Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1087/05.5TBALR-K.E1
Relator: ALBERTINA PEREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
RESOLUÇÃO DE ACTO PREJUDICIAL À MASSA
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE
Data do Acordão: 05/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Todo o processo de insolvência se mostra pensado para que o património do insolvente possa ser repartido por todos os credores, de acordo com o mérito dos seus créditos.
II - O efeito primordial da declaração de insolvência pode sintetizar-se com a transferência dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais ficam interditos ao devedor declarado insolvente e passam a competir ao administrador da insolvência, em regra, com carácter absoluto.
III - A resolução em benefício da massa insolvente é a forma especial prevista no artigo 120.º do CIRE para a obtenção da reintegração na massa insolvente dos bens que da mesma não constem por terem sido antecipadamente retirados da esfera patrimonial do devedor mercê da prática pelo mesmo de actos prejudiciais à massa.
IV - A legitimidade activa para operar a restituição à massa insolvente dos bens que nesta não tenham sido incluídos por actos prejudiciais à mesma, que aproveita a todos os credores porque é feita em benefício da massa, pertence exclusivamente ao administrador da insolvência, não sendo admissível que os credores se lhe substituam praticando actos que cabem na sua esfera de competência exclusiva.
V - O entendimento de que o administrador de insolvência é o único a deter legitimidade activa para a resolução em benefício da massa insolvente, não afecta o princípio constitucional de acesso ao direito e aos tribunais por banda dos credores singulares, tanto mais que o legislador reservou para estes a legitimidade activa para dedução da acção de impugnação pauliana, quando o administrador de insolvência não tenha procedido a tal resolução, excluindo consequentemente a legitimidade activa para o efeito do administrador de insolvência.
Decisão Texto Integral:




Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1]:

I – RELATÓRIO
1. AA e BB, intentaram a presente acção declarativa contra a insolvente CC, Ld.ª, e contra DD e EE, peticionando seja declarada a nulidade dos negócios celebrados entre a 1ª ré, declarada insolvente, e os 2ºs réus por simulação relativa; ou subsidiariamente seja declarada a nulidade dos negócios celebrados entre a 1ª ré e os 2ºs réus por simulação absoluta; ou finalmente, caso também assim não se entenda, seja julgada procedente a impugnação pauliana, ficando os 2ºs réus obrigados à restituição dos bens na medida do interesse dos autores.

2. Não se conformando com a decisão proferida em 01-02-2016 que declarou a extinção da instância, por impossibilidade da lide, quanto aos dois primeiros pedidos formulados na petição inicial para declaração da nulidade do negócio celebrado entre a insolvente e os demais réus, os autores interpuseram recurso de apelação da mesma, invocando nas suas conclusões que:
«1. Antes de mais há que salientar que nos presentes autos em rigor, não se trata de resolução em benefício da massa insolvente mas de uma declaração de nulidade relativa (pedido principal) em benefício dos AA., não diretamente enquanto credores da sociedade CC, Lda., mas sim enquanto responsáveis hipotecários perante os 2ºs RR, tratando-se dum litígio que, em substância, opõe os autores aos 2ºs RR.
2. A posição da sentença recorrida que considera que decorre dos arts. 120º e seguintes do CIRE e mormente do artigo 123º, nº 1, que os credores não podem invocar em tribunal a nulidade de contratos celebrados por uma sociedade declarada insolvente, não tem na lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Tal interpretação é desconforme com a unidade do sistema jurídico pois que decorre do regime geral da nulidade que a mesma é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo Tribunal (art. 286º do Código Civil).
4. Tal interpretação é contrária ao artigo 20º, nº 1 da constituição, pois o direito à tutela jurisdicional efetiva aí consagrado postula “uma tutela sem lacunas e completa, conferida a quem quer que seja, contra quem quer que seja, para reagir contra o que quer que seja.”
5. A tutela judicial efetiva não é assegurada pela interpretação da decisão recorrida que sustenta que o interessado pode “requerer” a declaração de resolução ao administrador de insolvência, uma vez que a declaração de resolução não equivale a declaração de nulidade e, decisivamente, porque o administrador de insolvência “pode”, ou não, declarar tal resolução, ficando o interessado na declaração de nulidade, em tal caso, totalmente carecido de tutela judicial.
6. A ratio legis do art.º 123º, nº 1, do CIRE, é o de permitir a resolução abreviada e rápida pelo administrador dos atos aí previstos e não a de restringir o acesso ao direito e invocação de causa de pedir pertinentes à declaração de direitos que, aliás, sempre seria violadora do art.º 20º, nº 1, da Lei Fundamental.
7. A errada interpretação da sentença recorrida ao colocar “nas mãos” do administrador de insolvência a possibilidade de ser suscitada a questão da nulidade dum contrato, implica que o interessado, neste caso os autores, fique carecido de tutela judicial efetiva.
8. Razão pela qual, a interpretação feita pela sentença recorrida do regime do art. 123º, nº 1 do CIRE, viola o art. 20º, nº 1, da constituição da República Portuguesa.
9. Viola, ainda, o art. 123º, nº 1, do CIRE e o art. 286º do Código Civil.
Pelo que, deve ser dado provimento ao presente recurso e ser revogada a decisão recorrida devendo ser admitidas todas as causas de pedir e pedidos invocados na petição inicial».

3. Não foram apresentadas contra-alegações.

4. Observados os vistos, cumpre decidir.

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II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[2], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
No caso em apreço, desde logo verificamos que os recorrentes se conformam com o segmento da decisão que considerou a Instância Central de Comércio incompetente para a presente causa quanto ao pedido subsidiário relativo à impugnação pauliana, determinando a sua desapensação e remessa dos autos à Instância Central Cível, pretendendo, porém, que ali sejam julgados também o pedido principal de declaração de nulidade do negócio, por simulação relativa, e o primeiro pedido subsidiário, de declaração de nulidade, por simulação absoluta.
Assim delimitado o respectivo objecto, temos que as questões submetidas a apreciação no presente recurso de apelação se reconduzem a saber se a interpretação feita pela sentença recorrida do regime do artigo 123.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[3], considerando que se trata de um regime especial para a resolução dos actos em benefício de todos os credores, ficando precludida a possibilidade de cada credor individualmente requerer a nulidade de tais negócios, quando o Administrador o não faça, é ilegal, violando o disposto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa[4].
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III – Fundamentos
III.1. – De facto
É a seguinte a factualidade que resulta dos autos com interesse para a decisão do presente recurso:
1) Por contrato assinado em 14 de Maio de 2005 a R. prometeu vender aos AA. ou a quem estes entendessem, livre de ónus ou encargos, as fracções designadas pelas letras “A” e “D” do prédio identificado nos autos, tendo declarado já haver recebido o preço, do qual deu quitação.
2) Em 23 de Agosto de 2005 a R. não tinha pago ao Banco FF, SA, o valor necessário à extinção das hipotecas.
3) Por sentença proferida em 23 de Novembro de 2005, no processo n.º 1087/05.5TBALR, foi declarada a insolvência de CC, Ld.ª.
4) Por Acórdão deste Tribunal da Relação, de 6 de Novembro de 2008, foi julgada procedente a acção instaurada pelos ora AA para a execução específica do contrato-promessa referido em 1), declarando-se transmitida para estes o direito de propriedade das fracções “A” e “D” do prédio identificado nos autos, e condenando-se a massa insolvente no pagamento aos recorrentes da quantia de €51.023,5, relativa ao montante do valor do débito garantido correspondente às referidas fracções, acrescida de juros de mora legais desde a citação.
5) A presente acção foi instaurada em 12 de Janeiro de 2007, invocando os AA em fundamento dos pedidos formulados, que são credores da 1.ª R à celebração do contrato-prometido e ao eventual valor de expurgação da hipoteca das fracções objecto de tal contrato, aduzindo que com as cessões de crédito e as supostas “compras e vendas” celebradas pelos 2.ºs RR, a sua situação fica pior do que antes das mesmas porque enquanto antes respondiam seis fracções, agora, pela mesma suposta “dívida” respondem apenas duas, as destinadas aos AA.
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III.2. – O mérito do recurso
Pretendem os Recorrentes que nos presentes autos em rigor, não se trata de resolução em benefício da massa insolvente mas de uma declaração de nulidade relativa (pedido principal) em benefício dos AA., não directamente enquanto credores da sociedade CC, Lda., mas sim enquanto responsáveis hipotecários perante os 2ºs RR, tratando-se dum litígio que, em substância, opõe os autores aos 2ºs RR.
Por isso, a posição da sentença recorrida que considera que decorre dos artigos 120.º e seguintes do CIRE e mormente do artigo 123.º, n.º 1, que os credores não podem invocar em tribunal a nulidade de contratos celebrados por uma sociedade declarada insolvente, não tem na lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, sendo desconforme com a unidade do sistema jurídico pois que decorre do regime geral da nulidade que a mesma é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo Tribunal (artigo 286.º do Código Civil[5]).
Entendem ainda que tal interpretação é contrária ao artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, pois o direito à tutela jurisdicional efectiva aí consagrado postula “uma tutela sem lacunas e completa, conferida a quem quer que seja, contra quem quer que seja, para reagir contra o que quer que seja”, não sendo a mesma assegurada pela interpretação da decisão recorrida uma vez que a declaração de resolução não equivale a declaração de nulidade e, decisivamente, porque o administrador de insolvência “pode”, ou não, declarar tal resolução, ficando o interessado na declaração de nulidade, em tal caso, totalmente carecido de tutela judicial.
Vejamos, se lhes assiste ou não razão.
Expendeu-se na decisão recorrida em fundamento do decidido que a presente acção configura, assim, em primeira linha uma acção para declaração de nulidade de negócio jurídico celebrado pela insolvente e, subsidiariamente, uma acção de impugnação pauliana.
A declaração de nulidade de actos praticados pelo devedor é um meio de tutela da garantia patrimonial dos credores e pode ser usada quer os actos nulos sejam anteriores, quer posteriores à constituição do crédito, desde que tenham interesse na declaração de nulidade, não carecendo o credor de demonstrar que o acto produz ou agrava a insolvência do devedor (artigo 605º, nº 1, do Código Civil). Este instituto opera em benefício não só do credor que invoca a nulidade, mas também dos restantes credores (artigo 605º, nº 1, do Código Civil).
O Capítulo V do Título IV do CIRE (artigos 120º a 126º) consagra um regime específico de conservação da garantia patrimonial da massa insolvente (e, consequentemente, dos credores da insolvência): instituto da resolução de negócios em benefício da massa insolvente.
O instituto em apreço permite a reintegração na massa insolvente de activos patrimoniais que lhe foram subtraídos pela prática de actos (ou omissões) em determinado período de tempo, sendo que a competência para o exercício da referida resolução pertence por inteiro e exclusivamente ao Administrador da Insolvência (art.º 123.º do CIRE), não prevendo a lei (ao contrário do que acontece com a impugnação pauliana – cfr. artigo 127º), que os credores, paralelamente, instaurem acções com o mesmo objectivo, como ocorre com a declaração de nulidade de negócios celebrados pelo devedor antes da insolvência.
Compreende-se que assim seja, pelas razões que já referimos: as acções de anulação ou de declaração de nulidade de negócios do devedor declarado insolvente, teriam o mesmo resultado que a resolução em benefício da massa insolvente, fazendo reverter os bens para a titularidade da mesma, garantia de todos os credores.
Neste sentido conclui-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08-07-2015, in www.dgsi.pt – entendimento que sufragamos na integra - que: “A acção em que o credor pretende a declaração de nulidade dos negócios celebrados pelo devedor (insolvente) não se integra na previsão legal do artigo 127.º do CIRE, sendo inviável após a declaração da insolvência.
E que, “Tendo conhecimento de negócios lesivos para os credores (partilha e “cessão de quinhão hereditário”), celebrados pelo devedor menos de um ano antes do processo de insolvência, deve o credor diligenciar junto do Administrador da Insolvência, prestando-lhe todas as informações, com vista a habilitá-lo ao exercício da resolução em benefício da massa insolvente, ao invés de intentar uma acção com pedido de declaração de nulidade dos negócios em causa (…).”
Entendemos, assim, que prevendo o CIRE, um regime especial para a resolução dos actos em benefício de todos os credores, fica precludida a possibilidade de cada credor individualmente requerer a nulidade de tais negócios; cabendo-lhe antes dar conhecimento ao Administrador de Insolvência das circunstâncias em que o negócio ocorreu, requerendo que este diligencie pela resolução.
Não podemos deixar de, desde já, expressar a nossa concordância com o sentido da decisão recorrida.
Efectivamente, conforme resulta dos termos da própria formulação legal constante do artigo 1.º do CIRE, “[o] processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente”.
Tendo presente o carácter universal do processo de insolvência, e para que esta característica própria de execução universal seja assegurada, são legalmente consagrados vários procedimentos que visam acautelar o tratamento igualitário dos credores.
Para atingir esse fito, o primeiro dos efeitos da declaração de insolvência no que tange ao património do devedor, é a apreensão judicial dos seus bens, que é declarada pelo juiz logo na sentença que decreta a insolvência (artigo 36.º, alínea g), segunda parte), para imediata entrega ao administrador de insolvência de todos os bens susceptíveis de penhora que integrem o património do devedor à data da declaração de insolvência, assim como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo, os quais passam a constituir a massa insolvente (artigo 46.º, n.º 1, do CIRE). Outro efeito muito relevante relativamente à situação patrimonial do insolvente, é a designada estabilização do passivo, que tem repercussões em várias vertentes das quais se realça para o que ora importa o vencimento de todas as obrigações do insolvente, assegurando-se também a participação de todos os credores no processo de insolvência, fixando-se na sentença um prazo para reclamação dos seus créditos (artigo 36.º, alínea j)m e 128.º, n.º 1, do CIRE).
Do exposto decorre que todo o processo de insolvência se mostra pensado para que o património do insolvente possa ser repartido por todos os credores, de acordo com o mérito dos seus créditos.
Precisamente por se tratar de um processo de execução universal, nele são chamados a concorrer todos os credores, porquanto são estes que o processo de insolvência visa tutelar, satisfazendo os mesmos, na medida do possível, com a repartição por eles do produto obtido com a liquidação do património do insolvente.
Esta “característica universal da insolvência manifesta-se ainda na atracção que ela exerce sobre as acções em que estejam envolvidas questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, que tenham sido propostas contra o devedor ou mesmo contra terceiros, desde que a decisão que neles venha a ser proferida possa influenciar o valor da massa (primeira parte do n.º 1 do artº 85.º). Estas acções são apensadas ao processo de insolvência”[6].
Por isso que, com a declaração de insolvência, o insolvente fica em geral privado de poderes de administração e disposição dos bens que integram a massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência, cuja nomeação e estatuto se mostra plasmado nos artigos 52.º e seguintes do CIRE, relevando neste aspecto em especial o disposto no artigo 81.º, n.ºs 1 e 4, do referido código, dos quais decorre que a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência, que assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.
O mesmo é dizer que o efeito primordial da declaração de insolvência pode sintetizar-se com a transferência dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais ficam interditos ao devedor declarado insolvente e passam a competir ao administrador da insolvência, em regra, com carácter absoluto[7].
Assim, é ao administrador de insolvência, enquanto órgão do processo de insolvência, que se encontram legalmente cometidas as competências relativamente ao destino dos negócios jurídicos celebrados pelo insolvente que ainda não estejam integralmente executados aquando da declaração de insolvência, nos termos do artigo 102.º e seguintes do CIRE, cabendo-lhe igualmente poder determinar a resolução em benefício da massa insolvente de negócios celebrados pelo insolvente antes da declaração de insolvência e que sejam prejudiciais àquela, nos termos previstos nos artigos 120.º e seguintes do CIRE.
E compreende-se que assim seja, uma vez que a sobredita finalidade de obtenção de um tratamento igualitário dos credores, de acordo com a qualidade dos respectivos créditos, só deste modo é tendencialmente assegurada.
Postas estas considerações gerais e volvendo ao caso dos autos, temos que os recorrentes pretendem não estar em causa a resolução em benefício da massa insolvente mas uma declaração de nulidade relativa em benefício dos AA., não directamente enquanto credores da sociedade insolvente, mas sim enquanto responsáveis hipotecários perante os 2ºs RR, tratando-se dum litígio que, em substância, opõe os autores aos 2ºs RR.
Porém, nos termos do artigo 5.º, n.º 2, do CPC, o juiz não está sujeito à alegação das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, bastando atentar na forma como configuraram a acção para concluirmos que não têm razão.
Efectivamente, apreciada a petição inicial da presente acção verificamos que os ora recorrentes, invocam, para além do mais, que as supostas escrituras de compra e venda celebradas entre a ré entretanto declarada insolvente e os 2.ºs RR., não correspondem à vontade negocial das partes, não tendo havido intento que estes pagassem os preços das vendas das escrituras de 05.08.2005 e 04.10.2005; a intenção era, quanto muito, apenas a transmissão dos imóveis, não que a 1.ª R. recebesse efectivamente qualquer quantia. O que as partes pretenderam com as escrituras em causa foi que os 2.ºs RR. recebessem em imóveis valor que os compensasse do valor por estes despendido ao Banco GG, com a aquisição do crédito ao Banco FF, sobre a ora insolvente, através da escritura de cessão de crédito de 18.07.2005, ou seja, pretenderam uma dação em pagamento das dívidas da 1.ª Ré. Em resultado desta divergência os 2.ºs RR. ficariam, face às escrituras, com um crédito de 160.056,9€ sobre a 1.ª R. garantido com as fracções prometidas vender aos AA, ficando estes sem nada.
Mais aduzem, no artigo 119.º da petição inicial, que deve dar-se as transmissões de propriedade sem efeito, devendo os 2.ºs RR. restituir ao património da 1.ª R. os imóveis objectos das supostas vendas; e nos artigos 123.º e 124.º que a 1.ª R. não tem património suficiente para responder pelo pagamento do suposto crédito dos 2.ºs RR., nem perante o crédito dos AA. resultantes de expurgação das hipotecas.
Ora, de todo o elenco factual trazido pelos AA. e ora recorrentes aos autos, e dos pedidos formulados emerge, sem qualquer margem para dúvidas interpretativas, conclusão diversa daquela que os mesmos afirmam nas alegações de recurso, de estarmos perante um litígio que, em substância, opõe os autores aos 2ºs RR, enquanto responsáveis hipotecários perante estes. Efectivamente, não é por acaso que a 1.ª R., já insolvente à data da instauração da presente acção, foi demandada pelos AA: basta atentarmos que os mesmos pedem, em primeiro lugar, a declaração de nulidade relativa dos negócios, decretando-se que o negócio real celebrado foi uma dação em pagamento. Com que consequências? Evidentemente na massa insolvente. Aliás, veja-se que são os próprios autores que o referem no artigo 76.º da petição inicial quando explicam as razões pelas quais o negócio real não foi o constante da escritura, dizendo que os 2.ºs RR. ainda correriam o risco de verem tais negócios resolvidos em benefício da massa insolvente, nos termos do artigo 120.º e seguintes do CIRE, dado que tais negócios evidentemente diminuiriam, dificultariam e poriam em perigo a satisfação dos credores. Depois, quando pedem, subsidiariamente, a declaração da nulidade absoluta dos negócios, expressamente concluem que os 2.ºs RR. devem restituir ao património da 1.ª R. os imóveis objecto das supostas vendas; finalmente, quando peticionam a procedência da impugnação pauliana, pedem que os 2.ºs RR. fiquem obrigados à restituição dos bens em causa na medida do interesse dos autores.
E qual é o “interesse dos autores”? Também vem claramente expresso no artigo 121.º da petição inicial onde dizem que são credores da 1.ª R à celebração do contrato prometido e ao eventual valor de expurgação da hipoteca das fracções objecto de tal contrato.
Conforme resulta da matéria de facto supra descrita, os AA. entretanto instauraram acção contra a 1.ª R. pedindo a execução específica do contrato-promessa e o pagamento do valor devido pela expurgação das hipotecas incidentes sobre as fracções, a qual veio a ser julgada procedente por este Tribunal da Relação, declarando-se transmitida para os AA o direito de propriedade das fracções “A” e “D” do prédio identificado nos autos, e condenando-se a massa insolvente no pagamento aos recorrentes da quantia de €51.023,5, relativa ao montante do valor do débito garantido correspondente às referidas fracções, acrescida de juros de mora legais desde a citação.
O mesmo é dizer que aquando da interposição de recurso da decisão proferida nesta acção os AA viram significativamente alterada a sua posição relativamente ao momento em que interpuseram a mesma, porquanto se mostra reconhecido o direito que então se arrogavam, por decisão transitada em julgado.
Assim, os autores pretendiam ver celebrado o contrato prometido, com a aquisição a seu favor das identificadas fracções, livres de ónus ou encargos. Ora, de acordo com o decidido no referido Acórdão deste Tribunal da Relação, o direito de propriedade relativo às fracções A e D do prédio identificado nos autos, já foi transmitido a seu favor. E para concretizar a prometida transmissão, livre de ónus ou encargos, tendo entretanto sido declarada a insolvência da Ré, mais se decidiu no mesmo Acórdão, condenar a massa insolvente no pagamento aos recorrentes da quantia de €51.023,5, relativo ao montante do valor do débito garantido correspondente às referidas fracções, acrescida de juros de mora legais, desde a citação. Trata-se de factos jurídicos supervenientes e atendíveis, nos termos do artigo 611.º, n.º 1, do CPC.
Desta sorte, os autores viram reforçado o seu direito porquanto, por decisão judicial, o contrato prometido foi executado, estando o seu crédito actualmente reconhecido por decisão transitada em julgado, cujo cumprimento o administrador não pode recusar, sendo consequentemente, na sua integralidade, um crédito sobre a massa (artigo 103.º, n.º 5, do CIRE).
Portanto, neste momento, aquilo que os autores podem pretender é que a massa insolvente lhes efectue o pagamento do montante em que foi condenada por decisão transitada em julgado, ou seja, que fique salvaguardada a sua posição enquanto credores da massa, já não estando em causa que as fracções respectivas respondam por outras dívidas da insolvente, designadamente aquelas que os 2.º RR. tenham reclamado.
Ora, não restam dúvidas que os ora recorrentes pretendem acautelar com os presentes autos que os indicados bens que, à data da declaração da insolvência, não foram incluídos na massa insolvente, porque houve um ato de disposição anterior que dela os excluiu alegadamente indevidamente, sejam reintegrados na massa insolvente, ou pelo menos os 2.º RR, sejam obrigados à restituição dos bens em causa na medida do interesse dos autores, em suma, pretendem por esta via que o seu indicado crédito fique garantido.
Trata-se, portanto, de efeitos que no decurso de um processo de insolvência - e a presente acção foi instaurada quando a mesma já tinha sido decretada -, têm forma específica para a respectiva obtenção: a resolução em benefício da massa insolvente ou a impugnação pauliana, evidentemente sempre dependendo da verificação dos pressupostos de um e outro instituto.
Assim, a resolução em benefício da massa insolvente é a forma especial prevista no artigo 120.º do CIRE para a obtenção da reintegração na massa insolvente dos bens que da mesma não constem por terem sido antecipadamente retirados da esfera patrimonial do devedor mercê da prática pelo mesmo de actos prejudiciais à massa, considerando-se como tais os que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência, presumindo-se como tal, sem admissibilidade de prova em contrário, os elencados no artigo 121.º do CIRE, presumindo-se ainda a má fé do terceiro quanto a actos cuja prática tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que haja participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente. Prevê-se, portanto, a resolução condicional no artigo 120.º e a resolução incondicional no artigo 121.º.
Ponto relevante neste regime especial de resolução refere-se ao modo de a operar e ao respectivo prazo que constam do artigo 123.º do CIRE.
Efectivamente, o preceito em referência contém um prazo de caducidade para o exercício deste direito relativamente a negócios já cumpridos – e não de prescrição como impropriamente se refere na epígrafe do artigo –, que deve ser efectivado nos seis meses seguintes ao conhecimento do acto, mas sempre com o limite máximo de dois anos a contar da data da declaração de insolvência.
E quanto ao modo de efectivar a resolução, decorre do preceito que a mesma pode operar por comunicação extrajudicial do administrador de insolvência, significando em nosso entender a expressão pode que o administrador tem a faculdade de efectivar a resolução por carta registada com aviso de recepção, mas a resolução pode também ser exercida, sem dependência de prazo, e por via de excepção quando o negócio não estiver cumprido. Em qualquer caso, esta possibilidade não exclui o recurso à via judicial se existir litígio entre os interessados, a dirimir judicialmente[8]. Servem estas afirmações para precisar que, ao invés do referido pelos recorrentes, a expressão em causa não significa deixar na discricionariedade do administrador de insolvência a resolução em benefício da massa insolvente, mas salientar que a mesma pode ser efectuada por via extrajudicial.
De facto, os poderes concedidos ao administrador de insolvência “têm em vista a satisfação de interesses que não são próprios: corresponde-lhes, por isso, a natureza de verdadeiros poderes funcionais, que ele não só pode como, sobretudo, deve, desempenhar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado”[9], conforme expressamente estatui o artigo 59.º, n.º 1, que consagra a responsabilidade do administrador de insolvência pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa insolvente pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem.
Considerando o exposto, e tendo sempre presente a finalidade de tratamento igualitário dos credores, não podemos deixar de considerar que a legitimidade activa para operar a restituição à massa insolvente dos bens que nesta não tenham sido incluídos por actos prejudiciais à mesma, que aproveita a todos os credores porque é feita em benefício da massa, pertence exclusivamente ao administrador da insolvência, não sendo admissível que os credores se lhe substituam praticando actos que cabem na sua esfera de competência exclusiva[10].
“Efectivamente, a razão de ser do processo de insolvência é a de fazer com que todos os credores do mesmo devedor exerçam os seus direitos no âmbito de um mesmo processo e o façam em condições de igualdade (…). Consequentemente, durante a pendência do processo, os credores apenas poderão exercer os seus direitos no âmbito do processo de insolvência (art. 90.º), deixando, como se viu, de poder instaurar acções independentes ou continuar a prosseguir outros processos à margem do processo de insolvência.[11]
No caso dos autos, não se vê como o entendimento de que o administrador de insolvência é o único a deter legitimidade activa para a resolução em benefício da massa insolvente, afecte o princípio constitucional de acesso ao direito e aos tribunais por banda dos ora recorrentes.
De facto, assim como o legislador com a reforma do processo de falência que se traduziu no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, criou este instituto específico da resolução em benefício da massa insolvente, com vista a permitir, de forma expedita e eficaz, a destruição de actos prejudiciais ao património do devedor a efectivar apenas pelo administrador de insolvência, também reservou a legitimidade activa para dedução da acção de impugnação pauliana ao credor singular quando o administrador de insolvência não tenha procedido a tal resolução, excluindo consequentemente a legitimidade activa para o efeito do administrador de insolvência.
Por isso se entende, conforme já afirmado no acórdão do Tribunal da Relação do Porto citado na decisão recorrida[12], que a acção em que o credor pretende a declaração de nulidade dos negócios celebrados pelo devedor (insolvente) não se integra na previsão legal do artigo 127.º do CIRE, sendo inviável após a declaração da insolvência.
Efectivamente, não podemos olvidar que este novo regime resulta do facto de ter deixado de existir a impugnação pauliana colectiva prevista no regime anterior, pelo que, “após a entrada em vigor do CIRE, aproveitando a procedência da acção pauliana somente ao credor impugnante, também o administrador da insolvência carece de legitimidade para deduzir este tipo de acções ou para nelas intervir” [13].
Consequentemente, não pode colher o argumento de que tal interpretação do artigo 123.º do CIRE é inconstitucional, designadamente por constituir uma proibição de acesso ao direito e negação de tutela jurisdicional efectiva porquanto a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem caracterizado o direito de acesso aos tribunais como sendo, entre o mais que para o caso não releva, um direito a uma solução jurídica dos conflitos, em prazo razoável, com observância de garantias de imparcialidade e independência, e com um correcto funcionamento das regras do contraditório, que não se vê como possam ter sido postergadas com a referida interpretação, já que aos autores foi claramente concedido o direito a continuar os presentes autos relativamente à impugnação pauliana na parte em que a decisão proferida já transitou[14].
Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, improcedem todas as conclusões do presente recurso.
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III.2.3. - Síntese conclusiva:
I - Todo o processo de insolvência se mostra pensado para que o património do insolvente possa ser repartido por todos os credores, de acordo com o mérito dos seus créditos.
II - O efeito primordial da declaração de insolvência pode sintetizar-se com a transferência dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais ficam interditos ao devedor declarado insolvente e passam a competir ao administrador da insolvência, em regra, com carácter absoluto.
III - A resolução em benefício da massa insolvente é a forma especial prevista no artigo 120.º do CIRE para a obtenção da reintegração na massa insolvente dos bens que da mesma não constem por terem sido antecipadamente retirados da esfera patrimonial do devedor mercê da prática pelo mesmo de actos prejudiciais à massa.
IV - A legitimidade activa para operar a restituição à massa insolvente dos bens que nesta não tenham sido incluídos por actos prejudiciais à mesma, que aproveita a todos os credores porque é feita em benefício da massa, pertence exclusivamente ao administrador da insolvência, não sendo admissível que os credores se lhe substituam praticando actos que cabem na sua esfera de competência exclusiva.
V - O entendimento de que o administrador de insolvência é o único a deter legitimidade activa para a resolução em benefício da massa insolvente, não afecta o princípio constitucional de acesso ao direito e aos tribunais por banda dos credores singulares, tanto mais que o legislador reservou para estes a legitimidade activa para dedução da acção de impugnação pauliana, quando o administrador de insolvência não tenha procedido a tal resolução, excluindo consequentemente a legitimidade activa para o efeito do administrador de insolvência.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em julgar improcedente o presente recurso de apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
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Évora, 5 de Maio de 2016


Albertina Pedroso [15]


Elisabete Valente


Bernardo Domingos







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[1] Relatora: Albertina Pedroso;
1.º Adjunto: Elisabete Valente;
2.º Adjunto: Bernardo Domingos.
[2] Doravante abreviadamente designado CPC, sendo aplicável aos termos do presente recurso o texto decorrente do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, por estar em causa decisão recorrida posterior a 1 de Setembro de 2013 – cfr. artigos 5.º, 7.º, n.º 1 e 8.º.
[3] Doravante abreviadamente designado CIRE.
[4] Doravante abreviadamente designada CRP.
[5] Doravante abreviadamente designado CC.
[6] Cfr. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Colectânea de Estudos sobre a Insolvência, pág. 201.
[7] Sem prejuízo das excepções previstas no capítulo X do CIRE e que não relevam para este caso.
[8] Cfr. autores e obra citada, pág. 207.
[9] Cfr. autores citados, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, Reimpressão, 2009, pág. 259.
[10] Cfr. neste sentido, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in Direito da Insolvência, 4.ª edição, Almedina 2012, pág. 222.
[11] Cfr. autor e obra citada, pág. 175.
[12] Cfr. Acórdão de 08.07.2015, proferido no processo 465/14.3TBMAI-A.P1, disponível em www.dgsi.pt.
[13] Cfr. neste sentido, na situação inversa de o administrador instaurar acção de impugnação pauliana, Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 25.06.2015, processo n.º 600/13.9TBRMR.E1, citando o Acórdão da Relação de Coimbra, de 11.03.2014, processo n.º 32/12.6TBSRT.C1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[14] Cfr. a título meramente exemplificativo, os acórdãos do Tribunal Constitucional citados no referido acórdão: nºs 404/87, 86/88 e 222/90, Diário da República, II série, de, respectivamente, 21 de Dezembro de 1987, 22 de Agosto de 1988 e 17 de Setembro de 1990; e Acórdão n.º 271/95, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
[15] Texto elaborado e revisto pela Relatora.