Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
749/16.6T8OLH.E1
Relator: JOSÉ MANUEL BARATA
Descritores: CRÉDITOS LABORAIS
LOCAL DE TRABALHO HABITUAL
Data do Acordão: 06/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I.- O artº 333º/1, b), do CT garante os créditos resultantes dos salários do trabalhador com um privilégio creditório imobiliário especial, que incide sobre o(s) imóvel(eis) apreendidos para a massa insolvente e onde o trabalhador desenvolvia por conta e no interesse da empresa a sua atividade laboral.
II.- Os créditos dos trabalhadores provenientes de salários, verificados e reconhecidos como créditos laborais e não impugnados, beneficiam de privilégio creditório imobiliário especial sobre a venda do imóvel onde a insolvente tinha a sua sede, mesmo que o trabalhador nunca tenha desenvolvido a sua atividade neste imóvel, devendo esses créditos ser pagos antes de quaisquer outros, incluindo a hipoteca, uma vez que a sede de uma empresa se inclui no seu acervo patrimonial e está adstrito ao cumprimento do seu objeto social, objeto que o trabalhador também prosseguiu com a atividade que exerceu no interesse da empresa.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc.º 749/16.6T8OLH.E1


Acordam em Conferência os Juízes da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora


Recorrente:
BANCO SANTANDER TOTTA, S. A.

Recorrida:
Insolvente (…) – ALUGUER DE AUTOMÓVEIS, S. A.
*
Após decisão singular do relator (artº 656º do CPC), foi decidido o seguinte nos presentes autos:

Em face do exposto, a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora julga parcialmente procedente a apelação e altera a decisão nos seguintes termos:

i. julgo verificados e reconhecidos os créditos constantes da lista apresentada pelo Sr. Administrador da Insolvência e.
ii. graduo-os sobre o bem imóvel apreendido da seguinte forma:
1.º Os créditos reclamados pelos trabalhadores da insolvente, entre si em pé de igualdade (e proporcionalmente se disso for caso).
2.º Créditos da credora Banco Santander Totta, S.A. garantidos por hipoteca, até ao limite garantido por esta(s)
3.º Os créditos do Instituto da Segurança Social, IP, que gozam de privilégio e os créditos da administração tributária por dívidas de IRS
4.º Créditos comuns entre si em pé de igualdade (e proporcionalmente se disso for caso).
5.º Créditos subordinados entre si em pé de igualdade (e proporcionalmente se disso for caso).
iii. graduo-os sobre os bens móveis apreendido da seguinte forma:
1.º Os créditos reclamados pelos trabalhadores da insolvente, entre si em pé de igualdade (e proporcionalmente se disso for caso).
2.º Os créditos do Instituto da Segurança Social, IP, que gozam de privilégio e os créditos da administração tributária por dívidas de IRS
3.º Créditos comuns entre si em pé de igualdade (e proporcionalmente se disso for caso).
4.º Créditos subordinados entre si em pé de igualdade (e proporcionalmente se disso for caso).
Deverá proceder-se a rateio, na proporção devida, caso não seja possível a plena satisfação dos créditos, bem como ter-se em conta o disposto nos arts. 172.º a 184.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas no que respeita aos pagamentos.

*
Não se conformado com esta decisão, veio a recorrente Banco Santander Totta, S.A., reclamar para a conferência, pelo que deverá ser lavrado acórdão sobre o mesmo objeto do recurso – artº 652º/3 do CPC – que teve origem no seguinte:

No Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Comércio de Olhão – Juiz 2, por apenso aos autos em que foi declarada a insolvência de (…), Aluguer de Automóveis, S.A. vieram os credores reclamar os seus créditos, nos termos do artigo 128.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Foi apresentado pelo Senhor Administrador da Insolvência a relação de créditos a que se refere o artigo 129.º do mesmo diploma.
Não houve impugnações.
Nos termos do art. 130.º, n.º 3, do CIRE, foram então julgados verificados os créditos constantes da “lista de créditos reconhecidos” e procedeu-se à graduação dos créditos verificados, tendo-se decidido o seguinte:
Em face do exposto:
i. julgo verificados e reconhecidos os créditos constantes da lista apresentada pelo Sr. Administrador da Insolvência e.
ii. graduo-os sobre o bem imóvel apreendido da seguinte forma:
1.º Os créditos reclamados pelos trabalhadores da insolvente, entre si em pé de igualdade (e proporcionalmente se disso for caso).
2.º Créditos da credora Novo Banco, S.A. garantidos por hipoteca, até ao limite garantido por esta(s)
3.º Os créditos do Instituto da Segurança Social, IP, que gozam de privilégio e os créditos da administração tributária por dívidas de IRS
4.º Créditos comuns entre si em pé de igualdade (e proporcionalmente se disso for caso).
5.º Créditos subordinados entre si em pé de igualdade (e proporcionalmente se disso for caso).
iii. graduo-os sobre os bens móveis apreendido da seguinte forma:
1.º Os créditos reclamados pelos trabalhadores da insolvente, entre si em pé de igualdade (e proporcionalmente se disso for caso).
2.º Os créditos do Instituto da Segurança Social, IP, que gozam de privilégio e os créditos da administração tributária por dívidas de IRS
3.º Créditos comuns entre si em pé de igualdade (e proporcionalmente se disso for caso).
4.º Créditos subordinados entre si em pé de igualdade (e proporcionalmente se disso for caso).
Deverá proceder-se a rateio, na proporção devida, caso não seja possível a plena satisfação dos créditos, bem como ter-se em conta o disposto nos arts. 172.º a 184.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas no que respeita aos pagamentos.
Custas pela massa insolvente (arts. 172.º e 304.º do CIRE).

*

Não se conformando com o decidido, o credor reclamante, ora recorrente, Banco Santander, S.A., recorreu desta decisão formulando as seguintes conclusões, que delimitam o objeto do seu recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso:

1. Salvo todo o devido respeito, mal andou a Douto Sentença a quo ao reconhecer e graduar o crédito do Novo Banco como garantido.
2. De facto, o crédito reclamado e reconhecido na Lista Definitiva ao Novo Banco tem natureza, em grande parte comum e, residualmente, subordinada.
3. Já o ex-Banco Popular Portugal, actualmente, fundido no Banco Santander Totta, S. A., reclamou um valor de € 231.462,45, garantido por hipoteca sobre o imóvel apreendido para os autos.
4. Assim, era ao ex-Banco Popular Portugal, actual Banco Santander Totta, S. A.. que acedia o direito de ver o seu crédito garantido por hipoteca, reconhecido e graduado como tal.
5. Viola assim, a douta Sentença a quo o preconizado no Artigo 47.º/4.º do CIRE e, bem assim, o disposto no Artigo 686.º/1.º do Código Civil.
6. Por outro lado, mal ainda andou a Sentença a quo quando reconhece aos trabalhadores privilégio imobiliário especial sobre o imóvel apreendido para a massa insolvente.
7. Da própria Sentença resulta que os trabalhadores “gozam de privilégio mobiliário geral e de um privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade”
8. Ora, o imóvel em causa encontrava-se abandonado há já algum tempo.
9. Não foi carreada aos autos qualquer informação sobre a função do edifício em causa, tanto quanto é do conhecimento do ora Recorrente.
10. Os trabalhadores que ainda se encontravam ao serviço da Insolvente foram efectivamente despedidos pelo Sr. Administrador de Insolvência noutro imóvel.
11. Nas palavras do Douto Acórdão acima identificado: “o princípio da segurança jurídica e o princípio da confiança, que decorrem do princípio do Estado de direito democrático (art. 2º da Constituição) e que exigem um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas, impedindo afectações inadmissíveis. Princípios que seriam violados, a prevalecer o privilégio, atendendo essencialmente ao carácter oculto deste, por não estar sujeito a registo, defraudando as legítimas expectativas dos terceiros titulares de direitos reais sobre os imóveis abrangidos pelo privilégio e frustrando a fé e confiança que estes terceiros depositam no registo.”
12. Mais, nas palavras do Acórdão da Relação de Évora, exarada no âmbito do Processo 104/14.2T8MNN.E1: “O trabalhador goza de privilégio imobiliário especial pelo seu crédito perante a entidade empregadora sobre o património imobiliário pertencente ao empregador que integre a estrutura estável da sua organização produtiva, independentemente da localização habitual do posto de trabalho do trabalhador, desde que exista uma interacção efectiva na prestação da obrigação laboral mantida entre as partes no referido imóvel.”.
13. Não basta a propriedade do imóvel ser da Insolvente, é preciso que o trabalhador alegue e prove a relação funcional ao imóvel em causa.
14. Se o imóvel em causa estava abandonado, se os trabalhadores prestavam funções noutro local, onde foram mesmo despedidos, não pode ser considerada provada esta relação funcional.
15. Assim sendo, não podem os trabalhadores beneficiar do privilégio previsto no Artigo 333.º do Código de Trabalho, no que se refere ao privilégio imobiliário especial.
16. Reconhecendo tal privilégio aos trabalhadores, foi violada a disposição acima mencionada e, bem assim, o princípio da segurança jurídica ínsito no Artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
17. De facto, acede a legítima expectiva ao Credor detentor de garantia hipotecária que a simples propriedade do imóvel não seja motivo suficiente para o reconhecimento de um privilégio imobiliário especial ao trabalhador.
18. Assim, deverá o douto Despacho a quo ser revogado, por violação das normas acima identificadas, ordenando-se reconhecimento e graduação ao ora Recorrente em primeiro lugar conforme hipoteca de que beneficia, retirando-se da graduação o reconhecimento de um crédito garantido ao Novo Banco, devendo ser reconhecido como comum e, bem assim;
19. Retirando-se da graduação o reconhecimento e graduação dos créditos reclamados pelos trabalhadores, enquanto beneficiando de privilégio imobiliário especial, devendo ser reconhecidos como comuns e graduados no lugar que lhes competir.


*

Foram colhidos os vistos por via eletrónica.

*
Os factos a apreciar são os constantes do relatório do sr. Administrador da Insolvência, que não foi objeto de impugnação.
*
As questões que importa decidir são:
1.- Saber se a recorrente beneficia de privilégio creditório imobiliário especial sobre o imóvel da insolvente e não o credor Novo Banco, S.A.;
2.- Saber se os créditos dos trabalhadores beneficiam de privilégio creditório imobiliário especial sobre o imóvel causa nos autos.
*
O Direito.
Quanto à primeira questão assiste razão à apelante.
Com feito, consta da relação dos créditos reconhecidos elaborada pelo sr. Administrador da Falência, ao abrigo do disposto no artº 129º/2 do CIRE, sob o nº 3, que o crédito do Banco Popular, S.A. (atual Banco Santander Totta, S.A., o apelante) está garantido por hipoteca que incide sobre o prédio Urbano descrito na CRP de Faro, sob o nº (…) e inscrito na matriz sob o artigo (…) da freguesia de Faro (Sé e S. Pedro) e Prédio Urbano descrito na CRP de Faro sob o nº (…) e inscrito na matriz sob o artigo (…) da freguesia de Faro (Sé e S. Pedro).
Sendo este crédito garantido por hipoteca, o seu pagamento é privilegiado quanto à venda do imóvel em questão e relativamente aos outros créditos, tal como dispõe o artº 686º do CC.
Com efeito, nos termos deste preceito, a hipoteca, confere ao credor “o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo” e gradua-se depois dos créditos com privilégio imobiliário especial, ou seja, depois dos créditos do Estado pela contribuição predial e depois dos créditos previstos no artigo 333º/1º, b), do CT (artigos 686º, 748º e 751º do CC).
Ao invés, o crédito do credor reclamante Novo Banco, S.A. é crédito em parte comum e em parte subordinado, estando reconhecido sob o nº 13, não sendo, por isso, crédito privilegiado como decidido na sentença.
Assim sendo e sem necessidade de outras considerações, uma vez que se trata de mero lapso do tribunal a quo, é procedente a primeira parte das conclusões da apelante.
***
Quanto à segunda questão.
Trata-se de saber se os créditos dos trabalhadores beneficiam de privilégio creditório imobiliário especial sobre o imóvel apreendido para a massa insolvente.
O artº 333º do Código do Trabalho (CT), sob a epígrafe “Privilégios Creditórios” estipula:
1- Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios:
a) (…);
b) Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade.
2 - A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte:
a) (…);
b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes de crédito referido no artigo 748.º do Código Civil e de crédito relativo a contribuição para a segurança social.

Visou a lei ordinária neste inciso dar cumprimento ao artº 59°/3 da CRP, onde se estabelece que “os salários gozam de garantias especiais, nos termos da lei”, assim se confirmando a relevância concedida à remuneração do trabalho como garantia duma existência condigna e subordinada ao princípio da igualdade entre os trabalhadores, bem como uma proteção acrescida perante os direitos dos restantes credores tal como preceitua o nº 1 a) do mesmo preceito da Lei Fundamental.
Gomes Canotilho e Vital Moreira in Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª Ed. 2007, pág. 777, analisaram esta norma constitucional:

XVI. A imposição constitucional de garantias especiais dos salários foi acrescentada pela RC/97, tratando-se de discriminação positiva dos créditos salariais em relação aos demais créditos sobre os empregadores.
A instituição de garantias de pagamento dos créditos e indemnizações complementares resultantes do não pagamento de salários é, hoje, uma imposição do direito da União Europeia (cfr. Directivas 80/97 e 2002/74). A não implementação de garantias especiais pela legislação portuguesa poderá gerar responsabilidade do Estado por não cumprimento das directivas (cfr. AcTjCE, Francovich, de 19-11-1991). As garantias especiais incluirão, nomeadamente, privilégios creditórios, responsabilidade solidária das sociedades em relação de domínio ou de grupo, responsabilidade dos sócios, Fundo de Garantia Salarial (cfr. Cód. Trab., arts. 377° e ss., e L n° 35/2004, arts. 316° e ss.), limites à penhora e à cessão de crédito salarial (AcsTC nos 349/91, 318/99, 62/02, 177/02 e 96/04), proibição de compensações e descontos, regime peculiar da prescrição (cfr. AcTC n° 498/03).

Não havendo dúvidas sobre o privilégio creditório dos salários, o que importa agora dilucidar é saber se, no caso dos autos, a sede da empresa deve considerar-se integrada no conceito de “imóvel no qual o trabalhador presta a sua atividade”.
Em tese geral, o privilégio creditório “é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente de registo, de serem pagos com preferência a outros” (artº 733º do CC) e pode ser mobiliário ou imobiliário, incidindo sobre bens móveis, ou sobre bens imóveis, podendo ainda ser geral (incide sobre a generalidade dos bens) ou especial (incide sobre determinados bens), sendo que os privilégios imobiliários estabelecidos no código civil são sempre especiais, incidindo sempre apenas sobre determinados imóveis (artº 735º do CC).
O artigo 333º/1 b) do CT não prevê que os créditos laborais aí contemplados gozam de privilégio especial sobre qualquer imóvel do devedor, sendo pressuposto deste privilégio a conexão entre a atividade dos trabalhadores e os prédios objeto de penhora.
O que foi já assinalado pelo Ac de Fixação de Jurisprudência nº 8/2016, Pinto de Almeida, DR Série I de 15-04-2016: Os imóveis construídos por empresa de construção civil, destinados a comercialização, estão excluídos da garantia do privilégio imobiliário especial previsto no art. 377.º, n.º 1, al. b), do Código do Trabalho de 2003.
Neste caso, os prédios construídos não se destinavam ao desenvolvimento da atividade do trabalhador na empresa – eram o resultado da sua própria atividade na empresa e, por isso, não podem servir de garantia imobiliária privilegiada para pagamento dos salários.
*
No caso dos autos, não obstante o tribunal recorrido não ter selecionado a matéria de facto provada na qual fundou a sua decisão, resulta da prova documental junta que se mostram provados os seguintes factos com interesse para a decisão e atendíveis ao abrigo do disposto no artº 413º do CPC:
1.- No Certificado do Registo Comercial da insolvente consta que a sede da empresa se situava na Rua de (…), nº 15, em Faro.
2.- No Certificado do Registo Predial do imóvel apreendido para a massa insolvente (composto por dois artigos matriciais e inscrito sobre as fichas … e …, acima identificados), consta que se situa na Rua de (…), nºs 13, 15 e 17, em Faro.
Assim sendo, dada a coincidência de domicílios, a sede da empresa situava-se no imóvel aprendido.

A jurisprudência é claramente maioritária no entendimento de que o conceito de “imóvel no qual o trabalhador presta a sua atividade” deve ser interpretado e integrado de forma ampla, i.e., todos os imóveis que sejam propriedade da empresa e que de alguma forma contribuam para o cumprimento do seu objeto social, devem integrar o conceito de “imóvel no qual o trabalhador presta a sua atividade”.
A título de exemplo cita-se o Ac. TRL de 18-09-2018, Carlos Oliveira, Proc. 25785/13.0T2SNT-B.L1:
A alínea b) do n.° 1 do Art° 333° do Código do Trabalho de 2009 deve ser interpretada em sentido amplo, no sentido de que estabelece um privilégio imobiliário especial aos trabalhadores que abrange todos os imóveis da entidade patronal que estejam afetos à atividade empresarial (laboral) da mesma, à qual os trabalhadores estão funcionalmente ligados, independentemente da concreta localização do seu posto de trabalho.
Não pode ser acolhida a interpretação restritiva e meramente literal desse preceito, na medida em que viola o princípio constitucional da igualdade entre os trabalhadores, tratando de forma desigual os trabalhadores vinculados a uma mesma entidade patronal e exercendo a sua atividade profissional no âmbito da atividade económica e empresarial desenvolvida pelo mesmo empregador (Art.s 13° e 59° da Constituição da República Portuguesa).
A ratio legis do Art. 333.° n. ° 1 alb) do Código de Trabalho de 2009 é a de conceder aos trabalhadores um privilégio creditório de ser pago com preferência sobre os demais credores, independentemente do registo, em cumprimento do imperativo constitucional estabelecido no Art. 59. ° n.° 3 da Constituição, que consagra uma forma de discriminação positiva relativa a créditos salariais, em conformidade com igual imposição decorrente do Direito da União Europeia (Diretiva 80/987/CEE do Conselho alterada pela Diretiva 2002/74/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 23 de setembro de 2002).

É o caso dos autos.
A sede da empresa é um elemento fundamental para o seu funcionamento.
Toda a atividade da empresa tem como referência a sua sede.
Sobre a relevância da sede na vida da empresa, Luís Brito Correia, em Sociedades Comerciais, 2º Vol., AAFDL, 1989, pág. 282 e sgs. ensina:
1. A sede da sociedade é o local onde a sociedade se considera situada para a generalidade dos efeitos jurídicos em que a localização seja relevante.
A sede é o domicílio da sociedade (CSC art. 12.º, n.º 3). É o sítio em que, presumivelmente, se encontram as pessoas físicas que representam a sociedade e onde elas exercem actividade.
2. A lei distingue, todavia, vários conceitos de sede — à semelhança, aliás, com o que se passa com o domicílio e a residência das pessoas singulares.
Assim, a lei impõe que do contrato de sociedade conste a sede da sociedade (CSC art. 9.º, n.º 1, al. e)), sob pena de nulidade, aliás sanável (CSC art. 42.º, n.º 1, al. b), e 2, e 43.º).
A sede deve ser estabelecida em local concretamente definido (CSC art. 12.º, n.º 1). Este local concreto indicado no contrato como sede da sociedade é o que se chama a sede estatutária ou sede contratual.
É em função da sede estatutária da sociedade que se fixa a competência territorial de vários órgãos do Estado para a prática de diversos actos. Por exemplo, para o registo das sociedades é territorialmente competente a conservatória em cuja área estiver situada a sua sede estatutária (CRCom art. 25.º, n.º 1 – regime hoje alterado mas que impõe a transferência oficiosa entre conservatórias no artº 27º/1).
É a sede estatutária que constitui o domicílio da sociedade (CSC art. 12.º, n.º 3), devendo notar-se que a lei usa frequentemente a expressão domicílio tanto para pessoas singulares, como para pessoas colectiva. Fá-lo, por exemplo, para definir a competência territorial dos tribunais (CPC art. 85.º – atualmente no artº 80º/1), o lugar do cumprimento das obrigações (CCiv art. 772.º e 774.º) e o lugar da citação da sociedade (CPC art. 234.º, n.º 3 – atualmente artº 223º/3).
Impondo o CSC que a sede deve ser estabelecida “em local concretamente definido”, exclui a admissibilidade de cláusulas estatutárias que indiquem como sede “o lugar que o conselho de administração vier a designar” ou “onde vier a estabelecer-se o escritório da administração”. O local da sede parece dever ser indicado pela designação da localidade, rua e número de polícia ou outra indicação suficiente para a localizar.

No mesmo sentido, Carvalho Fernandes, citando Castro Mendes, in Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, Tomo I, pág. 367 quanto à relevância do domicílio em geral na vida das pessoas singulares e coletivas e também Raul Ventura, A sede da sociedade, no direito interno e no direito internacional português, in: SI, XXVI, 1977, pág. 3.

Também Oliveira Ascensão, Direito Civil – Teoria Geral, Vol. I, 2ªa ed., Coimbra Editora, 2000, analisou a questão:
I — Outro aspecto particular é o que respeita ao domicílio das pessoas colectivas.
A pessoa colectiva também deve ter um domicílio: as razões que o justificam para a pessoa física são extensivas à pessoa colectiva. Mas falta o elemento realístico representado pela residência.
Este é substituído pelo lugar onde funciona a administração principal. Fala-se então em sede.
O art. 159 (do CC) exige que aí funcione normalmente a administração principal. Há um elemento de habitualidade, paralelo ao que encontrámos para a residência da pessoa física.
II — Mas a regra não é injuntiva. Admite-se que os estatutos fixem sede diversa. É pois admissível o domicílio voluntário.
Por isso, uma sociedade que tenha o seu estabelecimento fabril em Alcoitão e a sua administração principal em Sintra, pode fixar a sua sede em Lisboa.
Apenas se exige que a fixação se faça nos estatutos. Deverá estar em causa a protecção de terceiros que contratem com a pessoa colectiva. Mas essa designação pode funcionar para todos os efeitos jurídicos: o art. 159 não impõe nenhuma limitação.
A fixação nos estatutos não implica uma imutabilidade da sede.
Apenas implica que a mudança desta tenha de acarretar uma alteração dos estatutos.

Neste exemplo de Oliveira Ascensão, o trabalhador teria privilégio creditório sobre as vendas dos imóveis situados em Alcoitão, Sintra e Lisboa.
Deste excurso se conclui, de novo, que o conceito de “imóvel no qual o trabalhador presta a sua atividade” deve ser interpretado de forma ampla aqui se incluindo todos os imóveis onde se desenvolve, de alguma forma, a atividade que é o objeto social da empresa.
A ser de outro modo, como se poderia garantir o privilégio creditório imobiliário especial do salário de um motorista, de um trabalhador em teletrabalho ou de outro que preste o seu trabalho ligado a uma plataforma digital cuja atividade é desenvolvida em exclusivo pela internet (UBER, ALIBABA, AMAZON, FARFETCH, etc.) e outros exemplos em que a ligação a um local fisicamente determinado não é possível?
Mas há uma ligação que sempre subsiste em qualquer circunstância – a ligação à sede da empresa –, isto pelo simples facto de que todas as empresas, mesmo as que laboram em plataformas digitais, têm uma sede física.
Repare-se que a sede da empresa integra a unidade empresarial utilizada para prosseguir o seu objeto social; o que também se verifica com o trabalhador, ou seja, não poderia o trabalhador desenvolver a sua atividade no interesse da empresa sem que existisse a sede da sociedade.
Logo, a sede da empresa com o recorte das exigências e consequências jurídicas acima descritas, tem que forçosamente integrar o referido conceito.
*
Não podemos acolher a argumentação da recorrente, em sede de reclamação para a conferência, de que a sede se encontrava encerrada e que os trabalhadores foram despedidos num outro local.
Isto porque a sede é uma entidade diretamente ligada à existência da sociedade, não podendo haver sociedade sem sede.
A sede só se extingue com a liquidação da sociedade, permanecendo até este momento integrada na unidade empresarial que constitui a sociedade comercial.
Uma informação do sr. Administrador da Insolvência dizendo que a sede se encontrava fechada no momento em que despediu os trabalhadores, não tem, com o devido respeito por opinião contrária da recorrente, valor nem força jurídica para extinguir a sede da empresa.
Dada a relevância que a ordem jurídica atribui à sede das pessoas coletivas o trabalhador encontra-se ligada a esta entidade por vínculos funcionais e jurídicos, pelo que não podemos afirmar que, encontrando-se a sede em dado momento “encerrada”, esta entidade deixou de figurar como um ativo entre o património da empresa, património que responde pelas suas dívidas, e, em primeira linha, pelos créditos laborais.
Ilustrativo desta ligação da sede aos trabalhadores é o facto de a Segurança Social, a Autoridade Tributária, os tribunais ou outras entidades, enviarem notificações e demais correspondência para a sede da empresa e nunca para um eventual “escritório” existente no local onde os trabalhadores desenvolviam fisicamente a sua atividade, uma vez que só naquele local as citações e notificações produzem os efeitos desejados.
O que, também por esta via, nos leva a concluir que a sede integra o acervo de bens imóveis sobre os quais incide o privilégio imobiliário especial em causa.

Neste sentido, Ac TRE de 14-02-2019, Rui Machado e Moura, Procº 1633/12.8TBBNV-B.E1:
O que importa é que a actividade laboral do trabalhador, qualquer que ela seja e independentemente do lugar específico onde é prestada, se desenvolva de forma conjugada e integrada na respectiva unidade empresarial.

E Ac. TRL de 18-01-2018, Teresa Albuquerque, Proc. n.° 942/11.8TYLSB-B.L1-2:
«I - O privilégio creditório imobiliário especial a favor dos trabalhadores que está em causa no Art 333° do Código de Trabalho deve-se afirmar relativamente a todos os imóveis que serviram de suporte físico à atividade da empresa empregadora, independentemente do concreto local em que o trabalhador haja prestado efetivamente a sua atividade e independentemente do mesmo ter sido ou não apreendido para a massa da insolvência.
«II - Só em função desse entendimento se alcança - sem tratamentos diferenciadores entre os trabalhadores - a proteção conferida constitucionalmente à retribuição enquanto direito fundamental, que é a causa da atribuição do privilégio creditório em referência.»

Na mesma linha o Ac. TRL de 23-11-2017, António Santos, Proc. n.°227-16.3T8VFC-G.L1-6:
I - Apesar da atual redação da alínea b), do n.° 1, do Art° 333°, do Código do Trabalho - que não coincide com a da alínea b), do n°1, do artigo 377º, do pretérito Código do Trabalho - persiste válida a interpretação - lata - no sentido de o privilégio imobiliário especial dos trabalhadores abranger todos os imóveis da entidade patronal que estejam afetos à atividade empresarial da mesma, à qual os trabalhadores estão funcionalmente ligados, independentemente da localização do seu posto de trabalho.
II - É assim de afastar, apesar da alteração de redação referida, a interpretação restritiva do privilégio imobiliário especial, porque ademais incorre a mesma em manifesta violação do princípio constitucional da igualdade entre os trabalhadores, tratando de forma desigual os trabalhadores vinculados a uma mesma entidade patronal e exercendo a sua atividade profissional no âmbito da atividade económica e empresarial desenvolvida pelo mesmo empregador - cfr. Art.s 13° e 59°, da CRP.»

Acerca da relevância da sede no tráfico comercial e jurídico de uma empresa, cfr. Ac TRL de 20-04-2016, José Sapateiro, Procº 25551/15.9T8LSB-A.L1-4:

I- Em nome da transparência, confiança e segurança que deve imperar no comércio jurídico, tem de existir uma conexão ou relação permanente, visível e estreita entre a sede da empresa e a sua atividade, estrutura e organização.
II- Existem exigências de certeza, determinação e localização das sociedades comerciais que não se radicam apenas em interesses de natureza particular ou privada mas também em valores de índole coletiva ou pública, que passam, designadamente, pelo respeito dos princípios da efetiva representação, da boa-fé nas relações jurídicas, da sã concorrência no mercado globalizado onde operam e da efetiva responsabilização interna e externa das mesmas (designadamente, perante os sócios ou acionistas, trabalhadores, prestadores de serviços, fornecedores, clientes, Estado).
III- Perante uma sede social da Ré meramente aparente, fictícia, sem um conteúdo ou substrato material mínimo, que, justifique a sua indicação naquele lugar, tendo a mesma, nessa medida, sido concretizada em clara violação das exigências legais em tal matéria, tal atitude da empresa demandada traduz-se em fraude à lei.

De tudo quanto foi exposto, só podemos concluir que os créditos dos trabalhadores, provenientes de salários, verificados, reconhecidos e não impugnados, beneficiam de privilégio creditório imobiliário especial sobre o imóvel apreendido para a massa insolvente e identificado nos autos, imóvel onde a insolvente tinha a sua sede, devendo esses créditos ser pagos antes de quaisquer outros, incluindo a hipoteca de que beneficia a recorrente.
Assim sendo, improcedem as conclusões da recorrente, devendo, nesta parte, ser mantida a sentença.
***

Sumário:

(…)


***

DECISÃO.

Em face do exposto, a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora julga parcialmente procedente a apelação e altera a decisão nos seguintes termos:

i. julgo verificados e reconhecidos os créditos constantes da lista apresentada pelo Sr. Administrador da Insolvência e.
ii. graduo-os sobre o bem imóvel apreendido da seguinte forma:
1.º Os créditos reclamados pelos trabalhadores da insolvente, entre si em pé de igualdade (e proporcionalmente se disso for caso).
2.º Créditos da credora Banco Santander Totta, S.A. garantidos por hipoteca, até ao limite garantido por esta(s)
3.º Os créditos do Instituto da Segurança Social, IP, que gozam de privilégio e os créditos da administração tributária por dívidas de IRS
4.º Créditos comuns entre si em pé de igualdade (e proporcionalmente se disso for caso).
5.º Créditos subordinados entre si em pé de igualdade (e proporcionalmente se disso for caso).
iii. graduo-os sobre os bens móveis apreendido da seguinte forma:
1.º Os créditos reclamados pelos trabalhadores da insolvente, entre si em pé de igualdade (e proporcionalmente se disso for caso).
2.º Os créditos do Instituto da Segurança Social, IP, que gozam de privilégio e os créditos da administração tributária por dívidas de IRS
3.º Créditos comuns entre si em pé de igualdade (e proporcionalmente se disso for caso).
4.º Créditos subordinados entre si em pé de igualdade (e proporcionalmente se disso for caso).
Deverá proceder-se a rateio, na proporção devida, caso não seja possível a plena satisfação dos créditos, bem como ter-se em conta o disposto nos arts. 172.º a 184.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas no que respeita aos pagamentos.
No mais, improcedem as conclusões da recorrente.
Custas nesta parte pela recorrente – Artº 527º C.P.C..
Notifique.

***
Évora, 12-06-2019

José Manuel Barata (relator)

Conceição Ferreira

Rui Machado e Moura