Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
208/14.1ECLSB.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: EXAME
PERÍCIA
VALOR PROBATÓRIO
Data do Acordão: 05/02/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário: 1 - Exame e perícia são coisas diferentes com regimes distintos.
2 - Um exame, meio de obtenção prova, é a análise em pessoas, lugares e coisas, de “vestígios que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticado, às pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometido” - artigo 171º do C.P.P.. A perícia, bem ao invés, é um meio de prova que deve (ou tem que) ser produzido quando o processo e a futura decisão se defrontam com conhecimentos especializados que estão para além das possibilidades de constatação e/ou percepção, efectivas ou presumidas, do tribunal em três campos do saber, os técnicos, os científicos e os artísticos.
3 - O “exame” está sujeito à regra geral de apreciação probatória, a livre apreciação da prova prevista no artigo 127º do Código de Processo Penal.
4 - A perícia tem um regime específico de produção e apreciação probatória, diverso de qualquer outro meio de prova ou de obtenção de prova. E esse distinto regime consta do nº 2 do artigo 163º do C.P.P.. e determina que o “juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador”, podendo o juiz “divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência” mas com apelo aos conhecimentos materiais supostos na perícia.
(Sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Processo Comum nº 208/14.1ECLSB

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:
Nos autos de processo Comum Colectivo com o número supra indicado do Tribunal da Comarca de Benavente – S. Criminal, J1 – foi julgado o arguido BB, filho de … e de …, natural da freguesia e concelho de Benavente, nascido a …, Casado, Pedreiro e a quem havia sido imputada em autoria material e na forma consumada a prática de um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punido pelo artigo 108.º, n.º 1,do Decreto-Lei n.º 422/89 de 2 de Dezembro, em concurso aparente com uma contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 161.º e 163.º do mesmo diploma legal.
Por decisão de 04-10-2016 decidiu o tribunal recorrido julgar a acusação procedente, por provada e, em consequência:
a) Condenou o arguido pela prática, em autoria material, de um crime de exploração ilícita de jogo de fortuna ou azar, previsto e punido pelo artigo 108.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2.12, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 10/95, de 19.01, na pena de 3 (três) meses de prisão e 80 (oitenta) dias de multa;
b) Substituiu a pena de prisão aplicada ao arguido pela pena de 90 (noventa) dias de multa à taxa diária de € 5,00 (cinco euros);
c) Em cúmulo jurídico condenar o arguido na pena única de 170 (cento e setenta) dias de multa à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz a quantia de € 850,00 (oitocentos e cinquenta euros);
d) Condenou o arguido no pagamento das custas do processo, que se fixam em 3 (três) U. C. de taxa de justiça, e nos demais encargos com o processo, nos termos do disposto nos artigos 513.º e 514.º todos do Código de Processo Penal e artigos 8.º e 16.º do Regulamento das Custas Processuais.
e) Declarou perdida a favor do Estado a máquina apreendida, solicitando-se à ASAE que informe se interessa à afectação da máquina aquela entidade, o que na afirmativa, desde já se determina, e bem assim que a ASAE proceda à formatação da máquina em questão, com vista a eliminar o software relativo aos jogos, e que do móvel que compõe a máquina sejam desintegrados o monitor, o CPU, o teclado e o rato, remetendo aos autos o respectivo termo em conformidade;
f) Declarou perdida a favor do Fundo de Turismo a quantia de € 80,50, apreendida nos autos e que se encontrava no interior da máquina, ao abrigo do disposto no artigo 117.º do referido diploma legal.
Que, após trânsito, se solicitasse à ASAE que proceda à formatação da máquina em questão, com vista a eliminar o software relativo aos jogos, e que do móvel que compõe a máquina sejam desintegrados o monitor, o CPU, o teclado e o rato, remetendo aos autos o respectivo termo em conformidade, e bem assim que informe se a máquina em questão interessa à sua afectação aquela entidade, o que em caso afirmativo, desde já se determina.
*
Inconformado o arguido recorreu com as seguintes conclusões (transcritas):
1 - Em sede de fundamentação de facto o juiz a quo atribui ao documento de fls 24 a 28 e ao de fls. 154 a 157 o valor de prova pericial. O conteúdo destes dois documentos é incompatível e a decisão de facto vertida no ponto 2 é fundamentada pelo teor de fls. 24 a 28. Sucede que apenas o documento de fls. 154 a 157 constitui a documentação de acto processual de exame pericial. Erradamente, o juiz a quo atribui ao documento de fls. 24 a 28 o valor de prova pericial quando este é constituído por um relatório de autor que nem sequer foi inquirido em audiência e cujo conteúdo é composto por opiniões pessoais e juízos empíricos;
2 - Ao preterir a prova pericial, em beneficio de outra, de conteúdo duvidoso, por não confirmada em audiência, quanto á sua autoria e conteúdo, foram pelo juiz a quo desrespeitadas as regras sobre prova vinculada (art°. 163°, n° 1 CPP). No ponto 2 de facto estão dados por provados factos desconformes à prova pericial, quanto ao funcionamento da máquina, pois o Perito não constatou nada do que nesse ponto se verteu;
3 - No ponto 2 foram dados como provados factos desconformes com a prov~ pericial, o que resulta do próprio texto da decisão recorrida, pelo que incorreu em erro notório na apreciação da prova - art°. 410°, n° 2, alínea c), do CPP;
4 - A prova de que o Arguido pagava prémios em dinheiro (ponto 2 da matéria de facto) assenta no depoimento de uma testemunha que disse não ter visto tais pagamentos. Há por isso uma contradição evidente - art°. 410°, n 2, alínea b) CPP;
5 - Ao verter no ponto 2 da matéria assente que os jogos são "de fortuna ou azar" o juiz a quo mistura a decisão de facto com a decisão de direito, omitindo o alinhamento de factos claros, ainda que concisos, sobre a forma ou mecânica de funcionamento do jogo, por forma a que se possa compreender a decisão de direito sobre a sua qualificação jurídica (de "fortuna ou azar" ou outra);
6 - À decisão de direito chega-se através da prévia decisão de facto, e não o inverso. Não sendo revelada a factualidade necessária à qualificação jurídica do jogo, a decisão padece de um vício de insuficiência da matéria de facto provada.
*
A Digna magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu ao recurso defendendo o decidido, concluindo:
1. Os fatos dados como provados não estão em contradição com as conclusões a que se chegou no relatório pericial, não foram violados quaisquer princípios de valoração probatória, designadamente o princípio da prova legal ou tarifada aplicável em sede de prova pericial. Concludentemente, a sentença recorrida não padece do vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
2. A decisão recorrida não padece do vício de contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, previsto no artigo 410º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Penal, não existindo qualquer incompatibilidade entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
3. Tendo em conta que na mesma se explica o modo de funcionamento dos jogos que a máquina em causa nos autos permitia desenvolver, a factualidade assente mostra-se suficiente para a solução de direito que foi aplicada e, consequentemente, a decisão recorrida não padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na alínea a), do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
4. Não foi violado qualquer imperativo legal.
Deste modo, a decisão recorrida não merece qualquer reparo, devendo ser mantida na íntegra e, consequentemente, deve ser negado provimento ao recurso interposto pelos arguidos recorrentes, assim se fazendo
*
O Exmº Procurador-geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no artigo 417 n.º 2 do Código de Processo Penal.
*
B - Fundamentação:
B.1.1 - Pelo Tribunal recorrido foram dados como provados os seguintes factos:
1. O arguido BB, pelo menos no dia referido em 2., encontrava-se a explorar o estabelecimento comercial denominado “CC” e sito na Estrada Nacional nº …, em ….
2. No dia 17 de Dezembro de 2014, pelas 12h30m, o arguido tinha no interior do estabelecimento acima referido e exposta para ser utilizada pelos clientes que ali se deslocassem uma máquina que desenvolve temas de jogos de fortuna ou azar, cujas características e funcionamento se encontram melhor descritos no auto de exame de fls. 24-28, onde consta:
Equipamento móvel, que se apresenta numa caixa fechada de cor preta, vermelha e castanha, sem qualquer referência exterior quanto à origem, fabricante, número de fabrico ou série, possuindo apenas uma chapa de metal rebitada com as indicações “SF 028”.
Na parte frontal encontra-se integrado um ecrã do tipo tátil plano, sendo que, sob este se encontra um rato e uma gaveta que contem um teclado. Sob a gaveta, verifica-se a existência de uma fechadura de canhão, acionada por chave redonda tubular para acesso ao cofre moedeiro/noteiro, um terminal usb e um mecanismo moedeiro, para introdução de moedas, bem como uma chapa de metal rebitada com as indicações "SF 028". Mais abaixo, uma fechadura de canhão, também acionada por chave tubular para acesso ao interior do equipamento.
No painel lateral direito existe instalado um mecanismo noteiro, para introdução e validação de notas bancárias,
O painel lateral esquerdo apresenta um botão redondo de cor laranja, o painel traseiro apresenta uma entrada para a ligação do cabo de corrente e uma entrada para o cabo de rede.
FUNCIONAMENTO
Este equipamento funciona com a introdução de moedas ou notas. -------
Ao ligar o equipamento, surge o ecrã inicial (foto 8) com as palavras "NetKiosk.
Após seleção do tema de jogo de fortuna ou azar que o utilizador pretender jogar, o mesmo apresenta novo ecrã, com o jogo pronto a ser jogado (fotos 11 a 14), bastando para tal possuir créditos que surgem com a introdução de moedas ou notas bancárias.
(FOTOS)
Caso o jogador consiga obter prémios, pode apostar os ganhos ou os mesmos converter-se-ão em dinheiro, no caso especifico, pago pelo explorador do equipamento. -------
Face à descrição que antecede, as características e modo de funcionamento desta máquina eletrónica, é em tudo é idêntico ao funcionamento das "Slot Machines" dos casinos e "Bingo", tendo como objetivo que as jogadas efetuadas resultem numa sequencia estabelecida em tabela, que terá como consequência o direito a um prémio, pelo que se pode concluir que se trata de uma máquina que desenvolve um jogo de fortuna ou azar, uma vez que o resultado deste é contingente, por assentar exclusivamente na sorte, não havendo a intervenção do jogador no resultado do jogo, independentemente da sua perícia ou destreza. ---
CONCLUSÕES
o funcionamento descrito, designadamente a intervenção do jogador no resultado dos jogos com os temas de jogo de fortuna ou azar, do tipo "Slot Machine" mais especificamente denominado, "Hallowen Fortune", e um do tipo "Bingo", denominado "Pirates Bingo", permite concluir que se trata dê um equipamento que desenvolve dois jogos de fortuna ou azar, uma vez que o resultado é contingente, por assentar exclusivamente na sorte, não dependendo, portanto, de qualquer perícia do jogador, (…)”
3. O arguido não tinha licença para explorar no estabelecimento em causa jogos de fortuna ou azar.
4. O arguido sabia que a máquina acima referida desenvolvia temas de jogos de fortuna ou azar e sabia que não tinha licença para explorar tais jogos, assim como sabia que os mesmos apenas podiam ser exploradas nos locais legalmente autorizados para o efeito.
5. Ainda assim, agiu do modo descrito, o que quis e conseguiu, visando obter proventos económicos em resultado da sua utilização pelos clientes do seu estabelecimento, assim se apropriando das quantias apostadas por estes.
6. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
Da situação económico-social do arguido
7. O arguido reside com a mulher e uma filha de 22 anos de idade.
8. A casa onde residem é propriedade de uns tios que a emprestaram.
9. O arguido encontra-se desempregado, fazendo alguns biscates quando aparecem.
10. A mulher do arguido trabalha auferindo retribuição equivalente ao Salário Mínimo Nacional.
11. A filha do arguido encontra-se a estudar
12. O arguido tem como habilitações literárias o 4.º ano de escolaridade.
Dos antecedentes criminais
13. Por acórdão datado de 24/02/2010, transitado em julgado em 23/04/2010, proferido no âmbito do processo comum colectivo n.º 1351/03.8 TAFAR, do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, foi o arguido condenado, pela prática em 07/09/2011, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 218.º, do Código Penal, na pena de 4 anos e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, a qual se encontra extinta.
*
B.1.2 - Inexistem quaisquer factos não provados.
*
B.1.3 - E fundamentou a sua apreciação da prova nos seguintes considerandos:
«O Tribunal fundou a sua convicção, concreta e globalmente, a partir da prova produzida em audiência de julgamento, depois de criticamente analisada, à luz das regras de experiência comum e da verosimilhança, incluindo-se o depoimento da testemunha inquirida e os documentos juntos aos autos, designadamente, o relatório pericial, e, o certificado de registo criminal.
Assim vejamos.
O arguido não prestou declarações quanto aos factos, apenas o fazendo quanto à sua situação económica e pessoal.
A testemunha , disse ser inspector adjunto da ASAE e quanto aos factos referiu que no dia em questão se deslocou em inspecção ao estabelecimento “CC” em …, tendo o arguido se apresentado como gerente do estabelecimento, possuindo a chave de abertura da máquina, bem como movimentava-se com à vontade na parte de trás do balcão. Esclareceu ainda que quando se deslocaram ao local reservado onde a máquina se encontrava, ela estava a funcionar em pleno com um cliente, visualizando-se uma imagem relacionada com o Halloween. Questionado, referiu ainda que não viram a conversão de pontos em dinheiro a ser efectuada, todavia a máquina continha no moedeiro € 80,50. O seu depoimento peremptório, claro e esclarecedor, tendo sido igualmente, corroborado pelo teor do auto de notícia de fls. 2 a 3verso, o auto de apreensão junto a fls. 4 a 5verso, e as fotografias juntas a fls. 6 a 11 dos autos, nesta medida, contribuiu para a convicção do Tribunal permitindo a resposta aos factos constantes dos pontos 1. a 3. dos factos provados.
O tribunal considerou ainda o teor dos relatórios periciais constantes de fls. 24 a 28verso, constante do ponto 2. dos factos provados e ainda no relatório pericial constante de fls. 146 a 147verso, cuja análise se revelou predominante para a prova dos factos relativos ao funcionamento da referida máquina e jogos por ela disponibilizados, resultando deste último que “É do conhecimento deste serviço que máquinas com este tipo de hardware podem desenvolver um ou mais jogos de fortuna ou azar, mediante a sua ativação através de um determinado procedimento, desconhecido deste serviço. 2. Com vista a salvaguardar toda a informação presente no disco rígido que se encontra no interior da máquina, e que serve como seu suporte, a máquina não foi ligada, tendo-se procedido de imediato a um exame de âmbito forense-digital ao software instalado no disco rígido. A análise centrou-se na busca de indícios relacionados com jogos de fortuna ou azar e/ou evidências da sua existência. Da análise efetuada constatou-se o seguinte:
a. A máquina comporta um único disco rígido, com duas partições, a partição que tem o sistema operativo Windows 8 Pro, e uma outra que contem vários ficheiros bem como um executável denominado "Kiosk.exe" (Fotos 2a e 2b); (…)
b. O ficheiro executável "Kiosk.exe" inicia com o arranque da máquina (Foto 3), sendo este programa responsável pelo controlo desta;
c. A máquina tem instalado e ativo o programa "Deep Freeze", que tem como função reconfigurar o computador para seu estado original quando reiniciado, eliminando-se desta forma quaisquer registos e modificações decorrentes do funcionamento da máquina.
d. Na análise aos dispositivos montados na máquina, constatou-se que foi criada um drive virtual (P:\) com programa "Truecrypt" (usado para criar discos criptografados que podem ser montados como unidades virtuais), utilizando um ficheiro encriptado que se encontra num pendrive (drive (E:\)) (Foto 4);
e. Verificada a inexistência de ficheiros criptografados e do programa "Truecrypt" no disco rígido da máquina, foi efetuada uma análise às funcionalidades do programa que controla todo o funcionamento da mesma (Kiosk.exe). Nesta análise foi possível verificar que o nome do ficheiro criptografado e utilizado pelo programa "Truecrypt" para a montagem do drive virtual é o ficheiro "WebBrowserKiosk2.dll".
f. O ficheiro "WebBrowserKiosk2.dll" está referenciado por este Serviço como sendo um ficheiro criptografado que após ser desencriptado e descompactado disponibiliza todo um conjunto de software para o desenvolvimento de jogos de fortuna ou azar.
g. Verificando-se que o ficheiro referido no ponto anterior se encontrava num pendrive que não foi aprendido, não foi possível montar o drive virtual e verificar quais os jogos que eventualmente estariam em desenvolvimento.
IV - CONCLUSÃO
1. A máquina após iniciar executa automaticamente um programa de gestão e controlo da mesma (Kiosk.exe), que possibilita, após determinados procedimentos efetuar a montagem de um drive virtual através do programa "TrueCrypt", utilizando um ficheiro criptografado ("WebBrowserKiosk2.dll") localizado num pendrive que não foi aprendido.
2. A máquina tem ainda em execução o programa "Deep Freeze", que tem como função reconfigurar o computador para seu estado original quando reiniciado.
3. Pelos factos apresentados nos pontos anteriores, não é possível afirmar efetivamente que jogos de fortuna ou azar a máquina eventualmente poderia desenvolver.
4. Embora este Serviço detenha a experiência de que máquinas com este tipo de software estão aptas a desenvolver vários jogos de fortuna ou azar, os elementos apresentados para peritagem e recolhidos nesta, não são suficientes para afirmar que a mesma disponibilizava quaisquer jogos.
5. Pelo exposto considera-se o exame pericial inconclusivo face aos elementos apresentados.”
Aqui chegados, importa salientar que muito embora o relatório pericial constante de fls. 146 a 147verso termine referindo “relatório pericial inconclusivo” certo é que, o relatório pericial de fls. 24 a 28 verso, efectuado à mesma máquina apreendida, revela imagens de jogos, bem como, a testemunha inquirida foi categórica em afirmar que constatou um cliente do café a jogar um jogo. Para além do mais, é mister que, considerando o teor do ponto c. do relatório pericial de fls. 146 a 147 verso, possuindo a máquina apreendida em execução um programa denominado "Deep Freeze", o qual tem como função reconfigurar o computador para seu estado original quando reiniciado, possibilita concluir que, tal programa tem como objectivo impedir a detecção de jogos, por parte das autoridades.
Ora, encontrando-se a máquina instalada num espaço reservado, à margem do dia-a-dia do estabelecimento, possuindo dinheiro no moedeiro, e ter sido observado in loco a funcionar com um jogo alusivo ao Halloween, permite-nos concluir, considerando as regras da experiência comum, que era do conhecimento do arguido o modo funcionamento da máquina.
Quanto à classificação dos jogos como sendo de fortuna e azar facilmente se conclui pela análise do relatório pericial, nomeadamente, através da verificação do conteúdo de cada uma das aplicações, a identificação dos jogos, Halloween Fortune e Pirates Bingo, que se encontram exemplificados no relatório de fls. 24 a 28 verso, resulta dos mesmos que o objectivo é conseguir combinações premiadas de acordo com o plano de prémios apresentado pelo jogo, tudo dependendo exclusivamente da sorte, independentemente da perícia e destreza do jogador.
Deste modo, pode concluir-se que a máquina instalada no estabelecimento “Domus Pornto-a-Comer” tinha por objectivo a obtenção de lucros derivados da disponibilização aos clientes da utilização de jogos de fortuna e azar sem que as autoridades o conseguissem detectar facilmente. Como já referimos supra, existia um computador, numa área reservada do estabelecimento como de acesso à internet mas onde foi possível observar clientes a efectuar jogos de apostas resultantes de acesso via internet a um servidor a que só era possível aceder através de uma chave constante de uma pen.
Relativamente à propriedade da referida máquina importa tecer as seguintes considerações.
Conforme supra referido, o arguido remeteu-se ao silêncio em sede de audiência de discussão e julgamento, todavia, se é incontestável que tal facto não o pode desfavorecer, tal como legalmente prescrito, e sem descurarmos o princípio constitucionalmente consagrado da presunção de inocência de que o mesmo beneficia, a verdade é que essa estratégia de defesa também não o poderá favorecer, quando da conjugação dos restantes meios probatórios se concluir pela verificação dos factos constantes do libelo acusatório.
Assim, importa referir que a testemunha inquirida, foi categórica em afirmar que o arguido possuía a chave do moedeiro instalado na máquina, que aliás abriu, por outro lado, movimentava-se livremente no estabelecimento, facto que se pode alcançar das fotografias juntas aos autos (fls. 6).
Por seu turno, a prova da inexistência de licença de exploração de máquina de jogo e diversão resulta do facto de estarmos perante um estabelecimento de restauração e bebidas conjugado com as regras da experiência comum e pelo teor do depoimento da testemunha inquirida em sede de audiência.
No que concerne ao dolo do arguido quanto à exploração da máquina e suas características, cabe atentar, para além do já mencionado supra, mais uma vez, às regras da experiência comum. Ora, é do conhecimento geral que a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos casinos é proibida. É, assim, plena convicção do Tribunal que o arguido não podia desconhecer a existência da máquina, suas características e funcionamento, e a sua ilegalidade, atenta a forma como geria todo esse negócio.
No que concerne à existência de antecedentes criminais do arguido os mesmos resultaram do respectivo certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 164 a 166.
No que respeita às condições económicas e pessoais do arguido, a convicção do Tribunal sedimentou-se nas declarações por este prestadas em sede de audiência, as quais mereceram credibilidade.»
***
Cumpre decidir.
O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso, designadamente, a verificação da existência, ou não, dos vícios indicados no art. 410°, n.° 2, do Código de Processo Penal de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95.
São questões suscitadas pelo recorrente:
- o erro notório na apreciação da prova – conclusões 1ª a 3ª;
- a contradição insanável da fundamentação – conclusão 4ª;
- erro de direito por confusão com a matéria de facto – conclusões 5º e 6ª.
*
B.2 – Quanto ao primeiro vício invocado ele assenta na ideia de que o tribunal recorrido deu como provado o facto 2 porque considerou como perícia o documento de fls. 24 a 28 dos autos, simples exame.
E, de facto, tal ocorre, o tribunal considera existentes duas perícias e atribuiu valor probatório pericial a esse documento que se encontra em contradição substancial com o documento de fls. 154 a 157 subscrito por perito nomeado pelo tribunal.
De facto, o dito acto processual de fls. 24-28 só pode ser qualificado como um exame nos termos do artigo 172 e segs. do C.P.P. e não uma perícia (artigos 151º e segs. do mesmo diploma), pois que não exige a percepção ou apreciação de factos nem a exigência de “especiais conhecimentos”, enquanto documentação processual do que existe. E o exame de fls. 24-28vº apenas pode ter essa vertente: a documentação das características da máquina apreendida. E características existentes e verificáveis no momento, não daquilo que é imaginado. Isso já é “literatura”.
Mas a aplicação do regime de apreciação probatória da perícia ao exame implica esclarecimentos suplementares.
De facto, são coisas e regime distintos. Um exame, meio de obtenção prova, é a análise em pessoas, lugares e coisas, de “vestígios que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticado, às pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometido” - artigo 171º do C.P.P..
O “exame” está sujeito à regra geral de apreciação probatória, a livre apreciação da prova prevista no artigo 127º do Código de Processo Penal.
A perícia, bem ao invés, é um meio de prova que deve (ou tem que) ser produzido quando o processo e a futura decisão se defrontam com conhecimentos especializados que estão para além das possibilidades de constatação e/ou percepção, efectivas ou presumidas, do tribunal em três campos do saber, os técnicos, os científicos e os artísticos.
Dada a dita característica complexa de tais conhecimentos é suposto que o tribunal seja adjuvado por quem reúna os conhecimentos e a credibilidade necessárias para verter, com conhecimento e neutralidade, em linguagem comum a referida complexidade.
Isto supõe que tal pessoa deva ser escolhida por lei (LPC e IML) ou pelo tribunal e, se for caso, por este ajuramentada como perito, elabore relatório pericial e preste esclarecimentos, se estes se revelarem necessários. É o que resulta do regime sabido dos artigos 151º a 163º do C.P.P.
São, pois, coisas distintas com distintos regimes.
Tão distintos que a perícia tem (como já vimos) um regime especial de produção e apreciação probatória, diverso de qualquer outro meio de prova ou de obtenção de prova. E esse distino regime consta do nº 2 do artigo 163º do C.P.P. e determina que o “juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador” e que, podendo o juiz “divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência” mas com apelo aos conhecimentos materiais supostos na perícia.
Por isso que seja nosso entendimento que o artigo 163º, nº 2 não é uma excepção à livre apreciação probatória, sim uma sua regra de apreciação qualificada por argumento na mesma área de saber técnico, científico ou artístico, como já defendemos no acórdão desta Relação de 13-05-2014 (proc. 200/11.8GTEVR.E1). [1]
Daqui resultam evidentes duas conclusões para o caso dos autos: o documento de fls. 24-28vº não é uma perícia; as conclusões (?) de um exame - que nem deveriam existir - não afastam as conclusões de uma perícia, a não ser que o juiz fundamente materialmente essa divergência.
E o documento não é uma perícia desde logo porquanto não realizado por perito ou peritos nomeados pelo tribunal mas sim por funcionários com funções policiais sem que – por essa simples circunstância – reúnam as condições de isenção e imparcialidade exigível a qualquer perito. [2]
São funcionários da investigação e se nada impede que façam “exames” tudo impede que façam “perícias”.
Exame é o verter em auto de condições materiais, sem opinar ou emitir juízos. Ou seja, sem conclusões. Perícia é a emissão de um juízo especializado em determinada área do saber, considerando certos factos assentes.
Não obstante o tribunal recorrido ter erroneamente considerado o documento de fls. 24-28vº – um simples exame - como uma perícia e ter feito a sua apreciação probatória por aplicação do artigo 163º do C.P.P. tal pode não alterar a matéria de facto provada se as premissas de facto e as conclusões materiais, substantivas, estiverem correctas, impondo-se o exame pelo seu acerto factual e sua lógica.
Mas o artigo 163º do C.P.P. é que nunca será aplicável a um exame. Um exame nunca terá a especial força probatória que a lei atribui a uma perícia.
Acresce que o excesso e a falta de objectividade desse exame é patente não apenas pelo lado subjectivo, também pelo lado objectivo (o que dele consta em termos materiais).
Desde logo porquanto se referem como existentes realidades que não estão presentes na máquina como resulta evidente do relatório da perícia a fls. 143 vº, designadamente os jogos que “estariam em desenvolvimento” por ausência de pen drive, que não foi apreendida. E precisamente por essa pen drive não ter sido apreendida é que a perícia afirmou não ser possível afirmar que a máquina desenvolvia efectivamente jogos de fortuna ou azar.
E isso é bem patente nas conclusões 3ª e 4ª da perícia.
3. Pelos factos apresentados nos pontos anteriores, não é possível afirmar efetivamente que jogos de fortuna ou azar a máquina eventualmente poderia desenvolver.
4. Embora este Serviço detenha a experiência de que máquinas com este tipo de software estão aptas a desenvolver vários jogos de fortuna ou azar, os elementos apresentados para peritagem e recolhidos nesta, não são suficientes para afirmar que a mesma disponibilizava quaisquer jogos.
Ora, se assim é, não há prova dos elementos objectivos do tipo penal.
Para ultrapassar este impedimento probatório o tribunal recorrido socorre-se do exame atribuindo-lhe a natureza de perícia e afirmando que o dito exame apresenta imagens de jogos.
O que é uma característica inexplicável, espantosa, do dito exame, o apresentar imagens de jogos que não pode apresentar por não ter pen drive, a crer na perícia.
E a explicação poderá, eventualmente, encontrar-se no teor parcial do auto de notícia quando aí se refere que se pode “… concluir com a segurança resultante da experiência no combate a este tipo de ilícitos, que se trata de uma máquina que desenvolve jogos de fortuna ou azar…
Ora uma realidade insofismável é que o arguido não está a ser julgado pela “experiência anterior” de outrém, sim pela actual e própria, na qual alguém se esqueceu de instruir os autos devidamente. Acresce que se os agentes que lavraram o auto viram alguém a jogar não se percebe porque não foi apreendida a pen drive.
De tudo resulta que é inultrapassável probatóriamente que as conclusões da perícia permitem finalizar que se não provam os elementos típicos do crime imputado pelo que haverá que concluir existente um claro erro notório na apreciação da prova que terá como consequência o darem-se como não provados os factos 4., 5. e 6.
Pela mesma razão o facto nº 2 passa a ter a seguinte redacção: «No dia 17 de Dezembro de 2014, pelas 12h30m, o arguido tinha no interior do estabelecimento acima referido e exposta para ser utilizada pelos clientes que ali se deslocassem uma máquina.»
O que tudo implica a absolvição do arguido.
*
B.3 – Em função do que se afirmou as restantes questões suscitadas no recurso ficam prejudicadas.
Considerando a conclusão 4ª da perícia no sentido de que máquinas com este tipo de software estão aptas a desenvolver vários jogos de fortuna ou azar, haverá que manter a decisão do tribunal recorrido quanto à declaração de perda da dita máquina, considerando a previsão do artigo 109.º do C.P que rege em geral a perda de instrumentos e produtos, no sentido da declaração de perdimento de objectos que ... “pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, … oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos”.
*
C - Dispositivo
Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 2ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em declarar parcialmente procedente o recurso interposto e, em consequência:
a) - O facto nº 2 passa a ter a seguinte redacção: «No dia 17 de Dezembro de 2014, pelas 12h30m, o arguido tinha no interior do estabelecimento acima referido e exposta para ser utilizada pelos clientes que ali se deslocassem uma máquina.»;
b) – dão-se como não provados os factos 4., 5. e 6.
c) – absolve-se o arguido da acusação deduzida.
d) - mantém-se a declaração de perdimento da máquina apreendida nos precisos termos determinados pelo tribunal recorrido.
Sem tributação.

Évora, 02 de Maio de 2017 (elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).
João Gomes de Sousa (relator)
António Condesso
__________________________________________________
[1] - I - No ordenamento processual penal português, a perícia caracteriza-se por ser tendencialmente pública e exigir dois pressupostos para a sua realização: um, formal: a nomeação por entidade judiciária; outro, material: a necessidade de especiais conhecimentos para percepcionar (compreender) e apreciar (valorar) factos. II - Uma perícia deve cumprir uma tríplice perspectiva: ver assegurada a imparcialidade do(s) perito(s); realizar-se em prazo razoável; sujeitar-se aos princípios da igualdade de armas e do contraditório. III – Pode também ser essencial no apuramento de factos, que não é possível obter de outra forma. Mas aqui – e porque os factos do processo estão fora da regra resultante do art. 163.º, n.º 1, do CPP – a perícia não pode ter o mesmo valor probatório e deve ser livremente apreciada. IV - Ao tribunal incumbe assegurar a imparcialidade e a competência inerentes a uma peritagem, assim se concretizando os deveres do juiz como “gatekeeper”, isto é, como guardião da imparcialidade do ou dos peritos e da sua credibilidade científica. V – A regra do art. 163.º do CPP é compatível com a livre apreciação probatória, apenas se erigindo como norma que qualifica essa apreciação probatória, na medida em que permite ao juiz divergir com argumentos qualificados na área técnica, científica ou artística em causa, apenas lhe estando vedada uma livre apreciação com apelo a “regras de experiência comum”, à sua convicção pessoal ou a qualquer outro critério que não o uso de conhecimentos e argumentos inerentes à área artística, técnica ou científica da perícia. VI - O que obriga à qualificada ponderação da perícia, sem impedir que o poder judicial a possa afastar quando materialmente isso se imponha. VII - Há casos claros de exigência legal (literal) de realização de perícia, pelo menos, os previstos nos arts. 166.º, n.º 2 (documento cifrado) e 351.º, n. º 1 (imputabilidade) do CPP, e do art. 18.º da Lei n.º 45/2004 (autópsia médico-legal). VIII – A ausência de perícia pode implicar vício do processado, a incluir na parte final da alínea d) do n.º 2 do art. 120.º do CPP, sempre que, não obstante a inexistência de literal e específica exigência legal de realização da mesma, ocorra situação em que a essencialidade probatória dela se revele, por um critério de necessidade ponderado pela especial natureza dos conhecimentos em causa.
[2] - A propósito de proposição IV do sumário do acórdão supra referido (“Ao tribunal incumbe assegurar a imparcialidade e a competência inerentes a uma peritagem, assim se concretizando os deveres do juiz como “gatekeeper”, isto é, como guardião da imparcialidade do ou dos peritos e da sua credibilidade científica”) veja-se a referência à jurisprudência do US Supreme Court sobre a matéria em, do relator, «A “Perícia” técnica ou científica revisitada numa visão prático-judicial» publicado na Revista Julgar, n. 15, Setembro-Dezembro de 2012, pag. 42 (27-52).