Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
249/16.4GBPSR-A.E1
Relator: MARTINHO CARDOSO
Descritores: REQUERIMENTO PARA A ABERTURA DA INSTRUÇÃO
FALTA DE NOTIFICAÇÃO
Data do Acordão: 02/18/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I – Gorando-se as diligências realizadas com vista à notificação pessoal dos arguidos, residentes em país estrangeiro, da acusação contra eles deduzida, não pode o JIC, ao aperceber-se da falta de notificação, devolver os autos ao Ministério, sob o pretexto de não se terem esgotado todos os procedimentos de notificação da acusação aos arguidos.
Decisão Texto Integral:
I
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

No presente apenso de recurso em separado, proveniente dos autos de instrução acima identificados, do Juiz 2 do Juízo de Competência Genérica de Ponte de Sôr, do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, o M.º P.º deduziu acusação contra RR e HH e, porque entendeu que os procedimentos de notificação se tinham revelado ineficazes, ordenou o prosseguimento do processo, nos termos do art.º 283.º, n.º 5, do Código de Processo Penal. Tendo os acusados requerido a abertura de instrução, lavrou então a Exma. JIC o seguinte despacho:

Considerando o teor da resposta das autoridades iraquianas à carta rogatória expedida para notificação dos arguidos e tendo ainda em conta que os mesmos não se encontram em Portugal, não sendo provável que se venham a deslocar a território nacional, foi determinado, por despacho de fls. 1112, a remessa dos autos à distribuição como instrução.

Ora, não obstante o teor da referida resposta das autoridades iraquianas, não é certo terem-se esgotado todos os procedimentos de notificação da acusação aos arguidos, tanto mais que já se previa em sede de acusação o pedido de colaboração da Interpol caso a Procuradoria Geral da República, através dos canais diplomáticos, não conseguisse efetuar tal notificação.

Face ao exposto, de molde a não coartar as garantias de defesa dos arguidos, e com respeito pelo disposto no artigo 283.°, n.° 5, segunda parte, a contrario, do CPP, determino que se dê baixa na distribuição e se devolvam os autos ao M.P. para notificação da acusação aos arguidos, nos moldes, aliás, já determinados em sede de despacho acusação.
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Inconformado com o assim decidido, o M.º P.º interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:

1. O Ministério Público, inconformado, vem interpor recurso do despacho judicial de fls. 1119, que decidiu pela devolução dos autos ao Ministério Público para diligenciar pela notificação dos arguidos do teor do despacho de acusação, designadamente via Interpol,

2. Considerou o Tribunal que não se encontravam esgotadas todas as tentativas com vista à notificação dos arguidos, razão pela qual entendeu não ser aplicável, in casu, o disposto no artigo 283.º, n.º 5, do Código de Processo Penal.

3. Porém, considerando todos os elementos juntos aos autos, nomeadamente a resposta das autoridades iraquianas à carta rogatória expedida no sentido da notificação dos arguidos RR e HH, bem como a leitura do disposto no artigo 3.º do Estatuto da Interpol, permitem concluir que todas as diligências tendentes à notificação dos arguidos se revelaram ineficazes, e, como tal, deverão os autos prosseguir, nos termos do disposto no artigo 283.º, n.º 5, do Código de Processo Penal.

4. De acordo com a matéria de facto junta aos autos e com a matéria de direito que ora se discute, entendemos que a Mma. Juiz "a quo" não fez uma interpretação correcta do disposto no artigo 283.º, n.º 5, do Código de Processo Penal.

5. Porém, e ainda que assim não se entendesse, sempre se dirá que a preconizada falta de notificação da acusação a que se alude no âmbito do despacho de que se recorre, não cabendo no elenco tipificado nos artigos 119.º e 120.º do Código de Processo Penal, nem como tal se mostrando cominada em alguma outra disposição legal, vem sendo no âmbito de decisões emanadas de tribunais superiores caracterizada como irregularidade com os efeitos previstos no artigo 123.º, do Código de Processo Penal.

6. Na sequência do despacho de acusação, proferido em 17.01.2018, vieram os arguidos requerer a abertura de instrução no dia 30.01.2018, ou seja, tempestivamente, à luz do disposto no artigo 287.º, n.° 1, al. a), e n.º 2, do Código de Processo Penal.

7. Resulta então, de forma clara, nos presentes autos, que os arguidos, sem invocar ou arguir algum vício capaz de projectar-se na validade do processado e aceitando expressamente a notificação que lhes foi feita da acusação contra si formulada, vieram tempestivamente requerer a abertura de instrução, que, como é bom de ver, ainda que a ter-se verificado algum vício concernente à falta de notificação dos arguidos, sempre terá tal vício de ser considerado como sanado.

8. Assim, o despacho colocado em crise, por devolver os autos ao Ministério Público e não declarar aberta a fase de instrução, imprime ao processo uma sequência de trâmites que arreda aos arguidos a possibilidade de participarem activamente no processo, como efectivamente pretendem, e a que têm pleno direito (e tanto assim é que apresentaram tempestivamente os respectivos requerimentos para abertura de instrução), como lhes veda a possibilidade de requererem e verem admitida a fase de instrução, a qual se traduz no efectivo exercício das garantias de defesa, constitucionalmente consagradas, violando o disposto nos artigos 61° n° 1 al. g) do Código de Processo Penal e viola o disposto no art. 287.º n.º 3, do mesmo diploma legal.

9. Mesmo que se entendesse, in casu, verificar-se a falta de notificação da acusação do Ministério Público aos arguidos, nulidade a ter de ser arguida pelos interessados no prazo de 3 dias, não sendo de conhecimento oficioso, e tal não significa que o juiz não possa reparar, oficiosamente, a irregularidade, ao invés de determinar a devolução dos autos ao Ministério Público.

10. Aliás, no caso em apreço competiria à Mma. Juiz reparar, oficiosamente, a irregularidade, pois que nem o princípio do acusatório, nem o facto de a direcção do inquérito competirem ao Ministério Público afastam a possibilidade de, transposta a fase de inquérito, o juiz poder sindicar, tempestivamente, qualquer irregularidade ou nulidade verificadas na fase anterior.

Nestes termos, e nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida e substituída por outra que declare aberta a fase de instrução
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Os acusados não responderam.
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Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.

De modo que a única questão posta ao desembargo desta Relação é a de se, nos termos do disposto no art.º 283.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, se encontram ou não esgotados os procedimentos possíveis à notificação dos arguidos da acusação que contra eles foi deduzida, por forma a permitir que o processo avance já ou não para a fase de instrução requerida por aqueles.

Se se entender que se encontram esgotados os procedimentos possíveis àquela notificação, revogar-se-á o despacho recorrido, ordenando-se seja o mesmo substituído por outro que aprecie os requerimentos de abertura de instrução.

Se se entender que não se encontram ainda esgotados os procedimentos possíveis àquela notificação, teremos então que ver de que anomalia se trata, se de uma nulidade, se de uma irregularidade, se é de conhecimento oficioso (uma vez que não foi suscitada por nenhum dos acusados) e quais as consequências para o processado.

Vejamos:

Os acusados, RR e HH, têm a nacionalidade ---- e são filhos de …, o qual, à data dos factos descritos na acusação, desempenhava as funções de embaixador da República do --- em Portugal e com ele viviam.

Em 5-2-2019 deu entrada nos serviços do M.º P.º do DIAP de Évora uma comunicação proveniente das autoridades ---, a título de resposta à carta rogatória enviada (cf. de fls. 1125), cuja tradução consta a fls. 1109 e 1110 dos autos principais, e na qual se espelha o entendimento das autoridades iraquianas de que "o caso acima referenciado foi resolvido com a parte portuguesa no processo no Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, tendo tal resolução sido reconhecida pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros em Portugal e pelo advogado da parte contrária" e ainda "o processo foi arquivado em Portugal na sequência de um acordo entre o Subsecretário do Ministério dos Negócios Estrangeiros do --- e o Adjunto do Ministro português e que o acordo foi concretizado mediante o pagamento pelo antigo Embaixador das despesas médicas e hospitalares de uma indemnização à família da parte contrária", informando ainda que "(…) de modo a manter as relações de amizade entre os dois países, todos os termos do acordo foram cumpridos e esperamos que uma posição semelhante seja adoptada no lado português para encerrar o caso junto do M.P.", anexando para o efeito o acordo celebrado entre os ofendidos e S., à data embaixador da República do --- em Portugal, em representação dos seus filhos, acusados nestes autos.

Mais se refira que, anexa à resposta das autoridades ---, foi enviado ofício do Ministério dos Negócios Estrangeiros com vista ao esclarecimento do acordo invocado pelas autoridades ---, onde se pode ler que "O Ministério dos Negócios Estrangeiros meramente ofereceu as suas instalações para que as partes no processo, nomeadamente o ex-Embaixador do --- e a mãe de RC, se reunissem, tendo estas chegado a um acordo quanto a uma indemnização a ser paga a RC e comprometendo-se a não apresentar qualquer queixa-crime ou a dela desistir e a não instaurar qualquer processo judicial, civil, criminal ou administrativo, nas instâncias nacionais ou internacionais pelos factos ocorridos no dia 17 de Agosto de 2016"; e ainda que "O Ministério dos Negócios Estrangeiros não tomou qualquer posição ou qualquer acção relativamente a este acordo, sendo este da inteira responsabilidade das partes envolvidas no mesmo (...) nunca houve qualquer indicação às autoridades iraquianas por parte do Governo Português de que este processo iria ser encerrado após o acordo extrajudicial entre as partes".

E, obviamente, que não cumpriram a carta rogatória, isto é, não notificaram os filhos do Embaixador, aqui acusados.

Em face desta posição, entendeu pois o M.º P.º que se encontram esgotados todos os procedimentos tendentes à notificação dos acusados. E mais adiantou que, apesar de ---- ser um dos 186 países membros da Interpol, esta organização de cooperação policial actua com respeito pelas soberanias nacionais, estando, nos termos do art.º 3.° do estatuto da Interpol, vedada a esta organização “(…) qualquer actividade ou intervenção em questões ou assuntos apresentando um carácter político”.

Ora, as autoridades --- já se pronunciaram no sentido de não notificar os arguidos – filhos de um Embaixador, que beneficiam de imunidade diplomática – do teor do despacho de acusação e de pretender que o processo seja "encerrado "pelo Ministério Público, alegando existir um acordo reconhecido pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal.

Assim, afigura-se que a Interpol nada poderá fazer, pois a sua actuação está condicionada pelo respeito das soberanias nacionais, razão pela qual se entende que se encontram esgotados todos os procedimentos tendentes à notificação dos arguidos.(…)[1]

E o M.º P.º leu bem o recado enviado em resposta à carta rogatória: para bom entendedor, a linguagem diplomática daquela resposta deixa delicadamente transparecer que a posição ... significa que eles soberanamente entendem que isto é um caso político, que jamais irão notificar os filhos do seu Embaixador do que quer que seja relativo a este assunto, sendo por isso óbvio que polícia --- algum da Interpol se atreverá a proceder àquelas notificações.

De modo que – independentemente da questão da imunidade diplomática dos acusados que está posta nos requerimentos da abertura de instrução no processo principal e deverá ser aí conhecida – se mostram efectivamente esgotadas as diligências no caso possíveis para a notificação dos acusados e a Senhora Juíza deve substituir o despacho recorrido por outro que aprecie os requerimentos de abertura de instrução.

III
Termos em que, concedendo provimento ao recurso, se revoga o despacho recorrido e se ordena seja o mesmo substituído por outro que aprecie os requerimentos de abertura de instrução apresentados nos autos.

Não é devida tributação.
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Évora, 18-2-2020

(elaborado e revisto pelo relator)

João Martinho de Sousa Cardoso

Ana Maria Barata de Brito
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[1] Sendo certo que, mesmo sem terem sido notificados da acusação, cada um dos acusados requereu a abertura de instrução, levantando a questão da sua imunidade diplomática.