Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
991/13.1 GBTMR.E1
Relator: ANTÓNIO CONDESSO
Descritores: RESISTÊNCIA E COACÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO
CRIME DE AMEAÇAS
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
ARMA CAÇADEIRA
PERDA A FAVOR DO ESTADO
Data do Acordão: 03/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I – Não obstante o processo ter sido arquivado, por o arguido ter cumprido as injunções que lhe haviam sido impostas, resultando dos autos que o arguido utilizou (ou tinha por perto) a arma de fogo que lhe foi apreendida para concretizar as ameaças que proferiu, e subsistindo o perigo da sua utilização no cometimento de novas infrações, deve aquela ser declarada perdida a favor do Estado.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora

I- Relatório
VM veio recorrer de despacho que determinou a perda a favor do Estado de arma apreendida nos autos, suscitando, em síntese, a seguinte questão:

- violação do disposto no art.109º do Código Penal.

O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela respectiva improcedência.

Nesta Relação, a Exª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no mesmo sentido.

II- Fundamentação
Teor da promoção do MP que antecedeu o despacho

“Remeta os autos à Meritíssima Juiz do Juízo Local Criminal de Tomar, com a seguinte promoção:

Em face do teor de fls.128 e 129, não obstante o que aí se encontra mencionado, uma vez que aquando da suspensão provisória do presente inquérito, foi imputada ao arguido VM a prática de 1 (um) crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.°, nº1, do Código Penal, pelo facto de ter dirigido a dois militares da Guarda Nacional Republicana de Tomar, no exercício das suas funções, a expressão "vocês são uns cachopos, não me metem medo, eu dou um tiro em cada um de vocês", além de os ter pontapeado e ter empurrado um deles.

Assim, em face do exposto, promovo que a arma que se encontra apreendida (cfr.fls.8), no âmbito do presente inquérito, seja declarada perdida a favor do Estado, nos termos do disposto no artigo 109°, nº1, do Código Penal e que a mesma seja remetida à Polícia de Segurança Pública de Coimbra-Núcleo de Armas e Explosivos, que deverá promover o seu destino, nos termos do disposto no artigo 78.°, n." 1, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições (Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro)”.
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Teor do despacho recorrido
“Fls. 128: Por ser objecto do crime e oferecer perigo de utilização no cometimento de novas infracções (cfr. ponto 4 de fls. 91), declara-se perdida a favor do Estado a arma apreendida a fls. 8.

Mais se determina que a mesma seja entregue à guarda da PSP, que decidirá o seu destino, de harmonia com o disposto no artigo 78.0 da citada Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro”.
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Apreciando

Estribando-se, entre o mais, no teor de Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 4-11-2015, alega o recorrente em síntese que:

- Em momento algum do despacho que promove a suspensão provisória do processo "II. Dos indícios colhidos e a sua subsunção jurídico-penal" -fls. 90, último parágrafo e fls. 91, é descrita qualquer intervenção de uma arma de fogo;

- Aliás, percorrendo os factos suficientemente indiciados de 1 a 11 em nenhum deles consta a menção à utilização de arma de fogo, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente.

- Não ficou minimamente demonstrado, apontado, sequer sugestionado no despacho que determinou a suspensão que o arguido sequer cogitasse destinar a arma ao cumprimento de qualquer ameaça.

Pugna, por isso, pela revogação do despacho com a restituição da arma em causa.

Contudo, não lhe assiste qualquer razão tal qual resulta, desde logo, do teor dos autos e, igualmente, das peças oferecidas pelo MP, correcta e adequadamente fundamentadas.

Assim, na resposta invoca o MP o seguinte:

“A fls.123, no dia 12 de Janeiro de 2015, proferiu-se despacho de arquivamento do presente inquérito pelo facto de o arguido ter cumprido as injunções que lhe haviam sido impostas e pelo facto de durante o prazo da suspensão provisória do processo, não ter cometido crimes da mesma natureza pelos quais viesse a ser condenado.

Nos factos que são imputados ao arguido, ressalta o facto de este se ter abeirado de dois militares da Guarda Nacional Republicana de Tomar que se deslocaram à sua casa de habitação e de lhes ter dirigido, por várias vezes, a seguinte expressão: "vocês são uns cachopos, não me metem medo, eu dou um tiro em cada um de vocês. "

Os referidos militares da Guarda Nacional Republicana de Tomar deslocaram-se a casa do arguido, na sequência de uma chamada telefónica efectuada para o Posto Territorial de Tomar, a pedir a comparência de uma patrulha daquela força policial, na sequência de ameaças, com recurso a arma de fogo, que aquele havia dirigido à sua esposa.

Nessa ocasião, conforme consta do teor de fls.8, foi apreendida ao arguido 1 (uma) arma de caça de marca "Pietro Beretta" com o número de série "U47613E", a qual se encontrava em mau estado de conservação.

Os factos praticados pelo arguido contra a sua esposa AA deram origem ao inquérito nº 992/13.0GBTMR, o qual foi incorporado nos presentes autos, a fls.32 e seguintes.

Ao proceder-se à inquirição da esposa do arguido, a fls.78 verso e 79, esta referiu que no dia 27 de Dezembro de 2013, pelas 22:00 horas, recebeu uma chamada telefónica de uma sua empregada, de nome MG, a dar-lhe conta que o arguido tinha encostada ao jogo de bilhar, existente na casa de ambos, uma espingarda caçadeira carregada, sendo que o mesmo já tinha dito, referindo-se à sua esposa "Ou ela ou eu, de hoje não passa, dou-lhe dois tiros."

A esposa do arguido referiu ainda que ao chegar a casa, disse-lhe "o que faz essa arma aí? ". tendo aquele empunhado a referida arma, a qual apontou na sua direcção, ao mesmo tempo que lhe dizia "É para te dar dois tiros sua puta."

No caso em apreço, tendo em atenção as expressões proferidas pelo arguido, entendemos que não se deve permitir que este fique na posse da arma que lhe foi apreendida, devendo a mesma ser declarada perdida a favor do Estado.

Por outro lado, o facto de o arguido ser portador de licença de uso e porte de arma também não obsta que a arma apreendida tenha sido declarada perdida a favor do Estado.

Assim decidiu o Tribunal da Relação de Coimbra, no seu douto Acórdão datado de 18 de Março de 2015, referente ao processo nº 28/14.3GBSRT-A.C1, cujo relator foi o Exmo. Senhor Juíz Desembargador Dr. José Eduardo Martins...”.

No respectivo parecer escreve a Exª PGA, entre o mais, o seguinte:

... Por outro lado, salvo melhor entendimento, não corresponde à verdade que, não ficou demonstrado que o arguido destinasse a arma para ameaçar alguém...

Mas, no caso vertente, há elementos nos autos (entre outros, o Auto de Notícia e Autos de declarações da ofendida AA e da testemunha MM) de que o arguido utilizou (ou tinha por perto) a arma para concretizar as ameaças que proferiu, embora tenha acabado por haver lugar, em qualquer caso, ao arquivamento dos autos.

Ora, tal como é expressamente referido pelo recorrente, efectivamente, decidiu-se no AC. do TRC de 04-11-2015-Pº nº 10/14.0GBGVA.C1-www.dgsi.pt que:

“São requisitos legais da declaração de perda:

- Que os objectos tenham servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico ou; que tenham sido o produto isto é, o efeito do facto ilícito típico;

- A perigosidade dos objectos.

II - A perda de instrumentos e produtos não depende, como supra se referiu, da verificação de um crime, bastando-se com a existência de um facto ilícito típico, havendo a ela lugar, mesmo que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto.

III - É pois admissível que o arquivamento de um inquérito, na sequência do decurso do prazo fixado para a suspensão provisória do processo, possa dar lugar à declaração de perdimento de objectos apreendidos, como também pode o mesmo suceder em caso de despacho de não pronúncia e mesmo, de sentença absolutória.

IV - Os factos suficientemente indiciados nos autos não incluem a utilização, pelo arguido, de qualquer uma das armas de fogo apreendidas, na ameaça que fez à ofendida ou em qualquer outra circunstância, nem existe, por outro lado, o mínimo indício de que fosse propósito do arguido vir a usar qualquer uma das referidas armas para coagir ou ofender a integridade física da ofendida.

Não se verifica, pois, o primeiro requisito do perdimento.”

Ora, não é, este o caso do autos, em que, salvo melhor entendimento, se verifica, desde logo, o primeiro requisito do perdimento.

Na verdade, o arguido não só comete factos ilícitos, na pessoa de sua esposa AA, utilizando a espingarda apreendida, como também, já na presença dos elementos da GNR, e sempre com tal arma presente, pratica os factos ilícitos contra estes, tal como acima foram referidos, e aqui damos por inteiramente reproduzidos.

Assim, entende-se de manter o despacho ora sob recurso, uma vez que ainda que, sumariamente, se fundamenta tal despacho no facto de a arma em causa ter sido “objecto do crime e oferecer perigo de utilização no cometimento de novas infracções”, remetendo-se para o ponto 4 de fls. 91, ou seja, aquele que refere que o arguido se dirigiu para os militares da GNR e disse várias vezes: “vocês são uns cachopos, não me metem medo, eu dou um tiro em cada um de vocês”.

Acresce que, salvo melhor entendimento, dos elementos dos autos, à excepção do “Livrete de manifesto de arma”, nenhuma outra prova foi produzida, designadamente, documental, que indique ser o arguido/recorrente portador de licença de uso e porte da referida arma (vide fls. 10 e 76, e 130-131).

Pelo que, se entende, também por isso, dever manter-se a decisão ora sob recurso.

Mas, mesmo que o recorrente fosse portador de licença de uso e porte de tal arma, certo é que tal não deveria, só por si, afastar a declaração de perdimento em causa:

“I. A titularidade de licença de uso e porte de arma não tem a virtualidade de, pela simples razão de existir, afastar a declaração de perdimento a favor do Estado do objecto atinente.

II. Para o efeito referido, relevante é a perigosidade, reportada ao objecto em causa e às concretas circunstâncias do caso.(…) (in Ac. TRC de 18-03-2015)

Daí que se concordando com a bem fundamentada Resposta apresentada nos autos pela Magistrada do Mº Público junto da 1ª Instância, tal como consta dos autos, e que aqui é dada por inteiramente reproduzida, entendendo-se que, a decisão ora sob recurso deve ser mantida...”

Compulsado o processo e devidamente analisados os autos e depoimentos do mesmo constantes resulta claro que as conclusões a que chegaram o MP e a Mmª Juiz se mostram devidamente fundamentadas, tendo por força que entender-se como correcto e adequado à presente situação o despacho proferido, sendo que, além do mais, o presente caso nada tem que ver com o analisado no ac. TRC de 4-11-2015, chamado à liça pelo recorrente (no qual não houve qualquer ameaça de disparo com armas de fogo ou utilização das mesmas).

Sendo patente, assim, a ausência de qualquer argumento válido e devidamente estribado susceptível de colocar em crise a decisão tomada e a respectiva fundamentação.

Não nos merece, por isso, qualquer censura o despacho recorrido, sendo improcedente o recurso.

III- Decisão
Nos termos expostos, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs.

Évora, 20/3/2018

António Condesso

Ana Luísa Teixeira Bacelar Cruz