Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
983/12.8TBSSB.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO CIVIL
Data do Acordão: 07/13/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O chamado dano biológico não é indemnizável autonomamente, mas sim como fonte de danos de ordem patrimonial ou não patrimonial.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 983/12.8TBSSB.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora

O Autor (…) intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra a Ré (…) Portugal, Companhia de Seguros, SA, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia total de € 469.687,81, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação e até integral pagamento e, bem ainda, no pagamento de quantia a apurar em eventual ampliação do pedido ou execução de sentença nos termos do art.º 661.º do CPC para um previsível aumento da IPP e extensão dos tratamentos e seus custos.
Alegou que foi vítima de um acidente de viação causado por um segurado na R..
Em consequência do embate sofreu várias lesões que lhe determinaram incapacidade permanente e grande desgosto, assim como suportou despesas com consultas e tratamentos médicos.
*
Contestando, a Ré aceitou a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos emergentes do sinistro mas impugnou as lesões e sequelas concluindo pela fixação de uma compensação de valor inferior ao peticionado.
*
O processo seguiu os seus termos e, depois de realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença cuja parte decisória é a seguinte:
a) Condenar a Ré (…) Portugal, Companhia de Seguros, SA a pagar ao Autor (…) a quantia de € 2.030,90 (dois mil e trinta euros e noventa cêntimos) a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, vencidos desde a data da citação até integral pagamento.
b) Condenar a Ré (…) Portugal, Companhia de Seguros, SA, a pagar ao Autor (…) a quantia total de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, vencidos desde esta decisão até integral pagamento.
c) Condenar a Ré (…) Portugal, Companhia de Seguros, SA, a pagar ao Autor (…) a quantia total de € 70.000,00 (setenta mil euros), pelo dano biológico, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, vencidos desde esta decisão até integral pagamento.
d) Condenar a Ré Companhia de Seguros a pagar ao Autor (…) o que se vier a apurar em ulterior incidente de liquidação no que respeita às despesas futuras com tratamentos que se revelarem necessários, sempre mediante apreciação clinica de tal necessidade, ao nível do acompanhamento neurológico e neuro-psicológico com vista a potenciar as capacidades cognitivas, vigilância clínica e terapêutica à estabilização da sintomatologia.
e) Absolver a Ré do demais pedido.
*
Desta sentença recorreram ambas as partes.
O recurso do A., no entanto, não foi admitido.
*
A R. defende que deve fixar-se ao autor as indemnizações não superiores a € 35.000,00 por danos patrimoniais futuros e € 15.000,00 por danos não patrimoniais.
*
Foram colhidos os vistos.
*
A matéria de facto é a seguinte:
1 – No dia 29 de Janeiro de 2008, pelas 17,30 horas, na Estrada Nacional 10, ao Km 20,400, junto ao cruzamento do (…), na Quinta do Conde, ocorreu uma colisão.
2 – Na referida colisão foram interveniente o motociclo de matrícula (…)-CJ, conduzido pelo Autor, que seguia no sentido de marcha Coina/Brejos de Azeitão, e o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula (…)-BX.
3 - O veículo ligeiro de mercadorias ao chegar ao cruzamento, pretendia virar à esquerda para entrar na Estrada Nacional 10, no sentido de marcha Quinta do Conde/Coina.
4 – O veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula (…)-BX não respeitou o sinal de stop existente no cruzamento, atravessou-se na faixa de rodagem destinada ao trânsito que seguia no sentido de marcha Coina/Quinta do Conde e, nestas circunstâncias, cortou a linha de trânsito do motociclo.
5 - Em consequência da colisão o Autor ficou debaixo do veículo automóvel.
6 – Após o acidente foi o Autor conduzido ao serviço de urgência Hospital Garcia da Orta.
7 – Permanecendo ali internado, no serviço de neurocirurgia, até ao dia 4 de Fevereiro de 2008.
8 - Em resultado do acidente o Autor apresentava traumatismo crânio encefálico com perda de conhecimento.
9 – Sofreu múltiplas contusões intracentimetricas e petéquias frontais bilaterais sem significativo efeito da massa.
10 - Apresentava um quadro de síndroma pós traumatismo com predomínio de deficits neuropsiquicos e instabilidade emocional e perturbações no sono.
11 - O Autor, à data do acidente, era estudante e ainda trabalhava como operador de loja no (…), encontrando-se actualmente a frequentar a licenciatura em engenharia informática.
12 - Antes do acidente o Autor era comunicativo e com temperamento afável.
13 - Após o acidente apresenta alguma apatia e irritabilidade.
14 - O Autor socializava com amigos, com quem se divertia em desportos e actividades de lazer e, após o acidente, alterou substancialmente a frequência com que confraternizava com os amigos.
15 - A situação entristece a Autor.
16 - O Autor nasceu no dia 20 de Janeiro de 1986.
17 – Consta da perícia médico-legal que o Autor apresenta, em resultado do acidente, síndrome frontal – perturbação ligeira (com distractibilidade, lentificação, dificuldades de memorização e de elaboração de estratégias complexas, escassas ou nulas perturbações da inserção social e familiar).
18 - A data da consolidação médico-legal das lesões sofridas pelo Autor em resultado do acidente foi fixada em 13/11/2008.
19 - O Défice Funcional Temporário Total (Incapacidade Temporária Geral Total) foi fixado em 7 dias.
20 - O Défice Funcional Temporário Parcial Incapacidade Temporária Geral Parcial foi fixado em 283 dias.
21 - A Repercussão Temporária na Actividade Escolar Profissional Total foi fixada em 290 dias.
22 - O Autor sofreu dores, sendo o quantum doloris de grau fixável no 4 numa escala de sete graus de gravidade crescente.
23 - Em termos de repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer o dano foi fixável no grau 2 numa escala de sete graus de gravidade crescente.
24 - O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico – Psíquica (Incapacidade Permanente Geral) fixável em 20 pontos, considerando o valor global da perda funcional decorrente das sequelas e o facto de estas não afectarem o Autor em termos de autonomia e independência são causa de sofrimento físico limitando-o em termos funcionais.
25 - As sequelas descritas, em termos de Repercussão Permanente na Actividade Escolar e Profissional, são compatíveis com o exercício da actividade escolar e profissional habitual mas implicam esforços suplementares.
26 – Ainda do relatório pericial consta ao nível das Ajudas técnicas permanentes: tratamentos médicos regulares para evitar o retrocesso ou agravamento das sequelas que a situação clinica merece acompanhamento neurológico e neuropsicológico regular, de forma a potenciar as suas capacidades cognitivas, vigilância clinica e terapêutica de forma à estabilização da sintomatologia.
27 - O Autor suportou despesas médicas e medicamentosas e ainda com relatório médico no valor de € 2.030,90.
28 – Na data do acidente encontrava-se em vigor o contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice n.º (…), nos termos do qual a responsabilidade pelos danos causados a terceiros em resultado de acidente de viação pelo veículo (…)-BX se encontrava transferida para a Ré (…) Portugal.
*
A recorrente seguradora começa as alegações por sumariar as razões da sua discordância com o decidido.
«(…) conceitualmente, não cabe condenação autónoma numa compensação por dano biológico e, cumulativamente, por danos não patrimoniais, dado que estes são uma espécie dentro do género, como decorre do regime legal aplicável às obrigações de indemnização e é orientação da doutrina mais consistente e da jurisprudência mais avalisada.
«Em segundo lugar porque, mesmo a admitir-se a qualificação seguida pela douta sentença, o que não se concede, não está minimamente explicitado o critério que presidiu à quantificação do dano biológico em € 70.000,00, sem qualquer motivação objectiva que permita validar o juízo de equidade em que assentou.
«Em terceiro lugar, porque se entende, sempre salvo o devido respeito, que o montante fixado a título de danos não patrimoniais, além de constituir uma duplicação da que respeitava ao dano biológico, por se fundar nos mesmos factos, ou factos semelhantes, acaba por exceder o valor que, em função do caso concreto e em critério de razoabilidade deveria ter sido atribuída».
Com efeito, a sentença não integrou o dano biológico em qualquer das categorias de danos patrimoniais ou de danos não patrimoniais; antes o entendeu «ressarcível, como dano autónomo, independentemente do seu específico e concreto enquadramento nas categorias normativas do dano patrimonial ou do dano não patrimonial» (p. 14).
E não cremos que se tenha feito tanto mal pois que o dano não patrimonial pode ser englobado (tal como o outro) por várias parcelas. Não se trata, pois, de valorizar o dano não patrimonial duas vezes mas sim de considerar as suas parcelas (de que o dano biológico é uma). Cremos ser esta a opinião de Maria da Graça Trigo no estudo citado pela recorrente sobre «Adopção do Conceito de “Dano Biológico” pelo Direito Português», publicado na R.O.A., Ano 72, e que se pode consultar também neste local (https://www.oa.pt/upl/%7B5b5e9c22-e6ac-4484-a018-4b6d10200921%7D.pdf). Com efeito, esta Autora defende que o conceito, criado num país cuja legislação não dava inteira cobertura aos danos sofridos, não tem necessariamente que ser importado: «a adopção do dano biológico enquanto dano autónomo, não apenas não foi efectuada, como provavelmente não precisará de o ser» (p. 166). Acrescenta que a dicotomia dos danos de natureza patrimonial e de natureza não patrimonial se mantém apta a abarcar a totalidade dos efeitos de qualquer categoria de dano-evento, e a ruptura com a estrutura tradicional não traria quaisquer vantagens (p. 167).
Mas a consideração teórica do dano biológico como dano autónomo além da referida dicotomia não afasta a possibilidade de ele ser considerado como uma parcela de um ou outro tipo de dano. Conforme se escreve no ac. do STJ, de 27 de Outubro de 2009, o «dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial tal como compensado a título de dano moral»; no ac. do mesmo Tribunal, de 17 de Dezembro de 2009, também se afirma que o «denominado dano biológico provocado no lesado num acidente de viação, é o dano in natura por ele sofrido, cuja repercussão o atinge quer em termos patrimoniais quer não patrimoniais. Dito de outra forma, a qualificação deste tipo de dano como dano autónomo não significa que ele seja algo mais a acrescentar ao tradicional binómio de danos morais e danos patrimoniais. É este o sentido da jurisprudência agora citada tal como o é o do ac. da Relação de Guimarães, de 3 de Julho de 2014, ao se referir ao carácter autónomo mas sempre enquadrado em um dois termos daquela dicotomia.
Ou seja, e é onde fundamentalmente queremos chegar, a indemnização por dano biológico não consome toda a indemnização, seja por danos patrimoniais seja por danos morais; antes integra uma destas classes consoante o tipo de consequência que venha a ter. Como escreve a referida Autora, «a vantagem da introdução da concepção de dano biológico seria a de ampliar os componentes de dano real a ter em conta; para, num segundo plano, determinar, de forma mais justa, a indemnização devida pelo lesante» (p. 168). Desde que, acrescentamos nós, essas componentes estejam identificadas e quantificadas.
Daí que se não possa afirmar, salvo o devido respeito, que cada vez que se autonomiza aquele dano existe uma duplicação na indemnização. O que se exige é o cuidado de destrinçar o tipo patrimonial ou não de consequências da lesão.
*
Tendo isto em mente, impõe-se desmontar (à falta de melhor expressão) o que a sentença recorrida considerou ser o dano biológico.
Para tal temos de interpretar a sentença e fixar bem o seu sentido, de forma a apreendermos o valor jurídico que foi dado ao dito dano.
*
E perante a decisão, concluímos que a totalidade da indemnização por danos morais foi fixada em € 95.000,00.
Concluímos isto, dados os termos empregues na sentença ao se analisarem, primeiro, os «danos não patrimoniais propriamente ditos» (p. 12), depois «os danos relativos à perda de diminuição da capacidade de ganho e ao dano biológico» (há-de referir-se à perda da capacidade de ganho pois o que está escrito indica um aumento dessa capacidade) e, por fim, a apreciação dos danos patrimoniais. Mais certeza confere à conclusão de que o dano biológico foi enquadrado no âmbito (materialmente) dos danos morais o seguinte dado: da interpretação da sentença, que é o objecto do recurso, resulta que a condenação no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais é a que consta das als. a) e d) da parte decisória. Ou seja, as restantes alíneas referem-se ao outro tipo de danos.
Acresce que a sentença arredou expressamente as consequências do dano biológico de ordem patrimonial ao afirmar o seguinte:
«A incapacidade permanente/défice funcional permanente sofrida pelo Autor não se traduz numa perda efectiva de rendimentos do trabalho de cariz salarial, pelo que, não será adequado seguir critérios matemático/financeiros para o cálculo da indemnização, devendo antes a sua reparação ser fixada segundo juízos de equidade».
Ao afirmar-se isto está a colocar-se esta rubrica da indemnização dentro dos danos não patrimoniais; o défice funcional permanente de que o A. padece terá repercussões no futuro mas que não se traduzem em perda da capacidade de ganho. Trata-se antes de uma lesão com que o A. terá de viver e com todas as dificuldades que isso implica (mesmo que se tratem de dificuldades de cariz patrimonial); e foi esta lesão e o respectivo dano que em si encerra que o tribunal indemnizou sob o nome de «dano biológico».
Daí que entendamos que não há uma duplicação na indemnização neste caso.
*
Outra questão tem que ver com o montante definido.
Como acima se disse, a R. defende que deve fixar-se ao autor as indemnizações não superiores a € 35.000,00 por danos patrimoniais futuros e € 15.000,00 por danos não patrimoniais.
Como resulta da exposição antecedente, entendemos que a questão deste último tipo de danos está arredada do tema. A partir do momento em que a sentença apenas definiu dois itens de danos patrimoniais [os da al. a) e da al. c) da decisão, que a recorrente expressamente aceita], a partir do momento em que interpretamos a sentença nos termos indicados (o chamado dano biológico foi enquadrado apenas no capítulo dos danos não patrimoniais), temos que o recurso incide sobre este tipo de danos e que é o que a sentença teve em mente.
*
Em relação ao quantitativo de € 25.000,00 que a sentença definiu para os «danos não patrimoniais propriamente ditos», achamos que o valor em nada ofende o art.º 496º, Cód. Civil. Afinal, o A. sofreu traumatismo crânio encefálico com perda de conhecimento, múltiplas contusões intracentimetricas e petéquias frontais bilaterais sem significativo efeito da massa e síndroma pós traumatismo com predomínio de deficits neuropsiquicos e instabilidade emocional e perturbações no sono. E isto apenas como consequência imediata (temporalmente) do acidente.
Depois desta primeira fase, temos as respectivas sequelas: as incapacidades temporárias e a repercussão temporária na actividade escolar profissional total que foi fixada em 290 dias.
O montante fixado parece-nos menor que o devido a este título.
E, uma vez que a recorrente invoca, dentro dos elementos a que se deve atender nesta matéria, a culpabilidade do responsável lesante, não podemos deixar de chamar a atenção para um facto gravíssimo: o segurado na R. não parou num sinal de STOP!
Quanto aos demais danos que na sentença foram integrados no dano biológico (os que a recorrente considera serem patrimoniais), também entendemos que o valor encontrado é, pelo menos, justo. Trata-se de uma única indemnização [sem prejuízo da condenação contida na al. d) da decisão] que o A. receberá para a vida e que servirá para colmatar as brechas que a situação em que se encontra criou e com que vai ter de viver até ao final.
*
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pela recorrente.
Évora, 13 de Julho de 2017
Paulo Amaral
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho