Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
250/09.4TALLE.E1
Relator: FERNANDO PINA
Descritores: RECURSO PENAL
PARTE CIVIL
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
Data do Acordão: 02/03/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O requerente cível não tem legitimidade para recorrer da parte da decisão que não suspendeu a execução da pena de prisão.
Decisão Texto Integral:
TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA




1
Processo nº 250/09.4TALLE.E1

ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÂO DE ÉVORA:



I. RELATÓRIO

A –
Nos presentes autos de Processo Comum Colectivo, com o nº 250/09.4TALLE, da Comarca de F, F – Instância Central, 1ª Secção, Juiz 6, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido JMBM, filho de (…), nascido a 27-06-1962, divorciado, Técnico Oficial de Contas, residente na Rua (…), imputando-lhe a prática como autor material, na forma consumada e em concurso de crimes:
- Um crime de falsificação de documentos agravada, em trato contínuo, previsto e punido pelos artigos 30º, nº 2 e, 256º, nº 1, alíneas d) e, e) e, nº 2 do Código Penal;
- Um crime de abuso de confiança agravado, em trato contínuo, previsto e punido pelos artigos 30º, nº 2 e, 205º, nº 1 e, nº 4, alínea a), do Código Penal, e;
- Um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205º, nº 1, do Código Penal.

“GM, Ldª, deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, pugnando que fosse condenado a pagar:
- Directamente à Repartição de Finanças de L, a quantia de €76.313,32, bem como todo e qualquer valor e quantia que acresça àquele montante;
- Uma declaração de que a demandante não é responsável pela quantia acima referida;
- À demandante a quantia de €75.000, acrescida de juros vencidos e vincendos, e ainda a quantia relativa a lucros cessantes “por impossibilidade de exercício da actividade em virtude da falta de alvará” e a liquidar em execução de sentença.
A titulo subsidiário e, para o caso de não proceder o primeiro pedido formulado, peticionou a condenação do demandado a pagar à demandante as quantias de €76.313,32 e, de €75.000,00, acrescidas de juros vencidos e vincendos e, ainda a quantia relativa a lucros cessantes “por impossibilidade de exercício da actividade em virtude da falta de alvará”, a liquidar em execução de sentença.

No decurso da audiência de julgamento procedeu-se à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, tendo resultado imputado ao arguido a prática em autoria material e, concurso real, dos seguintes crimes:
- Um crime de falsificação de documentos, na forma continuada, previsto e punido, à data da prática dos factos, pelo artigoº 256°, nº 1, alínea a) e, nº 3, do Código Penal e, actualmente, pelo artigo 256º, nº 1, alíneas b) e, e) e, nº 3, e ainda artigo 30º, nº 2, todos do Código Penal;
- Um crime de burla qualificada, na forma continuada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 217º, nº 1, 218º, nº 1 e, ainda 30º, nº 2, todos do Código Penal;
- Um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205º, nº 1, do Código Penal.

Realizado o julgamento, veio a ser proferido pertinente acórdão, no qual se decidiu:
A) Condenar o arguido JMBM, pela prática, em autoria material, de um crime de crime de falsificação ou contrafacção de documento, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 256º, nº 1, alienas b) e, e) e, nº 3 e, artigo 30º, nº 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão;
B) Condenar o arguido JMBM, pela prática em autoria material de um crime de burla qualificada, na forma continuada, previsto e punido pelas disposições conjugadas, dos artigos 217º, nº 1, 218º, nº 1 e, 30º, nº 2, todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;
C) Proceder ao cúmulo das penas parcelares aplicadas ao arguido JMBM e acima indicadas sob as alíneas A) e B) e, em consequência, condená-lo na pena única de 5 (cinco) anos de prisão;
D) Suspender a execução da referida pena de prisão aplicada ao arguido JMBM pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do disposto no artigo 50º, do Código Penal, com regime de prova durante o período de suspensão, de acordo com plano de reinserção social a elaborar pelos serviços de reinserção social, no prazo de 30 dias, e condicionada ainda à obrigação do arguido responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social, receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência, informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso, tudo nos termos do disposto nos artigos 50º, 53º e, 54º, nº 3, do Código Penal.
E) Condicionar a suspensão da execução da referida pena de prisão aplicada ao arguido JMBM ao dever deste arguido pagar a quantia de €6.000,00 (seis mil euros) à demandante “GM, Ldª nos termos do artigo 51º, nº 1, alínea a), do Código Penal, devendo o pagamento ser efectuado no prazo máximo de 4 (quatro) anos, sendo que metade dessa quantia, ou seja, a quantia de €3.000,00 (três mil euros) terá de ser paga já no prazo máximo de 2 (dois) anos, podendo a restante quantia de €3.000,00 (três mil euros) ser paga até ao termo dos 2 anos subsequentes, e sendo imputado o pagamento feito à demandante no pagamento da quantia fixada na indemnização civil a que se refere a alínea G) desta decisão;
F) Absolver o arguido JMBM da prática do crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205º, nº 1 do Código Penal, por que vinha acusado;
G) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pela demandante “GM, Ldª e, em consequência:
G1) Condenar o demandado JMBM a pagar à demandante “GM, Ldª a quantia de €50.674,58 (cinquenta mil, seiscentos e setenta e quatro euros, e cinquenta e oito cêntimos);
G2) Condenar o demandado JMBM a pagar à demandante “GM, Ldª as quantias correspondentes aos juros moratórios, calculados às sucessivas taxas legais dos juros aplicáveis às dívidas ao Estado, contados desde as datas e sobre as quantias abaixo indicadas, e até integral pagamento;
- desde o dia 17-02-2003, sobre a quantia de €3.150,16;
- desde o dia 08-08-2003, sobre a quantia de €8.178,90;
- desde o dia 14-11-2003, sobre a quantia de €10.440,76;
- desde o dia 03-08-2004, sobre a quantia de €5.613,19;
- desde o dia 18.11.2004, sobre a quantia de 1.273,23€;
- desde o dia 14-02-2005, sobre a quantia de €3.914,38;
- desde o dia 16-05-2005, sobre a quantia de €3.261,25;
- desde o dia 09-08-2005, sobre a quantia de €6.720,19;
- desde o dia 15-06-2006, sobre a quantia de €4.743,39;
- desde o dia 11-08-2006, sobre a quantia de €1.007,40;
- desde o dia 15-05-2008, sobre a quantia de €923,45;
- desde o dia 11-08-2008, sobre a quantia de €1.448,28;
G3) Absolver o Demandado JMBM do demais peticionado.
Inconformado com este acórdão que apenas julgou provado parte do pedido civil deduzido, a demandante GM, Ldª, do mesmo interpôs o presente recurso, extraindo das respectivas motivações, as seguintes (transcritas) conclusões:
1. A douta decisão recorrida dá como provados os factos que lista em Factos Provados 1, 2, 3, 5, 6 e 8, 9 a 48, 51 a 54, 55, 73, 74, 75, 76,77 e 79 e, 80.
2. Tais factos não permitem que deles se retire uma decisão de condenação parcial no PIC, e apenas no montante dos cheques de que o arguido se apropriou.
3. Com tal apropriação, o arguido levou a que a demandante ficasse devedora ao Fisco desses valores, dando lugar a execuções fiscais que hoje recaem sobre a demandante, em valores superiores.
4. Há pois contradição insanável entre esses factos e a decisão, o que alega nos termos do art. 410º, nº 2 do CPP, resultando tal do próprio texto da decisão.
5. Foi violado, com essa contradição, o art. 127º, do CPP.
6. O mesmo ocorre na própria fundamentação, notadamente entre os mesmos Factos Provados e a Fundamentação relativa ao PIC, constante de fls. 16, 17 e, 18 do douto Acórdão.
7. O que também se alega neste recurso, pois esses factos não admitem aquela fundamentação.
8. Igualmente ocorre quanto à não revalidação do Alvará, prejuízo da demandante que decorre da conduta criminosa do arguido, e que o Acórdão não reconhece, em contradição insanável.
9. A decisão não protege suficientemente a vítima civil, ao não condicionar a suspensão da execução da pena ao pagamento integral do PIC, como pedido.
10. A decisão recorrida condiciona a suspensão da pena, todavia, apenas a um pagamento à demandante de 6.000,00€ em 4 anos (!!). Esta decisão, nestes termos, deixa a vítima totalmente desprotegida, quando ademais a mesma enfrenta execuções fiscais decorrentes da conduta do arguido, e que são de valores imensamente superior e se vencerão num curto espaço de tempo (sempre menos, muito menos, que os 4 anos que a sentença dá ao arguido).
11. Em atenção aos direitos da vítima e ao disposto no art. 50º do CP, que assim foi violado, deve a decisão ser revogada e substituída por outra que condicione a suspensão da execução da pena ao pagamento pelo arguido à demandante de todo o valor do PIC em não mais do que 18 meses.
Termos em que a douta decisão recorrida deve ser revogada na parte civil, e substituída por outra que determine a responsabilização integral do demandado quanto ao valor integral do PIC, com suspensão da execução da pena condicionada ao pagamento pelo arguido à demandante de todo o valor do PIC em não mais do que 18 meses.
Assim se fazendo Justiça.

O Ministério Público, notificado não apresentou qualquer resposta ao recurso deduzido.

O arguido/demandado, notificado também não apresentou qualquer resposta ao recurso deduzido.

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto limitou-se apor o seu visto nos autos, conforme resulta de fls. 717, dos autos.

Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
B -
No acórdão recorrido, com relevância para o presente recurso, consta o seguinte:
Provaram-se os seguintes factos, com relevo para a decisão da causa:
1. O arguido é técnico oficial de contas e prestou serviços de contabilidade para a sociedade lesada- GM, Ldª., pelo menos desde o ano de 2001 e até 2008.
2. Cabia ao arguido, entre outras funções, organizar a contabilidade da lesada, entregar à autoridade fiscal as declarações periódicas de IVA e proceder à entrega anual das declarações do modelo 22.
3. Cabia, ainda, ao arguido proceder aos pagamentos dos impostos devidos pela lesada na repartição de finanças respectiva, sendo que para o efeito indicava à lesada os montantes a pagar ao Estado, e esta, através do legal representante, entregava-lhe os cheques solicitados, emitidos a favor da Direcção Geral do Tesouro (DGT) e do Instituto de Gestão de Crédito Público (IGCP).
4. Atento o lapso temporal em que o arguido prestou serviços de contabilidade à ofendida, já se tinha estabelecido um laço de confiança entre estes.
5. Assim, o legal representante da ofendida GM, Ldª., GASM, entregava ao arguido diversos cheques para pagamento de impostos devidos pela sociedade à Fazenda Nacional, para que este, por sua vez, os fosse entregar ao Estado Português.
6. Sucede que o arguido decidiu, pelo menos desde 2003, aproveitar-se da confiança em si depositada, e começou a alterar, em diversos cheques que a ofendida lhe entregou, o nome do beneficiário inscrito nos mesmos, por forma a poder apoderar-se dos montantes titulados nesses cheques.
7. O arguido é sócio gerente da O-CS, Ldª, com sede na Rua Infante Sagres, nº 13, loja 2, em Q, e usava ainda, na sua actividade profissional, uma sociedade irregular, de nome IG, Ldª.
8. Assim, GASM entregou ao arguido, entre 2003 e 2008, para além de outros, os cheques por si preenchidos e assinados, que se descrevem, todos sacados sobre a conta à ordem nº 45206155675 que a ofendida GM, Ldª., é titular no banco Millennium BCP (anteriormente também denominado Nova Rede BCP), e que se destinavam a ser entregues pelo arguido na Direcção Geral de Impostos, para pagamento de impostos devidos pela sociedade ofendida:
i) No dia 17-02-2003 – cheque nº 6174932308, no valor de €3.150,16 - emitido à ordem da Direcção Geral do Tesouro (DGT) e/ou do Instituto de Gestão de Crédito Público (IGCP);
ii) No dia 08-08-2003 – cheque nº 6174943075, no valor de €8.178,90, emitido à ordem da Direcção Geral do Tesouro (DGT) e/ou do Instituto de Gestão de Crédito Público (IGCP);
iii) No dia 14-11-2003 – cheque nº 6174948895, no valor de €10.440,76, emitido à ordem da Direcção Geral do Tesouro (DGT) e/ou do Instituto de Gestão de Crédito Público (IGCP);
iv) No dia 03-08-2004 – cheque nº 6174962669, no valor de €5.613,19, emitido à ordem da Direcção Geral do Tesouro (DGT) e/ou do Instituto de Gestão de Crédito Público (IGCP);
v) No dia 18-11-2004 – cheque nº 6174967713, no valor de €1.273,23 - emitido à ordem da Direcção Geral do Tesouro (DGT) e/ou do Instituto de Gestão de Crédito Público (IGCP);
vi) No dia 14-02-2005 – cheque nº 6174971011, no valor de €3.914,38 - emitido à ordem da Direcção Geral do Tesouro (DGT) e/ou do Instituto de Gestão de Crédito Público (IGCP);
vii) No dia 16-05-2005 – cheque n.º 6174974503, no valor de €3.261,25 - emitido à ordem da Direcção Geral do Tesouro (DGT) e/ou do Instituto de Gestão de Crédito Público (IGCP);
viii) No dia 09-08-2005 – cheque nº 6174978383, no valor de €6.720,19 - emitido à ordem da Direcção Geral do Tesouro (DGT) e/ou do Instituto de Gestão de Crédito Público (IGCP);
ix) No dia 15-06-2006 – cheque nº 6174987889, no valor de €4.743,39 - emitido à ordem da Direcção Geral do Tesouro (DGT) e/ou do Instituto de Gestão de Crédito Público (IGCP);
x) No dia 11-08-2006 – cheque nº 6174990896, no valor de €1.007,40 - emitido à ordem da Direcção Geral do Tesouro (DGT) e/ou do Instituto de Gestão de Crédito Público (IGCP);
xi) No dia 15-05-2008 – cheque nº 6175003409, no valor de €923,45 - emitido à ordem da Direcção Geral do Tesouro (DGT) e/ou do Instituto de Gestão de Crédito Público (IGCP);
xii) No dia 11-08-2008 – cheque nº 6175004864, no valor de €1.448,28 - emitido ao portador.
9. Os cheques que o ofendido entregou ao arguido, acima melhor descritos no facto 8º, destinavam-se ao pagamento de diversos impostos ao Estado, situação que o arguido bem conhecia.
10. Assim, o arguido, utilizando o nome das sociedades O-CS, Ldª, e IG, Ldª, cujas letras se adaptavam na perfeição às letras inscritas pelo ofendido nos cheques que lhe entregou ao longo dos anos para pagamento de impostos (D.G.T. e I.G.C.P.), elaborou um plano que lhe permitiu, durante os anos de 2003 a 2008, locupletar-se dos montantes destinados ao pagamento de impostos, à custa da ofendida GM, Ldª.
11. (…)

Factos não provados:
Não resultaram provados os seguintes factos:
(…)

Motivação com interesse para o presente recurso:
(…)

Do pedido de indemnização civil deduzido nos autos:
GM, Ldª., deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido JMBM, pedindo:
a) a título principal, a condenação do Demandado a pagar directamente à Repartição de Finanças de L2, a quantia de 76.313,32 euros, bem como todo e qualquer valor e quantia que acresça àquele montante; a declaração de que a Demandante não é responsável pela quantia acima referida; e a condenação do Demandado a pagar à Demandante a quantia de 75.000 euros, acrescida de juros vencidos e vincendos, e ainda a quantia relativa a lucros cessantes “por impossibilidade de exercício da actividade em virtude da falta de alvará” e a liquidar em execução de sentença;
b) a título subsidiário, a condenação do Demandado a pagar à Demandante as quantias de 76.313,32 euros e de 75.000 euros, acrescida de juros vencidos e vincendos, e ainda a quantia relativa a lucros cessantes “por impossibilidade de exercício da actividade em virtude da falta de alvará” e a liquidar em execução de sentença
Alega para tanto, e em síntese, que por o Demandado não entregar a quantia de 50.674,58 euros, foram instaurados processos executivos contra a Demandante, onde ainda são reclamados juros, para além de que em razão das dívidas fiscais, ficou impedida de renovar o alvará de construção civil e, assim, de tomar novas obras, tudo causando-lhe um prejuízo.
Apreciando.
Dispõe o art. 71º, do Código de Processo Penal, que o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei, consagrando, assim, o chamado princípio de adesão.
Por seu turno, preceitua o art. 129º, do Código Penal, que a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime é regulado pela lei civil.
O princípio geral da responsabilidade civil por factos ilícitos está regulado no art. 483º, do Código Civil, e desse preceito resulta, que são elementos essenciais daquela:
a) O facto voluntário do agente que tanto se pode traduzir numa acção como numa omissão.
b) A ilicitude da conduta que consiste na violação de um direito de outrem, ou da lei que proteja direitos alheios.
c) A culpa do agente, que se traduz na reprovação da sua conduta pelo direito.
d) O dano, ou seja que tenha sido causado um prejuízo a alguém.
e) O nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Face à factualidade apurada, e à apreciação que dela foi feita no tocante à responsabilidade criminal, resulta que se mostram preenchidos os acima referidos pressupostos, pelo que, nos termos dos artigos 483º e 487º, do Código Civil, constituiu-se o Demandado na obrigação de indemnizar pelos danos causados pelos factos ilícitos e culposos por si perpetrados.
Estabelece o art. 562º, do Código Civil: “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstruir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”, sendo tais danos, todos aqueles que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, conforme dispõe, por sua vez, o art. 563º, do Código Civil.
O dever de indemnizar compreende o prejuízo causado (danos emergentes) e os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (lucros cessantes) – art. 564º, nº 1, do C.C.- devendo, ainda, atender-se aos danos não-patrimoniais que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito – art. 496º, nº 1, do Código Civil.
Posto isto, vejamos agora os pedidos formulados pela Demandante.
Começando pelos pedidos parcelares deduzidos a título principal, verifica-se que a Demandante pretende obter neste processo a condenação do Demandando a pagar directamente à Repartição de Finanças de L2, a quantia de 76.313,32 euros, bem como todo e qualquer valor e quantia que acresça àquele montante, ou seja, as quantias exigidas nas execuções fiscais e aquelas que ainda venham a ser exigidas pela Fazenda Nacional; simultaneamente pretende a Demandante que seja declarado que não é responsável por aquelas quantias.
Como é evidente nenhum dos apontados pedidos poderá proceder.
Em primeiro lugar, a qualidade da Demandante enquanto sujeito passivo do imposto e de devedora de impostos, não é neste enxerto cível que deverá ser apreciada, sem prejuízo de não se vislumbrar em que medida, neste ou noutro processo, se poderá declarar que a Demandante não é responsável pelo pagamento dos impostos que lhe foram liquidados. É certo que o técnico oficial de contas poderá responder a título subsidiário e em determinadas circunstâncias, por dívidas tributárias (vide art. 24º, nº 3. da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei nº 398/88, de 12/12), ou por coimas em determinadas contra-ordenações (vide art. 8º, nº, 3 do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5/6), no entanto, daí não resulta que seja desobrigado o sujeito passivo do imposto (como aparentemente aqui se pretenderia). De qualquer modo, e como já referido, neste processo, nem se colocará a enunciada questão.
Em segundo lugar, a condenação do Demandado a pagar uma quantia a terceiro, neste caso a Fazenda Nacional, também carece de fundamento legal, sem prejuízo de tudo o que acima se disse quanto à responsabilidade do técnico oficial de contas. Na verdade, sendo a causa de pedir neste enxerto cível, a prática do ilícito criminal, o lesante terá de indemnizar o lesado, e esse nunca será a Fazenda nacional, a qual continua credora do imposto. É óbvio que para além da Demandante, como já se escreveu, em determinadas circunstâncias, os técnicos oficias de contas (tal como os gerentes), poderão responder pelas dívidas, mas aí a fonte da obrigação não será a responsabilidade civil por factos ilícitos, e é dessa que aqui se trata.
Concluindo-se pela improcedência dos referidos pedidos parcelares deduzidos a título principal, cumpre apreciar o pedido subsidiário formulado pela Demandante, ou seja, o de condenação do Demandado a pagar à Demandante a mesma quantias de 76.313,32 euros, acrescida de juros vencidos e vincendos.
Logo de início se assinalou que o Demandado estava obrigado a indemnizar a Demandante pelos danos causados, e aqui se incluirão, as quantias que esta ficou desapossada e correspondente ao valor dos diversos cheques que o arguido falsificou, tudo somando 50.674,58 euros.
Assim, o Demandado deverá ser condenado a indemnizar a Demandante pelo referido valor de 50.674,58 euros, que se encontra incluindo no pedido parcelar deduzido a título subsidiário (a Demandante reclama toda as quantias exequendas das execuções fiscais, e nessas incluem-se os valores que deveriam ser pagos através dos cheques falsificados).
A Demandante reclama ainda o pagamento dos juros liquidados nas execuções fiscais, onde se incluirão naturalmente, também os juros contados sobre os valores que deveriam ser pagos através dos cheques falsificados.
Sendo evidente que à Demandante assistirá o direito a juros moratórios contados desde a data da apropriação do valor de cada cheque (por se tratar de facto ilícito, os juros serão devidos desde a data da prática do facto), a questão que se coloca é a taxa de juro a considerar. Com efeito, a taxa de juros das dívidas ao Estado é muito superior à taxa de juros civis (até 2010 era 1 % ao mês, e a partir dai passou a ser uma taxa variável sempre superior aos 4 % prescritos para os juros moratórios civis), e foi aquela taxa a aplicada para a mora no pagamento dos impostos (que não foram pagos em razão da conduta do arguido) e é essa que está a ser reclamada nas respectivas execuções fiscais.
Assim, e considerando-se que existe um nexo entre o facto ilícito e o dano - a obrigação de juros à taxa legal dos juros aplicáveis às dívidas ao Estado - deverá o Demandado ser condenado a pagar as quantias correspondentes a esses juros (afigurando-se que os juros peticionados serão os correspondentes aos vencidos e vincendos nas execuções fiscais).
Por conseguinte, o Demandado deverá ser condenado a pagar a quantia de 50.674,58 euros, acrescida de juros moratórios, calculados às sucessivas taxas dos juros aplicáveis às dívidas ao Estado, contados sobre o valor de cada cheque e desde a data em que cada cheque foi entregue ao Demandado.
Relativamente às demais quantias reclamadas nas execuções fiscais, deverá o Demandando ser absolvido. De facto, quanto àquelas outras quantias, não foi demonstrado que as mesmas decorressem da actuação do arguido, subsumível aos ilícitos criminais em causa nestes autos, quando é certo que o pedido de indemnização civil terá sempre como causa de pedir sempre a prática dos ilícitos criminais.
Do mesmo modo, e pelas razões que acima foram expostas, não poderá ter acolhimento a pretensão da Demandante no sentido de que enquanto o Demandado não lhe pagasse a indemnização, não fosse, por sua vez, obrigada a pagar à Fazenda Nacional (vide art. 16º, do articulado do pedido de indemnização)
A Demandante reclama ainda uma indemnização a título de lucros cessantes, com fundamento na diminuição e posterior privação total de rendimentos, em razão da impossibilidade de exercício da actividade comercial (imposta pela não “renovação” do alvará de construção civil).
Mais uma vez sublinha-se que a causa de pedir no pedido de indemnização civil deduzido em processo penal é o ilícito criminal praticado pelo arguido. Por isso, a causa de pedir que deve fundamentar o pedido de indemnização civil a formular em processo penal, tem que coincidir com os factos que, também, são pressupostos da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado, e terá como pressuposto a existência do crime (conforme abundante jurisprudência sobre esta matéria, entre muitos, os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 20/12/00 e 16/12/98, in www.dgsi.pt/jtrp).
Do mesmo modo, apurando-se a existência de um dano, será necessário ainda estabelecer o nexo de causalidade entre esse dano e o facto ilícito (ilícito criminal), o que significa, no caso em apreço, estabelecer um nexo entre a provada cessação de actividade de construção civil da Demandante e consequente privação de rendimentos, e o facto ilícito praticado pelo arguido.
Como consta na factualidade provada, a cessação de actividade da Demandante decorreu da não revalidação do alvará de construção e, essa, por sua vez, decorreu da não execução pelo Demandado das tarefas (ou trabalhos) que lhe competiam realizar, enquanto contabilista da Demandante. Daqui não resulta que a não revalidação do alvará e consequente paralisação da actividade da Demandante tenham decorrido, ainda que indirectamente, exactamente da conduta do Demandado que integra a prática dos ilícitos criminais. Dito doutro modo, não se provou que fosse em razão da falsificação dos cheques e apropriação das quantias por eles tituladas, por via das falsificações e das burlas, que a Demandante deixou de revalidar o alvará e, assim, deixou de exercer a sua actividade.
Aqui chegados, teremos de concluir que esta pretensão da Demandante não poderá proceder, sem embargo da mesma poder exercer os direitos de que se arroga, noutra sede, nomeadamente no que concerne ao cumprimento ou incumprimento do contrato celebrado com o Demandado.
Deste modo, o pedido de indemnização civil procederá parcialmente, sendo o Demandado condenado a pagar a quantia de 50.674,58 euros, acrescida de juros moratórios, calculados ás sucessivas taxas dos juros aplicáveis ás dividas ao Estado, contados sobre o valor de cada cheque e desde a data em que cada cheque foi entregue ao Demandado, e absolvido do pedido quanto a tudo o mais peticionado.


II – FUNDAMENTAÇÃO

1 - Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, as cominadas como nulidade da sentença, artigo 379º, nº 1 e, nº 2, do mesmo Código e, as nulidades que não devam considerar-se sanadas, artigos 410º, nº 3 e, 119º, nº 1, do mesmo diploma legal, a este propósito cfr. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 19-10-1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28-12-1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25-06-1998, in B.M.J. nº 478, pág. 242 e de 03-02-1999, in B.M.J. nº 484, pág. 271 e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).

No caso em apreço, atendendo às conclusões apresentadas pelo recorrente, as questões que se suscitam são as seguintes:
- Impugnação do acórdão proferido, relativamente à matéria de facto, por contradição insanável da fundamentação dos factos provados sob os nº 1, 2, 3, 5, 6 e 8, 9 a 48, 51 a 54, 55, 73, 74, 75, 76, 77, 79 e, 80 e a decisão proferida, nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Penal;
- Impugnação do acórdão proferido, relativamente à matéria de facto, por contradição insanável entre os factos provados e a fundamentação da decisão sobre o pedido de indemnização civil, nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Penal;
- Impugnação do acórdão proferido, relativamente à matéria de direito, por a decisão proferida não proteger a vítima civil, ao não condicionar a suspensão da execução da pena ao pagamento integral do pedido de indemnização civil.

Se, como supra se deixou editado, o concreto objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação, tal não prejudica, conforme supra enunciado, que este Tribunal ad quem proceda à apreciação oficiosa de todos os vícios da decisão sobre matéria de facto, de harmonia com o estatuído no artigo 410º, nº 2, do Código Processo Penal, apesar de o recorrente apenas ter invocado vícios resultantes da alínea b), de tal disposição legal, ou das nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos do preceituado no nº 3, do citado artigo.
E, porque assim, a alteração da factualidade assente na 1ª instância só poderá ocorrer pela verificação de algum dos vícios a que aludem as alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal, a saber: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) o erro notório na apreciação da prova – cfr. ainda artigo 431º, do citado.
Em comum aos três vícios, o vício que inquina a sentença ou o acórdão em crise tem que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum.
Quer isto significar que não é possível o apelo a elementos estranhos à decisão, como por exemplo quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, só sendo de ter em conta os vícios intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma – cfr. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 16ª ed., pág. 871, Simas Santos e Leal-Henriques, “Recursos em Processo Penal”, supra mencionado.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (vício a que alude a alínea a), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), ocorrerá, como ensina Simas Santos e Leal-Henriques, ob. e loc. citados, quando exista “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher.
Porventura, melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (vício a que alude a alínea b), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), consiste na “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.” – cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. e loc. supra mencionados.
O erro notório na apreciação da prova (vício a que alude a alínea c), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), constituiu uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Ou, dito de outro modo, há tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.” – cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. e loc. citados.
Um tal vício de erro notório na apreciação da prova não se verifica quando a discordância resulta da forma como o tribunal apreciou a prova produzida.
O simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal e expressa na decisão recorrida não conduz ao aludido vício - cfr. Acórdãos do S.T.J. de 19-09-1990, BMJ 399, pág. 260 e de 26-03-1998, Proc. nº 1483/97.
Ora, do texto da decisão recorrida, como se vê da transcrição supra, a mesma apreciou os factos aportados na acusação e bem assim aqueles que resultaram da discussão da causa em audiência de julgamento.
Do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, não se perfila a existência de qualquer um dos vícios elencados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.
O tribunal assentou a sua convicção no encadeado factual que lhe permitiu retirar, e da forma como justificou, de factos apurados outros que firmou com base nas regras da lógica, da experiência e da vida, o que é permitido ao julgador.
Investigada que foi a materialidade sob julgamento, não se vê, por isso, que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a solução de direito atingida, não se vê que se haja deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final (que constitui o objecto do processo levado ao mesmo pela acusação ou pela defesa), como não se vê qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos provados ou entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão, e de igual modo não se detecta na decisão recorrida, por si e com recurso às regras de experiência, qualquer falha ostensiva na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário.
Pois o tribunal a quo apreciou a globalidade da prova produzida em audiência de julgamento e, a constante dos autos e, fundamentou a sua convicção em concretos elementos de prova e, não considerou outros que se encontravam em contradição com aqueles, não constituindo tal uma falha ou erro na apreciação da prova, mas antes, a aplicação das regras da experiência comum na valoração da prova produzida.
Do alegado pela recorrente na sua motivação da peça recursiva apresentada, relativamente à eventual contradição insanável entre os factos provados e fundamentação da decisão do pedido civil, trata-se apenas e tão-só da mera opinião da mesma sobre a prova produzida e a fundamentação da decisão recorrida.
Efectivamente, dos factos que nos autos resultaram provados, tal como o tribunal a quo fez constar da sua fundamentação para a matéria de facto provada, consta:
“Nas certidões fiscais juntas aos autos, estão incluídas valores respeitantes a impostos em falta, mas também valores respeitantes a coimas e encargos em processos de contra-ordenação. Apesar de se mostrar evidente que todos aqueles processos tiveram a sua origem na actuação do arguido, no entanto, não ficou esclarecido (nem o representante legal da Demandante conseguiu esclarecer convenientemente), se todas as coimas e encargos reportavam-se às concretas dívidas que seriam pagas pelos valores indicados no facto 8º, ou ainda a outras situações (por exemplo, as decorrentes da falta de cumprimento de outras obrigações fiscais da Demandante e que estavam a cargo do arguido). Daí que, o tribunal não consiga estabelecer uma perfeita correspondência entre todos os valores incluídos nas execuções fiscais e as concretas actuações do arguido, pese embora se saber, ao menos, que naquelas execuções fiscais, estão incluídos os valores concretamente enunciados no facto 8º).
Assim, da fundamentação da decisão de facto, resulta que o tribunal a quo, ficou com dúvidas relativamente aos montantes peticionados a título, de coimas, custas e outros encargos fiscais, se os mesmos teriam única e exclusiva origem, nas apropriações das quantias tituladas pelos cheques de que o demandado se apoderou, ou respeitavam a outras situações com origem porventura em condutas do mesmo demandado, mas não respeitantes àqueles montantes de que se apropriou.
Tais dúvidas, conforme resulta da fundamentação da decisão, não foram esclarecidas de forma suficientemente esclarecedora, quer pelo legal representante da demandante, quer pela testemunha, JSG, daí que o tribunal a quo não tenha conseguido “estabelecer uma perfeita correspondência entre todos os valores incluídos nas execuções fiscais e as concretas actuações do arguido”.
Por outro lado e, ao contrário do alegado pela recorrente, dos factos provados não resulta a conclusão, forçosa, lógica e, assente nas regras da experiência, que tais montantes relativos a coimas, custas e outros encargos fiscais, tenham necessária e exclusivamente, origem na falta de pagamento das obrigações fiscais concretas relativas aos montantes de que o arguido se apropriou.
De igual forma e, tal como a própria demandante/recorrente refere, relativamente à matéria de facto relativa à não renovação do alvará, existiriam outros requisitos para além, do pagamento das quantias de que o demandado se apropriou, logo, nunca poderia resultar provado nos autos, “que fosse apenas em razão das dívidas resultantes da falta de pagamento das quantias descritas no facto 8º, que a demandante foi impedida de revalidar o alvará, levando a que ficasse impedida de aceitar novas obras, podendo apenas terminar as obras já iniciadas”.
Pelo exposto nesta caso concreto não se verifica nem resulta da decisão recorrida, qualquer Contradição insanável entre os factos tidos como provados e a sua fundamentação, nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Penal.
Por outro lado, atentos estes factos provados nos autos, nunca poderia proceder na totalidade o pedido civil deduzido pela demandante.
Efectivamente, não tendo resultado, nos termos sobreditos, provados nos autos, que as quantias peticionadas relativas a encargos, custas, coimas e, demais encargos fiscalmente reclamados à demandante tenham única e exclusiva origem, nos montantes de que o demandado se apropriou e, tendo a responsabilidade civil, fundamento na prática de factos ilícitos pelo demandado, nos termos do disposto no artigo 483º, do Código Civil e, não resultando provado que o dano reclamado seja causal do facto ilícito praticado, nunca poderá originar a obrigação da sua reparação pelo demandado, com tal causa de pedir.
De igual forma, também dos autos não resultou provado que a não renovação do alvará, se ficou exclusivamente a dever, ao facto ilícito praticado pelo demandado, logo a obrigação da reparação dos danos resultantes da mesma não renovação, nunca poderá ser imposta ao demandado, nos termos constantes do citado artigo 483º, do Código Civil.
Assim, pelo exposto, também nesta parte se verifica não existir qualquer contradição entre os factos provados nos autos e a fundamentação da decisão do pedido civil, nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Penal.
O tribunal a quo, valorou livremente a prova produzida, apenas de acordo com as regras da experiência comum e, fundadamente explicou esse processo valorativo, na fundamentação da decisão proferida.
De harmonia com o princípio da livre apreciação da prova, o julgador é livre ao apreciar as provas, estando tal apreciação apenas “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório” – cfr. Professor Cavaleiro Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, vol. I, pág. 211.
“A livre convicção não pode ser vista em função de qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes deve perspectivar-se segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio, de cariz intelectual e de consciência, que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento.
Isto é, na outorga, não de um poder arbitrário, mas antes de um dever de perseguir a chamada verdade material, verdade prático-jurídica, segundo critérios objectivos e susceptíveis de motivação racional”, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08-02-2012, proferido no processo 38/10.0 TAFIG.C1, disponível in www.dgsi.pt/jtrc.
Só assim não será, quando as provas produzidas impõem decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido, o que sucederá, sem preocupação de enunciação exaustiva, designadamente, quando o julgador decidiu a apreciação dos meios de prova ou de obtenção de prova ao arrepio e contra a prova produzida (v.g. dá como provado determinado facto com fundamento no depoimento de determinada testemunha e ouvido tal depoimento ou lida a respectiva transcrição constata-se que a dita testemunha disse coisa diversa da afirmada na decisão recorrida ou nem se pronunciou sobre aquele facto), ou quando o tribunal valorou meios de prova ou de obtenção de prova proibidos, ou apreciou a prova produzida desrespeitando as regras sobre o valor da prova vinculada ou das “leges artis”, ou quando a apreciação da prova produzida contraria as regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, enfim, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.
Ora, também nesta vertente, como já afirmado, não se vislumbra que o Tribunal a quo haja violado tais regras da experiência, um vez que pelos motivos expendidos na decisão recorrida a prova consente (e impõe) a convicção formada pelo tribunal de 1ª instância e a violação de tal princípio suporia, de um lado, a formação de uma convicção positiva sem suporte probatório bastante, o que não ocorre.
Por outro lado, conceda-se, a decisão recorrida, não deixa de expor, de forma clara e lógica, os motivos que fundamentaram a decisão sobre a matéria de facto, com exame criterioso, das provas que abonaram a decisão, tudo com respeito do disposto no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.
A decisão recorrida está elaborada de forma equilibrada, lógica e fundamentada.
O tribunal a quo decidiu segundo a sua livre convicção e explicou-a de forma objectiva e motivada e, portanto, capaz de se impor aos outros.
Em consequência, mantém-se e, sedimentada se mostra, a factualidade assente pelo tribunal a quo, não se vislumbrando na decisão recorrida vício ou nulidade cujo conhecimento oficioso ou a requerimento se imponha a este tribunal ad quem.
Por tal improcedem as invocadas contradições entre os factos provados e a sua fundamentação e, os factos provados e a fundamentação da decisão do pedido civil, nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Penal, bem como não se mostra verificado qualquer nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1 e, nº 2, do mesmo Código ou nos termos dos artigos 410º, nº 3 e, 119º, nº 1, do mesmo diploma legal, que não devam considerar-se sanadas.

Por fim, relativamente, à impugnação do acórdão proferido, relativamente à matéria de direito, por a decisão proferida não proteger a vítima civil, ao não condicionar a suspensão da execução da pena ao pagamento integral do pedido de indemnização civil.
Nos termos do disposto no artigo 51º, nº 1, alínea a), do Código Penal, que a suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado “e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente (…) pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea”.
A intervenção processual da recorrente/demandante restringe-se, nos termos dos artigos 71º, 74º e, 79º, todos do Código de Processo Penal, à dedução e prova de pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime.
O artigo 401º, do Código de Processo Penal, determina que as partes civis têm legitimidade para recorrer das decisões proferidas – ou seja, neste caso, terá legitimidade para recorrer da decisão de absolvição, na parte relativa ao pedido cível por si formulado.
Todavia, o recurso interposto excede em muito tal âmbito.
Na verdade, resulta claramente quer das conclusões quer do pedido formulado pela demandante/recorrente, que o que pretende é pôr em questão os fundamentos dos condicionalismos impostos pelo tribunal a quo, para a suspensão da execução da pena única a que o arguido foi condenado nos presentes autos.
Constata-se, pois, que a demandante/recorrente nesta parte não autonomiza a qualquer questão de natureza civil, única relativamente à qual teria legitimidade para recorrer.
Na verdade, quem tem legitimidade para recorrer da decisão em matéria crime, seria o arguido e, o Ministério Público, que conformaram-se com a mesma, quer na parte relativa à apreciação da matéria de facto, quer na parte referente à decisão jurídica.
Assim sendo, terá de se entender que, nesta matéria, a decisão de 1ª instância já formou caso julgado quanto à parte criminal, o que impede o tribunal de alterar o decidido, quanto à mesma.
A demandante/recorrente é apenas “parte” na acção cível enxertada no processo penal, só tendo poderes de intervenção e bem assim de recurso, nessa acção cível, mas já não na acção penal.
Ora, a questão que a demandante/recorrente suscita nesta parte do seu recurso, bem como o pedido que formula, refere-se precisa e exclusivamente à responsabilidade criminal do arguido.
Uma vez que a demandante/recorrente não refere, nesta parte do seu recurso, qualquer matéria ou questão de natureza exclusivamente civil, designadamente, factos relativos aos prejuízos reparáveis, montantes indemnizatórios fixados em sentença, para a qual teria legitimidade para recorrer, haverá que concluir que o recurso interposto não poderá ser conhecido, por falta de legitimidade da mesma recorrente, para suscitar tal questão relativa ao condicionalismo da suspensão da execução da pena de prisão, por via do recurso.
Pois restringindo-se a sua intervenção à prova do pedido de indemnização civil, afigura-se-nos evidente que não poderá questionar a parte penal da sentença recorrida, não se conhecendo por tal, o recurso interposto relativamente a tal questão.

Nestes termos improcedem, portanto, todas as pretensões constantes das motivações do recurso interposto pela demandante civil, “GM, Ldª, confirmando-se, consequentemente, integralmente o acórdão recorrido.

Em vista do decaimento total no recurso interposto pela demandante civil “GM, Ldª, ao abrigo do disposto no artigo 523º, do Código de Processo Penal, vai a mesma condenada nas custas do recurso interposto, sem prejuízo do eventual benefício de apoio judiciário de que goze.

III - DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pela demandante civil “GM, Ldª, confirmando-se na integra o acórdão recorrido na parte em que julgou o pedido de indemnização civil deduzido por esta demandante apenas procedente em parte e, tudo o mais decidido.
- Custas pela recorrente/demandante, nos termos legais, sem prejuízo do eventual benefício de apoio judiciário de que goze.
Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto.
Évora,03-02-2015 (Fernando Paiva Gomes M. Pina)
(Renato Amorim Damas Barroso)