo ---/10.0TMSTB, do 1.º Juízo do Tribunal de Família e Menores de Setúbal, fosse decretada a aplicação ao menor C medida de proteção e promoção de direito de acolhimento institucional, sendo novamente acolhido na instituição Fundação COI.

2.1.36. Os arguidos, que agiram em execução de plano arquitetado pelo arguido A e a que a arguida B aderiu, pretenderam, com a supra descrita atuação, infligir ao menor C lesões no seu corpo e na sua saúde, incluindo castigos corporais, humilhações e ofensas contra a sua honra e dignidade, privações de liberdade, atuações que sabiam ser cruéis, sobretudo se praticadas contra um menor e na sua própria casa, por aqueles que estavam incumbidos de garantir a sua segurança e o seu bem-estar.

2.1.37. Conhecedores da ilicitude das suas reiteradas condutas, agiram sempre de modo livre, deliberado e consciente.

2.1.38. Devido ao facto referido em 20, o C foi assistido nos serviços do Centro Hospitalar de Setúbal, EPE.

2.1.39. Os serviços médicos hospitalares aí prestados foram no montante de €978,87, o qual ainda não se encontra liquidado.

2.1.40. O arguido é solteiro e tem uma filha da arguida, com quem vive.

2.1.41. É engenheiro químico, auferindo mensalmente a quantia de €1.800.

2.1.42. Mora em casa arrendada, pagando €575 de renda mensal.

2.1.43. Tem como habilitações literárias o bacharelato.

2.1.44. Anda com um veículo da empresa onde trabalha.

2.1.45. A arguida é solteira, tem três filhos e mora com o arguido.

2.1.46. É empregada de limpeza, auferindo mensalmente a quantia de €463.

2.1.47. Não tem carro nem mota.

2.1.48. Tem o 6.º ano de escolaridade.

2.1.49. Nenhum dos arguidos tem processos pendentes nem antecedentes criminais».

7. E foi considerado não provado:

- Que o arguido não deixasse o C comer pão ou outros alimentos;

- Que o arguido proibisse o C de jogar jogos de consola;

- Que, antes de 2009, o arguido proibisse o C de estar com amigos;

- Que o arguido chamasse o C de “palhaço” ou “mentiroso”;

- Que o C dissesse a várias pessoas que se tivesse de voltar para casa que se atirava da janela abaixo e que se matava;

- Que, no dia 18.3.2010, o arguido bateu no C, dando-lhe chapadas apenas porque descobriu que este tinha o fecho da mochila estragado;

- Que, no dia 23.3.2010, o arguido bateu-lhe com uma colher de pau no rabo, mandando-o despir as calças para o efeito;

- Que, no dia 13.4.2010, porque o C tivesse recebido a visita do seu irmão e tivesse visto televisão com o mesmo, o arguido, quando chegou a casa, e descobrindo este facto, deu-lhe várias chapadas e bateu-lhe, outra vez, com a colher de pau;

- Que, nos dias 16.5.2010 e 17.5.2010, o arguido voltou a bater ao C: deu-lhe estalos na cara e um soco, bateu-lhe com a colher de pau no rabo;

- Que, no dia 31.5.2010, o arguido desferiu várias pancadas com a colher de pau no rabo do C e cuspiu-lhe na cara;

- Que, após setembro de 2010, o arguido continuou a bater no C e quando o fazia ia falando muito alto, ao mesmo tempo, aos gritos na sua direção, dizendo-lhe o que este fez ou o que não fez e porque deveria fazer de um modo diferente, deixando o C apavorado, provocando-lhe medo constante, pânico;

- Que as marcas apresentadas pelo C se devessem à prática de Karaté.

8. O tribunal formou a sua convicção – escreve-se na fundamentação – “na análise crítica de todos os meios de prova produzidos ou analisados em audiência de julgamento, os quais, apreciados de acordo com as regras da experiência e o normal suceder das coisas, foram suficientes para, para além da dúvida razoável, dar por assente os factos, nomeadamente:

- Nas declarações prestadas pelos arguidos que, no que respeita à sua condição económica, familiar e social, depuseram de forma clara e objectiva.

Já no que concerne à prática dos factos de que vinha acusado, o arguido A negou os mesmos.

Assim, o arguido referiu que quando começou a morar com a arguida e o C, este não tinha bons hábitos alimentares, nem tão pouco hábitos de estudo, ou regras.

Por esse motivo, e no que concerne à alimentação, e como o C tinha “prisão de ventre”, ele e a arguida entenderam que o mesmo deveria comer ao pequeno almoço cereais (sendo que lá em casa haviam cereais de quatro espécies) ricos em fibra e fruta, e que ao almoço e ao jantar deveria comer também saladas e vegetais. No entanto, e segundo referiu o menor também podia comer outros tipos de alimentos se assim o desejasse, designadamente sandes.

No que concerne aos estudos referiu que passaram a obrigar o C a fazer logo os trabalhos de casa e a não deixar os mesmos para o fim do dia, sendo que para além disso ele também estudava com o menor, sendo que nunca o colocou de castigo por ele ter negativas. Quanto a esta matéria esclareceu que o C só podia ver televisão depois de estudar e de fazer os trabalhos, sendo que ele nunca o proibiu de jogar consola, uma vez que o mesmo não tinha nenhuma dado que ele e a arguida valorizavam outro tipo de actividades, podendo o menor jogar a tais jogos quando ia a casa dos amigos.

Afirmou que de início o C era educado e obediente, no entanto a partir de determinada altura passou a ser desobediente, a mentir e a tirar dinheiro, pensando ele que o menor era instigado pela avó materna, motivo porque proibiu este de a ver. Esclareceu também que só a partir dessa altura é que começou a castigar o C, sendo que ao princípio era ocasionalmente e depois com mais frequência, consistindo os castigos em não o deixar ver televisão e em aumentar as horas de estudo, admitindo também lhe ter dado uma vez um par de bofetadas.

O arguido admitiu que uma vez se zangou com o C porque este tinha o fecho da mochila estragado, mas negou ter-lhe batido por esse motivo.

Também negou ter-se zangado com o C devido ao facto de o irmão deste o ter ido visitar, afirmando que nunca proibiu a presença deste lá em casa, ao invés sempre estimulou a presença do mesmo.

Para além disso, referiu que no dia 26 de Maio de 2010 foi a casa na hora do almoço, tendo deparado com o C ao computador na internet, sendo que o menor não estava autorizado a tal sem ser com a supervisão de um adulto. Disse também que nesse mesmo dia quando chegou a casa ao fim do dia o C ainda não tinha feito os trabalhos de casa e, tendo ele consultado o histórico do computador verificou que o mesmo tinha estado a ver páginas de pornografia tendo para o efeito usado um cartão visa, razão porque se zangou com ele tendo-lhe desferido um par de bofetadas. Esclareceu ainda que no dia 31 de maio ele estava no Algarve em trabalho.

Afirmou também que, a partir de Setembro de 2010, ele evitava cruzar-se com o C em casa, havendo um acordo tácito em que o menor sabia que não podia estar na mesma divisão do que ele, motivo porque quando ele estava em casa o menor passava a maior parte do tempo no quarto.

Por fim referiu que o C tinha brincadeiras muito violentas na escola, para além do que andava no Karaté, motivo porque tinha muitas nódoas negras.

Por sua vez, a arguida B admitiu parcialmente os factos.

Assim a arguida referiu que o filho mentia muito, era desobediente e tirava-lhes dinheiro, motivo porque o mesmo ficava de castigo não podendo ver televisão e era obrigado a estudar mais horas, para além do que ás vezes lhe batiam, até que chegou a uma altura em que já não sabiam o que fazer.

Referiu ainda que bateu duas vezes no filho com a colher de pau, tendo-o feito porque se lhe tivesse batido com a mão ele ria-se e ainda a provocava.

Esclareceu também que uns dias antes de 31 de maio de 2012, ela e o arguido zangaram-se com o filho por causa do computador tendo-lhe ela batido com a colher de pau e o arguido agarrado no braço do menor com força, tendo sido esse o motivo porque o menor foi hospitalizado no dia 31 de maio.

Por fim, afirmou que a partir de setembro de 2010 a situação já estava insustentável motivo porque puseram o C de castigo no quarto, sendo que ele só podia dali sair para ir à escola e para ir à casa de banho, situação que se prolongou até ao dia em que ele saiu de casa para a instituição.

Confrontada com os bilhetes constantes do processo e que teriam sido escritos pelo C referiu que a letra dos mesmos não é a do filho.

- No depoimento do menor, C, que, de forma que o tribunal considerou como genuína, objectiva e coerente, explicou o modo como era tratado pelos arguidos quando residia em casa destes, tendo referido de forma expressa que o arguido lhe batia frequentemente com chapadas, pontapés e também com a colher de pau, tendo-lhe inclusive cuspido na cara pelo menos uma vez.

Afirmou também que a mãe lhe ralhava e que quando lhe batia era com chapadas.

Esclareceu também que o arguido lhe batia mais do que a mãe, tendo-lhe esta batido cerca de duas vezes, uma delas por ele ter tirado dinheiro.

Assim, disse que uma vez o padrasto lhe bateu por causa de um estore, outras vezes batia-lhe porque ele não percebia a matéria quando estavam a estudar, ou porque só tinha Bom a matemática, e também porque ele se dava com a avó e o arguido não queria.

Contou também que o arguido o obrigava a estudar várias horas, em especial matemática.

Referiu que o arguido o punha de castigo e a sua mãe concordava, motivo porque passava a maior parte do tempo no quarto a estudar e sem ver televisão, e que por essa razão, e para se vingar começou a tirar dinheiro ao arguido e a mentir.

Esclareceu que no final já nem se podia cruzar com o arguido, só podendo sair do quarto para ir à casa de banho ou para ir à escola.

- No depoimento da avó do menor, MC, a qual referiu que deixou de ir a casa da filha um ano depois de os arguidos terem começado a viver juntos por causa do arguido, sendo que depois dessa altura apenas podia ver o neto às escondidas.

Afirmou também que nunca viu o arguido bater no neto, no entanto ouvia-o frequentemente a gritar com ele, e depois no dia seguinte via o C com marcas no corpo, sendo que este lhe contava o que se tinha passado e que o arguido lhe tinha batido.

Esclareceu também que, sem que ao arguido soubesse, o C atirava-lhe bilhetes para o quintal dela a pedir comida porque tinha fome, confirmando que os que constam do processo foram enviados pelo neto.

- No depoimento da testemunha D, directora de turma do Márcio de 2007 a 2009, a qual referiu que aquele não era uma criança comunicativa, e que muitas vezes estava apático, sonolento e com falta de concentração, sendo uma criança tensa e com dificuldade em interagir, o que pela sua experiencia tal significava que o mesmo não dormia o suficiente nem se alimentava convenientemente.

No entanto, ao fim de algum tempo começou a relatar alguns dos episódios que ocorriam lá em casa, motivo porque mandou chamar os encarregados de educação, sendo que no início compareciam os dois arguidos, mas ao fim de algum tempo passou a ir apenas a arguida.

Afirmou que de início pensava que as histórias que o C contava eram invenções do mesmo, mas ao fim de algum tempo passou a acreditar nas mesmas, sendo as queixas do menor mais frequentes em especial depois do fim-de-semana, e sempre relacionadas com os estudos.

Esclareceu também que o C ficava muito aflito cada vez que tinha que levar um recado para casa, razão porque ela e os seus colegas evitavam de o fazer.

Contou que numa vez viu o C com marcas no olho e no braço, motivo porque o mandou ao posto médico.

Por fim, confirmou o teor dos relatórios por si enviados e constantes dos autos.

- No depoimento da testemunha MM, a qual nunca foi professora do C, mas na data dos factos era presidente do Conselho Executivo, sendo que no exercício das suas funções recebia as informações prestadas pelas directoras de turma do menor e depois encaminhava as mesmas para a protecção de menores. O mesmo se passando com os relatos que lhe foram transmitidos pela avó do menor. Por fim relatou que em data que não consegue precisar pediu a um professor para analisar se o C tinha ou não marcas de agressões, sendo que depois o mesmo foi encaminhado para o centro de saúde.

- No depoimento da testemunha MF, interlocutora da CPCJP de Palmela, a qual referiu que tomou conhecimento da situação em 2009/2010, sendo que sendo que no exercício das suas funções remetia os relatórios recebidos e que continham as informações das directoras de turma para a comissão. Para além disso ia falar com aquelas, tendo-se apercebido que as queixas eram mais frequentes depois dos fins-de-semana, e posteriormente falava com o C para saber se tais queixas correspondiam ou não à verdade, o que ele confirmava. Esclareceu que de inicio duvidava das queixas apresentadas, mas quando começaram a ficar mais persistentes começou a acreditar no mesmo, até porque chegou a ver marcas de agressões. Afirmou que o menor estava em sofrimento, preferindo estar na escola em vez de estar em casa, sendo que tal não é normal.

- No depoimento da testemunha ML, directora de turma do C do 7.º ano, a qual referiu que o C se queixava que o padrasto lhe batia, sendo que no final do ano o menor também já se queixava que a mãe também lhe fazia o mesmo.

Afirmou que o C era uma criança triste, apavorada com as notas, em especial a Matemática.

Esclareceu que o C se queixava que se não tivesse boas notas os arguidos lhe batiam, sendo que as queixas eram maiores depois dos fins-de-semana, sendo que ela sempre acreditou nos relatos feitos por ele, até porque uma vez viu marcas num braço.

Assim, e com base nas queixas feitas pelo menor ela elaborava os respectivos relatórios que entregava à presidente do Conselho Executivo, ou quando não tinha tempo mandava o C falar com a professora MF.

Por fim referiu que na altura o C não tinha qualquer negativa, sendo que actualmente isso já não acontece desde que o mesmo foi para a instituição, tendo havido algum desleixo nos estudos.

- No depoimento da testemunha MH, mãe de um colega do C, a qual referiu que este frequentava a casa dela, indo lá todos os dias antes e depois da escola, no entanto o filho dela não ia a casa dele.

Referiu que o achava uma criança triste, sendo que ao fim de algum tempo o C lhe começou a contar o que se passava lá em casa e que os arguidos lhe batiam, em especial por causa das notas, sendo que uma vez viu-o com marcas na cara.

Contou também que uma vez o C fugiu de casa e foi para casa dela e queria lá passar a noite, sendo que quando se apercebeu que ela ia telefonar para a sua mãe, pediu para chamarem a GNR, tendo ela depois ido falar com a avó dele, sendo que quando regressou a casa já lá estava a arguida para o ir buscar e que lhe disse que o C se portava mal e que tirava dinheiro em casa.

- No depoimento da testemunha AS, pai de um colega do C, o qual referiu que uma vez o C fugiu de casa e foi para casa deles e queria lá passar a noite, sendo que quando se apercebeu que eles iam telefonar para a sua mãe, pediu para chamarem a GNR, tendo a sua mulher depois ido falar com a avó dele, sendo que depois chegou a arguida para o ir buscar e que lhe disse que o C se portava mal e que tirava dinheiro em casa.

- No depoimento da testemunha JM, professor pertencente à direcção da escola, o qual referiu que numa ocasião a directora de turma dirigiu-se à direcção da escola para verem o C, tendo-o ele examinado e visto nódoas negras no corpo, sendo que quando falou com o menor este lhe contou o que se tinha passado, motivo porque depois foi encaminhado para o centro de saúde.

- No depoimento da testemunha EJ, mãe do arguido, a qual descreveu a sua relação e a do seu filho com o menor, referindo que todos gostavam dele e que o tratavam como sendo da família, sendo que o arguido sempre se preocupou com a saúde e a alimentação do enteado. Descreveu o menor como sendo uma criança alegre e brincalhona que nunca se queixava. Por fim referiu que nunca viu o filho bater no C, sabendo no entanto que numa ocasião o C ficou de castigo durante, pelo menos 15 dias, por ter tirado dinheiro aos arguidos.

- No depoimento da testemunha JC pai do cunhado do arguido, o qual passava ferias com os arguidos e o C, descrevendo o menor como uma criança meiga, simpática e carinhosa. Para além disso referiu que das vezes que foi a casa dos arguidos o C não estava lá.

- No depoimento da testemunha N, dono de um restaurante no Algarve, e que referiu que nas férias os arguidos iam lá muitas vezes com o C, descrevendo o menor como sendo uma criança alegre e divertida.

- No depoimento da testemunha ME, colega da arguida, e que referiu que a arguida lhe relatava as coisas que o C fazia, andando preocupada com o mesmo, tendo-lhe dito que já lhe tinha batido e posto de castigo. Para além disso referiu que a arguida é uma pessoa calma.

- No depoimento da testemunha OC, médica pedopsiquiátrica, a qual acompanhou o C, referindo claramente que o mesmo apresentava sempre uma versão coerente dos factos, motivo porque ela deu credibilidade aos mesmos. Para além disso explicou o porque de o menor não ter qualquer dificuldade em verbalizar as situações ocorridas em casa com variadas pessoas.

- Assento de Nascimento de fls. 21.

- Relatório Pedopsiquiátrico – fls. 433 e seguintes.

- Ficha clínica – fls. 444 a 494.

- Auto de Exame médico – fls. 531 a 533.

- Certidão de fls. 502 a 524.

- Na factura de fls.569.

- Nos certificados de registo criminal juntos aos autos no que concerne aos antecedentes criminais dos arguidos.

Assim, face à prova produzida, não teve o tribunal quaisquer dúvidas em dar como provados os factos supra referidos.

Antes de mais o arguido admitiu que impôs determinadas regras ao C no que diz respeito ao estudo e à alimentação. Para além disso admitiu que a partir de determinada altura passou a castigar o C pondo-o de castigo, tendo-lhe dado uma vez um par de bofetadas. Quanto às declarações do arguido em que o mesmo refere aos factos referidos em 30 a 34 não pode o tribunal valorar as mesmas uma vez que as mesmas não fazem qualquer sentido, ou seja, como é que uma criança de 13 anos sabe que não pode sair do quarto nem se cruzar com o arguido a menos que este lho dissesse, e neste caso concreto se não o tivesse posto de castigo.

Por sua vez a arguida admitiu praticamente os factos todos, referindo no entanto que os mesmos se deveram à circunstância de o C desobedecer, mentir e tirar dinheiro de casa.

Assim, a arguida admitiu que se zangou com o filho e lhe bateu com a colher de pau,para além de que o punham de castigo, sendo que a partir de setembro de 2010 o mesmo estava proibido de sair do quarto, só o podendo fazer para ir à escola ou á casa de banho.

Por outro lado temos a versão do C, que prestou o seu depoimento de forma bastante credível e convincente, o qual referiu que os arguidos lhe batiam, sendo que o arguido o fazia mais frequentemente especificando algumas dessas situações.

Para além disso, se é verdade que nenhuma das testemunhas inquiridas viu os arguidos baterem no menor, também é verdade que as mesmas viram marcas dessas mesmas agressões.

Aliás, foi dito pela avó do menor, de forma bastante clara e convicta, que ouvia frequentemente as discussões em casa dos arguidos, sendo que no dia seguinte o C tinha marcas no corpo.

O que também foi confirmado pelo depoimento dos professores ouvidos, os quais relataram terem visto marcas no corpo do C.

Por outro lado é também de realçar que quer os professores do menor, e em especial a pedopsiquiatra que o acompanhou, revelam que os factos relatados pelo C não são uma invenção do mesmo, tendo todos eles acreditado na veracidade dos mesmos.

Logo, e ao contrário do alegado pelos arguidos que as marcas apresentadas pelo C se deviam ás brincadeiras violentas tidas na escola e porque o mesmo andava no Karaté, não pode o tribunal acreditar em tal versão uma vez que a mesma não tem qualquer lógica, e por isso tal justificação não mereceu qualquer crédito por parte do tribunal.

O tribunal considerou como não provados os factos supra referidos, porquanto não foi produzida prova cabalmente esclarecedora e susceptível de, nesse sentido, garantir um juízo de certeza quanto à sua verificação”.

9. É sabido que as conclusões do recurso delimitam o âmbito do conhecimento do mesmo e destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as pessoais razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida (art.ºs 402, 403 e 412 n.º 1, todos do Código de Processo Penal, e, a título de exemplo, o acórdão do STJ de 19.06.96, in BMJ, 458, 98).

Elas devem conter, por isso, um resumo claro e preciso das questões que o recorrente pretende ver submetidas à apreciação do tribunal superior, sem perder de vista a natureza do recurso, que não se destina a um novo julgamento, mas a uma reapreciação da decisão recorrida por forma a corrigir os vícios ou erros de que a mesma enferme.

Feitas estas considerações, e tendo em conta as conclusões da motivação dos recursos apresentados pelos arguidos (acima descritas), delas se extraem as seguintes questões colocadas à apreciação deste tribunal:

A – A arguida

1.ª – A nulidade da sentença (art.º 379 n.º 1 al.ª c) e 374 n.º 2, ambos do CPP), por omissão de pronúncia, falta de exame crítico das provas (no que respeita à fundamentação da matéria de facto) e por falta de fundamentação relativamente à matéria de direito;

2.ª – Se a arguida, em face da matéria de facto dada como provada, não podia ser condenada no pedido de indemnização civil, por falta de nexo de causalidade entre a sua conduta (ilícita) e as lesões que motivaram os serviços que o demandante prestou ao menor.

B – O arguido: se, em face da factualidade dada como provada, se pode concluir que o arguido não praticou o crime de violência doméstica pelo qual foi condenado.

A – Recurso interposto pela arguida

1.ª questão

A arguida vem invocar a nulidade da sentença, em síntese:

- porque não teve em consideração “várias questões relevantes” relativas a comportamentos desviantes do menor que foram levantadas em audiência de discussão e julgamento, não elenca os factos concretos pelos quais foi condenada (não permitindo perceber quais os factos pelos quais foi condenada nem a que título) e não permite perceber os aspetos ou caraterísticas da personalidade da arguida que levaram o tribunal a julgar razoável e proporcional a condição a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena;

- porque não procede a uma análise crítica dos depoimentos prestados.

Vejamos.
1) O objeto do processo/julgamento é definido – di-lo a arguida, e com razão – pelos factos constantes da acusação/pronúncia, pelos factos alegadas na contestação e pelos factos que resultarem da discussão da causa, desde que relevantes (art.º 368 n.º 2 do CPP).

Relativamente à factualidade resultante da discussão da causa – e é apenas relativamente a esta que a arguida vem invocar a omissão de pronúncia – não resulta demonstrado nos autos que tenham resultado da discussão da causa quaisquer factos relevantes para a decisão da causa sobre os quais o tribunal não se pronunciou e devesse pronunciar-se, sendo que é ao tribunal perante o qual a prova é produzida que cabe aferir da relevância (ou não relevância) dos factos que tenham resultado da discussão da causa; consequentemente, se o tribunal nada disse sobre tais factos (ou questões, como também lhe chama a recorrente) – é lícito concluir – é porque os não considerou relevantes, sendo certo que da sentença consta, a esse propósito, que “… a reação dos arguidos ao comportamento do menor ultrapassa os limites a qualquer correção e repreensão que pretendessem dar ao mesmo… ainda que os arguidos aleguem que tal se deveu ao comportamento do C, que com a sua conduta os procurava testar, tal devia-se precisamente aos castigos excessivos que os mesmos lhe aplicavam, sendo que é por demais evidente que estes eram exagerados…”.

Por outro lado, diga-se, não tendo tal questão sido suscitada em sede de julgamento – de modo que o tribunal da 1.ª instância pudesse apreciar tais factos e pronunciar-se expressamente sobre a sua relevância - não pode este tribunal sindicar, nessa parte, e agora, a decisão recorrida, por não se ter por demonstrada a relevância de quaisquer outros factos – para além dos dados como provados – que tenham resultado da discussão da causa.

A questão suscitada poderia configurar, quando muito, o vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão (art.º 410 n.º 2 al.ª a) do CPP), por o tribunal não ter averiguado tais factos (vício, aliás, de conhecimento oficioso); mas não, pois que, apreciada a decisão recorrida, na sua globalidade, conjugada com as regras da experiência comum – e este é um vício da decisão, que terá de resultar do texto da mesma, como expressamente se dispõe no n.º 2 do art.º 410 do CPP - dela resulta que a matéria de facto apurada é suficiente para a decisão, não resultando da mesma a existência de outros factos necessários para a decisão que o tribunal devesse averiguar e não averiguou (diga-se que relativamente ao episódio do dia 26.05.2010 o tribunal deu como provadas as razões próximas pelas quais os arguidos assim atuaram, concluindo, quando analisou tais factos, que a conduta do menor – alegada pelos arguidos – não é razão bastante para justificar os castigos infligidos, sendo por “demais evidente que estes eram exagerados” (sic), que “a reação dos arguidos ao comportamento do menor ultrapassa os limites de qualquer correção e repreensão que pretendessem dar ao mesmo…”, por outro lado, não resulta dos autos a existência de qualquer relação causa/efeito entre os alegados comportamento desviantes do menor e os castigos que lhe eram infligidos, pelo que, também por isso, de nenhum interesse se reveste o apuramento de tais comportamentos).

Por outro lado, e contrariamente ao alegado, a sentença elenca com clareza – sem margem para dúvidas - os factos pelos quais a arguida foi condenada (factos dados como provados nos pontos 2.1.13 a 2.1.35 da sentença recorrida), como bem consta a fol.ªs 19 da mesma: “… tudo conjugado, resulta da análise dos factos descritos em 2.1.13 a 2.1.35 que os mesmos só podem ser considerados como violência doméstica ao menor.

… para além das já referidas agressões físicas e psicológicas, também nada justifica colocar o menor de 13 anos, durante 3 meses e meio, trancado num quarto sem poder ver ninguém e sem ninguém falar com ele, sendo-lhe apenas permito ir à casa de banho e à escola”.

Não se vê, pois, onde está a dificuldade – da arguida - em “depreender porque factos concretos foi condenada”.

Acresce que da sentença consta, quanto a nós bem claro e suficientemente concretizado (pontos 2.1.17 e seguintes da matéria de facto dada como provada):

- o período temporal em que tais factos ocorreram e as razões porque ocorreram (a partir de 2009, com frequência, sempre que o menor não tinha a nota esperada) e em que consistiram (castigos físicos, privações de liberdade e isolamento), factos que assim constavam da acusação, da qual a arguida foi notificada, e sobre os quais a mesma pôde defender-se (e defendeu) nos termos que teve como pertinentes;

- as circunstâncias em que o menor foi colocado em isolamento (a partir do mês de setembro de 2010), ou seja, em que consistiu o isolamento em que o menor foi colocado;

- que a arguida, “não só assentia, como prestava colaboração a toda esta atividade” (antes descrita, praticada pelo arguido), “batendo também no seu filho e utilizando para o efeito uma colher de pau”, e que ambos “agiram em execução de plano arquitetado pelo arguido… e a que a arguida B aderiu, pretenderam com a sua supra descrita atuação, infligir ao menor C lesões no corpo e na sua saúde, incluindo castigos corporais, humilhações e ofensas contra a sua honra e dignidade, privações de liberdade, atuações que sabiam ser cruéis… por aqueles que estavam incumbidos de garantir a sua segurança e bem estar.

… Conhecedores da ilicitude das suas condutas reiteradas condutas, agiram sempre de modo livre, deliberado e consciente”.

Não se vê, consequentemente, onde está a dúvida quanto aos factos pelos quais a arguida foi condenada, quanto à intenção (dolo direto) – provada - com que atuou, em comunhão de esforços e intentos com o co-arguido, e a que título foi condenada (naturalmente, tratando-se de uma atuação conjunta, em comunhão de esforços e intenções, não podia deixar de ser condenada como co-autora, ex vi art.º 26 do CP).

Relativamente à personalidade da arguida – que o tribunal invocou para condicionar a suspensão da execução da pensa de prisão aplicada – da sentença recorrida bem se vêem as razões que justificaram a imposição da condição da suspensão da execução da pena, em síntese, porque estamos perante uma “personalidade totalmente desajustada às imposições sociais que espelham os mais elementares direitos da pessoa humana, o que impõe medidas rigorosas de reeducação” (afirmação que, enquadrada no concreto contexto em que é proferida, em face da factualidade dada como provada e das finalidades que se visam com a punição – aí descritas - bem deixa perceber, sem esforço de raciocínio, em que medida a personalidade da arguida, que se infere dos factos, relevou para a imposição da condição da suspensão da execução da pena, enquanto medida de reforço do conteúdo reeducativo e pedagógico que com a suspensão da execução da pena de prisão se visa alcançar).

Invoca ainda a recorrente a nulidade da sentença por falta de exame crítico das provas, que a sentença elenca de forma sucinta o que as testemunhas disseram, que mais não é do que “um resumo dos depoimentos prestados”.

Não se questiona que a fundamentação da convicção do tribunal não pode limitar-se a elencar as provas produzidas e a resumir os depoimentos prestados, pois que, além das provas em que se baseia para formar a sua convicção, o art.º 374 n.º 2 do CPP impõe ao tribunal uma exposição pormenorizada do raciocínio lógico dedutivo que seguiu para formar a sua convicção, de modo a que essa convicção se mostre racionalmente justificada, lógica e coerente – fazendo apelo às regras da experiência comum e aos critérios da normalidade – em face das provas que lhe servem de fundamento.

Ora, no caso em apreço, e contrariamente ao alegado pela arguida, não é verdade que o tribunal se limitou a elencar “de forma sucinta aquilo que as testemunhas disseram… em 35 linhas…”, não se percebendo sequer onde a recorrente baseia tal afirmação, que não se retira da fundamentação, por outro lado, para além de outros elementos de prova terem contribuído para a formação da convicção do tribunal (concretamente, os documentos e relatórios juntos aos autos, enumerados a fol.ªs 12 da decisão recorrida), o tribunal, analisando criticamente as provas que lhe permitiram formar a sua convicção, deixou bem claras as razões pelas quais tais provas o convenceram:

- porque “o arguido admitiu que impôs determinadas regras ao C… admitiu que a partir de determinada altura passou a castigar o C, pondo-o de castigo, tendo-lhe dado uma vez um par de bofetadas”, não fazendo qualquer sentido as suas declarações no que respeita aos factos referidos em 2.1.30 a 2.1.34; como se escreveu na fundamentação, “como é que uma criança de 13 anos sabe que não pode sair do quarto nem se cruzar com o arguido” se este não lho dissesse ou, no caso, “não o tivesse posto de castigo”?

- porque a arguida “admitiu praticamente os factos todos, referindo, no entanto, que os mesmos se deveram à circunstância de o C desobedecer, mentir e tirara dinheiro da casa… admitiu que se zangou com o filho e lhe bateu com a colher de pau, para além de que o punham de castigo, sendo que a partir de setembro de 2010 o mesmo estava proibido de sair do quarto, só o podendo fazer para ir à escola ou à casa de banho”;

- porque o menor “prestou o seu depoimento de forma bastante credível e convincente… referiu que os arguidos lhe batiam, sendo que o arguido o fazia mais frequentemente, especificando algumas dessas situações”;

- porque, apesar de nenhuma das testemunhas inquiridas os arguidos baterem no menor, “as mesmas viram marcas dessas agressões… foi dito pela avó do menor, de forma bastante clara e convicta, que ouvia frequentemente as discussões em casa dos arguidos, sendo que no dia seguinte o C tinha marcas no corpo, o que também foi confirmado pelo depoimento dos professores ouvidos, os quais relataram terem visto marcas no corpo do C”;

- porque os professores do menor, e em especial a pedopsiquiatra que o acompanhou, “revelam que os factos relatados pelo C não são uma invenção do mesmo, tendo todos eles acreditado na veracidade dos mesmos”;

- porque, não obstante o alegado pelos arguidos – “que as marcas apresentadas pelo C se deviam às brincadeiras violentas tidas na escola e porque o mesmo andava no karaté” - tal versão “não tem qualquer lógica”, não merecendo por isso qualquer crédito.

Ou seja, a análise (crítica) das provas, tal como se deixa sintetizada, permite perceber, sem margem para dúvidas – seja aos destinatários da decisão, seja ao cidadão comum, o homem médio suposto pela ordem jurídica, com uma experiência razoável de vida e das coisas – qual o raciocínio lógico dedutivo que o tribunal seguiu, na análise das provas, para formar a convicção que formou, ou seja, avaliar o porquê da decisão, em conformidade com o dever de fundamentação imposto pelo art.º 374 n.º 2 do CPP.

E não definindo a lei em que consiste esse exame crítico das provas, tem-se entendido que a exigência de tal exame, ou seja, até onde o tribunal há-de ir no aprofundar dessa análise, tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sem necessidade de ser exaustivo, bastando que permita perceber o porquê da decisão e, consequentemente, avaliar se o processo cognitivo que se seguiu respeitou os critérios legais de apreciação e valoração da prova, o que no caso permite, sem margem para dúvidas.

Improcede, por isso, a invocada nulidade da sentença recorrida.

2.ª questão

Alega a recorrente que ficou provado que “o menor só ficou internado no hospital por se recusar a ir para casa e não haver vaga na instituição COI…”, que o internamento não se ficou a dever às lesões sofridas, pelo que deve ser absolvida do pedido no que respeita às despesas hospitalares pedidas.

Ora, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização cível só é admissível (art.º 400 n.º 2 do CPP) desde que o valor do pedido seja superior ao valor da alçada do tribunal recorrido – que à data do pedido era de 5.000,00 €, ex vi art.º 24 da Lei 3/99, de 13 de Maio, na redação que lhe foi dada pelo art.º 5 do DL 303/2007, de 24.08, que entrou em vigor em 1.01.2008 – e, ao mesmo tempo, a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade dessa alçada.

No caso em apreço nem um nem outro daqueles pressupostos se verificam: nem o valor do pedido (que é de 978,87 €) é superior ao valor da alçada do tribunal recorrido nem a decisão foi desfavorável, para o recorrente, em valor superior a metade dessa alçada.

Consequentemente, a decisão recorrida, nesta parte, não é passível de recurso, razão pela qual não se conhece do mesmo.

B - Recurso interposto pelo arguido

Três notas prévias, antes de analisar a questão concretamente suscitada pelo recorrente:

1) Uma para dizer que o tribunal não tem que atender senão aos factos dados como provados, sendo irrelevante a factualidade agora alegada, em sede de motivação do recurso, para demonstrar a sua inocência.

2) Uma segunda para realçar que, contrariamente ao alegado, a fundamentação da sentença não se limitou a resumir, como parece pretender o recorrente, a prova produzida, fazendo a sua análise crítica em termos que bem permitem perceber as razões pelas quais o tribunal formou a sua convicção e a correção de raciocínio lógico dedutivo que lhe permitiu formar a convicção nos termos em que a formou, remetendo-se, nesta parte, para o que a este propósito se escreveu supra, quando se analisou a
1.ª questão suscitada pela arguida.

3) E uma outra, relativamente ao pedido cível, para dizer que valem aqui as considerações supra expostas, quando se apreciou tal questão e se decidiu não conhecer do recurso, nessa parte, por a decisão relativamente ao pedido cível não ser passível de recurso, decidindo-se – com base nos argumentos aí aduzidos, que aqui se reproduzem – não conhecer do recurso nessa parte.

Pretende o arguido que a sua conduta – provada – se circunscreve apenas ao episódio de 26.05.2010, conduta que “consubstanciou apenas um ato de repreensão do ofendido… integra os poderes/deveres atribuídos por lei no âmbito do regular exercício das responsabilidades parentais…”.

Não é assim.

De facto, a conduta do arguido dada como provada não se circunscreve a tal episódio, como bem se vê da sentença recorrida, o que equivale a dizer que o recorrente baseia a sua pretensão partindo de um pressuposto (que o tribunal deu como provada apenas uma agressão, em 26.05.2010) que não se verifica: lendo e relendo a decisão recorrida, concretamente, a matéria de facto dada como provada, dela resulta como provada outra factualidade (para além daquela), que se prolongou no tempo, a partir de 2009, concretamente, a descrita nos pontos 2.1.17, 2.1.18, 2.1.22 e 2.1.30 a 2.1.34 da matéria de facto dada como provada.

Isto seria bastante para negar provimento ao recurso, pois que o recorrente parece apenas pretender justificar a sua conduta relativamente ao episódio de 26.05.2010, quando outros se encontram demonstrados e que, como se disse na decisão recorrida, com ele têm que ser conjugados.

Depois, e na sequência do anterior acórdão deste tribunal, e em cumprimento do então decidido, a decisão recorrida deixou bem claro:

- que as condutas descritas nos pontos 2.1.6 a 2.1.12 da matéria de facto dada como provada se enquadram dentro dos poderes-deveres de educar;

- que as condutas descritas nos pontos 2.1.13 a 2.1.29 da matéria de facto dada como provada – “se nada mais houvesse” – poder-se-ia dizer que os mesmos “poderiam estar no limite, uma vez que se poderiam considerar justificados face à conduta do menor”, mas não é o caso, “uma vez que resultou demonstrado que a reação dos arguidos ao comportamento do menor ultrapassa os limites a qualquer correção e repreensão… tudo conjugado, resulta dos factos descritos em 2.1.13 a 2.1.35 que os mesmos só podem ser considerados como violência doméstica…”.

E bem se decidiu.

Em primeiro lugar, diga-se que o recorrente não é pai do menor nem sobre ele recai – face à matéria de facto dada como provada - qualquer poder/dever de educação ou correção, face ao disposto nos art.ºs 1878, 1885 e 1935, todos do Código Civil, pelo que, só por isso, nunca a sua conduta poderia considerar-se justificada com tal fundamento.

Por outro lado, o direito de correção como causa de justificação ocorre:

- se o agente atuar “com finalidade educativa e não para dar vazão à sua irritação, para descarregar a tensão nervosa ou, ainda menos, pelo prazer de… ou para lograr aquilo que apeteceria chamar um efeito de prevenção geral ou especial de intimidação”;

- se o castigo for “criterioso e, portanto, proporcional, no sentido de que ele deve ser o mais leve possível”;

- se o castigo for “sempre e em todos os casos moderado, nunca atingindo o limite de uma ofensa qualificada ou de todo o modo atentatória da dignidade do menor” (excerto extraído do acórdão desta Relação de 10.04.2012, in www.dgsi.pt, citando Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, 2004, tomo 1, pág. 468).

Por sua vez (embora relativamente à redação anterior do art.º 152 do CP), Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense, tomo I, 335, escreve:

Relativamente à justificação de atos, física ou psiquicamente, lesivos, a única hipótese de justificação estará no direito de educação-correção dos pais. Porém, uma vez que o tipo de crime de maus tratos pressupõe a reiteração dos respectivos atos… parece que… a finalidade educativa pode justificar uma ou outra leve ofensa corporal (art.º 143), já, diferentemente, não pode justificar uma habitualidade, uma reiteração frequente destas ofensas corporais e, portanto, não pode justificar os maus tratos previstos no art.º 152…”.

Ora, por um lado – e como acima se disse – o recorrente não está investido de qualquer poder-dever de correção do menor, por outro, e ainda que assim não se entendesse, nunca o dever de educar/corrigir, em face das razões que motivaram o agente – dadas como provadas – justifica ou torna compreensível a violência física exercida sobre o menor, a qual, mais do que educar, corrigir ou repreender, atentas as circunstâncias concretas em que os factos ocorreram, consistiu numa descarga da irritação dos recorrentes sobre o menor, incompatível com qualquer poder-dever de educação ou repreensão, que não pode – nunca – comportar violência física ou castigos atentatórios da dignidade do menor; a educação ou correcção dos filhos não se compadecem, nos tempos que correm e nas sociedades atuais, com quaisquer formas de violência física ou mental que atentem contra a dignidade da pessoa, em tudo contrárias ao dever de proteção que recai sobre os pais, enquanto responsáveis pelo seu desenvolvimento equilibrado e harmonioso.

Por outro lado, não pode deixar de se anotar que não está em causa apenas um episódio – embora grave, deve dizer-se – mas vários comportamentos reiterados ao longo do tempo (por quem tinha o especial de ver de zelar pela segurança e bem estar do menor, imprescindíveis a um desenvolvimento equilibrado do mesmo), pelo que, como supra se assinala, citando Américo Taipa de Carvalho, não podem tais comportamentos – reiterados – configurar o poder-dever de educar ou corrigir, o qual supõe, sempre, por um lado, que o agente atue com essa finalidade (o que no caso não se demonstrou nem se conclui da matéria de facto dada como provada), por outro, que os castigos infligidos sejam criteriosamente ponderados e proporcionais à falta ou faltas cometidas, o que é de todo incompatível com a violência física, com castigos corporais ou com castigos humilhantes e atentatórios da dignidade do menor, pois estes nunca serão adequados ou justificados pelo dever de educar.

E, como bem se exarou na decisão recorrida, os arguidos agiram, “não com o mero intuito de educar… de contribuir para que este adquirisse as necessárias competências para que… pudesse desenvolver a sua vida de forma frutífera e harmoniosa, mas com a intenção de castigar e de o fazer sentir diminuído perante si e outros”, facto que resulta demonstrado nos autos, enquanto consequência lógica e necessária da demais factualidade objetiva demonstrada, não se vendo razões, em face dos fundamentos invocados e do mais que atrás se deixou dito, para questionar tal prova.

Improcede, por isso, o recurso interposto pelo arguido.

10. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal:

- em negar provimento ao recurso interposto pelos arguidos;

- em não tomar conhecimento dos recursos no que respeita à matéria cível.

Custas pelos arguidos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça a pagar pela arguida em 3 UC e a devida pelo arguido em 4 UC (art.ºs 513 e 514 do CPP e 8 n.º 5 e Tabela II anexa do RCP).

(Este texto foi por mim, relator, elaborado e integralmente revisto antes de assinado)

Évora, 2014/03/11

(Alberto João Borges)

(Maria Fernanda Pereira Palma)