Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
186/18.8T8FTR.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
ARRENDAMENTO
RENDA APOIADA
Data do Acordão: 02/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
Os litígios relativos à aplicação do regime da renda apoiada a um contrato de arrendamento celebrado entre o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana - a quem sucedeu o autor município - e um particular, inscrevem-se no âmbito da jurisdição administrativa, atenta a especificidade daquele regime e a função pública que lhe subjaz, e, portanto, o facto de não ser um simples contrato de arrendamento de direito privado.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
O Município de Alter do Chão, representado pelo Presidente da Câmara Municipal, F…, instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra BB, pedindo que:
a) seja declarado resolvido o contrato de arrendamento referido no artigo 1º da petição inicial que incide sobre o prédio urbano sito no Bairro Novo, nº … em Cunheira, por falta de pagamento das rendas dos meses de Setembro de 2012 a Maio de 2018;
b) seja declarado resolvido o mesmo contrato de arrendamento com o fundamento no artigo 1083º, nº 2, alínea d), do Código Civil.
c) o réu seja condenado a despejar o prédio imediatamente, deixando-o livre de pessoas e bens, ordenando-se a sua entrega ao autor.
d) o réu seja condenado a pagar ao autor o montante de € € 8.567,97, a título de rendas vencidas e não pagas e as que se venham a vencer até à data do trânsito em julgado da sentença que decrete a resolução do contrato e consequente despejo.
e) a partir do trânsito em julgado dessa sentença, o réu seja condenado no pagamento de uma indemnização pela ocupação do locado à razão de € 57,06 por mês até à entrega efetiva do mesmo.
Alegou, em síntese, ter celebrado em 29.06.2012 com o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana um auto de cessão, mediante o qual foi transferido o direito de propriedade e direitos e obrigações sobre os prédios e frações autónomas descritas no anexo 1 daquele auto, do qual consta o prédio locado ao réu, sendo que este deixou de pagar a renda desde Fevereiro de 2002, acrescendo que o mesmo não reside no locado, mas sim no Crato.
Citado o réu, não contestou.
Em 25.06.208, foi proferido despacho a considerar confessados os factos articulados pelo autor.
O autor apresentou alegações, concluindo pela procedência da ação.
Foi proferida sentença, em cujo dispositivo se consignou:
«Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, julgo procedente a ação proposta por Município de Alter do Chão contra BB, em consequência:
a) Declaro resolvido o contrato de arrendamento em vigor entre Autor e Réu, que incide sobre o prédio urbano sito no Bairro da Cunheira, Rua do Bairro Novo, nº … em Cunheira, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Alter do Chão sob o artigo … da freguesia da Cunheira.
b) Condeno o Réu a entregar de imediato ao Autor o referido imóvel, livre de pessoas e bens;
c) Condeno o Réu a pagar ao Autor as rendas vencidas não pagas desde fevereiro de 2002 até maio de 2018, no valor de €8.567,97, (oito mil quinhentos e sessenta e sete euros e noventa e sete cêntimos);
d) Condeno o Réu a pagar à Autor as rendas dos meses de junho a novembro de 2018, no valor de €342,36 (trezentos e quarenta e dois euros e trinta e seis cêntimos), acrescidas das que se vencerem até ao trânsito em julgado da presente decisão.
e) Condeno a Ré a pagar à Autora uma indemnização de € 57,06 (cinquenta e sete euros e seis cêntimos), por cada mês, desde o trânsito da presente sentença até entrega efetiva do locado».
Inconformado, o réu recorreu da sentença, tendo finalizado a respetiva alegação com as seguintes conclusões:
«1. O Município de Alter do Chão, intentou acção declarativa comum – despejo - contra o réu BB, pedindo a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas; pelo não uso do locado; a condenação nas rendas vencidas e não pagas, assim como indemnização até entrega efectiva do mesmo.
2. Dos documentos apresentados com a p.i. apenas junta auto de cessão comprovativo da transferência de património do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) para o Município de Alter do Chão, nos termos e ao abrigo do disposto no artº6º da Lei nº64-B/2011, de 30 de Dezembro.
3. Não junta contrato de arrendamento.
4. Não identifica o Réu por forma a poder aferir a legitimidade, nos termos e para os efeitos do artº 34º do C.P.Civil.
5. O Réu juntou cópia do pedido de apoio judiciário apresentado nos serviços da Segurança Social; a Meritíssima Juiz considerou que a sua apresentação fora do prazo peremptório de contestação, não interrompia esse prazo; e assim considerou confessados os factos articulados pelo Autor; mas, ainda assim, manda o Autor juntar copia do contrato de arrendamento.
6. Pelo Réu é apresentado requerimento, onde dá conta que é casado e junta certidão de casamento.
7. A Meritíssima Juiz concede novo prazo ao Autor para juntar o referido contrato de arrendamento.
8. Então, e só então, o Autor informa que não existe contrato escrito, e pede que o Tribunal, com recurso ao art. 400º nº 2 do CC e com base na prova disponível e na que se produzirá, proceda à determinação da prestação com o reconhecimento do contrato de arrendamento em todos os seus elementos.
9.Surpreendentemente, é proferida sentença julgando a acção procedente.
10. Decidiu a Meritíssima Juiz não considerar a alegação do réu de que era casado, alegação devidamente comprovada pela certidão de casamento; e considerou provado o arrendamento e fixados os seus termos apesar de continuarmos sem ter no processo cópia do contrato.
14. O Tribunal tem o dever de conhecer das exceções dilatórias insupríveis ou de que deva conhecer oficiosamente (artº590º nº1 do C.P.Civil) e, convidada a parte a suprir deficiências (artº590º nº3 do C.P.Civil), tem de extrair consequências do convite não acatado ou da inexistência dos factos objecto de esclarecimento.
15. Não o tendo feito a 1ª Instância compete á Relação delas conhecer. São elas: a incompetência material para a causa, a ilegitimidade do réu. Vejamos.
A) Da incompetência material
16. A legitimidade do Autor resulta da relação estabelecida entre este e o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, pela transferência do direito de propriedade e respectivos direitos e obrigações nos termos e ao abrigo do disposto no artº6º da Lei nº64-B/2011, de 30 de Dezembro, que regula as situações de habitações sujeitas ao regime de renda apoiada (D.L.166/93 de 7.Maio); esta relação de arrendamento social não tem origem contratual por se integrar na actividade administrativa do Estado. Por isso aquele artº6º defere a competência material nas acções que envolva para o foro administrativo.
17. Assim as questões relacionadas com os mesmos devem ser dirimidas no âmbito do procedimento administrativo, sem embargo de recurso aos tribunais administrativos. (cfr. Ac.R.Lisboa 30.06.2011, Proc.nº7745/08.5TBCSC.L1-7).
18. Não tendo a questão da competência em razão da matéria sido apreciada pelo Tribunal, apesar da documentação junta aos autos, invoca-a agora o Réu, para todos os seus efeitos legais.
19. A incompetência em razão da matéria é absoluta; pode ser arguida ou conhecida oficiosamente a todo o tempo, até trânsito em julgado da sentença proferida (artº97º nº1 CPCivil); implica a absolvição do Réu da instância (artº99º CPCivil).
B) Da ilegitimidade do réu
20. A par desta exceção impõe-se a análise da decisão que desconsiderou a informação dada pelo Réu, de que sendo casado (juntou certidão de casamento) se estaria perante uma situação de litisconsórcio necessário, a pretexto de que isso deveria ter sido alegado em contestação, e decidiu que o requerimento e documento deviam ser desentranhados dos autos.
21. Já pela junção do pedido de apoio judiciário o Réu tinha dado a conhecer ao Tribunal o seu estado civil.
22. Nas ações de despejo de casa de habitação é obrigatória a alegação do estado civil, atento o disposto no artº34º do C.P. Civil (Lebre de Freitas C.P.Civil Anotado, Novo, nota 4 ao artº 552º).
23. Ao Autor cabia alegá-lo. Não o tendo feito, cabia ao Tribunal perguntar. Não o tendo feito e constando dos autos já tal facto, cabia conhecer oficiosamente dessa ilegitimidade (artº590º nº1 do C.P.Civil).
24. A ilegitimidade do Réu constitui uma excepção dilatória de conhecimento oficioso (artigos 33.º, 278.º n.º 1 al. d), 576.º n.º 2, 577º al. e) e 578.º do CPC), que importa a absolvição da instância, e que a 1ª Instância devia conhecer e não o fez.
25. Cabe agora á Relação decidir. Nesse sentido foram proferidas decisões, entre as quais se citam os Ac. Rel. Porto, de 17.03.2009, Proc. nº 27/05.6TBBAO; de 14/9/2006, Proc. 0633963 e de 9/11/2006, Proc. 0635479).
C) Por fim a insuficiência de factos.
26. Para além destas questões uma última se refere. A da insuficiência de factos.
27. A Meritíssima Juiz ordenou ao Autor a junção do contrato de arrendamento, o que demonstrava que esse contrato lhe era essencial. Essencial para ter o contrato como existente ou não.
Essencial para averiguar das suas condições – valor da renda, data de início, tempo de vigência, lugar e condições do pagamento da renda.
28. O próprio Autor isso sentiu, quando, não o juntando, apelou para a prova disponível e a produzir (requerimento de 02.10.2018).
29. Todavia a Meritíssima Juiz tudo desconsiderou. Não podia; face á omissão, ou mandava notificar o Autor para, completar a informação sobre os termos do contrato, ou abdicava dessa faculdade e tinha de julgar a acção improcedente. Ao invés decidiu julga-la totalmente procedente.
30. Assim cabe à Relação, decidir quanto às exceções deduzidas – a da incompetência em razão da matéria; a da ilegitimidade do Réu pela não intervenção do cônjuge – que levam á absolvição da instância; ou pela insuficiência de factos, declarar anulado o processo em data anterior à prolação da sentença; ou revogar a sentença e absolver o Réu do pedido.
31. Não tendo o Tribunal como incompetente em razão da matéria, a douta sentença violou o disposto no artº6º da Lei nº64-B/2011 de 30.08; não reconhecendo a ilegitimidade do Réu enquanto não vier ao processo sua esposa, violou o disposto nos artºs. 33º, 34º, 278º nº1 al. d), 576º nº2 e 577º do C.P.Civil; julgando de fundo apoiada em factos que não podia ter como provados violou o disposto no artº607º nº4 do C.P.Civil.
Essa será Senhores Desembargadores
A expressão da JUSTIÇA».

O autor apresentou contra-alegações, concluindo pela improcedência do recurso.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso definido em função das conclusões formuladas pelos recorrentes, nos termos dos artigos 635º, nºs 3 a 5 e 639º, nº 1, do CPC, as questões suscitadas nesta apelação, atenta a sua precedência lógica, são as seguintes:
- incompetência do Tribunal em razão da matéria;
- ilegitimidade do réu;
- insuficiência da matéria de facto.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. Entre o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana e o Município de Alter do Chão foi celebrado, em cumprimento do acordo de transferência entre as partes assinado em 29 de junho de 2012, o auto de cessão, cuja minuta foi previamente aprovada pelo Conselho Diretivo do IHRU em reunião de 28 de março de 2012 e por deliberação da Câmara Municipal de Alter do Chão em 18 de Abril de 2012, o IHRU transferiu para o Município de Alter do Chão e este aceitou o direito de propriedade e os respetivos direitos e obrigações sobre os prédios e frações autónomas sitas nos bairros de Chanca, Cunheira e Alter do Chão, descritos no anexo I do auto de cessão, que dele faz parte integrante para todos os efeitos.
2. Nesse auto de cessão celebrado entre o IHRU e o Município de Alter do Chão está incluído o prédio urbano sito no Bairro da Cunheira, Rua do Bairro Novo, nº … em Cunheira, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Alter do Chão sob o artigo … da freguesia da Cunheira sobre o qual incide um contrato de arrendamento urbano em que é senhorio o Autor e arrendatária o Réu.
3. Atualmente existe um contrato de arrendamento urbano entre Autor e Réu e que incide sobre o prédio urbano sito no Bairro da Cunheira, Rua do Bairro Novo, nº … em Cunheira, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Alter do Chão sob o artigo … da freguesia da Cunheira, por força do qual o Réu se obrigou a pagar ao Autor a renda, que à presente data se fixa em 56,06 €.
4. O Réu deixou de pagar as rendas no tempo e lugar próprio desde fevereiro de 2002, pelo que se encontram vencidas e não pagas as rendas referentes aos meses de fevereiro de 2002 a maio de 2018 no montante total de € 8.567,97.
5. O Réu não reside no prédio descrito no ponto 2. da matéria de facto provada há mais de um ano.
6. O réu reside na Rua …, lote 9, no Crato.

Não há factos não provados a considerar.

O DIREITO
Da incompetência material
É sabido que o poder jurisdicional se encontra repartido por diversas categorias de tribunais, segundo a natureza das matérias das causas que perante eles se suscitam [cfr. artigos 209º e seguintes da Constituição da República Portuguesa (CRP)].
Nos termos do disposto no artigo 211º, nº 1, da CRP, os Tribunais Judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas.
Estabelece o artigo 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 - Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) -, que «os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» (vd. também o artigo 64º do CPC).
Por sua vez, o artigo 212º, nº 3, da CRP dispõe que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
A existência de várias categorias de tribunais supõe, naturalmente, um critério de repartição de competência entre eles, necessariamente de natureza objetiva, de acordo com a natureza das questões em razão da matéria, podendo, como tal, dar origem a conflitos de jurisdição.
A exemplo do que acontece com o pressuposto da legitimidade processual, a competência em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica tal qual o autor a apresenta na petição inicial. É enten­di­mento há muito firmado no STJ e no Tribunal de Conflitos[1], que a questão da competência material deve ser resolvida tendo em conta a relação jurídica a discu­tir na ação, mas à luz do “retrato”, da estrutura­ção concreta apresentada pelo autor, e, logicamente, dando especial aten­ção à natureza intrínseca e aos fundamentos da pretensão deduzida, embora, sem avaliar o seu mérito, isto é, sem logo apre­ciar se o lesado tem ou não razão face ao direito substantivo.
No que tange à competência dos tribunais administrativos e fiscais importa ter em atenção os preceitos aplicáveis do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais [ETAF] aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro (alterada pelas Leis n.º 4- A/2003, de 19 de Fevereiro; 107-D/2003, de 31 de Dezembro; 1/2008, de 14 de Janeiro; 2/2008, de 14 de Janeiro; 26/2008, de 27 de Junho; 52/2008, de 28 de Agosto; 59/2008, de 11 de Setembro e DL n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro).
O artigo 1º, nº 1, do ETAF estatui: «[o]s tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto».
O artigo 4º, nº 1, alínea e) dispõe que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação da «[v]alidade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes».
O atual ETAF eliminou o critério delimitador da natureza pública ou privada do ato de gestão que gera o pedido.
Como se escreveu no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 04.06.2013 (Conflito nº 7/13), «[o] critério material de distinção assenta, agora, em conceitos como relação jurídica administrativa e função administrativa - conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público - cfr. Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa”, 9ª edição, 103, e Margarida Cortez, “Responsabilidade Extracontratual do Estado, Trabalhos Preparatórios da Reforma”, 258».
Revertendo ao caso concreto.
Está provado que entre o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana e o Município de Alter do Chão foi celebrado, em cumprimento do acordo de transferência entre as partes assinado em 29 de junho de 2012, o auto de cessão junto a fls. 5 verso e seguintes, cuja minuta foi previamente aprovada pelo Conselho Diretivo do IHRU em reunião de 28 de março de 2012 e por deliberação da Câmara Municipal de Alter do Chão em 18 de Abril de 2012, tendo o IHRU transferido para o Município de Alter do Chão e este aceitou o direito de propriedade e os respetivos direitos e obrigações sobre os prédios e frações autónomas sitas nos bairros de Chanca, Cunheira e Alter do Chão, descritos no anexo I do auto de cessão, que dele faz parte integrante para todos os efeitos.
Mais se provou que nesse auto de cessão celebrado entre o IHRU e o Município de Alter do Chão está incluído o prédio urbano sobre o qual incide o contrato de arrendamento em discussão nos autos.
O autor não juntou o referido contrato aos autos, afirmando que o mesmo se encontrava na posse de terceiros, in casu o IHRU, a quem foi solicitado o envio de cópia do contrato, mas esta entidade informou que o respetivo processo administrativo foi remetido ao Município autor, a quem o pedido deveria ser efetuado.
Por razões desconhecidas, o autor não juntou cópia do contrato de arrendamento, aduzindo, porém, que ao longo dos anos as partes “têm estabelecido relações contratuais de facto, donde se evidencia a existência do arrendamento com as condições e características acima referidas”.
Seja como for, da documentação junta aos autos, nomeadamente do “Acordo de Transferência de Património do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) para o Município de Alter do Chão, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 6º da Lei nº 64-B/2011, de 30 de Dezembro”, junto a fls. 14-16, resulta claro que se trata de um contrato de arrendamento em regime de renda apoiada, sendo que a causa de pedir, no caso, complexa, radica na celebração desse contrato.
Consignou-se expressamente no nº 2 da cláusula quarta daquele acordo:
«De acordo com o previsto no nº 4 do artigo 6º da Lei nº 64-B/2011, de 30 de dezembro, o arrendamento dos fogos destinados a habitação fica sujeito ao regime de renda apoiada, nos termos do disposto no Decreto-Lei nº 166/93, de 7 de maio ou diploma que lhe suceda».
O Decreto-Lei nº 166/93, de 7 de Maio, visou a reformulação e uniformização dos regimes de renda dos imóveis sujeitos ao regime de arrendamento social, «de modo que, desejavelmente, a todas as habitações destinadas a arrendamento de cariz social, quer tenham sido adquiridas ou construídas pelo Estado, seus organismos autónomos ou institutos públicos, quer pelas autarquias locais ou pelas instituições particulares de solidariedade social, desde que com o apoio financeiro do Estado, se aplique um só regime - o regime da renda apoiada -, conforme dispõe o artigo 82.º do Regime do Arrendamento Urbano»[2].
O diploma, como decorre do artigo 1º, nº 1, tem por objeto o estabelecimento do regime de renda apoiada, ficando de acordo com o nº 2, sujeitos a tal regime os arrendamentos das habitações do Estado, seus organismos autónomos e institutos públicos, bem como os das adquiridas ou promovidas pelas Regiões Autónomas, pelos municípios e pelas instituições particulares de solidariedade social com comparticipações a fundo perdido concedidas pelo estado, celebrados após a entrada em vigor do diploma.
O diploma estabeleceu restrições que encontram o seu fundamento na função social subjacente à cedência das habitações, conferindo à entidade locadora poderes que vão para além dos que se contêm nos arrendamentos de natureza jurídico-privada, como sucede com o disposto nos artigos 8º (intervenção no reajustamento dos valores), 9º, n.º 2 e 3 (determinação do montante da renda com pedidos de documentos e esclarecimentos para instrução e atualização dos processos) e 10º, n.º 2 e 3 (poderes de transferência do arrendatário no caso de subocupação da habitação arrendada e sanção pelo incumprimento).
O Tribunal de Conflitos considerou no seu acórdão de 25 de Setembro de 2012, proferido no Conflito nº 12/11, que o regime de renda apoiada estabelecido no Decreto- Lei nº 166/93, «é claramente um regime de direito público», constituindo as suas normas «regras de direito administrativo». E, no acórdão de 5 de Março de 2013 (conflito nº 4/2013), foi dito que o diploma tem a natureza de norma de direito administrativo[3].
Ora, «cabendo à jurisdição administrativa a competência para o conhecimento do pedido de resolução com fundamento na falta de pagamento de rendas, à mesma jurisdição caberá conhecer do outro fundamento, até porque em outros casos de violação de obrigações contratuais fundamento de resolução do arrendamento previstos expressamente no artigo 10º o respetivo conhecimento caberá à jurisdição administrativa, e porque não faria de todo sentido cindir as pretensões de resolução de um mesmo contrato celebrado entre o Município e um particular[4].
Aliás, o não uso da habitação pelo réu - invocado como causa de pedir na ação - por período superior a seis meses ou pelo agregado familiar por período superior a dois meses está previsto como fundamento para a entidade proprietária determinar a cessação da utilização do fogo na alínea f) do nº 1 do artigo 3º da Lei n.º 21/2009, de 20 de Maio[5], a qual trata o regime do arrendamento social, tendo revogado o Decreto n.º 35.106, de 6 de Novembro de 1945.
E de acordo com o nº 8 do artigo 3º, “[d]as decisões tomadas ao abrigo dos números anteriores cabe recurso para os tribunais administrativos, nos termos gerais de direito».
Diz o autor/recorrido nas contra-alegações que a norma que poderia determinar a incompetência em razão da matéria dos tribunais comuns era a da alínea f) do artigo 4º, que na versão do DL n.º 214-G/2015 foi suprimida, não existindo no corpo do artigo outra igual que permita a subsunção da questão à competência dos tribunais administrativos.
Mas não tem razão.
A delimitação da competência dos tribunais administrativos em matéria de contratos, que resultava das alíneas b), 2ª parte, e) e f) do ETAF na versão anterior à do citado DL 214-G/2015, foi concentrada numa única norma, a da alínea e) do nº 1 do artigo 4º do ETAF. A nova disposição refere-se: i) “à validade de atos pré-contratuais”; ii) à “interpretação, validade e execução de contratos administrativos”; iii) à “ interpretação, validade e execução…de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes».
Continuam por isso a valer os argumentos aduzidos nos citados acórdãos do Tribunal de Conflitos, onde de forma reiterada se decidiu que os litígios relativos à aplicação do regime da renda apoiada a um contrato de arrendamento celebrado entre um município e um particular se inscrevem no âmbito da jurisdição administrativa, dada a especificidade daquele regime e a função pública que lhe subjaz, e, portanto, o facto de não ser um simples «contrato de arrendamento de direito privado».
Conclui-se assim que o litígio em aberto é subsumível ao artigo 4º, nº 1, alínea e), do ETAF, pertencendo a resolução do conflito ao foro administrativo, deferindo-se a competência material aos Tribunais Administrativos.
Assiste, pois, razão ao recorrente quanto a esta questão, mostrando-se prejudicado o conhecimento das demais questões colocadas no recurso.
Vencido no recurso, o apelado suportará as custas respetivas (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC).

Sumário:
Os litígios relativos à aplicação do regime da renda apoiada a um contrato de arrendamento celebrado entre o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana - a quem sucedeu o autor município - e um particular, inscrevem-se no âmbito da jurisdição administrativa, atenta a especificidade daquele regime e a função pública que lhe subjaz, e, portanto, o facto de não ser um simples contrato de arrendamento de direito privado.

IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar a apelação procedente e, revogando a decisão recorrida, declaram o Juízo de Competência Genérica de Fronteira incompetente, em razão da matéria, para conhecer da presente ação, com a consequente absolvição do réu da instância.
Custas pelo autor/recorrido.
*
Évora, 14 de Fevereiro de 2019
Manuel Bargado
Albertina Pedroso
Tomé Ramião

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[1] Cfr., inter alia, o Acórdão do STJ de 13.03.2008, proc. 08A391 e o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 23.09.2004, proc. 05/04, este último com largas referências doutrinais e jurisprudenciais sobre a matéria, os quais se encontram disponíveis, como os demais que venham a ser citados sem outra indicação, em www.dgsi.pt.
[2] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro
[3] No mesmo sentido se pronunciaram os acórdãos de 03.11.2005, nº 762/2004; de 14.03.2013, nº 5/2013; 18.04.2013, nº 28/2012; de 15.05.2013, nº 8/2013, nº 12/2013, nº 20/2013 e nº 23/2013; 23.05.2013, nº 10/2013 e nº 19/2013; 30.05.2013, nº 21/2013 e nº 22/2013; 04.06.2013, nº 1/13, nº 6/13 e nº 7/13; 25.06.2013, nº 21/13; 27.02.2014, nº 57/13: e 26.06.2014, nº 40/13. Vide, no mesmo sentido, o acórdão da Relação de Lisboa, de 14.06.2018, proc. 10.604/17.7T8LRS.L1-8.
[4] Cfr. o acórdão do Tribunal de Conflitos de 26.06.2014, referido na nota anterior.
[5] Diário da República, n.º 97/2009, Série I de 20.05.2009.