Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
309/17.4T8OLH-A.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: ACÇÃO DE ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
PRAZO DE CADUCIDADE
CONHECIMENTO NO SANEADOR
Data do Acordão: 11/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
1. A falta de qualidade de sócio dos votantes da assembleia geral constitui um vício que extravasa o domínio dos aspetos formais ou processuais, afetando o próprio conteúdo da deliberação; logo é um vício que, a verificar-se, é gerador de nulidade, a qual é invocável a todo o tempo.
2. A apreciação da procedência/improcedência da exceção de caducidade do direito de impugnação da validade de uma deliberação social — enquanto facto preclusivo do direito de ação — com fundamento na falta de qualidade de sócio dos votantes da assembleia geral depende tão só do seu enquadramento no regime das invalidades das deliberações sociais previsto no Código das Sociedades Comerciais e não, também, da averiguação da efetiva verificação do vício.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:


Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
BB, SA interpôs recurso do despacho proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Comércio de Olhão-Juiz 1, em sede de audiência prévia, na ação interposta pela Massa Insolvente da CC, SA contra a ora recorrente, despacho que julgou improcedente a exceção de caducidade do direito de obter a declaração de anulabilidade da deliberação tomada no dia 9 de dezembro de 2016 na assembleia geral da sociedade BB, SA.

A decisão sob recurso tem o seguinte teor:
«Analisada a petição inicial verifica-se que a Autora, Massa Insolvente da CC, SA pede o reconhecimento da inexistência ou a declaração de nulidade das deliberações societárias tomadas pela Ré, BB, SA, em relação à qual se arroga titular de 100% do capital social (única acionista da ora Ré).
Importa analisar a pretensão da Autora, à luz do alegado na petição inicial.
Assim, olhada a ação segundo o prisma da petição inicial, verifica-se que os factos encontram-se enquadrados como segue:
a. A sociedade CC, SA foi declarada insolvente, em 21/10/2015, por sentença proferida no processo que corre termos pelo J2 desta Secção de Comércio, sob o n.º 56/14.9TBVRS.
b. Em 28/01/2014 havia sido celebrado acordo de acionistas com vista à aquisição, por DD, Lda., e por EE, de respetivamente 72% e 16,5% das ações da Ré, e ainda à aquisição dos suprimentos aí detidos pela Autora.
c. Foi realizada a vendas das ações da Ré, correspondentes a 88,5% do seu capital social, a DD, EE, e CC, na proporção de – respetivamente – 72%, 16,5% e 11,5%.
d. O Administrador da Insolvência da Autora declarou resolver tal negócio a favor da massa insolvente, por carta de 10/03/2016, dirigida a DD, Lda. e EE.
e. Ambos os visados impugnaram tais resoluções, por apenso ao processo de insolvência (apensos “I”, “K” e “E”).
f. A Autora, em face das aludidas resoluções, e sem prejuízo das suas impugnações continua a ser a única acionista no capital social da Ré.
g. A assembleia-geral da Ré, cujas deliberações estão aqui em crise, foi convocada para 9 de dezembro de 2016.
h. A Autora, sobre a questão da validade jurídica daquelas deliberações, não especificadas, alega o seguinte: constatou que nenhum dos participantes apresentou junto da Presidente da Assembleia Geral as ações ao portador que permitissem a esta asseverar a sua qualidade e legitimidade para participar na aludida assembleia.
i. O presidente da assembleia geral, apesar de alertado para tal vício, fez proceder à votação que culminou na aprovação de deliberações de quem não tinha a qualidade de acionista, considerando-se a Autora titular da totalidade do capital social da Ré.
Importa configurar o ora alegado à luz do Direito.
Uma deliberação social diz-se nula quando viola a lei pelo seu conteúdo intrínseco; e anulável quando ofende a lei em razão do seu processo formativo. Como exemplo das duas situações, verifica-se que a deliberação tomada numa assembleia convocada com uma antecedência inferior à prescrita na lei (art. 377.º do Código das Sociedades Comerciais) é anulável; e que é nula uma deliberação onde estatutariamente se fixe um período mínimo de antecedência da convocação da assembleia inferior ao do art. 377.º do Código das Sociedades Comerciais – cfr. Vasco da Gama Lobo Xavier, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 118, pág. 75; e Luís Brito Correia, Direito Comercial, III, pág. 272.
Com efeito, à luz do preceituado no Código das Sociedades Comerciais, a solução da nulidade justifica-se quando a deliberação, pelo seu conteúdo, atenta contra normas imperativas, sob pena de – pelo decurso do prazo de impugnação, pela renúncia dos legitimados à ação de anulação ao exercício desta ou ainda pela confirmação da deliberação viciada – se admitir a intolerável subsistência de uma disciplina divergente da que é imposta por lei – cfr. Manuel Carneiro da Frada, Deliberações Sociais Inválidas no Novo Código das Sociedades, in Novas Perspetivas do Direito Comercial, Coimbra, 1988, págs. 319-320.
Diversamente, quando uma deliberação viola, através do processo que a ela conduziu, uma norma imperativa, os interesses atingidos são normalmente apenas os dos sócios que o forem na altura, sendo o regime adequado o da mera anulabilidade, que deixa aos prejudicados o meio de defesa que satisfaz as exigências de certeza da ordem jurídica – a impugnação. Nos casos de nulidade, pelas razões já expostas, a sanção é mais severa.
De harmonia com o art. 58.º, n.º 1, alínea a) do Código das Sociedades Comerciais, são anuláveis as deliberações sociais que violem disposições legais – quando ao caso não caiba nulidade – ou que violem os estatutos da sociedade.
Como se disse, a Autora invoca apenas dois vícios fundamentais (diversamente do que ocorria noutro processo já mencionado): o presidente da mesa da AG não exigiu a apresentação das ações; a deliberação foi adotada por quem não tem a qualidade de acionista.
Na sequência do já exposto, o primeiro vício pode reconduzir-se ao processo formativo da deliberação, sendo assim gerador de anulabilidade. Já a 2.ª questão tem uma dimensão diferente, sendo de natureza substantiva e reconduzindo-se à eventual preterição de normas que constituem o cerne ou coração do regime legal: conduz à nulidade. Também se deve referir que ambos os argumentos se ligam entre si, só podendo ser separados numa abordagem analítica, logo algo artificial.
Na tese da Autora, não totalmente explicitada na petição inicial, a deliberação social diz-se nula porque viola a lei pelo seu conteúdo intrínseco, dado que os intervenientes têm que ter a qualidade de acionistas, não sendo admissível – à luz do sistema jurídico – que uma deliberação social seja tomada com os votos de não sócios, ou de não acionistas, logo de pessoas estranhas à pessoa coletiva.
Pelo exposto, não procede a alegada caducidade do direito de obter a declaração de anulabilidade da deliberação em apreço, pela preterição do prazo de 30 dias, nos termos do art. 59.º, n.º 2, als. a), b) e c), do Código das Sociedades Comerciais.
Com efeito, a questão suscitada é indubitavelmente de nulidade, não de mera anulabilidade.
É teoricamente admissível, em tese, que a Autora, em face das aludidas resoluções, e sem prejuízo das suas impugnações, continue a ser a única acionista no capital social da Ré, embora o Tribunal não o declare ou não, por ora. Com efeito, enquanto as impugnações destas resoluções não forem procedentes, poder-se-á entender que as ações constituintes do capital social da Ré integram a massa insolvente da Quinta da Ria, questão a responder na ação.
Com se disse, foi realizada a vendas das ações da Ré, correspondentes a 88,5% do seu capital social, a DD, Lda., EE e CC, na proporção, respetivamente, de 72%, 16,5% e 11,5%. O Administrador da Insolvência da Autora declarou resolver tal negócio a favor da massa insolvente, por carta de 10/03/2016, dirigida à DD, Lda. e a EE. Ambos os visados impugnaram tais resoluções, por apenso ao processo de insolvência (apensos “I”, “K” e “E”).
Decorre com clareza deste último parágrafo que as questões suscitadas na presente ação dependem da resolução das questões aí identificadas, postas nos apensos já mencionados (apensos “I”, “K” e “E”).
Contudo, as questões concretas que aqui se colocam são:
O presidente da mesa da AG não exigiu a apresentação das ações?
A deliberação foi adotada por quem não tem a qualidade de acionista?
A estas questões – de harmonia com o já explanado acima – é possível responder na presente ação, sem contradição com os aludidos apensos “I”, “K” e “E”. […]»
I.2.
A recorrente BB, SA formulou alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«a) A Assembleia Geral de 09/12/2016 foi regularmente convocada.
b) A A. esteve devidamente representada na mencionada Assembleia e encontrava-se representada a totalidade do capital social.
c) A A. absteve-se nas votações ocorridas.
d) A ata da reunião havia sido notificada à A. em 7 de janeiro de 2017, que não se opôs à mesma.
e) Sendo o vício a anulabilidade, a ação visando a respetiva declaração, teria que ser intentada, no prazo de 30 dias, contados desde a data de algum dos acontecimentos previstos no n.º 2 als. a), b) e c) do art. 59.º do CSC.
f) No âmbito do despacho saneador, o tribunal refere que o vício invocado que se reporta ao facto do presidente da mesa da AG não ter exigido a apresentação das ações reconduz-se ao processo formativo da deliberação, sendo assim gerador de anulabilidade.
g) Pelo menos, quanto a este ponto o Tribunal reconhece que o vício é gerador de anulabilidade.
h) O Tribunal irá apurar a qualidade de acionistas dos intervenientes na deliberação em causa, tal como é avançado na enunciação dos temas de prova.
i) Pelo que, não podia o Tribunal decidir que não se verifica a caducidade, sem apurar a qualidade dos acionistas.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente Recurso sendo declarada a exceção perentória de caducidade do direito de pedir a declaração de invalidade das deliberações da Assembleia Geral ocorrida em 09/12/2016 ou, quando assim não se entenda, revogar-se a decisão recorrida na parte em que julgou improcedente a exceção de caducidade, matéria essa cujo conhecimento deve ser realizado a final.»

I.3
Foi apresentada resposta ao recurso pela Massa Insolvente da CC, SA, a qual sustentou a improcedência do recurso.
Nas suas conclusões de resposta ao recurso a Massa Insolvente da CC, SA, alegou, no essencial, o seguinte:
«[…] VI. No que concerne ao segundo vício – o da deliberação ser adotada por quem não tem a qualidade de acionista, o tribunal a quo entendeu – e bem – “sendo de natureza substantiva e reconduzindo-se à eventual preterição de normas que constituem o cerne ou coração do regime legal: conduz à nulidade”.
VII. Ou seja, perante tal entendimento, conclui não existir caducidade do direito em relação ao segundo vício invocado pela Autora na sua Petição Inicial,
VIII. Decisão, essa, fundamentada com base na configuração do vício alegado pela Autora, à luz do direito.
IX. E, vício esse que – a existir – resulta numa deliberação nula, nos termos do art. 56.º, n.º 1, alínea d), do Código das Sociedades Comerciais,
X. E que, por isso, não deverá proceder a exceção perentória invocada pela Ré.
XI. Portanto, a existir ou não a nulidade, nunca haveria caducado o seu direito de a invocar,
XII. Isto porque, o vício de nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado, nos termos do art. 286.º do Código Civil.
XIII. Não obstante o tribunal a quo não ter elementos suficientes que possam concluir a qualidade de sócios (ou não sócios), de modo que lhe permita decidir da existência – ou inexistência – da nulidade,
XIV. Caso diferente é decidir se aquele vício pode ou não ser invocado à luz do direito.
XV. Permitindo assim concluir seguramente que a exceção perentória é improcedente, nos termos do artigo 595.º, número 1, al. b) do CPC. […]»

O recurso foi admitido pelo tribunal recorrido.
Corridos os vistos, nos termos do artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC), cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, nº 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (art. 608.º, n.º 2 e art. 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, do CPC).
II.2.
II.2.1
As questões suscitadas e que cumpre apreciar são as seguintes:
1) Oportunidade do conhecimento realizado pelo tribunal, em sede de audiência prévia, da exceção de caducidade do direito de impugnação da(s) deliberação social votada(s) na assembleia geral da Recorrente de 09.12.2016.
2) Saber se se verifica a caducidade do direito de impugnação da validade da(s) deliberação social da Assembleia Geral da Recorrente de 09.12.2016.
II.2.2
O tribunal a quo decidiu em sede de audiência prévia da improcedência da exceção de caducidade do direito de impugnação da validade da(s) deliberação da assembleia geral da Ré realizada no dia 9 de dezembro de 2016 que havia sido invocada pela recorrente.

Dispõe o art. 591.º, n.º 1, do CPC, sob a epígrafe Audiência prévia, que «Concluídas as diligências resultantes do preceituado no n.º 2 do artigo anterior se a elas houver lugar, é convocada audiência prévia, a realizar num dos 30 dias subsequentes, destinada a algum ou alguns dos fins seguintes.»
Nos termos da alínea d), daquele normativo, um dos fins da audiência prévia pode ser a prolação de despacho saneador, nos termos do n.º 1 do art. 595.º.
Por sua vez o art. 595.º, n.º 1, al. b), do CPC, sob a epígrafe Despacho saneador, preceitua que «O despacho saneador destina-se a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.».
O conhecimento de uma exceção perentória (e decisão sobre a sua procedência ou improcedência) constitui uma decisão de mérito. Com efeito, ao apreciá-la, o tribunal aplica o direito material aos factos em que ela se funda.
Como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, p. 577: «ao lado dos factos constitutivos e extintivos, há a categoria dos factos preclusivos, cujo efeito é o de precludir toda a indagação sobre a situação jurídica controvertida, dispensando averiguar da sua existência. É o caso da prescrição, da usucapião e da caducidade. […] Invocada a caducidade, o direito a ela sujeito não pode mais ser exercido, tornando inútil a sua existência anterior. O facto preclusivo, quando dele resulte a inexistência do direito, constitui exceção perentória, semelhante ao facto extintivo; mas a distinção entre ambos não é meramente teórica, pois reflete a inserção de um e outro na ordem lógica pela qual o juiz deve, na sentença, conhecer das exceções.»
Na apreciação das exceções perentórias, o juiz deve começar pelas que têm natureza preclusiva, como a caducidade, ficando assim dispensado de indagar sobre a existência do direito.
A caducidade do direito de propor a ação constitui, assim, uma questão fundamental e preliminar em relação ao thema decidendum.
«A decisão que verse sobre a procedência ou improcedência de uma exceção perentória inscreve-se no domínio da relação material controvertida e pode ser proferida imediatamente no despacho saneador, se o estado do processo o permitir sem necessidade de mais provas, mesmo que, quando julgada improcedente a exceção, o processo deva prosseguir para conhecimento da existência do direito em causa.» — Ac. STJ de 26.03.2015, processo n.º 1847/08.5TVLSB.L1.S1[1] .
In casu, a apreciação da procedência/improcedência da exceção de caducidade do direito de impugnação da(s) deliberação social depende, tão só, da classificação do vício em causa, isto é, do seu enquadramento no regime das invalidades das deliberações sociais previsto no Código das Sociedades Comerciais, independentemente da sua efetiva verificação no caso concreto.
Concretizando:
No presente recurso está em causa, unicamente, o vício consistente na votação da(s) deliberação por quem (alegadamente) não tem a qualidade de acionista da Ré/recorrente.
Pois bem, uma coisa é aferir, em abstrato, de que tipo de invalidade padece uma deliberação votada por quem não tem a qualidade de acionista e, consequentemente, decidir se a invocação de tal vício está sujeita, ou não, a prazo; e outra, diversa, é decidir se o vício invocado efetivamente ocorreu - no caso em análise, se a(s) deliberação foi votada por quem não tinha a qualidade de acionista.
No caso concreto, o tribunal a quo não dispõe ainda de elementos que lhe permitam conhecer da existência do vício em causa porquanto a questão relaciona-se com as impugnações da resolução dos negócios de venda das ações da Ré correspondente a 88,5% do seu capital, as quais estão pendentes e correm por apenso aos autos de insolvência da autora/recorrida. Contudo, nada impedia o tribunal a quo de classificar o vício em causa - como o fez - e, em conformidade, decidir se o prazo para a impugnação da validade da(s) deliberação social havia, ou não, decorrido.
Resulta assim do exposto que o tribunal a quo podia, no momento em que o fez, isto é, em sede de audiência prévia, conhecer da exceção de caducidade do direito de impugnar a(s) deliberação social votada(s) na assembleia geral da Ré de 09.12.2016.

II.2.3
Passando agora à análise da questão relacionada com a caducidade do prazo de impugnação da validade da(s) deliberação social.
A recorrente sustenta que o vício consistente na falta de qualidade de acionista dos participantes/votantes da deliberação da recorrente da assembleia geral realizada no dia 09.12.2016 é de anulabilidade, pelo que a ação teria de ser intentada no prazo de 30 dias, contados desde a data de algum dos acontecimentos previstos no n.º 2, als. a), b) e c) do art. 59.º do CSC. E que, não o tendo sido, o direito de impugnação caducou[2].
Vejamos se tem razão.
O efeito jurídico-prático da presente ação pretendido pela autora/recorrida consiste na declaração de inexistência/nulidade da(s) deliberação adotada(s) na assembleia geral da Ré/recorrente realizada em 09.12.2016.
A assembleia geral é o órgão supremo da sociedade, de funcionamento intermitente, constituído pela reunião dos seus sócios, regularmente convocados para apreciação e decisão de assuntos de interesse comum, especificados na convocação - Pinto Furtado, Curso de Direito das Sociedades, 5.ª edição revista e atualizada, Almedina, p. 412.
As «deliberações da sociedade» representam a expressão da vontade geral da sociedade, conformada através do plenário dos sócios, seja pelo método de assembleia, seja pelo método referendário[3].
Como refere Pinto Furtado, «a célula primária do tecido de uma deliberação da sociedade é, pois, constituída, por cada um dos votos emitidos pelos sócios em presença.» - ob. cit., p. 399.
O poder de voto é expresso de modos diferentes, consoante o tipo de sociedade. Nas sociedades anónimas, os votos de cada sócio aferem-se pelas ações de que for titular (voto proporcional).
O processo de formação de deliberação em assembleia geral inicia-se com a convocação da assembleia, a que se seguirá a reunião (com observância dos termos estabelecidos no CSC e no contrato de sociedade). Nesta última, haverá que proceder à verificação de presenças, ao enquadramento do thema deliberandum na ordem do dia, a que se seguirão a informação e debate, o voto, a votação, o escrutínio e a proclamação do resultado.
Enquanto que a convocação e o regular funcionamento da reunião constituem pressupostos de toda a deliberação proferida em assembleia, o enquadramento do thema deliberandum na reunião, a informação e debate, o voto, a votação, o escrutínio e a proclamação do resultado são seus elementos constitutivos — Pinto Furtado, ob. cit., p. 414.
As deliberações da sociedade podem padecer de vícios que as impeçam de produzir efeitos jurídicos.
Como ponto prévio se dirá que a figura/categoria da «inexistência jurídica das deliberações sociais» não tem acolhimento no Código das Sociedades Comerciais. Isto é, este diploma normativo não contempla a categoria da «inexistência jurídica».
O Código das Sociedades Comerciais disciplina, no regime das invalidades das deliberações sociais, as figuras da anulabilidade (art. 58.º), da nulidade (art. 56.º) e da ineficácia stricto sensu (art. 55.º).
Um ato nulo é aquele que não produz quaisquer efeitos, podendo a ordem jurídica declará-lo nesses termos, sem dependência de prazo (art. 286.º, do Código Civil). As deliberações nulas são, assim, inválidas ab initio e independentemente de impugnação. Em qualquer tempo será admissível uma ação de declaração de nulidade.
Diferentemente, a anulabilidade carece de declaração judicial e está dependente de invocação num prazo relativamente curto porquanto se considera que não sendo tão grave como a nulidade, pode ser recuperável pelo decurso do tempo ou pela concordância superveniente de quem ficaria particularmente afetado com a subsistência do ato (art. 287.º, do Código Civil).
A deliberação diz-se «ineficaz» em sentido estrito, não produzindo quaisquer efeitos, quando lhe falte um requisito externo de eficácia, apesar de ter sido, formal e substancialmente, estruturada em conformidade com as exigências legais, por ter sido tomada em assembleia geral devidamente convocada, com respeito pelas regras de quorum aplicáveis e relativamente a matéria da competência deste órgão. Tal sucederá quando a deliberação social, para produzir efeitos, careça do necessário consentimento ou aprovação de um ou mais sócios (ou categoria de acionistas) cujos direitos são por ela atingidos (art. 55.º do CSC).
Enquanto no direito civil a nulidade é o regime regra da invalidade (art. 294.º, do Código Civil), no domínio da invalidade das deliberações sociais a regra é o sancionamento das respetivas vicissitudes com a anulabilidade porquanto encadeando-se os atos sociais uns nos outros, a respetiva validade não pode estar dependente da validade precária dos atos antecedentes. É a chamada teoria dos atos sociais em cadeia[4] .
O art. 58.º, do CSC, sob a epígrafe Deliberações anuláveis enumera os fundamentos da anulabilidade das deliberações sociais.
Assim, são anuláveis, as deliberações que:
a) Violem disposições quer da lei, quando ao caso não caiba a nulidade, nos termos do art. 56.º, quer do contrato de sociedade;
b) Sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos;
c) Não tenham sido precedidas do fornecimento ao sócio de elementos mínimos de informação.
Em suma, as hipóteses de anulabilidade da deliberação social contempladas no normativo supra citado reconduzem-se a quatro categorias, a saber: violação de lei não enquadrável no art. 56.º; violação de cláusula contratual; abuso do direito deliberativo e omissão dos elementos mínimos de informação.
Relativamente às deliberações «nulas», há que atentar no disposto nos arts. 56.º e 69.º, n.º 3 do CSC, sob as epígrafes, respetivamente, Deliberações nulas e Regime especial de invalidade das deliberações, os quais sistematizam fundamentos da nulidade de deliberações sociais. Assim, são nulas[5] as deliberações dos sócios:
a) Tomadas em assembleia geral não convocada, salvo se todos os sócios tiverem estado presentes ou representados (al. a), do n.º 1 do art. 56.º);
b) Tomadas mediante voto escrito sem que todos os sócios com direito de voto tenham sido convidados a exercer esse direito, a não ser que todos eles tenham dado por escrito o seu voto (al. b) do n.º 1 do art. 56.º);
c) Cujo conteúdo não esteja, por natureza, sujeito a deliberação dos sócios (al. c) do n.º 1 do art. 56.º);
d) Cujo conteúdo, diretamente ou por atos de outros órgãos que determine ou permite, seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios (al. d), do n.º 1 do art. 56.º).
As alíneas a) e b), do n.º 1 do art. 56.º reportam-se a vícios atinentes à própria constituição da deliberação, logo, ao respetivo processo formativo e as alíneas c) e d) dizem respeito a vícios relativos ao conteúdo da deliberação.
Quanto ao art. 69.º, n.º 3, do CSC este refere-se ao desvalor de uma deliberação que se concretize numa grave inobservância das normas de natureza contabilística e sobre a elaboração de contas.
O prazo para a propositura de ação de anulação das deliberações dos sócios está previsto no art. 59.º, n.º 2, do CSC: é de 30 dias e conta-se a partir das circunstâncias referidos nas suas alíneas a), b) e c).
O tribunal a quo considerou que o vício supra referido - votação da(s) deliberação por quem não tinha a qualidade de sócio - constitui uma violação da lei pelo «seu conteúdo intrínseco», devendo a sanção ser a mais severa: a nulidade.
Como referido supra, a assembleia geral é o órgão supremo da sociedade constituído pela reunião dos seus sócios.
Dispõe o art. 379.º, n.º 1, do CSC que «Têm direito a estar presentes na assembleia geral e aí discutir e votar, os acionistas que, segundo a lei e o contrato, tiverem direito a, pelo menos, um voto.».
Ou seja, apenas podem votar as deliberações da sociedade os respetivos sócios (ou seus representantes – cfr. art. 54.º, n.º 3, do CSC). O “voto” constitui um dos elementos constitutivos da deliberação, isto é, compõe a estrutura da deliberação.
A falta da qualidade de sócio por parte de quem vota na assembleia geral extravasa já o domínio dos aspetos formais ou processuais (procedimentais) afetando, ao invés, o próprio conteúdo da deliberação.
O exercício de voto por quem não tem a qualidade de sócio constitui uma violação de uma norma imperativa, a saber, o art. 379.º, n.º 1, do CSC.
Assim sendo, o vício em causa, a existir, é gerador de nulidade, em conformidade com o disposto no art. 56.º, n.º 1, al. d), do CSC. Consequentemente, a respetiva invocação não está sujeita a qualquer prazo (art. 286.º, do Código Civil), não se verificando a exceção de caducidade que havia sido invocada pela ré/recorrente.
Por conseguinte, bem andou o tribunal a quo ao conhecer da exceção (perentória) de caducidade do direito de impugnação da validade da deliberação em sede de audiência prévia e ao classificar aquele vício como sendo gerador de nulidade, logo, não sujeito ao prazo de caducidade previsto no art. 59.º, n.º 2, do CSC.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar o recurso improcedente.
Custas pela recorrente.
Notifique.

Évora, 8 de novembro de 2018,
Cristina Dá Mesquita
Silva Rato
Mata Ribeiro

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[1] Publicado em www.dgsi.pt.
[2] Em sede de Contestação, a Ré/recorrente alegara que o regime regra de invalidade das deliberações sociais é a anulabilidade, apenas sendo nulas aquelas que violem o disposto no art. 56.º do CSC; no caso em apreço, a situação não é passível de ser enquadrada em qualquer daquelas situações e a A. não alegou a violação pela Ré de qualquer das alíneas constantes do art. 56.º do CSC; tendo a Autora estado presente na AG de 09.12.2016, iniciada e concluída em 09.12.2016, e tendo intentado a ação em 09.03.2017, encontra-se exaurido o prazo de 30 dias, encontrando-se assim precludido, por caducidade, o direito de acionar.
[3] Pelo método de assembleia, a deliberação processa-se através da reunião dos sócios que, após debate sobre o thema deliberandum, votam em presença um dos outros; o método referendário ou do referendo consiste na proposição do objeto da deliberação, individualmente a cada um dos sócios, que em resposta manifestarão pelo voto, se prévia reunião formal e debate com os outros.
[4] Vd. Paulo Olavo Cunha, Impugnação de Deliberações Sociais, Almedina, p. 188. Como refere este autor: «Dos regimes jurídicos característicos destas duas diferentes formas de invalidade chegaríamos à conclusão que a opção pela nulidade é uma escolha radical que implica necessariamente a possibilidade de — decorrido um prazo relativamente longo — os atos jurídicos que se alicerçam num ato nulo (sem quaisquer efeitos) poderem vir a ser, também eles, declarados sem efeitos. Ora, a vida de uma sociedade comercial não é compatível com uma solução deste teor, designadamente porque os atos sociais se encadeiam uns nos outros, pelo que a respetiva validade não pode estar dependente da validade precária dos atos antecedentes. Fundamentalmente por esta razão, em matéria de deliberações sociais as vicissitudes são sancionadas, em regra com a anulabilidade, evitando-se assim, tanto quanto possível, que a invalidade de um ato (nulidade) — no qual se apoiarão necessariamente outros subsequentes — possa ser invocável sem dependência de prazo e, desse modo, contaminar os atos que, entretanto, tenham sido praticados.»
[5] As als. a) e b) do n.º 1 do normativo em apreço contemplam dois casos de nulidade sanável uma vez que o n.º 3 esclarece que a invalidade não pode ser invocada quando os sócios ausentes e não representados ou não participantes na deliberação por escrito tiverem posteriormente dado por escrito o seu assentimento à deliberação.