Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
931/19.4T8OLH.E1
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: AUDIÊNCIA PRÉVIA
DECISÃO NO SANEADOR
OPOSIÇÃO EXPRESSA
FORMALIDADES
NULIDADE
Data do Acordão: 06/17/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 – Finda a fase dos articulados, se o julgador entender que os autos contêm os elementos necessários a que seja proferida decisão de mérito, impõe-se a convocação de audiência prévia.
2 – Não é legalmente possível dispensar a realização desta e proferir saneador-sentença com decisão de mérito se uma das partes manifestou oposição expressa a essa dispensa.
3 - A preterição da aludida formalidade processual gera a nulidade do saneador-sentença, a fim da tramitação processual regressar ao momento anterior ao despacho que dispensou a realização da audiência prévia. (sumário do relator)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

A - Relatório
1 – O autor, J…, residente em Moncarapacho, veio intentar a presente acção, com processo comum, contra a ré … Companhia de Seguros, S.A, com sede em Lisboa, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de €22 300,00, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora contados desde a data do sinistro que descreve e até integral pagamento.
Alega, em síntese, que celebrou com a ré um contrato de seguro de responsabilidade civil, pelo qual transferiu a sua própria responsabilidade civil perante terceiros, e aconteceu que a 25 de Setembro de 2016 deslocou-se à residência de uma terceira pessoa tendo acendido um cigarro que veio a cair do cinzeiro para cima do sofá que estava próximo da mesa e provocou um incêndio do qual resultaram vários danos materiais para essa pessoa, danos que avalia na referida importância. Uma vez que a lesada pretende ser ressarcida dos danos e manifestou intenção de propor acção judicial contra o autor a seguradora deve ser obrigada a indemnizar esses danos.
Ora a ré declinou a responsabilidade, pelo que o autor entende que a mesma deve ser condenada a pagar-lhe o valor em causa.
Em sede de contestação veio a ré impugnar os factos relatados e também defender-se por excepção, dizendo que o autor é parte ilegítima – uma vez que o autor não é lesado, estando os danos na esfera jurídica do terceiro que os sofreu – e alegar ainda a excepção peremptória da prescrição.
2 – Findos os articulados chegou a estar designado dia para a realização de audiência prévia, mas essa marcação ficou sem efeito e veio a ser proferido despacho com o seguinte teor:
Considerando que nos articulados já se mostram debatidas todas as questões suscitadas nos autos - e que o despacho que designou dia para a Audiência Prévia não constitui caso julgado sobre a possibilidade de apreciação imediata do mérito da causa – artigo 591.º, n.º 2 do Código do Processo Civil - , entende o tribunal que se encontra em condições de proferir decisão, pelo que notifique as partes para, no prazo de 10 dias, virem proceder à discussão de facto e de direito (artigo 591.º, n.º 1, alínea b) do Código do Processo Civil).
3 – Na sequência desta notificação as partes vieram aos autos, expressando posições opostas.
O autor declarou expressamente que “não se conforma com a possibilidade de ser proferida decisão imediata sobre o mérito da causa” e que não se verifica nenhuma das excepções invocadas, acrescentando que “o tribunal não pode proferir de imediato decisão de mérito sem realizar audiência prévia”, por esta ser obrigatória, e reiterando a final que deve “ser ordenada a realização de audiência prévia”.
Por seu lado a ré declarou simplesmente que mantinha a posição expressa na contestação, pelo que devia ser absolvida da instância por ilegitimidade do autor ou então absolvida do pedido por improcedência deste.
4 – Prosseguindo o processo os seus trâmites, foi proferido despacho saneador-sentença, onde a ré foi absolvida do pedido, e no qual foi em primeiro lugar dispensada realização de audiência prévia.
Pode ler-se a este respeito, a abrir o saneador-sentença:
Ao abrigo da adequação formal, tiveram as partes oportunidade de debater todas as questões suscitadas em momento prévio ao saneamento do processo.
Em cumprimento do artigo 3.º, n.º 3 do Código do Processo Civil, foi concedida às partes a possibilidade de procederem à discussão de facto e de direito (artigo 591.º, n.º 1, alínea b) do Código do Processo Civil).
A realização da Audiência Prévia configuraria assim um ato inútil, vedado ao abrigo do artigo 130.º do Código do Processo Civil.
5 – Inconformado com o decidido no saneador-sentença o autor veio interpor o presente recurso de apelação, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões:
“O Autor ora Recorrente intentou a presente ação contra a Ré pedindo a sua condenação na quantia de €22 300,00, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora contados desde a data do sinistro até integral e efetivo pagamento.
2. Em sede de contestação, veio a ré entender que o autor é parte ilegítima – não se considera constituída na obrigação de indemnizar, uma vez que o autor é o causador do dano e não o terceiro que o sofreu e impugnar a factualidade invocada e defende-se por exceção peremptória de prescrição.
3. Por sentença datada de 30-11-2020 que julgou a presente ação improcedente por não provada e, em consequência absolveu a ré de todos os pedidos formulados pelo autor.
4. O Autor, ora Recorrente não se conforma com a sentença recorrida em primeiro lugar porquanto não existem nos presentes autos elementos para conhecer de imediato sobre o mérito da causa e impunha-se a realização de audiência prévia.
5. O tribunal “a quo” não poderia ter proferido decisão de mérito sem realizar audiência prévia.
6. No NCPC (Lei 41/2013), passou a dispor-se como regra a obrigatoriedade da realização de audiência prévia, agora previsto no artigo 591.º do C.P.C., nomeadamente quando “tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa.” (n.º1 b).
7. Quando o Juiz tencionar conhecer, de imediato, do mérito da causa, a audiência prévia não pode ser dispensada (arts. 593/1, a contrario, e 591/1-b, ambos do CPC), sob pena de nulidade (art. 195/1 do CPC), veja-se neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 164/12.1TVLSB.L1-2, datado de 09-10-2014, disponível emwww.dgsi.pt.
8. Termos em que deverá a sentença recorrida ser declarada nula.
9. Sem prescindir, na sentença de que ora se recorre não há qualquer referência aos factos provados ou não provados e bem assim à fundamentação da matéria de facto.
10. O que faz com que estejamos perante uma omissão de pronúncia, isto é o tribunal "a quo" deixou de decidir sobre essa questão e assim sendo estamos perante uma causa de nulidade da sentença recorrida e a mesma deverá ser revogada por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas c) e d) do Código de Processo Civil.
11. Deste modo, com a omissão das formalidades referidas, previstas no art. 607.º, n.º 4, do CPC, cometeu-se uma nulidade processual prevista no art. 195.º, n.1, do CPC.
12. Termos em que deverá a sentença recorrida ser revogada nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas c) e d) do Código de Processo Civil.
13. A sentença recorrida viola ainda o disposto no artigo 411.º do Código de Processo Civil e do princípio do inquisitório.
14. E a Lei do Contrato de Seguro e do erro na interpretação do disposto no artigo 592.º do Código Civil.
15. O Autor, ora Recorrente é parte legítima nos presentes autos e como tal tem direito a demandar directamente a Seguradora ora Ré.
16. Veja-se neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, processo n.º 1190/08.0TBSTC.E1, datado de 08-07-2010, disponível em www.dgsi.pt que refere que é possível a demanda de segurado contra seguradora para obter condenação desta no pagamento de indemnização suportada por aquele e coberta pelo seguro, sendo possível essa condenação desde que fique assente a ocorrência, em concreto, de responsabilidade civil do segurado perante terceiro lesado.
17. Termos em que e face ao supra exposto deverá a sentença recorrida ser revogada e consequentemente deverão os presentes autos seguir os seus ulteriores termos.
6 – Por parte da apelada seguradora não houve resposta ao recurso.
*
B – Fundamentação
1 - Como se sabe o objecto do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso.
No caso presente não se descortinam questões de que haja de conhecer-se oficiosamente, pelo que o objecto do recurso cinge-se às questões suscitadas pelo recorrente.
Assim, em face das conclusões apresentadas, a primeira questão a apreciar e decidir tem a ver com a dispensa da realização da audiência prévia, e com as consequências jurídicas dessa omissão.
Passaremos a apreciar tal questão, que se nos afigura prejudicar as restantes faladas subsidiariamente nas conclusões do recurso.
2 – A dispensa da audiência prévia.
Alega o apelante que antes do saneador-sentença proferido a lei impunha a realização de audiência prévia, não sendo possível dispensar a sua realização nos casos de se pretender conhecer imediatamente do mérito da causa no despacho saneador – como acabou por acontecer.
A este propósito estatui o artº 591º do CPC (“Audiência prévia”):
1 - Concluídas as diligências resultantes do preceituado no n.º 2 do artigo anterior, se a elas houver lugar, é convocada audiência prévia, a realizar num dos 30 dias subsequentes, destinada a algum ou alguns dos fins seguintes:
a) Realizar tentativa de conciliação, nos termos do artigo 594.º;
b) Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa;
c) Discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate;
d) Proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595.º;
e) Determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º;
f) Proferir, após debate, o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º e decidir as reclamações deduzidas pelas partes;
g) Programar, após audição dos mandatários, os atos a realizar na audiência final, estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e designar as respetivas datas.
(…)
Também a este respeito dispõe o art. 592º do CPC (“Não realização da audiência prévia”):
1 - A audiência prévia não se realiza:
a) Nas ações não contestadas que tenham prosseguido em obediência ao disposto nas alíneas b) a d) do artigo 568.º;
b) Quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados.”
(…)
Ainda relativamente à “Dispensa da audiência prévia” dispõe o artº 593º do CPC:
1 - Nas ações que hajam de prosseguir, o juiz pode dispensar a realização da audiência prévia quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º.
(…)
Perante os artigos citados importa anotar, com relação ao caso presente, que neste não se tratou apenas de decidir excepção dilatória já debatida nos articulados (situação aludida na al. b) do art. 592º do CPC para permitir nessa hipótese a dispensa da audiência prévia) mas realmente de decidir sobre o mérito da causa e por essa via pôr termo ao processo.
Ora assim sendo, e perante o disposto no art. 593º, n.º 1, em conjugação com o art. 591º, n.º 1, al. b), ambos do CPC, parece forçoso concluir que pretendendo o juiz do processo conhecer imediatamente do mérito da causa teria que convocar e realizar audiência prévia, não sendo possível decidir-se pela sua dispensa.
Conforme decorre expressamente do disposto no art. 593º n.º 1 do CPC, pode o juiz dispensar a audiência prévia nas acções que hajam de prosseguir e “quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º”.
Situam-se assim fora do âmbito daquela possibilidade de dispensa os casos em que o processo haja de findar de imediato, com o conhecimento do mérito da causa (al. b) do n.º 1 do art. 591º), sendo por isso nessas hipóteses a audiência prévia de realização obrigatória.
Ou seja, fora dos casos de exclusão legal da sua realização, previstas no art. 592º supra citado, bem como nos casos de dispensa judicial por via do disposto no art. 593º, n.º 1, referente aos processos que devam prosseguir para julgamento, a convocação da audiência prévia constitui um acto processual obrigatório.
Por isso, não se verificando nenhuma das situações previstas no art. 592º do CPC que conduzem à não realização da audiência prévia, e se a acção não houver de prosseguir, nomeadamente por se ir conhecer no despacho saneador do mérito da acção, deve ser convocada tal audiência a fim de facultar às partes a discussão de facto e de direito, assegurando-se por essa via o respeito pelo princípio do contraditório, e evitando-se decisões-surpresa (cfr. art. 3º, nº 3 do CPC),
A necessidade de convocação de audiência prévia quando se pretenda conhecer de imediato do mérito da causa é reconhecida e proclamada pela generalidade da doutrina e da jurisprudência.
O juiz não pode julgar de mérito no despacho saneador sem primeiro facultar a discussão, em audiência prévia, entre as partes (…) o juiz não pode dispensar a audiência prévia, nomeadamente quando se verifiquem os requisitos da al. b) ou da 2ª parte da alínea c) do artº 591º n.º 1 do CPC” (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 3ª edição, págs. 641 e 650).
E no mesmo sentido:
A realização da audiência prévia é obrigatória sempre que o juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa (art. 591.º, n.º 1, al. b), CPC). Nesta hipótese, a audiência prévia destina-se a facultar às partes a discussão de facto e de direito antes do proferimento do saneador-sentença, à semelhança do que acontece com as alegações orais com que termina a fase da audiência final (cf. art. 604.º, n.º 3, al. e), e 5, CPC) e que antecedem o proferimento da sentença final. Esta conclusão é confirmada pelo disposto no art. 592.º, n.º 1, al. b), CPC: a audiência prévia não se realiza quando o processo haja de findar no despacho saneador pela procedência de uma exceção dilatória, desde que esta já tenha sido debatida nos articulados [o que, atendendo à atual função da réplica (cf. art. 584.º CPC), raramente acontece]. Assim, a contrario sensu, pode concluir-se que a audiência prévia deve realizar-se quando o juiz pretenda conhecer do mérito da causa no despacho saneador, o que se justifica pela referida função da audição prévia das partes.” (conforme Prof. Miguel Teixeira de Sousa, em Jurisprudência 123, https://blogippc.blogspot.pt/).
É certo que também já tem sido defendido, aparentemente em consonância com a orientação seguida pelo juiz recorrido, que o juiz do processo, ao abrigo dos poderes de gestão processual concedidos por lei, pode por vezes mesmo na situação de pretender conhecer de imediato do mérito da causa dispensar a realização da audiência prévia (no caso em apreço foi declarado que se mostrava cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do Código do Processo Civil, e por isso essa diligência representava um acto inútil, proibido pelo art. 130º do CPC).
Porém, mesmo para quem defende a possibilidade excepcional de dispensa da audiência prévia nessa situação tal dispensa está sempre dependente do prévio prevenir das partes de “forma fundamentada, sobre a solução do litígio, o que implica a enunciação das questões a solucionar e a sua comunicação às partes” para que possam “influenciar o juiz na discussão do mérito da causa” (ver Delgado de Carvalho, in “A dispensa da audiência prévia como medida de gestão processual: para lá dos receios do legislador”, em https://blogippc.blogspot.pt/2016/06/a-dispensa-da-audiencia-previa-como.html).
Ora no caso dos presentes autos não se pode dizer que esses imperativos tenham sido respeitados. As partes foram notificadas de um despacho em que se consignou que “considerando que nos articulados já se mostram debatidas todas as questões suscitadas nos autos - e que o despacho que designou dia para a Audiência Prévia não constitui caso julgado sobre a possibilidade de apreciação imediata do mérito da causa – artigo 591.º, n.º 2 do Código do Processo Civil - , entende o tribunal que se encontra em condições de proferir decisão, pelo que notifique as partes para, no prazo de 10 dias, virem proceder à discussão de facto e de direito (artigo 591.º, n.º 1, alínea b) do Código do Processo Civil).
É bom de ver que esta singela comunicação não permite concluir que foram enunciadas as questões a solucionar, na perspectiva do tribunal, e esse enunciado comunicado às partes, para que fosse possível influenciar o juiz na discussão sobre o mérito da causa. Foi feita apenas uma comunicação genérica “para, no prazo de 10 dias, virem proceder à discussão de facto e de direito (artigo 591.º, n.º 1, alínea b) do Código do Processo Civil)” porque “entende o tribunal que se encontra em condições de proferir decisão”. Como é evidente, trata-se de uma advertência bem diferente daquela que é mencionada nessa posição doutrinal, que permitiria a dispensa da audiência prévia, pelo que mesmo na lógica dessa orientação não é possível considerar satisfeito o imperativo contido no art. 3º, n.º 3, do CPC, e retirar daí consequências ao nível da gestão processual, invocando o art. 547º do CPC.
Acresce que uma das partes em litígio expressou previamente a sua oposição à dispensa da audiência prévia, por a considerar legalmente obrigatória e considerando que se mostrava necessária nos autos, por estes, ao contrário do que era dito pelo tribunal, não se mostrarem preparados para a decisão de mérito.
Esta manifestação da vontade da parte cremos que constitui obstáculo intransponível para a dispensa decidida, mesmo para quem procurasse apoio na corrente doutrinária que permitiria abrir a porta a essa dispensa. O dever de consulta das partes, a procura da cooperação e do consenso na condução do processo, não podem esgotar-se na simples comunicação de que o tribunal entende que se encontra em condições de proferir decisão.
A consulta prévia das partes visa garantir por essa via o exercício do contraditório tanto sobre a discussão do mérito da causa como sobre a gestão processual, e afigura-se que não se mostra respeitado esse contraditório nem num nem noutro desses dois aspectos (houve informação sobre uma posição já tomada, o tribunal entendia que não se justificava a realização da audiência, e que julgava estar habilitado para decidir do mérito). O contraditório deve anteceder a decisão, e não foi o caso.
Diga-se ainda que não se afigura legítimo invocar o disposto no art. 130º do CPC, sobre proibição de actos inúteis no processo, para sustentar a posição assumida. É certo que o legislador estatuiu que não é lícito realizar no processo actos inúteis, mas obviamente que essa norma não se refere a diligências inseridas na tramitação processual imperativa. Aqueles actos processuais que a lei do processo estabeleceu como sendo de realização obrigatória não podem ser afastados por via da sua classificação antecipada como inúteis, mesmo que o julgador esteja intimamente convencido dessa inutilidade, designadamente por já ter formado a sua convicção sobre a decisão a proferir e a encarar como irreversível.
Os actos que o juiz, na condução do processo, tem que impedir, por inúteis, são todos aqueles que a lei deixou ao seu critério, no âmbito dos poderes de gestão e direcção do processo, e não aqueles que definiu como de realização obrigatória.
Assente que ficou o nosso entendimento de que não podia ter sido dispensada a realização da audiência prévia (em inteira consonância com a jurisprudência habitual dos nossos tribunais, que vai no sentido da impossibilidade de dispensa da audiência prévia quando se pretenda conhecer imediatamente do pedido) importa passar a conhecer das consequências legais da falta cometida.
Julgamos que, como pretende o apelante, com a não realização da audiência prévia o tribunal incorreu na nulidade prevista no art. 195º nº 1 do CPC – a prática de um acto que a lei não admita, ou seja, dispensar a realização da audiência prévia quando tal dispensa não é viável legalmente, atentas as circunstâncias.
A audiência prévia constitui nestas circunstâncias uma formalidade de cumprimento obrigatório, e perante a sua omissão “depara-se-nos uma nulidade processual traduzida na omissão de um ato que a lei prescreve, mas que se comunica ao despacho saneador, de modo que a reação da parte vencida passa pela interposição de recurso da decisão proferida em cujos fundamentos se integre a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d), in fine, do CPC.” (Ac. do STJ de 23/06/2016, no processo 1937/15.8T8BCL.S1, in www.dgsi.pt).
Como se sublinha no Acórdão da Relação de Évora de 10-05-2018 (Processo 2239/15.5T8ENT-A.E, Relator Mata Ribeiro), publicado em www.dgsi.pt, “face ao que dispõe a lei, não é de perfilhar o entendimento que aceita a possibilidade de se dispensar a audiência prévia fazendo uso do mecanismo de gestão processual previsto nos artº 547º e 6º do CPC, uma vez que a simplificação processual ou a adequação formal não pode ir contra normas que refletem determinado ritualismo como obrigatório ou necessário, o qual não se mostra de todo inadequado às especificidades da causa, antes pelo contrário, possibilitando às partes e respetivos mandatários, cara a cara com o juiz, fazerem valer os seus argumentos, quando se pretende “prematuramente” (na perceção de pelo menos uma das partes) pôr fim à causa, julgando da questão de mérito sem um efetivo debate quer em relação aos factos a considerar, quer em relação ao direito a aplicar”.
Como se conclui no mesmo Acórdão da Relação de Évora, que temos vindo a seguir:
A preterição da aludida formalidade processual que se reputa de essencial gera para além de nulidade processual a nulidade do saneador-sentença e atenta a influência sobre esta decisão, implica a anulação do processado a fim da tramitação processual regressar ao momento anterior ao despacho que dispensou a realização da audiência prévia, de forma a possibilitar a efetiva audição das partes em sede de audiência prévia, devendo no despacho que a designar esclarecer, em concreto, os fins a que se destina.”
Nestes termos, que perfilhamos inteiramente, resta concluir pela procedência do recurso, nos termos expostos, ficando por consequência prejudicadas todas as outras questões levantadas.
DECISÃO
Assim, com os fundamentos que foram expostos, julga-se procedente a apelação e consequentemente anula-se o saneador-sentença proferido, devendo no tribunal recorrido ser determinada a realização da audiência prévia.
Sem custas, dado que o recurso não sofreu oposição.
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Évora, 17 de Junho de 2021
José Lúcio
Manuel Bargado
Francisco Xavier