Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4239/20.4T8STB.E1
Relator: FRANCISCO XAVIER
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
DIREITO À IMAGEM
Data do Acordão: 05/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. A competência do tribunal afere-se pela natureza da relação jurídica tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido) e os respectivos fundamentos (causa de pedir).
II. A competência internacional dos tribunais portugueses depende, em primeiro lugar, do que resultar de convenções internacionais ou dos regulamentos europeus sobre a matéria e, depois, da integração de algum dos segmentos normativos dos artigos 62º (factores de atribuição da competência internacional) e 63º (competência exclusiva dos tribunais portugueses), sem prejuízo da que possa emergir de pacto atributivo de jurisdição, nos termos do artigo 94º.
III. Verificando-se, em face do pedido e causa de pedir formulados na acção, que o facto ilícito gerador da responsabilidade civil extracontratual por parte de ré – consistente na utilização indevida do nome e imagem do autor (jogador profissional de futebol), por via da produção por aquela de jogos electrónicos, de vídeo e aplicações, contendo a imagem, o nome e características pessoais e profissionais do autor, sem a autorização ou consentimento deste –, ocorreu nos Estados Unidos da América (lugar da sede da ré), Canadá e Japão, não tendo ocorrido em território português nem o facto ilícito nem o dano, integradores da causa de pedir complexa invocada, e não resultando apurado que o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por acção proposta em tribunal português ou que haja dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, são os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para o conhecimento da causa, à luz dos critérios enunciados no artigo 62º do Código de Processo Civil.
(Sumário pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – Relatório

1. A.E.L.S., jogador de futebol profissional, de nacionalidade portuguesa e com residência indicada em Sesimbra, distrito de Setúbal, instaurou acção declarativa, com processo comum, contra Eletronic Arts Inc., com sede em 209, Redwood Shores Parkway, Redwood City, Califórnia, 94065, EUA, pedindo a condenação da R. a pagar ao A.:
- A título de indemnização por danos patrimoniais de personalidade, pela utilização indevida da sua imagem e do seu nome, a quantia de € 324.000,00 (trezentos e vinte e quatro mil euros), de capital, acrescida dos juros vencidos, no montante de € 97.630,68 (noventa e sete mil e seiscentos e trinta Euros e sessenta e oito cêntimos), tudo no total de € 421.630,68 (quatrocentos e vinte e um mil e seiscentos e trinta Euros e sessenta e oito cêntimos) e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal, tudo com o mais da lei; e
- Montante nunca inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescido, também, dos juros vencidos, no montante de € 2.559,45 (dois mil, quinhentos e cinquenta e nove Euros e quarenta e cinco cêntimos), tudo no total de € 7.559,45 (sete mil, quinhentos e cinquenta e nove Euros e quarenta e cinco cêntimos) e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal, tudo com o mais da lei.

2. Para tanto, invocou, em síntese, que a R., sociedade norte-americana, no exercício da sua actividade comercial de desenvolvimento e fornecimento de jogos, utiliza a imagem e o nome do A., cidadão português, jogador de futebol, para desenvolver e fornecer os jogos Fifa, Fifa Manager, Fifa Ultimate Team-Fut e Fifa Mobile, contando a R. com várias subsidiárias, entre as quais a EA Swiss Sarl, com sede em Genebra, Suíça, que assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão, sem ter solicitado autorização para o efeito.

3. Citada, a R. contestou a acção, defendendo-se por excepção e impugnação, tendo, posteriormente, apresentado requerimento arguindo a excepção da incompetência absoluta, por falta de competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer da presente acção, por não se verificar nenhum dos factores de atribuição de competência, nos termos dos artigos 59º, 62º e 63º do Código de Processo Civil, pugnando pela sua absolvição da instância (cf. artigos 96.º, alínea a), 97.º, n.º 1, 98.º, 1.ª parte, e 278.º, alínea a), todos do Código de Processo Civil).
O A., por seu lado, apresentou requerimento de resposta, defendendo a competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer da acção, invocando, em suma, que é cidadão português, reside e tem toda a sua vida organizada em Portugal, os jogos podem ser adquiridos em todo o mundo, e que, não se admitindo o exercício do direito perante os tribunais portugueses, está ameaçado o mesmo na sua praticabilidade e exercício.

4. Apreciada a referida excepção, veio o Tribunal recorrido a seguinte decisão (ref.ª 93208812):
«Pelo exposto, declara-se a incompetência absoluta deste tribunal por infracção das regras de competência internacional dos tribunais portugueses, absolvendo-se a ré da instância».

5. Inconformado interpôs o A. o presente recurso, que motivou, concluindo do seguinte modo:
a) A decisão recorrida é, salvo o devido respeito, que aliás é muito, injusta e precipitada, tendo partido de pressupostos errados.
b) Entende o Recorrente que as suas legítimas pretensões saem manifestamente prejudicadas pela manutenção da decisão recorrida.
c) O ora Recorrente não se conforma com a sentença proferida pelo Tribunal a quo, entendendo que a mesma padece de vícios, no que à decisão proferida sobre a sua incompetência internacional, já que não restam dúvidas da competência internacional do Tribunal a quo para o julgamento do presente litígio.
d) A ré produziu e comercializou, fisicamente e online, milhões de jogos de vídeo contendo a imagem, nome e demais características pessoais do Autor, sem o seu consentimento ou autorização e sem lhe pagar qualquer contrapartida económica.
e) Tal conduta constituiu uma apropriação da imagem do Autor, que tem um valor patrimonial, emergente do valor comercial que aquela imagem, tem no mercado.
f) O Autor – ao contrário do que a decisão recorrida refere - substanciou em factos a ocorrência de um dano, e os danos causados ao Autor (patrimoniais e não patrimoniais), por acção da ré, apenas a esta podem ser imputáveis, por ela a única autora do facto danoso (cfr. artigos 562.º, 563.º, 564, n.º 1, 565.º, 566.º n.ºs 1, 2 e 3, todos do Código Civil e ainda artigo 609.º n.º 2 do Código de Processo Civil).
g) Ao contrário do que a decisão recorrida refere, esses danos verificam-se no nosso país, porquanto os jogos são comercializados, distribuídos, jogados e a imagem, nome e demais características do Autor são utilizadas, mundialmente, pelo que, logicamente, também em Portugal.
h) Isso mostra-se devidamente alegado nos artigos 16.º, 19.º, 103.º e 197.º, da petição inicial e reiterado nos artigos 23.º e seguintes do articulado de Resposta às Excepções de fls. ___.
i) É, pois, absolutamente evidente que são praticados em território português os factos que integram a causa de pedir na presente acção.
j) A obrigação de reparação, no caso concreto do Autor, resulta de um uso indevido de um direito pessoalíssimo, não sendo de exigir - ao menos na componente de dano não patrimonial - a prova da alegação da existência de prejuízo ou dano, porquanto o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem. (negrito e sublinhado nossos).
k) A obrigação de reparação, in casu, decorre de um uso indevido de um direito pessoalíssimo, não sendo de exigir - ao menos na componente de dano não patrimonial – a prova da alegação da existência de prejuízo ou dano, porquanto o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem. Tal como a decisão recorrida, salvo o devido respeito, ignora ostensivamente!
l) Não podia, pois, o Tribunal a quo deixar de concluir, in casu, pela verificação do factor de conexão previsto na alínea b) do artigo do artigo 62.º do Código de Processo Civil: ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção ou algum dos factos que a integram (à causa de pedir).
m) Neste sentido, e no que respeita a situações análogas já analisadas pelo TJUE quanto a esta matéria salientam-se os acórdãos Shevill e eDate Advertising GmbH, cujos textos, para efeitos de exposição, aqui se dão por reproduzidos e ainda a doutrina já fixada no douto acórdão do STJ de 25-10-2005.
n) Para além disso, o Autor é cidadão português, tem aqui o seu domicílio e os seus familiares mais próximos, pelo que o seu centro de interesses é em Portugal.
o) Sendo irrelevante o facto da distribuição dos jogos ser feita na prática por uma subsidiária da ré, pois é esta a proprietária dos jogos e é só ela que aufere os avultados lucros resultantes da sua comercialização.
p) O que está em causa é a utilização e divulgação da imagem, nome e demais características do Autor, sem o consentimento deste, pela ré nos seus jogos, bem como os avultados lucros daí decorrentes e que esta aufere exclusivamente.
q) Pelo que, atento o disposto no artigo 71.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, em articulação com a alínea a) do artigo 62.º do mesmo Código, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar a presente causa.
r) Tanto mais que, eventuais, dificuldades de aplicação do critério da materialização do dano não podem por em causa a gravidade da lesão que possa vir a sofrer o titular de um direito de personalidade que constata que um conteúdo ilícito está disponível em qualquer ponto do globo, como sucede in casu.
s) E, estando em causa a violação, pela ré, de direitos de personalidade do Autor, com tratamento e protecção constitucional e infraconstitucional, cfr. artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e artigos 70.º e 72.º do Código Civil, não se concebe como o poderia o julgamento da causa nestes autos ser atribuído a uma jurisdição estrangeira de um outro país.
t) Tanto mais que, nos autos é arguida pelo Autor, aqui Recorrente, a inconstitucionalidade do artigo 38.º n.º 4 do Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre o Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol e a Liga Portuguesa de Futebol Profissional, por se considerar que o mesmo é ofensivo do conteúdo de um direito fundamental (o já invocado artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa), cfr. alegado nos artigos 41.º e seguintes da Resposta à Excepção de Incompetência Internacional de fls. ___.
u) Ora, a necessidade de efectiva tutela jurídica, ao abrigo do princípio da necessidade contido no artigo 62.º, alínea c), do Código de Processo Civil, também se cumpre se as circunstâncias do caso, além de revelarem forte conexão real ou pessoal com a ordem jurídica portuguesa, evidenciarem que o direito exercendo, a não se admitir que seja actuado perante os Tribunais portugueses, está ameaçado na sua praticabilidade e exercício.
v) Ora, in casu, essa praticabilidade e exercício está irremediavelmente comprometida, com a decisão agora proferida e de que se recorre.
w) O princípio da necessidade vale, assim, como salvaguarda para tais situações funcionando como alargamento ou extensão excepcional da competência internacional dos Tribunais portugueses.
x) Por outro lado, é evidente que o tribunal do lugar onde a “vítima” (in casu, o Autor) tem o centro dos seus interesses, pode apreciar melhor o impacto de um conteúdo ilícito colocado em jogos de vídeo físicos e online sobre os direitos de personalidade, pelo que lhe deverá ser atribuída competência segundo o princípio da boa administração da justiça.
y) Ora, o Autor toda a sua vida organizada e estabilizada em Portugal, pelo que não tem qualquer nexo estreito com outro país, muito menos com os Estados Unidos da América.
z) Para além disso, não pode ser descurado o princípio da previsibilidade das regras de competência, a ré, enquanto autora da difusão do conteúdo danoso, encontra-se manifestamente, aquando da colocação da imagem, nome e demais características das “vítimas” da sua acção, nos jogos de que é proprietária com vista à sua distribuição mundial, em condições de conhecer os centros de interesses das pessoas afectadas por este.
aa) Sem necessidade de mais considerações, estão os Tribunais portugueses melhor posicionados para conhecer do mérito da acção.
bb) Teria, assim, de improceder a deduzida excepção de incompetência internacional do Tribunal a quo, aduzida pela ré, por verificação dos elementos de conexão constantes das alíneas a), b) e c) do artigo 62.º do Código de Processo Civil.
cc) Face ao que antecede, a sentença em crise violou o disposto nos artigos 615.º, n.º 1, alínea d), 2.ª parte, 591.º, 592.º e 593.º, n.º 1, 62.º, alíneas a), b) e c), 71.º, n.º 2 e 80.º n.º 3, todos do Código de Processo Civil, o artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e ainda os artigos 70.º e 72.º do Código Civil.
Termos em que deverá o presente recurso proceder, por provado, e, em consequência, ser
revogada a decisão recorrida, substituindo-a por outra que julgando internacionalmente competentes os tribunais portugueses, prossiga a tramitação dos autos, fazendo-se assim a
Costumada JUSTIÇA!

6. Contra-alegou a recorrida, pugnando pela improcedência do recurso, sustentando-se nas seguintes conclusões:
a) O presente recurso visa a revogação da sentença de 11.10.2021, pela qual se declarou procedente a excepção de incompetência internacional, porque o presente pleito não reúne os necessários elementos de conexão com a ordem jurídica Portuguesa.
b) O recurso interposto pelo autor deverá improceder, por referência ao único fundamento invocado por aquele, designadamente erro de julgamento sobre a apreciação dos factores de conexão elencados no art.º 62.º do CPC.
c) A competência é um pressuposto da actuação do Tribunal e a sua decisão deverá ser sempre a primeira a ser tomada pelo Tribunal, em particular nestes autos que assumem notoriamente conexão com outras ordens jurídicas estrangeiras.
d) A matéria relativa à competência internacional diz respeito à incompetência absoluta do Tribunal, devendo ser sempre apreciada oficiosamente, independentemente da alegação das partes, que a poderão invocar até ao trânsito em julgado da decisão final.
e) In casu, a excepção de incompetência internacional submetida à apreciação deve ser encarada, exclusivamente, à luz do regime interno, por inexistir qualquer instrumento internacional de regulação do foro aplicável, nos termos do artigo 59.º do CPC, não sendo aplicável o direito da união europeia por força do disposto no art. 6.º do regulamento 1215/2012.
f) Sendo inaplicável direito europeu, será também inaplicável jurisprudência europeia, densificadora de conceitos próprios da legislação europeia da legislação nacional de transposição de directivas europeias.
g) Inexiste, ainda, qualquer lacuna – nem ela foi identificada pelo autor nas suas alegações de recurso – que justifique a aplicação analógica de jurisprudência europeia (e, mesmo que houvesse – o que não se concede –, é certo que uma lacuna não é preenchida por jurisprudência, mas sim pelos mecanismos da analogia legis e analogia juris, previstos no art 10.º do CC).
h) No que concerne aos factores de conexão internacional, consagrados no art.º 62.º do CPC, e ao invocado erro de julgamento na apreciação e aplicação dos mesmos, não assiste razão ao Recorrente.
i) Não só a sentença conheceu em detalhe os fundamentos invocados pelo autor para sustentar a competência internacional da ordem jurídica portuguesa ao abrigo do normativo aplicável, como explicitou detalhadamente as razões de facto e de direito que justificam a decisão havida.
j) Para o efeito, convoquemos a factualidade relevante da petição inicial:
Quanto ao autor:
(i) O autor refere ser jogador de futebol (artigo n.º 3 petição inicial).
Quanto à ré:
(ii) A ré é uma sociedade norte-americana, com sede no Estado da Califórnia, nos Estados Unidos da América;
(iii) A ré dedica-se à exploração, distribuição e venda de jogos, sendo que o autor não alega que a ré o faz em Portugal (artigo 1.º e 2.º da petição inicial);
(iv) O autor refere que “…a ré conta com várias subsidiárias, entre as quais se destaca, na Europa, a EA Swiss Sarl…” (artigo 2.º da petição inicial), o que evidencia que a ré não actua em Portugal ou, sequer, na Europa;
Quanto ao facto ilícito imputado à ré:
(v) Em parte alguma da petição inicial, o autor afirma que a ré vende, em Portugal, os jogos FIFA e FIFA MANAGER, chegando mesmo a reconhecer, quanto a versões antigas dos jogos que os mesmos são comercializados por terceiros (artigos n.º 27.º e 38.º da petição inicial).
(vi) A compra efectuada pelos mandatários do autor foi à empresa “CEX Complete Entertainment Exchange Unipessoal Lda.”, com sede no Porto e não à ré, cerca de um ano antes da instauração dos presentes autos (artigo n.º 39 da petição inicial e Doc. 15 da p.i.).
(vii) Nenhum dano é alegado ou concretizado, pelo autor, na petição inicial, como ocorrendo em Portugal.
k) Contra este quadro factual e com vista ao preenchimento do factor de conexão previsto na alínea a) do art.º 62.º do CPC, o autor sustenta que o facto ilícito ocorre também em Portugal.
l) A alínea a) consagra o princípio da coincidência com as regras de competência territorial: neste caso, como se refere na sentença e o autor não infirma, estamos perante uma acção de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, cuja competência territorial se define no art.º 71.º, n.º 2 do CPC.
m) Acompanhando a fundamentação da sentença e a jurisprudência relativa à regra do art.º 71.º, n.º 2 do CPC, o lugar do alegado facto ilícito – definido pelo autor na petição inicial, como a inclusão da sua imagem nos jogos FIFA – não ocorre em Portugal.
n) É o próprio autor quem declara, no já identificado art.º 2.º da petição inicial, que a ré apenas comercializa os jogos nos EUA, Canadá e Japão, não tendo qualquer actividade no resto do mundo, incluindo Portugal.
o) Não basta, neste contexto, dizer que foram alegados factos praticados em território nacional com base na afirmação que os jogos FIFA são vendidos em todo o mundo, incluindo Portugal.
p) Quando é o próprio autor (e bem) quem menciona que a ré não tem actividade em Portugal, o que significa que a ré não pratica qualquer acto integrador da causa de pedir relativa à invocada utilização não autorizada da imagem do autor no nosso país (nem os factos alegados na petição inicial ou os documentos juntos, em tese, serão aptos a tal).
q) Inexistindo, por isso à luz da alínea a) do art.º 62.º e 71.º, n.º 2, ambos do CPC, elemento de conexão com a ordem jurídica portuguesa.
r) As regras do art.º 80.º (cuja epígrafe é regra geral) e o n.º 3 do CPC não são aplicáveis no caso concreto, sob pena de se esvaziar a ratio legis da alínea a) do art.º 62.º do CPC.
s) A aplicação sucessiva de critérios para a competência territorial tornaria sempre os tribunais portugueses competentes, máxime através da regra do art.º 80.º, n.º 3 do CPC, o que não se pode aceitar por força das regras de interpretação normativa estabelecidas no art.º 9.º do CC.
t) Por esse motivo, o domicílio ou a nacionalidade do autor não constituem factores de conexão relevantes para a apreciação da competência dos tribunais portugueses.
u) Quanto ao factor de conexão, consagrado sob a alínea b) do art.º 62.º, não foi alegada a prática de factos, pela ré, ou a ocorrência de quaisquer danos, em território nacional, relativos à causa de pedir ou algum facto aqui territorialmente localizado que a integre.
v) O autor não avançou, na sua petição inicial, qualquer acto da ré praticado em território nacional. Pelo contrário, afirmou no art.º 2.º desse articulado que a ré apenas tem actividade nos EUA, Japão e Canadá.
w) Não foi também concretizado qualquer dano sofrido pelo autor em território nacional.
x) Devem improceder quaisquer referências a “factos danosos”, que confundem dois requisitos autónomos da responsabilidade civil e cuja alegação sobrepõe (i) factos de terceiros localizados em Portugal, (ii) com factos da ré praticados no estrangeiro e, ainda, (iii) com danos sofridos pelo autor que não são territorialmente localizados.
y) Acresce que nem a comercialização dos jogos, nem os alegados danos do autor são tidos como factos constitutivos ou essenciais da causa de pedir, que assumam uma conexão relevante com Portugal, para efeitos da análise da competência internacional do Tribunal para os efeitos do art.º 62.º, b) do CPC.
z) A comercialização plurilocalizada dos jogos e, na Europa, por entidades que não a ré, não pode ser tida como um factor distintivo no contexto da causa de pedir e que atribua relevância suficiente para a afirmação da competência dos nossos tribunais.
aa) Como refere o acórdão do TRL, acima identificado, “…para que se estabeleça a competência internacional dos tribunais portugueses é necessário que os factos materiais localizados em Portugal sejam relevantes e característicos do facto jurídico e que, de entre a massa de factos que constituem a causa de pedir, tenham sido praticados em Portugal factos suficientes que justificam a conexão da acção com a ordem jurídica portuguesa.”.
bb) Conforme resulta dos factos alegados na petição inicial, para a causa de pedir do autor, os factos relevantes prendem-se, fundamentalmente, com a inclusão não autorizada da sua imagem nos jogos FIFA, o que, reconhecidamente, não ocorre em território nacional.
cc) De igual modo, embora não integre o conjunto de factos essenciais da causa de pedir, a venda dos jogos FIFA pela ré, em Portugal, não foi alegada pelo autor.
dd) A alegação do autor, em articulado posterior à petição inicial, acerca da comercialização mundial dos jogos não permite colmatar a falta de alegação de quaisquer elementos de conexão, incluindo danos, em Portugal, por três motivos: (i) apenas a factualidade constante da petição inicial é relevante para a averiguação da competência, (ii) não são alegados danos concretos, nem danos concretos ocorridos em Portugal e (iii) a comercialização dos jogos em Portugal não é atribuível ou atribuída à ré, mas sim a terceiros.
ee) Daí que se conclua, inexistindo alegação factual sobre a causa de pedir ou qualquer facto que a integre praticado em Portugal, que não se verifica o factor de conexão previsto na alínea b) do art.º 62.º do CPC.
ff) Idêntica conclusão é alcançada pela aplicação do critério da necessidade constante da alínea c) do mesmo normativo: o autor não alegou na petição inicial, nem na resposta à contestação, onde se pronunciou expressamente sobre este ponto, qualquer razão de facto ou de direito que, mesmo em abstracto, seja idónea a densificar o conceito de dificuldade apreciável para o autor na propositura da acção no estrangeiro.
gg) Não foi alegado ou sequer demonstrado que os tribunais de outras jurisdições nacionais não se considerem competentes para o presente pleito ou quaisquer outras impossibilidades reais e objectivas.
hh) Sem qualquer concretização ou sequer indiciação factual concreta sobre a referida dificuldade apreciável na propositura de acção no estrangeiro, não existem nos autos quaisquer motivos que permitam concluir pela verificação da alínea c) do art.º 62.º do CPC.
ii) Em suma, como já concluído pelo Tribunal a quo, os factos alegados pelo autor, nestes autos, não revelam a verificação de factores de conexão que atribuam competência internacional à ordem jurídica Portuguesa.
jj) Devem por isso improceder todas as conclusões do recurso do autor.
Nestes termos, requer-se a Vossas Exas., face a tudo o que foi adrede expendido, que se dignem considerar improcedente o recurso, confirmando a decisão do Tribunal a quo.

7. O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos Recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, importa decidir as seguintes questões:
(i) Da nulidade da sentença;
(ii) Da (in)competência internacional dos tribunais portugueses para julgamento da causa; e
(iii) Da violação do artigo 26º, n.º 1, da Constituição.
*
III – Fundamentação
A) - Os Factos
Com importância para a decisão relevam as ocorrências processuais referidas no relato dos autos.
*
B) – O Direito
1. Da nulidade da Sentença
Nas alegações e conclusões do recurso (cf. ponto 82 e conclusão cc)), o Recorrente menciona a violação do disposto no artigo 615º, n.º 1, al, d), 2ª parte, do Código de Processo Civil, preceito este que comina com a nulidade a sentença quando “[o] juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Esta causa de nulidade da sentença consiste, portanto, na omissão de pronúncia, sobre as questões que o tribunal devia conhecer, ou na pronúncia indevida, quanto a questões de que não podia tomar conhecimento.
Constitui entendimento pacífico que esta nulidade está em correspondência directa com o disposto no n.º 2 do artigo 608º do Código de Processo Civil – que impõe ao juiz a resolução de todas as questões que as partes submeteram à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras, não podendo, porém ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes (salvo as de conhecimento oficioso) –, constituindo, assim, a sanção prevista na lei processual para a violação do estabelecido neste preceito.
No caso concreto, o Recorrente refere a violação da 2ª parte da alínea d) do n.º 1 do referido artigo 615º do Código de Processo Civil, que se reporta à nulidade da sentença por excesso de pronúncia.
Porém, não a fundamenta e da análise das alegações de recurso o que se conclui é que a norma respeitante à nulidade em causa foi englobada no conjunto de normas que o Recorrente entende terem sido violadas, as quais invoca porque, ao contrário do decidido, entende que estão verificados os factores de conexão referidos nas alínea a), b) e c) do artigo 62º do Código de Processo Civil, que impõem a conclusão de que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para o julgamento da causa.
Ora, o tribunal a quo tinha para decidir a questão da incompetência internacional dos tribunais portugueses e foi essa questão que apreciou e decidiu. Se o fez por erro de interpretação e/ou de aplicação das normas em causa ao caso concreto, como alega o Recorrente, tal constitui erro de julgamento, mas nunca nulidade da sentença.
Por conseguinte, é manifesta a improcedência da invocada nulidade da decisão.

2. Da (in)competência internacional dos tribunais portugueses
2.1. A questão que se coloca consiste em saber se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para apreciar e decidir a presente acção, em que o A., jogador de futebol profissional, cidadão português e residente em Portugal, demanda a R., empresa estrangeira, com sede nos EUA, reclamando uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, decorrentes da utilização pela R. do nome do A. e da sua imagem nos jogos Fifa, Fifa Manager, Fifa Ultimate Team-Fut e Fifa Mobile, que desenvolve e fornece, contando com várias subsidiárias, entre as quais a EA Swiss Sarl, com sede em Genebra, Suíça, que assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão, fazendo-o sem o consentimento ou anuência do A..
Na sentença entendeu-se não ocorrer qualquer dos elementos de conexão constantes das alíneas a), b) e c) do artigo 62.º do Código de Processo Civil, concluindo-se pela incompetência internacional dos tribunais portugueses.
O A., ora Recorrente, discorda, porquanto entende que se verificam os referidos elementos de conexão.
Vejamos:

2.2. Os tribunais portugueses só podem conhecer de litígio emergente de uma relação transnacional quando forem internacionalmente competentes.
E, como se sabe, “[a] competência do tribunal afere-se pela natureza da relação jurídica tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido) e os respectivos fundamentos (causa de pedir), independentemente da apreciação do seu acerto substancial” (cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/06/2021, Proc. n.º 20526/18.9T8LSB.L1.S1, disponível, como os demais citados sem outra referência, em www.dgsi.pt).
O legislador nacional estabeleceu no Código de Processo Civil regras delimitadoras da competência internacional, consagrando no artigo 59º que: “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º”
Por conseguinte, a competência internacional dos tribunais portugueses depende, em primeiro lugar, do que resultar de convenções internacionais ou dos regulamentos europeus sobre a matéria (que prevalecem sobre o direito interno dos respectivos Estados Contratantes/Outorgantes ou Estados-Membros) e, depois, da integração de algum dos segmentos normativos dos artigos 62º (factores de atribuição da competência internacional) e 63º (competência exclusiva dos tribunais portugueses), sem prejuízo da que possa emergir de pacto atributivo de jurisdição, nos termos do artigo 94º.
No caso, atenta a matéria em causa, não se afigura aplicável qualquer instrumento internacional (convenção ou regulamento (EU)) que disponha sobre a questão da competência em razão da nacionalidade, sendo de salientar a este respeito, que a R. tem a sua sede nos Estados Unidos, que não pertencem à União Europeia.
De facto, não existe instrumento internacional a considerar sobre a matéria do litigio nem são aplicáveis, apesar de Portugal ser Estado-Membro da União Europeia, regulamentos europeus (designadamente não é aplicável o regime definido pelo Regulamento (UE) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, que revogou o Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 22/12/2000), [que prevê, como regra geral em matéria de competência, no seu artigo 4º que “1. Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro”; e no artigo 6º que, “1. Se o requerido não tiver domicílio num Estado-Membro, a competência dos tribunais de cada Estado-Membro é, sem prejuízo do artigo 18.º, n.º 1, do artigo 21.º, n.º 2, e dos artigos 24.º e 25.º, regida pela lei desse Estado-Membro”], atendendo, designadamente, ao facto de a R. ter a sua sede na Califórnia, Estados Unidos da América, como bem se explica no acórdão da Relação de Guimarães, de 13/01/2022 (proc. n.º 3853/20.2T8BRG.G1), que apreciou idêntica questão.
O princípio geral vigente em sede do Regulamento é o de que a competência tem por base o domicílio do requerido, desde que este tenha o seu domicílio, à data da propositura da acção, dentro de um Estado-Membro. Ainda que a nacionalidade seja extracomunitária, os tribunais do Estado-Membro onde se encontra domiciliado são competentes para conhecer do litígio.
Ora, no caso, a R. não tem domicílio em nenhum Estado-Membro.
É certo que existem elementos de conexão especiais em relação ao referido critério geral, que se encontram enunciados nas Secções 2 a 7 do Regulamento (cf. n.º 1 do artigo 5º: “As pessoas domiciliadas num Estado-Membro só podem ser demandadas nos tribunais de outro Estado-Membro nos termos das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo”).
Concretamente, no artigo 7º, n.º 2 do Regulamento prevê-se que: “As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser de mandadas noutro Estado-Membro:2) Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso”.
Significa isto que, em matéria extracontratual, nos termos do Regulamento, a acção pode ser proposta, à escolha do autor, tanto no Estado-Membro em que a ré tenha o seu domicílio (critério geral) ou no Estado-Membro do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso (critério especial).
Porém, como resulta dos referidos preceitos tais critérios são alternativos ao do domicílio, não o substituindo (cf. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 24/01/2019, Proc. n.º 1689/17.7T8BGC.G1).
E, no caso dos autos, não só o facto ilícito ocorreu nos Estados Unidos da América, onde segundo o A. a R. utilizou indevidamente e sem a sua autorização a sua imagem, o seu nome e as suas características pessoais e profissionais nos jogos, sua propriedade, que são por si produzidos e comercializados nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão, como é também aí, com a produção dos jogos, que ocorre o dano directo, a violação do seu direito.
Do exposto decorre que não se verifica nenhum dos critérios (geral e especial) atributivos de competência internacional nos termos do Regulamento, não sendo aplicável o Regulamento (EU) n.º 1215/2012.
E, não sendo aplicável o Regulamento (EU), desde já se adianta que não tem aqui aplicação a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia citada pelo Recorrente, designadamente o acórdão eDate Advertising GmbH (https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:62009CJ0509&from=IT), como igualmente se decidiu no citado aresto do Tribunal da Relação de Guimarães, de 13/01/2022.
Deste modo, e não sendo também caso de aplicação do artigo 63º do Código de Processo Civil, por não estar em causa matéria de competência exclusiva dos tribunais portugueses, nem de aplicação do artigo 94º (pactos privativo e atributivo de jurisdição), a competência internacional dos tribunais portugueses tem que se aferir em função dos elementos de conexão previstos nas alíneas a), b), ou c) do artigo 62º do Código de Processo Civil.

2.3. O artigo 62º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “factores de atribuição da competência internacional”, dispõe que:
«Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:
a) Quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;
b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram;
c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.»
Tais elementos de conexão não são de aplicação cumulativa, bastando que se verifique no caso concreto uma das situações previstas em qualquer uma das alíneas referidas para que se fixe a competência.

2.4. A respeito da alínea a) do citado artigo 62º, referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1, 4ª edição, 2018, Almedina, pág. 154), que, “[a] alínea a) consagra, nos mesmos termos que no direito anterior, o critério da coincidência, pelo qual se determina a competência internacional dos tribunais portugueses sempre que a acção possa ser proposta em Portugal segundo as regras específicas de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa … Atribui-se assim a este último conjunto de regras uma dupla funcionalidade.” (destaque nosso)
No mesmo sentido, salientam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2ª Edição actualizada, 202º, pág. 98), que: “A competência internacional acompanha, desde logo, a competência interna de raiz territorial; se, de acordo com as regras da competência em razão do território, algum tribunal português for territorialmente competente, também lhe é atribuída a competência internacional por via do principio da coincidência.”
O tribunal recorrido concluiu pela não verificação do critério da coincidência (atribuição de competência internacional à luz das regras de competência territorial), porquanto entendeu, em síntese, que o princípio da coincidência, previsto na alínea a) do referido artigo 62.º Código de Processo Civil, chama à colação as normas específicas previstas nos artigos 70º a 79.° do Código de Processo Civil, não sendo aplicável, no caso, a norma de carácter geral prevista no artigo 80º, n.º 3, do mesmo código, e que a presente acção cai no âmbito da previsão do n.º 2 do artigo 71º do Código de Processo Civil, nos termos do qual “se a acção se destinar a efectivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito ou fundado no risco, o tribunal competente é o correspondente ao lugar onde o facto ocorreu”. Assim, considerando que o A. estruturou a acção como uma típica acção de responsabilidade civil por facto ilícito, já que através dela visa obter a condenação da R. no pagamento de uma determinada quantia pecuniária resultante da violação do seu direito de imagem, com a produção e desenvolvimento de videojogos com fins lucrativos, que, nos termos em que a acção foi proposta, ocorreu nos Estados Unidos da América (lugar da sede da Ré), concluiu que “…, é manifesto que o facto gerador de responsabilidade civil não ocorreu, sob nenhuma forma, em Portugal”, e, “… como refere a Ré, em momento algum, o autor afirma que a ré desenvolve e divulga em Portugal, os jogos Fifa e Fifa Manager, chegando mesmo a reconhecer, quanto a versões antigas dos jogos que os mesmos são comercializados por terceiros.”
O Recorrente discorda, se bem percebemos, referindo que o que está em causa é a utilização e divulgação da imagem, nome e demais características do A. pela R., nos seus jogos, sem o seu consentimento, bem como os avultados lucros daí decorrentes, concluindo pela verificação do critério de atribuição de competência, pela aplicação do n.º 2 do artigo 71º, em articulação com alínea a) do artigo 62º, todos do Código de Processo Civil.
Porém, não lhe assiste razão.
Convém lembrar que o Recorrente é uma pessoa singular e cidadão nacional Português, residente em Sesimbra, Setúbal, enquanto a recorrida é uma pessoa colectiva (sociedade), com sede na Califórnia, Estados Unidos da América, e, como percebemos pela análise do pedido formulado pelo A. na petição inicial, na base do litigio por si configurado está matéria de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, traduzida em alegada violação do direito de imagem do A. pela R., consubstanciada na produção, divulgação e exploração com fins lucrativos de videojogos (FIFA) por esta última, utilizando a imagem do apelante sem a autorização, ou consentimento, do mesmo.
No que se reporta às regras de competência territorial aplicáveis, por força da previsão da alínea a) do artigo 62º do Código de Processo Civil, não subsistem dúvidas que destinando-se a acção a efectivar a responsabilidade civil da R. por factos ilícitos, alegadamente por esta praticados, a mesma cai no âmbito de aplicação da norma do n.º 2 do artigo 71º do Código de Processo Civil, onde se consigna que: “Se a acção se destinar a efectivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito ou fundada no risco, o tribunal competente é o correspondente ao lugar onde o facto ocorreu.”
Ora, o que o A. alega na petição inicial é a utilização indevida e sem a sua autorização pela R. da sua imagem, do seu nome e das suas características pessoais e profissionais em diversos jogos, sua propriedade, denominados FIFA e FIFA MANAGER, que são produzidos e comercializados pela R. nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão, jogos igualmente vendidos a consumidores não residentes nestes países através subsidiárias, destacando-se na Europa a EA Swiss Sarl, que assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão.
O facto ilícito imputado à Ré, a alegada utilização sem autorização da sua imagem, do seu nome e das suas características pessoais e profissionais, ocorreu no estrangeiro com a produção dos jogos, pelo que segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa os tribunais portugueses (designadamente o Juízo Central Cível de Setúbal) não são competentes para a causa.
Acresce ainda que resulta da petição inicial que a comercialização dos jogos na Europa, logo eventualmente em Portugal, é efectuada por terceiro que “assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão”.
E também não constitui factor de conexão relevante a invocada residência do A. em Sesimbra, Portugal, uma vez que a norma contida no artigo 80.º do Código de Processo Civil, que é uma “regra geral”, apenas se mostra aplicável “[e]m todos os casos não previstos nos artigos anteriores …”, (cf. n.º 1), ou seja nos artigos 70.º a 79.º do mesmo Código, sendo que no caso vertente, como já verificamos, mostra-se aplicável a norma contida no n.º 2 do artigo 71º. do aludido diploma legal, razão pela qual o critério plasmado na 2ª parte do n.º 3 do aludido artigo 80.º tem de ser afastado.
De resto, sendo a R. uma sociedade comercial, em bom rigor, a regra geral a considerar nem sequer poderia ser a do artigo 80.º, mas sim a do artigo 81.º do CPC.
Deste modo, mostra-se inaplicável a alínea a), que consagra o princípio ou critério da coincidência, uma vez que as normas de direito processual civil internas atinentes à competência territorial afastam a competência internacional dos tribunais Portugueses.

2.5. No que se reporta à alínea b) do artigo 62º do Código de Processo Civil, onde se consagra o principio da causalidade, existe competência internacional se o facto que serve de causa de pedir (causa de pedir simples) ou algum dos factos que a integram (causa de pedir complexa) tiver sido praticado em Portugal (Cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, ob. cit., pág. 98).
E, como dizem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, (ob. cit., pág. 156), citando Anselmo de Castro, o intuito legislativo é o de evitar que os tribunais portugueses recusem competência quando um só dos factos tenha ocorrido em território estrangeiro.
Porém, no caso em apreço entende-se que não ocorre o factor de conexão previsto neste preceito legal atributivo de competência internacional aos tribunais portugueses.
Efectivamente, como se decidiu no acórdão desta Relação de Évora, de 24/02/2022 (proc. n.º 4157/20.6T8STB.E1), com idênticos contornos aos dos presentes autos, e que aqui seguimos de perto:
«Regressando de novo ao plano factual derivado do arrazoado fornecido pelo Apelante verificamos que apesar de se estar perante uma causa de pedir complexa dado que abrange uma pluralidade de factos jurídicos traduzidos em actos de produção ou criação de jogos electrónicos, de vídeo e aplicativos (estes essencialmente constitutivos da causa de pedir), bem como outros não essenciais a essa constituição como sejam a divulgação e exploração de tais jogos e aplicativos, a par de alegados danos no nome e na imagem do Apelante por virtude desta última ter sido usada em tais produtos sem a autorização ou consentimento por parte do mesmo, a verdade é que não se descortina que a prática dos mesmos tenha conexão com o território nacional Português, como passaremos a elucidar.
Com efeito, e já o sabemos pela abordagem anteriormente feita aquando da apreciação da relevância do critério da coincidência, a produção dos aludidos jogos e aplicativos terá ocorrido nos Estados Unidos da América.
Já quanto à divulgação e exploração/venda por parte da Apelada a mesma terá ocorrido naquele país e ainda no Japão e Canadá, não podendo aceitar-se, como pretenderá sustentar o Apelante, que a divulgação e venda de tais jogos FIFA e aplicativos por parte de entidades terceiras, ainda que subsidiárias da Apelada, como sucede com a empresa EA Swiss SARL, sediada em Genebra, Suíça, (que alegadamente assegura a venda de tais produtos fora dos EUA, Canadá e Japão, mormente na Europa), corresponda, ou equivalha, à prática de tais factos jurídicos pela própria Apelada, tanto mais que a mencionada EA Swiss SARL é uma pessoa colectiva, (sociedade comercial), dotada de personalidade judiciária e capacidade judiciária, podendo ser autonomamente demandada judicialmente.
Quanto aos alegados danos, percebemos desde logo que o Apelante não os concretiza de forma a poder entender-se em que medida constituem um prejuízo para aquele, escudando-se na alegação de que “o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem”.
Porém, parece-nos estar carecido de razão, pois a “utilização não autorizada e indevida” pode conter-se, quando muito, na descrição de facto ilícito e culposo, mas não necessariamente de acto danoso.
Em todo o caso, e ainda que se entenda de modo coincidente à posição do Apelante afigura-se-nos claro que a alegada violação do direito ao nome e imagem do Apelante, enquanto dano que teria que ser causa adequada do facto ilícito imputado à ora Apelada, qual seja a produção dos aludidos jogos e aplicativos com a utilização não consentida pelo mesmo do nome e imagem do Apelante, não se concretizou, nem localizou, por qualquer forma, em território nacional Português, uma vez que, repete-se e sublinha-se, a Apelada, (segundo o que decorre do alegado pelo próprio Apelante), não produziu, (assim como também não divulgou, nem vendeu, por si), tais jogos e aplicativos em Portugal.»
Deste modo, com tais fundamentos, impõe-se a conclusão de que não é aplicável a alínea b) do artigo 62º do Código de Processo Civil, que, como se referiu, consagra o princípio ou critério da causalidade, na medida em que não só o facto ilícito não foi praticado em Portugal, como também não surge caracterizado na petição inicial qualquer dano directamente causado ao Recorrente, por acção da Recorrida, verificado no nosso País.

2.6. Quanto ao critério previsto na alínea c) do artigo 62º do Código de Processo Civil, como referem, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, ob. cit., pág. 99, “[a] al. c) contém uma cláusula de salvaguarda tendente a evitar que, atenta a impossibilidade de ordem prática ou jurídica (v.g. recusa de competência), ou a grave dificuldade na instauração da acção num tribunal de outro Estado, o direito em causa pudesse ficar sem tutela efectiva (v.g. casos de guerra ou outras calamidades). Concretiza o princípio da necessidade, mas a atribuição da competência aos tribunais nacionais exige uma forte conexão com a ordem jurídica portuguesa […] seja de ordem pessoal (v.g. nacionalidade ou residência das partes), seja de natureza real (v.g. o facto de se situar em território nacional o bem que é objecto imediato ou mediato da acção.)”
Ora, no caso concreto, não vemos que resulte da petição inicial qualquer indício de que o direito invocado pelo Recorrente – direito a ser indemnizado por alegada violação de um direito de personalidade – não possa ser exercido através de uma acção proposta pelo mesmo designadamente em território norte-americano, onde a Recorrida desenvolve a sua actividade e onde terá produzido conteúdos utilizando indevidamente a sua imagem e nome, pais onde é consabido que direitos de tal natureza são reconhecidos, o mesmo sucedendo, aliás, um pouco por todo o mundo na actualidade, nem que se verifique para o Recorrente “dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro”, como se exige na norma em causa.
Claro que seria mais cómodo para o A./Recorrente instaurar a acção em Portugal, por exercer actualmente a sua actividade profissional em Portugal (e nem sempre foi assim, como se verifica do artigo 9º da petição inicial) e aqui ter residência, mas estes elementos de conexão pessoal, previstos na 2ª parte da norma, só relevam, caso o direito em causa ficasse sem tutela se a acção não fosse proposta em Portugal, ou houvesse dificuldade apreciável em propor a acção no estrangeiro, o que, como acima se disse, não resulta da petição inicial, nem se vislumbra que tal suceda.

2.7. Neste mesmo sentido – da incompetência internacional dos tribunais portugueses –, vejam-se os recentíssimos acórdãos proferidos em acções, com contornos fácticos muito semelhantes aos reunidos na presente causa, pelo Tribunal da Relação de Évora, 24/02/2022, (proc. n.º 4157/20.8T8STR.E1), já citado, pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 26/10/2021 (Proc.º 3239/20.9T8CBR-A.C1), pelo Tribunal da Relação de Guimarães, de 13/01/2022 (Proc.º 3853/20.2T8BRG.G1), também já citado, sendo que nestas acções o A. também é um futebolista profissional de nacionalidade Portuguesa e a R. a mesma que a dos presentes autos, bem como, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, de 13/01/2022 (Proc.º 24974/19.9T8LSB.E1-8), em que o A. é um jogador de futebol de nacionalidade brasileira, domiciliado em Portugal e a R. a mesma que a dos presentes autos [No mesmo sentido, vejam-se também os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 10/02/2022 (proc. n.º 2160/20.5T8PNF.P1), e Tribunal da Relação de Coimbra, de 08/03/2022 (proc. n.º 4167/20.3T8LRA.C1), estes ainda inéditos, mas com cópia junta aos presentes autos].

3. Da violação do artigo 26º, n.º 1, da Constituição
Invoca o Recorrente que estando em causa a violação, pela R., de direitos de personalidade do A., com tratamento e protecção constitucional e infraconstitucional (cf. artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e artigos 70.º e 72.º do Código Civil), não se concebe como poderia o julgamento da causa nestes autos ser atribuído a uma jurisdição estrangeira de um outro país, concluindo pela violação do referido normativo.
Ora, não se suscitam dúvidas de que os direitos de personalidade encontram tutela no artigo 26º, n.º 1 da Constituição, onde se consagra que “[a] todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”, e, no plano infraconstitucional, nos artigos 70º (tutela geral da personalidade) e 72º (direito ao nome) do Código Civil.
Porém, na decisão recorrida não se negam nem restringem tais direitos, o que se diz é que, nas circunstâncias do caso concreto, face às normas do direito processual aplicáveis ao caso, os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para conhecer da alegada violação desses direitos, o que é coisa diferente.
E, como se disse, o A. não está impedido de recorrer aos tribunais competentes para fazer valer o direito de que se arroga, nem está demonstrado que a efectivação desse direito nos tribunais estrangeiros constitua dificuldade apreciável, pois se assim fosse, ter-se-ia concluído pela verificação do critério de conexão da alínea c) do artigo 62º do Código de Processo Civil.

4. Deste modo, e não se aplicando nenhum dos factores atributivos de competência previstos no artigo 62º do Código de Processo Civil, tem de se concluir que os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para conhecer da presente acção.
A incompetência internacional é uma forma de incompetência absoluta, que, como tal, constitui excepção dilatória, conducente, no caso, à absolvição da ré da instância, como se decidiu (cf. artigos 96.º, al. a), 97.º a 99.º, 576.º, n.ºs 1 e 2, e 577.º, al. a), todos do Código de Processo Civil).
Assim, improcede a apelação, com a consequente confirmação da decisão recorrida.
*
IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargo do Apelante.
*
Évora, 12 de Maio de 2022
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro
Florbela Moreira Lança
(documento com assinatura electrónica)