Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
258/20.9T8STB.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: INDEMNIZAÇÃO CIVIL
EXECUÇÃO DE SENTENÇA PENAL
COMPETÊNCIA
Data do Acordão: 06/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Estando em causa execução por condenação criminal na parte cível, são da competência do tribunal criminal aquelas que sejam condenatórias líquidas e, por isso, os juízos de execução de Setúbal são incompetentes em razão da matéria para conhecer da mesma, devendo os autos ser oportunamente remetidos ao Juízo de Grândola, mais concretamente para apensação ao processo comum no qual ocorreu a condenação criminal na parte cível.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: P. 258/20.9T8STB.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP), I.P. intentou a presente acção executiva contra (…), pretendendo aquela haver deste o pagamento da quantia de € 937,85.
A referida execução baseia-se em sentença proferida em processo criminal, que correu termos no Juiz 1 de Grândola, Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, sob o nº 172/13.4T3ASL, no qual o ora executado foi condenado, em sede de pedido de indemnização cível ali deduzido, nos seguintes termos:
- "Julgo procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante IFAP e em consequência, condeno o demandado a pagar ao demandante, a quantia de € 857,99 (oitocentos e cinquenta e sete euros e noventa e nove cêntimos), acrescida de juros vencidos calculados à taxa legal, desde 17 de Dezembro de 2009, no montante de € 223,77 (duzentos e vinte e três euros e setenta e sete cêntimos) e juros vincendos, até efectivo e integral pagamento".
Tendo o requerimento executivo dado entrada perante o Tribunal que proferiu a referida sentença, foi proferido o seguinte despacho: “Remeta ao tribunal competente”.
O exequente não recorreu do despacho que antecede e, por isso, o processo foi oportunamente remetido aos Juízos de Execução de Setúbal, tendo sido distribuído ao Juiz 1.
O M.mo Juiz do referido Juízo de Execução (Juiz 1) veio então a proferir decisão, a qual julgou este tribunal materialmente incompetente para conhecer do presente processo executivo, tendo rejeitado a execução e declarado a extinção da mesma.

Inconformado com tal decisão dela apelou o exequente, tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
A. Vem o presente recurso interposto da douta Sentença proferida nos presentes autos, segundo a qual o Tribunal a quo entendeu julgar que: “(…) Por tudo o que vem de ser exposto, julgando-se este tribunal materialmente incompetente para conhecer o presente processo executivo, rejeita-se a execução e, consequentemente, declara-se a extinção da mesma.”
B. A execução em causa baseia-se em sentença proferida em processo criminal que correu termos no Juiz 1 de Grândola, Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, sob o n.º 172/13.4T3ASL, no qual o ora executado foi condenado, em sede de pedido de indemnização cível ali deduzido.
C. A Recorrente intentou ação executiva tendo apresentado o requerimento executivo perante o Tribunal que proferiu sentença em processo criminal.
D. Ocorre que este Tribunal proferiu despacho remetendo o processo ao Tribunal que considerou competente, enviando o mesmo para o Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo de Execução de Setúbal - Juiz 1.
E. Ora, ocorre que o Juízo de Execução de Setúbal entendeu que afinal o Tribunal competente é o “tribunal que proferiu a decisão”, ou seja, o Tribunal em que a presente execução foi proposta e resolveu rejeitar e extinguir a presente execução.
F. Dado que foi declarada a extinção da instância e, portanto, findo o processo, salvo melhor entendimento, não seria possível ao Recorrente requerer a remessa dos autos ao Tribunal competente para que aí fosse julgada a questão de mérito senão em sede de recurso.
G. Nos termos do art. 111.º do CPC, “Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir.”
H. Portanto, estando em causa um conflito negativo de competência, deveria o Tribunal a quo oficiosamente ter enviado o presente processo para ser solucionado pelo presidente do Tribunal de menor categoria que exerça jurisdição sobre as autoridades em conflito.
I. Pelo que se requer a revogação da presente sentença e nos termos dos arts. 109.º e 110.º do CPC ser enviado ao tribunal de menor categoria que exerça jurisdição sobre as autoridades em conflito para resolução do conflito de competência.
J. Caso assim V. Exa. não entenda, deve ser revogada a presente sentença e o processo ser remetido ao Tribunal competente, com base nos princípios da celeridade e economia processuais.
K. Assim deve o presente recurso ser considerado procedente e revogada a sentença recorrida.
L. Termos em que, sendo dado provimento ao presente recurso, deve ser revogada a sentença recorrida.
Não foram apresentadas contra-alegações de recurso.
Atenta a não complexidade da questão a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir:

Como se sabe, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635º, nº 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 4 do mesmo artigo 635º) [3] [4].
Por isso, todas as questões que tenham sido objecto de apreciação na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pelo exequente, ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação da questão de saber se, numa circunscrição territorial em que há juízo de execução, qual será o tribunal competente para a execução duma indemnização cível imposta numa sentença penal – o juízo de execução ou o tribunal/juízo criminal que condenou na respectiva indemnização cível – sendo certo que a execução em causa deverá ser remetida para o tribunal que vier a ser declarado competente.

Apreciando, de imediato, a questão suscitada pelo recorrente importa ter presente que a mesma já foi objecto de apreciação nos nossos Tribunais Superiores, desde já se adiantando que concordamos inteiramente com as razões e fundamentos expressos nos diversos arestos que analisaram tal questão.
Assim, pode ver-se o Ac. da R.L. de 12/5/2015, disponível in www.dgsi.pt, no qual foi decidido o seguinte:
- Os tribunais criminais são competentes para a execução da suas decisões condenatórias proferidas na sequência dos pedidos cíveis deduzidos em processo crime, por força do princípio da adesão contido no artigo 71.º e seguintes do Código de Processo Penal.
- Só assim não sucederá, nos casos em que na sentença se haja utilizado da faculdade prevista no art. 82.º, n.º 1, do mesmo Código, ou seja, em que tenha havido uma condenação “no que se liquidar em execução de sentença”;
- Por isso, apenas nesta última hipótese, a competência pertence aos tribunais cíveis, servindo de título executivo a respectiva sentença penal.
Em sentido idêntico ou similar ao aresto acabado de transcrever veja-se ainda a decisão da R.P. de 30/9/2015, também disponível in www.dgsi.pt., na qual é referido que as secções de competência especializada da Instância Central são competentes para a execução das suas próprias decisões condenatórias em quantia líquida, proferidas na sequência de pedido civil deduzido em processo crime.
Ainda no mesmo sentido pode ver-se o Ac. da R.P. de 30/1/2019, também disponível in www.dgsi.pt., onde é afirmado o seguinte:
- Estando em causa condenações criminais na parte cível, cujo processo de execução de decisão criminal está previsto nos artigos 467º e seguintes do CPP, são da competência do juízo de execução todas aquelas que devam correr perante um tribunal civil – as ilíquidas por força do artigo 82º, n.º 1, do CPP – mas são da competência do tribunal criminal aquelas que sejam condenatórias líquidas.
Também o Ac. da R.L de 8/5/2018, disponível in www.dgsi.pt se pronunciou em sentido semelhante ás decisões supra transcritas.
Finalmente, veja-se ainda o Ac. da R.C de 18/2/2014, disponível também in www.dgsi.pt, no qual, a dado passo, se escreveu o seguinte:
- (…) Num caso como os dos autos/recurso – em que o pedido cível, deduzido em processo penal, deu lugar a uma condenação/indemnização em quantia certa – vale a “exclusão” (constante do art. 102.ºA/2 da LOFTJ, na redacção da Lei n.º 42/2005, e do art. 126.º/2 da NLOFTJ, na redacção da Lei 52/2008, de 28-08), ou seja, a execução corre perante o tribunal/juízo criminal que proferiu tal condenação (estando assim excluída a competência regra dos juízos de execução); diversamente, a execução correrá perante o juízo cível caso o pedido cível, deduzido em processo penal, tenha dado lugar a uma condenação numa indemnização no que se vier a “liquidar em execução de sentença”.
Daí que, antecipando a solução, tenhamos afirmado que o tribunal/juízo criminal é via de regra o competente para a execução das suas próprias condenações decorrentes de pedido de indemnização cível, apenas devendo decorrer perante o tribunal cível a execução das condenações do tribunal criminal decorrentes de pedido de indemnização cível quando a condenação for em indemnização a liquidar em execução de sentença. Em idêntico sentido, ainda, Rui Pinto, Manual da Execução e Despejo, pág. 265.
Rematando, integra a competência do juízo de instância criminal de Ovar a execução da condenação indemnizatória por si proferida e aqui executada; pelo que bem andou a decisão recorrida ao dizer e declarar que o juízo de execução de Ovar é incompetente para conhecer e decidir a presente execução fundada em sentença penal que condenou o arguido/executado em montante certo.
O que não significa que concordemos com a totalidade do decidido.
A nosso ver – e trata-se de tema por certo também controverso – não estaremos, como também decorre da decisão recorrida, perante uma incompetência sujeita ao regime da incompetência absoluta e que implique a “absolvição da instância ou o indeferimento liminar” (cfr. 99.º/1 do CPC).
Como refere Rui Pinto, “podem existir em dada comarca juízos de execução. São tribunais cuja competência é determinada pelo tipo de processo: execuções, seja qual for o valor e a matéria, em regra. Por isso, e bem, a LOFTJ/99 prevê-os no art. 96.º/1/g) como tribunais de competência específica, enquanto a LOFTJ/2008, já menos bem, prevê-os no art. 74.º/2/h) como juízos de competência especializada. (….). Se esta arrumação implica ou não com o regime de incompetência, ou seja, se gera incompetência absoluta ou incompetência relativa, é algo que veremos mais adiante” – cfr. obra citada, págs. 264 e 265.
E mais adiante refere o mesmo autor que “a violação das regras de competência fundadas no valor da causa, na forma de processo aplicável, na divisão judicial do território ou decorrentes de um pacto de competência executiva gera incompetência relativa. (...)” Acrescentando logo a seguir que “a preterição da competência de um juízo de execução na LOFTJ/99 constitui incompetência relativa, por se tratar de tribunal de competência específica, e, portanto, em razão da forma de processo. Na LOFTJ nova o legislador qualifica esses tribunais como de competência especializada, ou seja, em razão da matéria, mas nem por isso deixará de seguir-se o regime da incompetência relativa (…)” – cfr. obra citada, pág. 277.
É este também o nosso ponto de vista.
As várias e profundas alterações legislativas com repercussão na distribuição horizontal da competência dos tribunais judiciais devem ser acompanhadas da devida adaptação dos contornos conceituais; e, na ausência de tal adaptação por iniciativa do legislador, compete ao intérprete fazê-la.
Situações como a dos autos, em que a acção executiva deu entrada em 27/02/2013 e decorreu, sem perturbação, com citações e penhoras até 02/09/2013, ocasião em que foi declarada a incompetência do tribunal, não podem/devem ter como desfecho o indeferimento do requerimento executivo (ex vi art. 99.º/1 do NCPC).
Como já se referiu, a NLOFTJ (ao caso aplicável) qualifica “tudo” como tribunais de competência especializada, ou seja, em razão da matéria, porém, o regime a seguir, em casos como o presente, detectada e declarada a incompetência, deve ser o da incompetência relativa, ou seja, julgada procedente a excepção, o processo deve ser remetido para o tribunal competente (cfr. 105.º/3 do CPC).
É este o desfecho final.
Embora por razões diversas das invocadas pelo exequente/apelante, a apelação procede na parte em que o apelante reclama algum aproveitamento do que foi praticado.
E, por isso, veio a concluir-se no aresto em causa que:
- (…) confirma-se a declaração de incompetência do juízo de execução de Ovar e revoga-se a parte restante da decisão que se substitui por decisão em que se declara ser competente para a presente execução o juízo de instância criminal de Ovar (mais concretamente, o processo comum 10/12.5GCOVR), para onde os autos devem ser remetidos após o trânsito deste acórdão.
Voltando agora ao caso em apreço constatamos que o recorrente se insurge com a decisão sob censura, fundamentalmente na parte em que rejeita a presente execução e declara a extinção da mesma, mas não tanto com a declaração de incompetência material do Tribunal recorrido, pugnando, isso sim, pela remessa dos autos ao Tribunal competente, com base nos princípios da celeridade e economia processuais (cfr. conclusão J).
Deste modo, pelas razões e fundamentos expressos no aresto da R.C. de 18/2/2014, que acima viemos a transcrever – com os quais, repete-se, concordamos por inteiro – entendemos que o tribunal recorrido é incompetente para apreciação da presente execução e, por via disso, o processo deverá ser remetido ao Tribunal competente, com base nos princípios da celeridade e economia processuais.
Assim sendo, confirma-se a decisão recorrida, na parte em que declarou a incompetência material do juízo de execução de Setúbal, mas revoga-se a parte restante da decisão, a qual se substitui por decisão em que se declara ser competente para a presente execução o Juízo de Grândola – mais concretamente, o processo comum nº 172/13.4T3ASL – para onde os presentes autos deverão ser remetidos, após o trânsito em julgado deste acórdão.

***

Por fim, atento o estipulado no nº 7 do art. 663º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
(…)

Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o presente recurso de apelação interposto pelo exequente e, em consequência, revoga-se parcialmente a decisão recorrida, nos exactos e precisos termos acima explanados.
Custas pela parte vencida a final (na proporção do respectivo decaimento).
04 de Junho de 2020
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho
Mário Canelas Brás

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[1] Cfr., neste sentido, Alberto dos Reis in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e Rodrigues Bastos (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).