Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
514/19.9T8OLH.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
NRAU
DENÚNCIA PARA HABITAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 03/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - Tendo o contrato de arrendamento em discussão nos autos sido celebrado em 01.04.2008, ou seja, em plena vigência do NRAU, aprovado pela Lei nº 6/2006 e que, segundo o seu artigo 65º, entrou em vigor em 28.06.2006, não tem aplicação no caso o disposto no artigo 26º, nº 4, al. a), daquele diploma, que mantém em vigor a alínea a) do nº 1 do artigo 107º do RAU, de aplicação restrita aos arrendamentos habitacionais, pelo que nestes a faculdade de denúncia para habitação própria do senhorio ou dos seus descendentes, prevista no artigo 1101º, al. a), do Código Civil é restringida nos casos aí referidos.
II - Existia ainda a alínea b) do artigo 107º do RAU, que estabelecia que igualmente deixava de ser possível a denúncia para habitação quando o arrendatário se mantivesse «no local arrendado há 30 ou mais anos, nessa qualidade, ou por um período de tempo mais curto previsto em lei anterior e decorrido na vigência deste».
III - Esta limitação não foi ressalvada no NRAU, mas o Tribunal Constitucional já considerou inconstitucional essa revogação por defender que a ofensa ao direito do arrendatário à permanência no local arrendado quando aí se tenha mantido por um período superior a 30 anos integralmente transcorrido à data em vigor daquela lei, viola os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, integrantes do princípio do Estado de direito democrático contido no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.
IV – Tendo a ré 74 anos de idade à data da denúncia do contrato de arrendamento, incumbia-lhe, enquanto facto impeditivo do direito dos autores, alegar e demonstrar a existência de um contrato de arrendamento celebrado em data anterior à entrada em vigor do NRAU, ónus que a ré não cumpriu, não tendo sequer contestado a ação. (sumário do relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
M… e marido, A…, instauram a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra L… e marido, V…, pedindo que seja decretada a cessação do arrendamento por denúncia válida e justificada do respetivo contrato efetuada pelos autores, e os réus condenados na entrega imediata do locado, livre e devoluto, ou subsidiariamente ser declarado resolvido o contrato de arrendamento, por incumprimento dos réus e os mesmos condenados a despejar o arrendado, entregando-o livre e desocupado aos autores.
Alegaram, em resumo, que:
- por contrato de arrendamento para habitação celebrado em 01.04.2008, A…, deu de arrendamento à ré mulher o nº … do prédio sito na …, em Olhão, para sua exclusiva habitação, pelo prazo de cinco anos, renovável por períodos de três anos se não fosse denunciado por qualquer dos intervenientes, e pela renda convencionada de € 150,00, que com as atualizações que foram efetuadas se cifra atualmente em € 180,00;
- em 22.11.2012, o primitivo senhorio e a sua mulher doaram à sua filha, ora autora, o prédio urbano com os números …, freguesia e concelho de Olhão, mantendo-se, os primitivos senhorios, a residir no nº … do referido prédio;
- em 03.10.2018, a autora remeteu à ré mulher uma carta em que denunciava o referido contrato de arrendamento, com efeitos a partir do dia 03.04.2019, o que se deveu à necessidade de habitação do filhos dos autores, P…, o qual não possuía há mais de um ano casa própria que satisfizesse as suas necessidades de habitação, tendo sido colocado ao dispor da ré o montante equivalente a um ano de renda;
- por carta datada de 25.10.2018, a ré respondeu à autora, informando-a de que era titular de um contrato de arrendamento de duração indeterminada desde 1986 e, tendo 74 anos de idade, encontra-se impossibilitada no caso, a denúncia pelo senhorio;
- a autora respondeu àquela missiva da ré dizendo que mantinha a posição inicialmente transmitida.
- A ré, ao ignorar o contrato de arrendamento com prazo certo e que ela própria assinou em 01.04.2008, incorreu em abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium;
- nos termos da cláusula 12ª do contrato de arrendamento, ficou expressamente vedado aos arrendatários, a sublocação ou cedência onerosa ou gratuita, no todo ou em parte, do locado;
- A ré costuma ceder parte do prédio a terceiros estranhos ao contrato, os quais permanecem a habitar o locado, entrando e saindo do prédio diariamente, sem o consentimento dos autores:
Regularmente citados nas suas pessoas, os réus não contestaram nem constituíram mandatário[1].
Foi proferido despacho a julgar confessados os factos articulados pelos autores, nos termos do artigo 567º, nº 1, do CPC.
Cumprido o disposto no nº 2 do mesmo preceito, vieram os autores apresentar alegações, concluindo como na petição inicial.
Foi então proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto e nos termos das disposições legais citadas, o Tribunal decide julgar a ação procedente, por provada, e consequentemente:
– Declaro a denuncia do contrato de arrendamento identificado em 1) dos fatos provados, efetuada pelos Autores pela comunicação de 03 de Outubro de 2018 válida e justificada, e em consequência, condeno os Réus na entrega do locado, imediatamente livre e devoluto de pessoas e bens.»
Inconformada, a ré apelou do assim decidido, finalizando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1- M… e marido A…, A.A. na presente ação judicial instauraram ação declarativa de despejo, sob a forma de processo comum contra a ora R., e marido, peticionando que fosse decretada a cessação do arrendamento por denúncia válida e justificada (alegadamente) do respetivo contrato efetuada pelos A.A. e os R.R. condenados na entrega do locado, livre e devoluto ou subsidiariamente ser declarado resolvido o contrato de arrendamento, por incumprimento dos R.R. e os mesmos condenados a despejar o arrendado, entregando-o livre e desocupado aos A.A., devendo ainda ser condenados no pagamento das custas, condigna procuradoria e o mais que legalmente for devido.
2- Para tanto alegam que, em síntese, que por contrato de arrendamento para habitação outorgado em 01 de Abril de 2008, A…, deram de arrendamento à R., L…, o n.º … do prédio sito na Rua de …, em Olhão, o qual se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o artigo …, para sua exclusiva habitação, pelo prazo de cinco anos, renovável por períodos de três anos se não fosse denunciado por qualquer dos intervenientes e pela renda convencionada de 150,00 € (cento e cinquenta euros), que com as atualizações que foram efetuadas se cifra atualmente em 180,00 € (cento e oitenta euros).
3- Sucedeu, porém, que, por carta datada de 25/10/2018, a ora aqui R. respondeu à A., informando-a de que era titular de um contrato de arrendamento de duração indeterminada desde o ano de 1986 e, tendo 74 (setenta e quatro) anos de idade, por força do disposto no artº 26º, n.º 4 do NRAU, o qual mantém a aplicabilidade do art.º 107 do RAU, encontra-se, encontrava-se, no seu caso, impossibilitada a denúncia pelo senhorio.
4- A A. enviou à ora aqui R. resposta informando-a de que mantinha a posição inicialmente transmitida.
5- Com a posição assumida pela inquilina, resultou que a mesma não aceita a denúncia do contrato de arrendamento efetuada pela A., fazendo tábua raza do contrato de arrendamento com prazo certo e que ela própria assinou a 1 de Abril de 2008.
6- Acresce, escreveu-se, que nos termos do disposto na cláusula 12º do contrato de arrendamento, ficou expressamente vedado aos arrendatários, a sublocação ou a cedência onerosa ou gratuita, no todo ou em parte, do prédio arrendado.
7- Alegou-se, falsamente, que a R. costumava ceder parte do prédio a terceiros estranhos ao contrato, os quais permaneceriam a habitar o locado, entrando e saindo do prédio diariamente.
8- Concluiu-se que os R.R. foram citados regularmente para contestar, com a cominação de que a falta de contestação importava a confissão dos factos articulados pelos A.A. e, por não terem contestado, consequentemente, consideraram-se os factos articulados pelos autores na Petição Inicial.
9- Acontece que a presente ação, ainda assim, não pode proceder.
Senão vejamos,
10- Conforme resulta comprovado documentalmente, foi transmitida à A., por doação, o imóvel que tinha sido objeto de arrendamento pelos donatários à R., contrato de arrendamento habitacional, com um prazo determinado, com inicio no dia 01/04/2008, pelo prazo de cinco anos renovável por períodos de três anos, se não fosse denunciado por qualquer dos intervenientes, ao abrigo do disposto no art.º 1088º do Cód. Civil (doravante C.C.) e regulado pelas normas contidas no Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27/6, com as alterações subsequentes.
11- Ora, no caso em análise, a questão a apreciar e a deduzir reconduz-se à cessação de contrato de arrendamento urbano para habitação quer pela denúncia para habitação própria de descendente em 1º grau, quer de resolução justificada por violação de estipulação contratual de proibição de sublocação ou cedência onerosa ou gratuita, no todo ou em parte, do prédio arrendado por parte dos R.R.
12- O regime de cessação pelo senhorio, que atualmente (desde a entrada em vigor da Lei n.º 6/2006 de 27 de fevereiro) se encontra previsto nos artigos 1101.º e seguintes, não sofreu grandes alterações textuais desde o RAU. No entanto, a Lei n.º 6/2006 trouxe como inovação importante: a denúncia pelo senhorio sem justificação e do regime de 2006 para o regime de 2012 foram poucas, mas significativas, as alterações à denúncia para habitação própria ou dos descendentes.
13- Tendo em atenção as poucas alterações no texto do artigo 1101.º, quer Lei n.º 6/2006 quer pela Lei nº 31.2012 de 14.07 e subsequentes alterações legislativas, iremos analisar esta norma com base na redação atual, fazendo referência às alterações quando houver lugar a elas.
14- Atualmente e desde a entrada em vigor da Lei n.º 6/2006, o senhorio pode denunciar o contrato de arrendamento urbano para habitação celebrado por duração indeterminada em três situações, sendo duas delas conhecidas como denúncia justificada e uma delas como denúncia injustificada: quando necessite de habitação para ele ou para descendentes em 1.º grau; para demolição ou realização de obra de remodelação ou restauro profundos que obriguem à desocupação do locado e, por fim, mediante comunicação ao arrendatário não inferior a dois anos sobre a data em que pretenda a cessação.
15- A possibilidade de denúncia do contrato pelo senhorio por necessidade de habitação ou pelos seus descendentes em 1.º grau, encontra-se hoje prevista na alínea a) do artigo 1101.º, mas o seu regime propriamente dito encontra-se previsto no artigo 1102.º, com algumas particularidades previstas no artigo 1103.º
16- Concretamente e para o que nos interessa, para o senhorio poder proceder à denúncia com fundamento em necessidade de habitação é necessário estarem verificados, cumulativamente, os dois requisitos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 1102.º, bem como estar disposto a sujeitar-se à condição prevista no n.º 1 do mesmo artigo.
17- A alínea a) do artigo em estudo, com a redação da Lei 31/2012, diz-nos que, para o senhorio denunciar o contrato de arrendamento urbano com fundamento em necessidade de habitação, terá de ser proprietário, comproprietário ou usufrutuário do prédio há, pelo menos, dois anos. O prédio em questão será sempre o prédio que se encontra arrendado e do qual o senhorio precisa para sua própria habitação ou para habitação dos seus descendentes em 1.º grau. Uma das alterações da Lei de 2012 foi a diminuição do prazo de inibição para o exercício do direito de denúncia: com a reforma de 2006 foi estipulado que o senhorio teria de ser proprietário, comproprietário ou usufrutuário há cinco anos. Ou seja, só após cinco anos como proprietário (comproprietário ou usufrutuário) é que o senhorio já estaria apto para denunciar o contrato com base neste fundamento.
No entanto, em ambas as leis, o prazo de cinco ou dois anos não se aplica se o proprietário, comproprietário ou usufrutuário tiver adquirido o prédio arrendado por sucessão. Neste caso, o senhorio pode proceder à denúncia do contrato no próprio dia em que adquire esse mesmo prédio.
18- O segundo requisito, previsto na aliena b) do artigo 1102.º do Código Civil com a redação dada pela Lei n.º 31/2012, prevê que, para que ao senhorio seja permitida a denúncia do contrato por necessidade de habitação, é necessário que não tenha “há mais de um ano (…) casa própria que satisfaça as necessidades de habitação própria ou dos seus descendentes em 1º grau.”
19- A redação da Lei n.º 6/2006 à expressão casa própria acrescentava a expressão ou arrendada. No entanto, a palavra arrendada prendia-se diretamente com o n.º 2 do artigo 1102.º do CC com a redação dada pela Lei 6/2006, o qual foi revogado pela Lei 31/2012.
20- O que aqui está em causa é saber se será legítimo ao senhorio denunciar um contrato de arrendamento por necessidade de habitação no caso de ter uma outra casa que satisfaça essa necessidade. A lei é clara na sua resposta: não é legítimo.
No entanto, este requisito encontra-se limitado por uma questão de geografia. A lei estipula que o senhorio não pode denunciar o contrato quanto tem uma casa, há mais de ano, “na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respetivo concelho quanto ao resto do País”.
21- O senhorio que estiver em condições de denunciar, legalmente, o contrato de arrendamento urbano – ou seja, que preencha todos estes requisitos - terá ainda de se sujeitar a várias condições previstas na lei ao longo dos artigos 1102.º e 1103.º.
São elas:
a) Terá de pagar ao arrendatário uma indemnização no montante equivalente a um ano de renda – n.º 1 do artigo 1101.º. Esta indemnização não é novidade, sendo já do tempo do RAU e tendo sido reposta em vigor com a Lei n.º 6/2006. No entanto, com a entrada em vigor do NRAU 2006 passou a ser no montante equivalente a um ano de renda, ao invés do dois anos e meio de renda que o artigo 72.º do RAU estipulava.
b. Terá de denunciar o contrato através de comunicação ao arrendatário, com antecedência não inferior a seis meses sobre a data pretendida para a desocupação, na qual terá de constar, de forma expressa, qual o fundamento da denúncia – n.º 1 do artigo 1103.º CC com a redação dada pela Lei n.º 31/2012. A lei estipula ainda que, se sendo a comunicação ao arrendatário a forma utilizada para denunciar o contrato com base em qualquer uma das alíneas do n.º 1 do artigo 1102.º, o senhorio terá, apenas, de fazer constar se está a denunciar o contrato com fundamento na alínea a) ou b) do artigo 1102.º, tendo, apenas, obrigação de informar o arrendatário se o está a denunciar por necessidade de habitação própria ou dos seus filhos ou por necessidade de demolição ou realização de obras. Tal obrigação faz todo o sentido se atentarmos que o artigo 1103.º estipula regimes posteriores à denúncia diferentes cada uma das situações previstas no n.º 1 do artigo 1101.º.
22- Por último, em termos de condições a que o senhorio está sujeito para proceder à denúncia, conta-se o plasmado no n.º 10 do artigo 1103.º do CC com a redação dada pela reforma de 2012: o contrato não pode ter uma duração inferior a dois anos. Veja-se que na vigência da Lei n.º 6/2006 este prazo era de cinco anos, ao invés dos dois que a lei atual prevê.
23- Assim sendo, atualmente, o senhorio apenas pode proceder à denúncia do contrato, após uma duração efetiva de dois anos. A este prazo, soma-se o prazo de antecedência de seis meses sobre a data de desocupação do locado, previsto no n.º 1 do artigo em questão.
24- As normas transitórias da Lei n.º 6/2006 encontram-se reguladas no título II que se divide em dois capítulos: o capítulo aplicável aos contratos celebrados na vigência do RAU e o capítulo relativo aos contratos celebrados antes da vigência do RAU. Não obstante a diferenciação que o legislador faz perante as duas alturas de celebração, a verdade é que para efeitos da cessação do contrato através da denúncia, os regimes são os mesmos. Isto porque o artigo 28.º da lei em questão, aplicável aos contratos celebrado antes da vigência do RAU, manda aplicar o regime estabelecido no artigo 26.º - regime aplicável aos contratos celebrados na vigência do RAU.142 Temos assim que o regime do artigo 26.º acaba por se aplicar a todos os contratos celebrados antes da entrada em vigor do NRAU.
25- que o regime transitório vem estabelecer é que, para os contratos celebrados antes da entrada em vigor do NRAU de 2006, continua a aplicar-se o artigo 107.º do RAU – ou seja, na verdade o senhorio deixa de poder denunciar o contrato nos termos estabelecidos no artigo 1101.º do CC nas seguintes situações:
a) Quando o arrendatário tenha mais de 65 anos de idade ou, independentemente da idade, se encontre em situação de reforma por invalidez absoluta ou sofra de qualquer incapacidade total para o trabalho;
b) Quando seja portador de deficiência a que corresponda incapacidade superior a 2/3, ou
c) Quando o arrendatário se tenha mantido no local arrendado há 30 ou mais anos, nessa qualidade, ou por um período de tempo mais curto previsto em lei anterior e decorrido na vigência desta.
26- Refira-se ainda que, quanto aos contratos sem duração limitada – os contratos de duração indeterminada – esta lei não trouxe grandes alterações ao que já se encontrava estipulado no regime transitório de 2006. Assim, para estes contratos – os contratos celebrados na vigência do RAU sem duração limitada – continua a aplicar-se as regras aplicáveis aos contratos de duração indeterminada previstos no Código Civil com a redação da presente lei com, novamente, três especificidades.
27- Assim, o senhorio deixa de poder denunciar o contrato quando ao arrendatário se aplique o artigo 107.º do RAU – ou seja, a situação mantém-se, sendo igual ao estudo que fizemos para o regime transitório de 2006.
28- De acordo com as normas transitórias no NRAU de 2012 a denúncia para habitação, esta passa a calcular-se nos termos dos critérios previstos nas alíneas a) e b) do artigo 35.º da presente lei. Tal significa que a indemnização devida pelo senhorio passa a ter como limite máximo, apenas, o valor anual correspondente a 1/15 do valor do locado. Estamos perante uma redução significativa do valor da indemnização.
29- Lei n.º 43/2017 de 14 de Junho foi a mais recente alteração verificada no âmbito do arrendamento urbano, tendo procedido a alterações e a um aditamento à Lei n.º 6/2006 de 27 de Fevereiro e apenas a alterações ao Código Civil.
30- Com efeito, mantém-se que o senhorio pode proceder a esta denúncia com qualquer dos fundamentos previstos nas alíneas a) e b) do artigo 1101.º do CC.
Apenas há a última alteração ao artigo 1094.º que passa pelo momento do pagamento da indemnização devida pelo senhorio: deixa de ser devido no momento da entrega do locado, para passar a ser devida metade dela após a confirmação da denúncia e, o restante no ato de entrega do locado (n.º 7). No caso de a indemnização não ser paga do modo estabelecido na lei, aquela será ineficaz, não produzindo qualquer efeito. Sendo, neste caso, inexigível aos senhorios a manutenção do contrato de arrendamento.
31- Ora, e como tal, a pretensão dos A.A. não pode proceder.
32- O senhorio deixa de poder denunciar o contrato nos termos estabelecidos no art.º 1101º do Cód. Civil nas seguintes situações ali referidas nas alíneas a) a c), e que de acordo com a carta resposta da R. que os A.A. juntaram, esta invocou, resulta a impossibilidade de denúncia dos A.A., pois
33- A R. tinha mais de 65 anos – concretamente 74 (setenta e quatro) anos e a sua permanência no arrendado por mais de 32 (trinta e dois) anos,
34- Portanto a presente ação não pode proceder.
A douta sentença deve ser revogada, absolvendo-se, assim, a R. do pedido.
E assim se fazendo JUSTIÇA!»

Junto aos autos o assento de óbito da ré/recorrente, vieram os autores deduzir o incidente de habilitação, na sequência do que veio a ser proferida sentença a habilitar o réu V…, marido da falecida ré L…, a prosseguir os termos da causa no lugar desta.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Corridos os vistos cumpre apreciar e decidir.

II - ÂMBITO DO RECURSO
O objeto do recurso, delimitado pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigos 608°, n° 2, 635°, nº 4 e 639°, n° 1, do CPC), coloca como única questão à apreciação deste Tribunal, saber se existe algum fundamento de ordem legal que impeça a denúncia do contrato de arrendamento pela autora/senhoria.

III - FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos[2]:
1 - Por contrato de arrendamento para habitação outorgado em 1 de abril de 2008, A…, deu de arrendamento à ré L… o nº … do prédio sito na Rua de …, em Olhão, o qual se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o número … e inscrito na matriz sob o artigo ….
2 - O contrato foi celebrado pelo prazo de cinco anos, concordando as partes que o mesmo se renovaria por períodos de três anos se não fosse denunciado por qualquer dos intervenientes.
3 - As partes estipularam ainda que o contrato se destinava a habitação, com exclusão de qualquer outro fim.
4 - Tendo ficado expressamente vedado aos arrendatários a sublocação ou cedência onerosa ou gratuita, no todo ou em parte, do prédio arrendado.
5 - Foi convencionada a renda mensal de € 150,00, sendo atualmente e fruto das alterações legalmente permitidas, o valor da renda mensal de € 180,00.
6 - Em 22 de novembro de 2012, o primitivo senhorio, e identificado no contrato de arrendamento como primeiro outorgante, António José Carvalho e a sua mulher M…, doaram à sua filha, ora autora, o prédio urbano com os números …, freguesia e concelho de Olhão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o número …, inscrito na matriz sob o artigo ….
7 - Mantendo-se os primitivos senhorios a residir no nº … do referido prédio.
8 - Em 3 de outubro de 2018, a autora remeteu à ré uma carta em que denunciava o referido contrato de arrendamento, com efeitos a partir do dia 03 de abril de 2019.
9 - A autora efetuou tal denúncia invocando a necessidade de habitação do descendente em 1º grau dos autores, P…, o qual, vivendo em regime de união de facto com A…, e na companhia do filho menor de ambos, em casa arrendada, viram o seu contrato de arrendamento cessado em 17 de abril de 2018.
10 - Não possuindo, o referido descendente, há mais de um ano, casa própria que satisfaça as suas necessidades de habitação própria do mesmo.
11 - Foi colocado ao dispor da ré o montante equivalente a um ano de renda.
12 - Por carta datada de 25.10.2018, a ré respondeu à autora, dizendo que era titular de um contrato de arrendamento de duração indeterminada desde 1986, e que tendo 74 anos de idade, encontrava-se impossibilitada a denúncia pelo senhorio.
13 - A autora respondeu àquela missiva da ré dizendo que mantinha a posição inicialmente transmitida.
14 - Nos termos da cláusula 12ª do contrato de arrendamento, ficou expressamente vedado aos arrendatários a sublocação ou cedência onerosa ou gratuita, no todo ou em parte, do prédio arrendado.
15 - Os réus costumam ceder parte do prédio a terceiros estranhos ao contrato.
16 - Os quais permanecem a habitar o locado, entrando e saindo do prédio diariamente.
17 - Tal cedência do locado a pessoas estranhas ao arrendamento é concretizada à revelia dos autores e sem o seu consentimento.
18 - De forma continuada.
19 - Os autores desconhecem se se trata de uma cedência onerosa ou gratuita.

Não há factos não provados a considerar.

O DIREITO
A questão decidenda, como vimos supra, consiste em saber se foi ou não validamente efetuada a denúncia do contrato de arrendamento dos autos, levada a cabo pela autora.
A sentença recorrida fez um enquadramento legal da questão em termos que não suscitam reparos, e concluiu acertadamente pela verificação dos requisitos da denúncia do contrato de arrendamento operada pela autora, escrevendo-se na mesma o seguinte:
««Atualmente e desde a entrada em vigor da Lei n.º 6/2006, o senhorio pode denunciar o contrato de arrendamento urbano para habitação celebrado por duração indeterminada em três situações, sendo duas delas conhecidas como denúncia justificada e uma delas como denúncia injustificada: quando necessite de habitação para ele ou para descendentes em 1.º grau; para demolição ou realização de obra de remodelação ou restauro profundos que obriguem à desocupação do locado e, por fim, mediante comunicação ao arrendatário não inferior a dois anos sobre a data em que pretenda a cessação.
A possibilidade de denúncia do contrato pelo senhorio por necessidade de habitação ou pelos seus descendentes em 1.º grau, encontra-se hoje prevista na alínea a) do artigo 1101.º, mas o seu regime propriamente dito encontra-se previsto no artigo 1102.º, com algumas particularidades previstas no artigo 1103.º
Concretamente e para o que nos interessa, para o senhorio poder proceder à denúncia com fundamento em necessidade de habitação é necessário estarem verificados, cumulativamente, os dois requisitos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 1102.º, bem como estar disposto a sujeitar-se à condição prevista no n.º 1 do mesmo artigo.
A alínea a) do artigo em estudo, com a redação da Lei 31/2012, diz-nos que, para o senhorio denunciar o contrato de arrendamento urbano com fundamento em necessidade de habitação, terá de ser proprietário, comproprietário ou usufrutuário do prédio há, pelo menos, dois anos. O prédio em questão será sempre o prédio que se encontra arrendado e do qual o senhorio precisa para sua própria habitação ou para habitação dos seus descendentes em 1.º grau. Uma das alterações da Lei de 2012 foi a diminuição do prazo de inibição para o exercício do direito de denúncia: com a reforma de 2006 foi estipulado que o senhorio teria de ser proprietário, comproprietário ou usufrutuário há cinco anos. Ou seja, só após cinco anos como proprietário (comproprietário ou usufrutuário) é que o senhorio já estaria apto para denunciar o contrato com base neste fundamento. No entanto, em ambas as leis, o prazo de cinco ou dois anos não se aplica se o proprietário, comproprietário ou usufrutuário tiver adquirido o prédio arrendado por sucessão. Neste caso, o senhorio pode proceder à denúncia do contrato no próprio dia em que adquire esse mesmo prédio.
O segundo requisito, previsto na aliena b) do artigo 1102.º do Código Civil com a redação dada pela Lei n.º 31/2012, prevê que, para que ao senhorio seja permitida a denúncia do contrato por necessidade de habitação, é necessário que não tenha “há mais de um ano (…) casa própria que satisfaça as necessidades de habitação própria ou dos seus descendentes em 1º grau.”
A redação da Lei n.º 6/2006 à expressão casa própria acrescentava a expressão ou arrendada. No entanto, a palavra arrendada prendia-se diretamente com o n.º 2 do artigo 1102.º do CC com a redação dada pela Lei 6/2006, o qual foi revogado pela Lei 31/2012.
O que aqui está em causa é saber se será legítimo ao senhorio denunciar um contrato de arrendamento por necessidade de habitação no caso de ter uma outra casa que satisfaça essa necessidade. A lei é clara na sua resposta: não é legítimo. No entanto, este requisito encontra-se limitado por uma questão de geografia. A lei estipula que o senhorio não pode denunciar o contrato quando tem uma casa, há mais de ano, “na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respetivo concelho quanto ao resto do País”.
O senhorio que estiver em condições de denunciar, legalmente, o contrato de arrendamento urbano – ou seja, que preencha todos estes requisitos - terá ainda de se sujeitar a várias condições previstas na lei ao longo dos artigos 1102.º e 1103.º.
Por último, em termos de condições a que o senhorio está sujeito para proceder à denúncia, conta-se o plasmado no n.º 10 do artigo 1103.º do CC com a redação dada pela reforma de 2012: o contrato não pode ter uma duração inferior a dois anos. Veja-se que na vigência da Lei n.º 6/2006 este prazo era de cinco anos, ao invés dos dois que a lei atual prevê.
Assim sendo, atualmente, o senhorio apenas pode proceder à denúncia do contrato, após uma duração efetiva de dois anos. A este prazo, soma-se o prazo de antecedência de seis meses sobre a data de desocupação do locado, previsto no n.º 1 do artigo em questão.
(…)
Ora, no caso vertente resulta provado que a Autora M…, é proprietária do prédio, objeto do arrendamento, por o ter adquirido por doação dos primitivos senhorios da Ré, aquisição que tendo ocorrido em 22 de novembro de 2012, faz com que a mesma à data da denuncia, seja proprietária há mais de 5 anos. Acresce que os Autores procederam à referida comunicação de denuncia para habitação do seu descendente à Ré, e que à data estavam cumpridos os requisitos exigidos pois resulta ainda aprovado que o seu descendente não era proprietário, à data da comunicação, de qualquer bem imóvel.»
A sentença não deixou de trazer à colação as normas transitórias da Lei n.º 6/2006, de 27.02, que aprovou o NRAU, relativas aos contratos celebrados na vigência do RAU e aos contratos celebrados antes da vigência do RAU, mas conclui-se que «sendo certo, que o senhorio deixa de poder denunciar o contrato nos termos estabelecidos no artigo 1101.º do CC nas seguintes situações ali referidas nas alíneas a) a c), e que de acordo com a carta resposta da Ré que os Autores juntaram, esta invocou, resultaria a impossibilidade de denuncia dos Autores, pois esta referia ter mais de 65 anos – concretamente 74 anos e a sua permanência no arrendado por mais de 32 anos, tal impossibilidade de denuncia impunha que a Ré contestasse a presente ação e provasse os referidos fatos, o que não tendo logrado faze-lo e face à confissão dos fatos, resulta desde logo a procedência da presente ação pela denuncia do arrendamento por necessidade de habitação pelo seu descendente em 1.º grau, ficando prejudicada a nossa apreciação da matéria relativa à resolução invocada a titulo subsidiário.
Com efeito, o contrato de arrendamento em discussão nos autos – porque não se apurou a existência de qualquer outro - é aquele a que se alude no ponto 1 dos factos provados, o qual foi celebrado em 01.04.2008, ou seja, já em plena vigência do NRAU, aprovado pela Lei nº 6/2006 e que, segundo o seu artigo 65º, entrou em vigor em 28.06.2006.
Deste modo, não tem aplicação no caso dos autos o disposto no artigo 26º, nº 4, al. a), daquele diploma, que mantém em vigor a alínea a) do nº 1 do artigo 107º do RAU, de aplicação restrita aos arrendamentos habitacionais, pelo que nestes a faculdade de denúncia para habitação própria do senhorio ou dos seus descendentes, prevista no artigo 1101º, al. a), do Código Civil é restringida, dado que este deixa de a poder realizar, quando no momento em que ela deva produzir efeitos o arrendatário tenha 65 ou mais anos de idade ou, independentemente desta, se encontre na situação de reforma por invalidez absoluta, ou, não beneficiando de pensão de invalidez, sofra de incapacidade total para o trabalho, ou seja portador de deficiência a que corresponda incapacidade superior a dois terços.
Refira-se que existia ainda a alínea b) do artigo 107º do RAU, que estabelecia que igualmente deixava de ser possível a denúncia para habitação quando o arrendatário se mantivesse «no local arrendado há 30 ou mais anos, nessa qualidade, ou por um período de tempo mais curto previsto em lei anterior e decorrido na vigência deste». Esta limitação não foi ressalvada no NRAU, mas o Tribunal Constitucional já considerou inconstitucional essa revogação por defender que a ofensa ao direito do arrendatário à permanência no local arrendado quando aí se tenha mantido por um período superior a 30 anos integralmente transcorrido à data em vigor daquela lei, viola os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, integrantes do princípio do Estado de direito democrático contido no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa[3].
Ora, aceitando-se que a ré tinha, à data da denúncia do contrato, 74 anos de idade[4], incumbia-lhe, enquanto facto impeditivo do direito dos autores, alegar e demonstrar a existência de um contrato de arrendamento celebrado em data anterior à entrada em vigor do NRAU, e que lhe permitisse opor-se com sucesso à denúncia operada pela autora, ónus que a ré não cumpriu, não tendo sequer contestado a ação.
Por conseguinte, o recurso improcede.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Sem custas, dado o habilitado/recorrente beneficiar do apoio judiciário.
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Évora, 25 de março de 2021
(Acórdão assinado digitalmente no Citius)
Manuel Bargado (relator)
Tomé Ramião (1º adjunto)
Francisco Xavier (2º adjunto)
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[1] Só depois de notificados da sentença requereram os réus apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, e nomeação e pagamento da compensação de patrono, o qual lhes foi concedido.

[2] Mantém-se a sequência dos factos constantes da sentença, apenas com alguns retoques na sua redação.

[3] Ac. TC 297/2015 (João Pedro Caupers), de 02.06.2015.

[4] Cfr. assento de óbito junto ao apenso de habilitação.