Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
293/20.7GCSTB-A.E1
Relator: MARIA LEONOR ESTEVES
Descritores: HOMICÍDIO A PEDIDO DA VÍTIMA
CONSENTIMENTO
Data do Acordão: 09/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Estando em causa um crime de homicídio a pedido da vítima, p. e p. no artº 134º, nº 1, do C.P., para efeitos do nº 3 do artº 38º do C.P. é indiferente a idade da vítima, sendo certo que a vida - excepção feita a ataques do próprio titular e alguns ataques negligentes – não é livremente disponível (nº 1 do referido artº 38º), como resulta nomeadamente do facto de a lei punir o homicídio a pedido.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório
No âmbito do inquérito nº 293/20.7GCSTB que corre termos no Juízo de Instrução Criminal de Setúbal – Juiz 2 do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, foram apresentados para primeiro interrogatório judicial os arguidos (…), devidamente identificados nos autos, tendo no fim do mesmo sido proferido despacho que, considerando apenas estar fortemente indiciada a prática pelo segundo de um crime de homicídio a pedido da vítima, p. e p. pelo art. 134º do C. Penal e, por ambos e em co-autoria, um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo art. 254º nº 1 al a) do C. Penal, e verificarem-se os perigos de perturbação do inquérito e tranquilidade e ordem públicas, o primeiro de forma mitigada, e nalgum medida também o perigo de fuga, determinou que os referidos arguidos aguardassem os ulteriores termos do processo sujeitos à obrigação de apresentação periódica, com frequência diária, podendo sair da instituição em que se encontram colocados, se acompanhados, para o efeito.
Inconformado com esse despacho, dele interpôs recurso o MºPº, pretendendo que seja revogado e substituído por decisão que considere indiciada a prática pelos arguidos, para além do referido crime de profanação de cadáver ( relativamente ao qual consignou não ter qualquer reparo a fazer ), também o crime de homicídio qualificado p. e p. pelos arts. 131º, 132º nºs 1 e 2 als. e) e j) do C. Penal, o arguido (...) como autor material e o arguido (...) como cúmplice, e, porque indiciados os perigos de continuação da actividade criminosa quanto ao primeiro e de perturbação grave da tranquilidade e ordem públicas quanto a ambos, lhes aplique como medida de coacção a prisão preventiva, para o que apresentou as seguintes conclusões:

a) (...) deu entrada no (...) no dia 2 de Outubro de 2020, data em que os ali se encontravam institucionalizados, apresentando-se desde o início num estado emocional fragilizado e com sinais evidentes de depressão;
b) (...) dizia repetidamente a todos os jovens com quem falava, sem que tivesse relacionamento mais próximo ou estreito com nenhum deles, que queria morrer, que não se suicidava por não ter coragem e pedindo para que o matassem;
c) À excepção dos arguidos, nenhum dos jovens deu relevância ao discurso e pedidos de (...) por ser visível e compreensível para todos que o mesmo não se encontra emocional e psicologicamente, bem;
d) O arguido (...) procurou (...) dizendo-lhe que (...) não estava bem, tendo-lhe a mesma respondido que não deveria dar importância ao discurso deste nem fazer nada do que ele pedisse;
e) O arguido (...) prestou declarações nas quais qualificou o comportamento de (...) como triste e depressivo;
f) À data dos factos, (...) tinha apenas 15 anos de idade;
g) O tipo de crime previsto no Artº 134º do Código Penal – homicídio a pedido da vítima – exige que o agente seja determinado pelo pedido sério, instante e expresso da vítima;
h) O estado anímico de (...), caracterizado por tristeza profunda e depressivo, conhecido por ambos os arguidos, retira à sua conduta a seriedade do pedido que formulou para que o matassem;
i) Para que existe um pedido sério, a pessoa que o faz deve actuar com vontade livre e esclarecida, o que não acontece quando se encontra dominada por estados como o descrito, ou seja, de tristeza profunda e depressões;
j) O pedido formulado por (...) não pode também ser considerado sério, por não ter o mesmo capacidade para o fazer com fundamento numa vontade lúcida e esclarecida, em função da sua idade;
k) O artº 134º nada refere quanto à capacidade da vítima para formular o pedido, devendo-se por isso lançar mão do disposto no Artº 38º, nº 3 de onde resulta que o mesmo só poderá ser validamente feito por maiores de 16 anos;
l) O arguido (...) acompanhou sempre o arguido (...) até terem efectivamente provocado a morte de (...), interagiu com a vítima instando-a a procurá-los se mantivesse o desejo de morrer e procurou o arguido (...) no dia em que concretizaram o crime, com a única intenção de o chamar para executarem o plano que haviam delineado;
m) O facto de não ter praticado nenhum dos actos que conduziu directamente à morte da vítima não o transforma num simples espectador, totalmente alheio aos factos ou à formulação da vontade de (...) no sentido da sua prática;
n) Ainda que assim fosse, a sua passividade sempre representaria uma omissão relevante que permitiu a (...) a prática do homicídio de (...);
o) A presença de (...) e o acompanhamento permanente de (...) em todos os actos que viriam a culminar na morte de (...), consiste no apoio moral para que o autor do crime o praticasse de facto, pelo que o mesmo é cúmplice do crime;
p) O arguido (...) matou (...) movido apenas pelo prazer de provocar a morte de outra pessoa e pela sensação de poder que o controlo sobre a vida de terceiros lhe proporciona;
q) Assim, os factos fortemente indiciados consistem na prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos Artºs 131º, 132º, nºs 1 e 2, alíneas e) e j) do Código Penal;
r) O arguido (...) praticou estes factos no dia 15 de Outubro de 2020, sendo que no Verão de 2020, tinha já atado as patas de uma cadela, animal de companhia que vivia no (...), e preparava-se para a atirar a uma piscina e matá-la por afogamento, o que só não fez por ter sido surpreendido;
s) Resulta dos depoimentos prestados que o arguido (...) foi diagnosticado como psicopata;
t) A conjugação destes factos representa o perigo real de continuação da actividade criminosa;
u) Ambos os arguidos têm um histórico de saídas não autorizadas das instalações da instituição onde se encontravam a residir, o que representa um risco real de que se ausentem para parte incerta;
v) A personalidade e ascendente de ambos sobre os demais jovens, testemunhas nos autos, são fundamento para o concreto perigo de perturbação do inquérito, no que respeita à aquisição e conservação da prova;
w) A natureza e mediatização dos factos em análise determinam a existência de perigo de perturbação grave da tranquilidade e ordem públicas;
x) Apenas a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva permitirá acautelar os mencionados perigos.

O recurso foi admitido.
Só o arguido (...) respondeu, pugnando pela manutenção do despacho recorrido e concluindo como segue:

A) O arguido (...) não actuou com qualquer outra motivação que não a de ajudar a vítima, naquilo que foi o seu entendimento dos factos naquelas circunstâncias concretas;
B) O arguido (...) não actuou como co-autor, porque não só não praticou nenhum facto do qual tivesse resultado a morte da vítima como também, porque não tinha o domínio do facto;
C) Independentemente daquela que fosse a atitude do arguido (...), o arguido (...) teria praticado os factos;
D) Não estava na disponibilidade do arguido (...) impedir a prática do crime através da simples recusa em participar na sua execução;
E) Incorre em erro o Ministério Público ao concluir quanto à motivação do arguido (...), dado que este não agiu de forma alguma movido por qualquer prazer pessoal, não retirou qualquer prazer dos actos que efectivamente praticou nem teve qualquer experiência de tirar a vida a outra pessoa;
F) Resulta inequívoco dos factos que a vítima dizia a todos com quem falava que queria morrer, que não se suicidava apenas por falta de coragem, que pediu a diversas pessoas para o matarem e que chegou mesmo a descrever também a várias pessoas a forma como o deveriam matar;
G) Para além de ter dirigido o pedido para que o matassem directamente aos ora arguidos, a vítima dirigiu igual pedido a vários outros jovens, por diversas vezes, tendo dito que seria por enforcamento e descrito o modo como seria feito: passando uma corda num ramo de uma árvore que depois seria puxada pelos colegas, quando estivesse presa no seu pescoço;
H) O que as testemunhas relataram foram pedidos efectuados pela vítima e não meros desabafos;
I) Desabafos quanto à situação pessoal da vítima, quanto à sua vida e perspectivas, mas acompanhados de pedidos expressos e exactos para que o matassem, por não ter coragem para o fazer;
J) Foi isso mesmo que o arguido (...) confidenciou a duas testemunhas, concretamente a (…) e que declarou, quer no interrogatório judicial, quer no interrogatório na Polícia Judiciária;
K) O facto da vítima ter pedido a todos com quem falava para que o matassem só faz concluir pela existência de um pedido sério, instante e expresso e não o contrário;
L) Se esse pedido não fosse sério, instante e expresso então certamente não seria formulado pelo (…) a todos os jovens com quem falava e incessantemente, ao longo de todo o tempo em que esteve na instituição em causa;
M) O facto de os outros jovens não terem acedido aos pedidos da vítima não significa que não os tenham entendido como sérios, mas sim que não se dispuseram a fazê-lo, o que é algo completamente distinto;
N) Tanto foram os pedidos levados a sérios, que vários jovens, naturalmente preocupados, os relataram a vários adultos da instituição, como foi o caso da testemunha (…);
O) No dia 13 de Outubro de 2020, o arguido (...) aplicou à vítima um "mata-leão" até o deixar inconsciente, após esta os ter abordado e repetido que estava farto e que queria morrer, na sequência do que o arguido (...) lhe perguntou se queria experimentar a sensação de perder os sentidos, tendo a resposta sido positiva, e que após a vítima ter recuperado a consciência, os ora arguidos perguntaram-lhe se tinha a certeza se era aquilo que queria, tendo o mesmo respondido afirmativamente;
P) No dia 14 de Outubro de 2020, cerca das 21h50m os ora arguidos e a vítima saíram das instalações do (...) com o intuito de concretizar o pedido do (...), sendo que este arrependeu-se, dizendo ter medo por estar muito escuro, e que ia pensar melhor durante a noite, o que foi aceite pelos arguidos, tendo inclusivé o arguido (...) dito que fazia bem em pensar e que se decidisse morrer deveria despedir-se das pessoas importantes para a vítima;
Q) No dia 15 de Outubro de 2020, por volta das 09h00m, foi o (...) quem procurou o arguido (...), dizendo-lhe que tinha decidido avançar com o planeado, ou seja, morrer;
R) Existiu um pedido expresso por parte da vítima, dirigido aos ora arguidos para que o matassem, pedido esse que foi reiterado, tendo existido um momento em que a vítima se arrependeu, o que foi aceite pelos ora arguidos, mas, após ponderação e já no dia seguinte, a vítima mostrou-se decidida e reiterou novamente o pedido junto dos arguidos, o que atesta também da seriedade do referido pedido;
S) O estado de espírito e sentimentos vivenciados e expressos a todos pelo (...), atesta da seriedade do pedido e fundamenta-o, tendo sido com base nesses sentimentos - e na insistência reiterada - que o arguido (...) entendeu o pedido formulado pela vítima como sério e alicerçado em motivações pessoais, conforme esta lhe transmitiu;
T) Relatou o arguido (...), em sede de interrogatório na fase de inquérito na Polícia Judiciária que o (...) chorava muito e reclamava muito da vida que tinha, que os pais não queriam saber dele, que não queria estar fechado, queria estar junto da namorada, tinha sentimentos de abandono por parte da família;
U) Estes sentimentos de abandono e ressentimento e estado depressivo e triste da vítima foram transmitidos ao arguido (...) pela vítima mais de uma vez, sendo a última exactamente momentos antes da sua morte, quando inquirido pelo arguido (...) sobre se já tinha pensado o que aconteceria se ninguém encontrasse o seu corpo, que ficaria a apodrecer, tendo a vítima respondido que não se importava, se isso acontecesse é porque ninguém queria saber de si;
V) As motivações para o pedido efectuado pela vítima para que os arguidos o matassem eram conhecidas do arguido (...), tal como o estado de espírito e sentimentos da vítima e foi isso, juntamente com a insistência e reiteração do pedido que convenceu o arguido (...) de que esse mesmo pedido era sério e foi assim que este o entendeu;
W) Não resulta em qualquer momento dos autos que o arguido (...) tivesse qualquer intenção ou motivação para causar ou ver acontecer a morte do (...), que não fosse o pedido realizado por este;
X) Ao afirmar que "resulta dos elementos de prova recolhidos que os arguidos não actuaram determinados pelo pedido da vítima" e que "... a sua motivação é o prazer que retiram da disponibilidade da vida de outro e o poder que lhes transmite a capacidade de dispor dessa vida", o Ministério Público está somente a formular conclusões genéricas e sem qualquer base factual indiciária, pelo menos no que ao arguido (...) diz respeito;
Y) O próprio Ministério Público reconhece que o arguido (...) “(...) não só não praticou nenhum facto do qual tivesse resultado a morte da vítima como também, porque não tinha o domínio do facto;
Z) Reconhece também o Ministério Público que "independentemente daquela que fosse a atitude do arguido (...), o arguido (...) teria praticado os factos. Reconhece ainda o Ministério Público que "não estava na disponibilidade do arguido (...) impedir a prática do crime através da simples recusa em participar na sua execução”;
AA) Era impossível ao arguido (...), não praticando nenhum facto do qual resultasse a morte da vítima, nem tendo o domínio de facto, ter como motivação o prazer retirado da disponibilidade da vida de outro e o poder transmitido pela capacidade de dispor dessa vida;
BB) A testemunha (…) afirmou que, na manhã do desaparecimento da vítima, viu a mesma a deslocar-se com os arguidos atrás de si, regressando estes depois, sem a companhia daquela, recordando-se que o ora arguido (...) tinha uns calções vestidos e apresentava manchas de xixi nas pernas, dizendo que se tinha mijado;
CC) O facto do arguido (...) se ter urinado durante os factos que conduziram à morte do (...), afasta completamente qualquer conclusão ou mesmo suspeita de que este arguido possa ter agido com motivação do prazer retirado da disponibilidade da vida de (...) e/ou o poder transmitido pela capacidade de dispor dessa vida;
DD) Ao longo dos 13 dias em que os arguidos conviveram com a vítima, os pedidos realizados por esta foram sucessivos e reiterados, desde o momento em que chegou à instituição, sendo conhecidos de todos;
EE) A concretização do pedido foi falada entre os arguidos e a vítima, nada existindo nos autos que permita infirmar que a descrição anterior feita pelo (...) não tenha sido posteriormente alterada;
FF) Sendo certo que o n.º 3 do art.º 38º do C.P. Penal estipula que o consentimento só é eficaz se for prestado por maior de 16 anos, também é certo que o art.º 134º do mesmo diploma legal, não estipula qualquer limite de idade para o pedido;
GG) A maioria da doutrina tem entendido que se deve aqui considerar quanto ao pedido do art.º 134º do C.P., os 16 anos de idade previstos no referido artigo relativo ao consentimento;
HH) Também entende a doutrina que em casos de fronteira há que considerar a maturidade e lucidez da vítima;
II) Mais do que a questão dos 16 anos já feitos ou quase a fazer, por parte da vítima, há que atender a outros factores para aferir da seriedade do pedido, para efeitos do art.º 134º do C.P., mormente a maturidade, estado de discernimento e ponderação;
JJ) Além há igualmente que ponderar também a idade dos ora arguidos, sendo que o arguido (...), à data dos factos, tinha concretamente 16 anos e 4 meses;
KK) Não se pode de modo algum querer relevar a importância de faltarem 5 meses para a vítima atingir os 16 anos de idade e, consequente e automaticamente retirar com isso seriedade e aceitação ao pedido e, simultaneamente, desvalorizar o facto de o arguido (...) ter apenas mais 4 meses que os 16 anos, exigindo-se-lhe uma maturidade e análise de todas as circunstâncias em causa, como sejam a valoração e interpretação dos sentimentos e estado psicológico da vítima e, necessariamente, do pedido por esta formulado;
LL) Tal como nem todos os jovens presentes na instituição e a quem o (...) dirigiu os pedidos para que o matassem atenderam os mesmos, nem todos os jovens em situações semelhantes ou análogas às da aqui vítima efectuam um pedido semelhante;
MM) A maturidade e discernimento dos jovens não é igual em todos, apenas por força da sua idade, ainda que semelhante, pelo que o factor idade não pode ser o único condicionante a considerar para efeitos do pedido previsto art.º 134º do C.P. (ex vi do art.º 38º), como também não basta aferir da idade do arguido na consideração daquela que foi a sua interpretação daquele mesmo pedido;
NN) O discernimento e valoração das circunstâncias varia de pessoa para pessoa, de jovem para jovem e não ter isso em consideração, não aferindo da interpretação de cada um, em função da sua própria situação psicológica, da sua mentalidade e maturidade, não é algo com que a justiça possa conviver;
OO) Da factualidade imputada aos arguidos resulta estarmos perante um crime de homicídio a pedido, p. e p. pelo art.º 134º do C.P., sendo conforme e adequada a decisão ora recorrida, a qual é de manter quanto a esta matéria;
PP) Não se retira de nada nos autos que as acções do arguido (...) tenham representado um elemento preponderante para a execução dos factos. O que se retira é que, em momento algum o arguido (...) teve qualquer influência na morte do (...);
QQ) Na actuação do arguido (...) não existiu qualquer conselho, fornecimento de informações relevantes, instigação ou qualquer atitude possível de subsumir-se no conceito de auxilio moral e que implicasse qualquer favorecimento ou intensificação da decisão e/ou actuação do arguido (...);
RR) Esteve bem a Exma. Sra Juiz de Instrução Criminal ao concluir que a actuação do arguido (...) resumiu-se a acompanhar a vítima e o arguido (...) ao local dos factos, acedendo ao pedido do (...) e presenciando a atuação do arguido (...), pelo que a decisão recorrida se mostra conforme e adequada, sendo de manter a mesma, também quanto a esta matéria;
SS) A participação do arguido (...) não o indicia como autor, co-autor ou cúmplice de qualquer crime de homicídio, mas tão somente como co-autor de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo art.º 254º, n.º 1, al. a):A
TT) Ainda que assim não se entenda, o que somente se admite por mero exercício e dever de patrocínio, sempre se dirá que a matéria factual constante dos autos indiciará - nesse caso - a prática de um crime de homicídio a pedido, p. e p. pelo art.º 134º do C.P., e não um crime de homicídio qualificado;
UU) O contexto de alta especificidade mencionado na douta decisão recorrida, é claro e evidente, resultando efectivamente de factos irrepetíveis por si só, como sucede na generalidade dos homicídios, mas também da personalidade e crescimento interior do próprio arguido (...), o qual declarou em sede de interrogatório de inquérito na polícia judiciária estar bastante arrependido de tudo o que aconteceu e que se fosse hoje diria ao (...) para procurar um psiquiatra;
VV) No que respeita ao arguido (...) em concreto, não se afigura existir perigo de continuação da atividade criminosa, uma vez que não teve nem a iniciativa, nem a execução dos factos, excepto de alguns respeitantes ao crime de profanação de cadáver, que aliás assumiu plenamente;
WW) Não existe presentemente qualquer perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, nem perigo de fuga e de perturbação do inquérito;
XX) O arguido (...) já não se encontra no "(...)" e nem sequer na região de Setúbal, sendo certo que até à data não encetou qualquer fuga ou sequer tentativa de fuga, seja durante o período em que ainda permaneceu no referido Centro seja no tempo que leva na instituição onde presentemente se encontra, tendo cumprido e continuando a cumprir rigorosamente a medida de coacção de apresentações diárias a que está obrigado; A medida de coacção aplicada ao arguido (...) na decisão ora recorrida, de apresentações periódicas diárias, nos termos do art.º 198º do Código de Processo Penal foi correta e justamente decidida, acautelando a situação concreta verificada, sendo a necessária, adequada e proporcional, em respeito pelas previsões legais, não sendo possível aplicar nenhuma outra, conforme resulta da aplicação dos artigos 191º a 193º, 204º e 198º, todos do Código de Processo Penal;
YY) Sendo de manter, quanto às medidas de coacção, a decisão ora recorrida.

Nesta Relação, o Exmº Sr. Procurador-geral Adjunto emitiu extenso parecer, que adiante veremos em mais detalhe, no qual se pronunciou no sentido da manutenção do despacho recorrido, com a alteração respeitante à participação do arguido (...) no crime de homicídio, no qual, diferentemente do que ali foi entendido, considera ter agido como cúmplice.
Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., não tendo sido apresentada resposta.
Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre decidir.


2. Fundamentação
É do seguinte teor o despacho recorrido, proferido após os interrogatórios dos arguidos:

O Tribunal valida a detenção dos arguidos, porque realizada mediante o cumprimento de mandados fora de flagrante delitos emitidos por autoridade policial, tendo sido cumprido o prazo a que alude o art.º 141º do C.P.P. tudo ao abrigo art.ºs 254º, n.º 1, al. a), 257º, n.º 2, 258º a 260º, todos do CPP.

O Tribunal considera fortemente indiciados os factos que ora se descriminam:
Os arguidos, em Outubro de 2020, encontravam-se institucionalizados no (...), sito na (…), onde residiam.
No dia 2 de Outubro do mesmo ano, foi também colocado no referido centro (...), nascido em (…) e à data com 15 anos de idade.
(...) foi ali colocado contra a sua vontade e por impulso da mãe, mostrando-se sempre inconformado com a situação e triste por ali ter sido deixado. Estes sentimentos motivaram várias fugas durante o período em que ali se encontrou, tendo sido sempre encontrado e reconduzido à instituição.
Várias vezes (...) referiu aos demais jovens ali residentes que estava “farto”, que queria morrer e que não se suicidava por falta de coragem. (...) chegou a especificar a forma como queria morrer, afirmando que deveria ser enforcado e descrevendo o modo como deveria ser feito. Os vários jovens ali residentes tinham conhecimento do estado de espírito de (...), mas nenhum encarou o que dizia com foros de seriedade e alguns deles aconselhavam-no a deixar de lado aquele tipo de pensamentos.
Entre os jovens que ouviram os desabafos de (...) estavam os arguidos que, ao contrário dos demais, entenderam tais desabafos como um pedido para o matarem.
Assim, no dia 13 de Outubro de 2020, os arguidos encontravam-se nas traseiras de uma das camaratas que faz parte das instalações do centro, quando (...) se aproximou e repetiu que estava farto e que queria morrer.
(...) perguntou a (...) se queria experimentar a sensação de perder os sentidos e, tendo a resposta sido positiva, efectuou na sua pessoa um chamado “mata-leão”, ou seja, colocou-se por trás de (...), passou-lhe um braço pelo pescoço e apertou até que o mesmo perdeu efectivamente os sentidos.
Após, e porque (...) ficou inanimado à vista de todos, os arguidos carregaram-no através de uma janela e deitaram-no numa cama, onde o mesmo acabou por recuperar a consciência.
Encontrando-se (...) consciente, os arguidos perguntaram-lhe se tinha a certeza se era aquilo que queria, tendo o mesmo respondido afirmativamente.
No dia 14 de Outubro, (...) procurou novamente o arguido (...) e reafirmou a sua vontade de morrer. Nesse dia, os dois arguidos planearam com (...) a forma como o haveriam de matar levando todos a crer que se tinha suicidado. Combinaram então que o haveriam de enforcar utilizando uma corda que lhe atariam ao pescoço e pendurariam depois no ramo de uma árvore, no exterior, mas nas proximidades das instalações do Centro onde residiam.
Na execução do plano que tinham delineado, cerca das 21h50m do dia 14 de Outubro os arguidos saíram das instalações do (...), acompanhados por (...), todos caminhando pelo seu próprio e em direcção à zona de mato. O arguido (...) levava consigo um pedaço de corda que retirou do Centro e que existe com o propósito de ser utilizada nos trabalhos hortícolas que ali são executados. No entanto, sendo noite, encontrava-se muito escuro e (...) arrependeu-se, dizendo aos arguidos que estava muito escuro, que tinha medo e que ia pensar melhor durante a noite, tendo todos regressado à instituição.
No dia 15 de Outubro, cerca das 9h, depois de todos terem tomado o pequeno almoço, (...) procurou o arguido (...) e disse-lhe ter a certeza que queria executar o plano que tinham elaborado.
Nessa sequência, o arguido (...) foi em busca do arguido (...) que se encontrava na companhia de (…) (também ali residentes) e chamou-o. O arguido (...) foi buscar a corda que tinha guardado no dia anterior, juntou-se ao arguido (...) e a (...) e todos saíram das instalações através de um buraco que existia na rede, em direcção a uma zona de mato que se situa nas proximidades.
Após caminharem durante alguns minutos, alcançaram um sobreiro que acharam adequado para o que queriam, o arguido (...) passou a corda, à qual tinha feito uma laçada para o pescoço de (...), por um dos ramos da árvore, deixando a referida laçada suspensa.
Em seguida, o arguido (...) executou novo mata-leão a (...), tal como em cima descrito, até que o mesmo perdeu os sentidos. depois de (...) estar inconsciente e pretendendo garantir que se encontrava mesmo morto, o arguido (...) continuou a fazer força, apertando-lhe o pescoço.
Após, o arguido (...) determinou ao arguido (...) que o ajudasse a pendurar o cadáver, para dessa forma simular que (...) se havia suicidado. O arguido (...) obedeceu, agarrou o cadáver pela cintura e levantou-o para que o arguido (...) lhe passasse a corda pelo pescoço, o que este fez.
Após, deixaram o cadáver pendurado na árvore e regressaram às instalações do Centro, onde permaneceram e cumpriram todas as rotinas, como se nada se tivesse passado.
Durante o dia 15 de Outubro, os funcionários do Centro notaram a falta de (...) e, quando confrontados com essa ausência, os arguidos disseram nada saber.
No dia 16 de Outubro os arguidos regressaram ao local onde deixaram o corpo, para se certificarem que tudo estava como tinham deixado, mas encontraram o corpo mais baixo tocando com os pés no chão.
Por pensarem que, encontrando-se o corpo naquela posição ninguém acreditaria que a morte se devia a suicídio, decidiram esconde-lo. Assim, obedecendo às instruções do arguido (...), o arguido (...) subiu à arvore e, com um isqueiro, queimou a corda fazendo o corpo cair e em seguida retirou do ramo da árvore a corda que a ele se encontrava amarrada.
Uma vez que não tinham consigo meios para esconder o cadáver, regressaram ao Centro deixando o corpo deitado no chão, escondido entre ervas altas. No dia seguinte, após o almoço, regressaram ao local, tendo-se o arguido (...) munido de lençóis que retirou do Centro aproveitando ser dia de mudar a roupa de cama. No local, o arguido (...) recusou-se a mexer no cadáver por se sentir repugnado pela presença de insectos nos olhos e na boca bem como pelo cheiro exalado, tendo o arguido (...) empurrado o corpo para cima do lençol, rebolando-o e dizendo-lhe “não te preocupes, eu faço e não precisas de tocar nele”.
Depois de o cadáver se encontrar em cima do lençol, ambos os arguidos ataram as pontas e arrastaram-no para junto de um poço. Uma vez que a boca do poço se encontrava tapada por silvas, muniram-se de um pau com o qual afastaram a vegetação na medida do necessário e, em seguida, empurraram o cadáver de (...) para dentro.
Após, regressaram ao Centro e reintegraram-se nas respectivas rotinas, mas, durante a semana seguinte deslocaram-se várias vezes ao poço, para verificar se tudo estava como tinham deixado e, verificando que o cheiro que provinha do mesmo era cada vez mais forte, atiraram paus, pedras e areia para o respectivo interior a fim de tapar o corpo e assim atenuar o odor.
Os arguidos praticaram os factos descritos, aproveitando o estado de espírito de (...).
No dia 23 de Fevereiro de 2021, cerca das 19h40m, o arguido (...), desagradado com ordens que lhe foram dadas por (…), na qualidade de psicóloga em exercício de funções no (...), dirigiu-lhe a seguinte expressão: “olhe, você saia mas é daqui, se não atiro-a pela janela e digo que você pediu para eu a empurrar”.
Cerca de 20 minutos mais tarde, no interior do mencionado Centro, o arguido (...) cruzou-se com (…) e disse-lhe “sabe que eu hoje ameacei a Dr.ª (…) que lhe dava duas facadas nas costas?” referindo-se à Directora do Centro, (…).
No dia 27 de Fevereiro de 2021, o arguido (...) foi encontrado no interior do (...) a agredir um cão que ali habita, enquanto animal de companhia.
em data não concretamente apurada, mas no Verão de 2020, o arguido (...) foi surpreendido a atar as patas de uma cadela que também habita nas instalações, tendo as patas da frente amarradas e preparando-se para atar as de trás. Confrontado com o que estava a fazer, afirmou que ia afogar a cadela na piscina.
Também nesta ocasião utilizou a corda existente na instituição para a execução de trabalhos na horta.
Ao actuar do modo descrito, quis o arguido (...) tirar a vida a (...), o que fez.
Ao acompanhar o arguido (...), e actuar do modo descrito, quis o arguido (...) auxiliar o primeiro na prática de todos os actos necessários a tirar a vida a (...), o que fez.
Ao actuaram do modo descrito quiseram ambos os arguidos, conjuntamente, esconder o cadáver de (...), o que fizeram.
Sabiam ambos os arguidos que a sua conduta é proibida por lei e, ainda assim, actuaram do modo descrito.

Os factos ora descritos baseiam-se nos meios de prova que abaixo se discriminam: a) autos de diligência de fls. 107 a 111, 289 e 354 a 364;
b) relatórios de exame pericial de fls. 112 a 125, 460, 500 e 578.; c) auto de apreensão de fls. 186;
d) fotografias de fls. 187 a 195;
e) autos de inquirição de fls. 196 e ss., 201 e ss., 445 e ss., 452 e ss., 456 e ss., 481 e ss., 488 e ss., 505 e ss., 518 e ss., 524 e ss., 527 e ss., 529 e ss., 531 e ss., 542 e ss., 546 e ss. e 549 e ss.; e
f) reportagem fotográfica de fls. 427 a 432.
g) CRC´s que serão juntos no presente momento, embora constando do histórico, constando como primários.
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O arguido (...) não prestou declarações, tendo as prestado o arguido (...), admitindo não que ocultaram ambos o cadáver de (...), como a pedido do próprio, o mataram, para o efeito tendo o arguido (...) preparado a respetiva corda, onde o penduraram, após também o mesmo arguido ter aplicado a (...) um “mata-leão”, que determinou a sua perda de consciência, desconhecendo se tal terá implicado ou não a sua morte antes de ter sido pendurado. Afirma que a sua única atuação, para além das diligencias relativas à ocultação do cadáver, consistiu em acompanhar (...) e o arguido (...) ao local onde o crime ocorreu e, aquando do pendurar de (...) o ter segurado por forma a permitir a sua elevação para que a corda passasse pelo respetivo pescoço.
Não obstante as declarações ora prestadas, a verdade é que o arguido (...) foi ouvido no inquérito a fls. 558 e ss., referindo que o (...) libertou o pescoço de (...) quando não sentiu a respiração e que não largou o pescoço do mesmo até ter a certeza de que era cadáver. Mais referiu que (...) defecou e urinou nas calças durante o “mata-leão”, conforme tal auto de interrogatório.
No dia de hoje, referiu que não apertaram a laçada ao pescoço do (...), ainda ficando alguma folga, sendo que dos autos resulta que a laçada era fixa e não suscetível de ser ajustada.
Do exposto, é razoável pensar que a morte de (...) terá ocorrido no momento e por via do aludido “marta-leão” e não aquando do seu pendurar, no sobreiro, momento em que estaria morto.
Igualmente, refere o arguido (...) que a sua atuação derivou do pedido de (...) para morrer e para o matarem, tendo entre todos combinado de que forma o fariam e em que momento.
Mais refere que no dia anterior tinham tentado lograr o facto, mas que (...) desistiu do seu intento e regressaram a casa, aceitando os dois arguidos essa desistência e essa vontade manifestada nesse sentido.
As declarações ora prestadas pelo arguido são conformes com o conjunto de elementos probatórios junto aos autos. Que a morte de (...) derivou de atuação de terceiro, afigura-se-nos resultar desde logo da forma como o cadáver apareceu, isto é, num poço, tapado com terra, dejetos e matérias, enrolado num lençol e com uma corda. Para além do mais, o auto de diligência de fls. 354 e ss., conclui que a morte terá tido etiologia médico legal homicida, atendendo-se nomeadamente às lesões traumáticas e vestígios hemáticos na roupa. Tal é igualmente corroborado pelo facto de existir prova testemunhal abundante no sentido de (...) vir a manifestar que queria morrer, que estava farto, mas não tinha coragem de se suicidar.
A intervenção dos aqui dois arguidos na morte de (...) resulta de um conjunto de elementos probatórios que excedem as simples declarações do arguido (...), seja em sede de primeiro interrogatório, seja em sede de auto de interrogatório, escrito, constante dos autos a fls. 568 e ss. Desde logo, essa versão aqui apresentada pelo arguido (...), é corroborada pelas declarações prestadas pelo irmão, (…), a fls. 505 e ss., a quem o arguido confidenciou o que havia feito, como aliás também neste interrogatório veio a revelar. De igual modo também do depoimento a fls. 488 é corroborado por essas confidencias, não a (…), mas também diretamente a (…), a quem o próprio (...) relatou o acontecido. Por outro lado, a fls. 518 e ss., (…)afirma no dia do ultimo desaparecimento de (...), que o (...) foi chamar o (...), ambos saindo juntos, tendo percecionado o (...) e o (...) a regressarem de uma zona de mato, trazendo o (...) os braços com bastante sangue. A fls. 527 e ss., (…) afirma que (...) que conhece por “cigano” lhe terá dito que” ele queria-se matar e eu ajudei-o, apertei-lhe o pescoço, o (...) começou a espumar pela boca e ficou-se, e depois levei-o para o poço e atirei-lhe baldes de areia para cima”. Também (…) a fls. 542, refere que a última vez que viu (...), na manhã do desaparecimento, cerca das oito horas, o viu a deslocar-se sozinho, e viu de seguida o (...) e o (...) a irem atrás dele, regressando após o pequeno almoço, mas desta vez sem a companhia de (...). Recorda-se que (...) tinha uns calções vestidos e apresentava manchas de xixi nas pernas, dizendo que se tinha mijado, e que o (...) apresentava uma cara estranha como o nunca tinha visto.
As perícias ao lençol e corda encontrados no cadáver de (...) corroboram a coincidência com lençóis e cordas similares usados no (...) e de acesso a quem em tal instituição se encontrava internado.
Isto para dizer, que os elementos probatórios nestes autos não se resumem à confissão do arguido (...), mas mostram-se corroboradas por um conjunto de elementos, seja de natureza testemunhal, pericial e documental, que corroboram a versão do aqui arguido (...) no que toca à autoria dos factos aqui em apreço.
Quer a corda recuperada junto do cadáver, quer a faca foram ambas reconhecíveis como sendo similares às utilizadas no (...), quer por (…) a fls. 453 quer por (...), a fls. 456 e ss., o que acresce ao supra referenciado, no sentido de se puder afirmar com segurança que quem matou (...) estaria internado no aludido Centro, tendo acesso a tais materiais, tanto mais que o poço onde o cadáver foi encontrado se encontrava igualmente nas proximidades desse sítio.
Relativamente à questão do pedido para ser morto, para além das próprias declarações do arguido (...), quer no presente interrogatório, quer em sede de auto de interrogatório, de fls. 568 e ss., existem um conjunto de elementos testemunhal que atestam tais pedidos de (...) prévios à sua morte, manifestos e expressos, invocando o falecido que queria morrer, que estava farto e não tinha coragem para se suicidar. Assim, a fls. 458 (...) refere que (...) a procurou dizendo que (...) lhe pediu para o matar. De igual modo a fls. 454, (…) refere que (…) confidenciou a (...) que (...) havia pedido, pelo menos duas vezes, que (…) e (...) o matassem. De igual modo, (...) a fls. 481 e ss. refere o mesmo, isto é, (…) disse que, por duas vezes, ouviu (...) a pedir a (...) e a (…) que o enforcassem, com uma corda, por não ter coragem de se suicidar sozinho. Perguntado a (…), se tinha a certeza do que tinha ouvido, o mesmo confirmou, dizendo que (...) já tinha feito este pedido a outros dois jovens e que este estava sempre a fazer esta conversa, sempre a dizer aquilo.
A fls. 488 e ss., (…) no relato que faz das mensagens trocadas com (...) diz que foi o próprio (...) quem pediu ao (...) e ao (…) para que o matassem pois ele não tinha coragem para o fazer, pedindo que aqueles dois o enforcassem e que queria morrer por enforcamento. Mais diz a aludida testemunha que face ao pedido de (...), (...) e o (…) decidiram fazer a vontade, tendo combinado um dia com (...) para a execução do plano. Ainda refere que no dia seguinte (reportando-se ao dia anterior ao dia em que (...) se arrependeu), (...) voltou a falar com (...) e com o cigano, dizendo desta vez ter certeza de que queria ir em frente com o seu pedido. De igual modo, (…) alude ao facto de, pelo menos, em duas ocasiões, (...) falar com o cigano tratando-se de (...), pedindo que ele o matasse por ele não conseguir viver mais no sofrimento. Numa segunda vez, (...) terá procurado (...) e (...) com o mesmo pedido, dizendo ter a certeza de que não queria viver mais. Diz essa testemunha, irmão do aqui arguido (...), que o irmão contou-lhe que face à insistência e ao facto de verificar que o (...) aparentava ter certeza de que queria morrer, acabou por conseguir convencer (...) e (...) a retirar-lhe a vida, como ele queria. Também (…), a fls. 529 e ss. afirma que, por diversas vezes, (...) verbalizou a ele e a outros colegas que se queria matar e que não o fazia por não ter coragem, pelo que chegou mesmo a pedir ao grupo que o matassem por enforcamento, explicando-lhe este como deveria ser feito, mais concretamente: passassem uma corda por um ramo de uma árvore, e os colegas puxassem o cabo quando a mesma estivesse presa no pescoço dele. Por considerar tal pedido grave chegou a falar com a Dra. (…), médica, Dra. (…), psicóloga e o funcionário (…), no sentido de o ajudarem e o demoverem da prática de tais factos.
Dos elementos de prova supra referenciados, não duvida que (...), por diversas vezes, a diversas pessoas, não manifestou a intenção de morrer, mas por não ter coragem para o suicídio, solicitou a terceiros que o matassem, explanando como deveria morrer e de que forma em concreto o deviam fazer.
Tal pedido, foi igualmente feito aos aqui arguidos conforme confirmado pelo arguido (...) e em face dos elementos testemunhais supra referenciados. Considerando a reiteração do mesmo pedido, que é realizado de forma expressa que o matassem -, por enforcamento e considerando que no dia dos factos foi (...) quem abordou (...) que foi chamar (...), após no dia anterior se ter arrependido, entendemos que existem nos autos indícios fortes que indicam ou apontam para um pedido para ser morto por parte de (...), de forma expressa, reiterada e de forma séria, tendo inclusive o falecido ponderado por uma noite tal desiderato, mostrando-se resoluto na manhã seguinte, no sentido de se concretizar a sua morte por intermédio de atuação de (...) e (...), a quem tinha pedido que o matassem. Trata-se de um pedido ponderado, pensado, refletido, expresso e insistente, que perdura ao longo de algum tempo. A morte de (...) ocorre por enforcamento em combinação com o próprio quanto ao local, modo e tempo, os quais estão de acordo com a sua vontade e foram com o mesmo combinado. Não se vislumbra dos auto que haja razão alguma, que não o pedido de (...), com as mencionadas características que justifique ou explane a atuação dos aqui arguidos, sendo que não se apurou uma qualquer razão de litígio ou desentendimento entre os mesmos, próxima ou afastada da morte de (...). O próprio arguido (...) afirma que os factos por si praticados o foram por via do pedido apresentado pelo falecido e por considerar que era séria a sua intenção (nesta parte conforme o auto de interrogatório escrito nos autos), tanto mais que o falecido apresentava cortes diversos nos braços. O facto de o falecido se encontrar em estado depressivo e triste, apresentando forte sentimento de abandono e ressentimento, para além de ideação suicida, tudo conforme fls. 481 e ss., não retira ao pedido pelo mesmo apresentado nem seriedade nem ponderação. Não deixa de se frisar que, até confrontado com a visão do seu próprio corpo ficar a céu aberto, a apodrecer, isso não o demoveu dos seus intentos, nem o fez retroceder, reiterando o que era a sua vontade. Não deixa de se olvidar que essa visão surge a perguntas do próprio arguido (...) imediatamente antes de concretizarem o ato, o que faz pressupor uma vontade séria e firme, pergunta que consta de fls. 572 dos autos.
Deste modo, entendemos que os elementos probatórios constantes dos autos permitem fundar fortes indícios de um crime de homicídio a pedido da vítima p. e p. pelo art.º 134º do C. Penal, punível com pena de prisão até três anos.
Em face do que são as declarações do arguido (...), corroboradas pelo menos pelas confidencias que foi realizando quanto aos factos por si perpetrados, em concreto face à pessoa do seu irmão (…) e à pessoa de (…), na ausência de quaisquer testemunhas dos factos e não tendo o arguido (...) prestado declarações, a sua atuação resumiu-se a acompanhar o falecido e o (...) ao local dos factos, a aceder ao pedido do falecido e a presenciar a atuação de (...) que preparou a corda e aplicou ao falecido a manobra designada “mata-leão” que, como se disse, supra, terá determinado a morte do aqui (...).
Dos autos, avulta que (...) é uma pessoa agressiva, instável, impulsivo e com tendência para a violência, tudo conforme a avaliação realizada por (...) que no Centro (…) exerce funções de acompanhamento psicológico, sendo de profissão psicóloga. Perante essas características do arguido (...) que nos questionarmos em que medida a intervenção de (...) possa enquadrar o conceito de auxilio moral, consabido que este pressupõe uma contribuição de natureza não material para o facto, em que se aumenta as hipóteses de realização típica por parte do autor ou a criação ou potenciação de um risco não permitido que ultrapasse a medida admissível, isto é, uma contribuição que implique favorecimento ou fortalecimento do autor na sua decisão. Segundo (…), o irmão terá receio de (...).
(...) não pratica atos materiais tendentes e conducentes à morte de (...), limitando-se a acompanhar e presenciar a atuação material de (...), que conduziu à morte do falecido. Não se nos afigura que a sua presença implique, face ás características de personalidade de (...), tendo o mesmo ascendente sobre (...), um qualquer fortalecimento na decisão adotada pelo mesmo, que a nosso ver teria sido concretizado com ou sem a presença do aqui arguido (...). Não olvidemos que quando (...) aborda (...) este vai chamar (...), no dia dos factos, e que é sempre (...) quem toma a iniciativa, até quando em dias anteriores concretizara a exemplificação do que seria um mata-leão na pessoa de (...). Não se vislumbra da parte de (...) um qualquer conselho, fornecimento de informações relevantes, instigação ou qualquer atitude que possa enquadrar-se no aludido conceito de auxilio moral e que implique o supra aludido favorecimento ou intensificação da decisão tomada por (...).
Nesta medida, portanto, não se nos afigura que o arguido (...) seja autor, coautor ou cúmplice do crime de homicídio supra referenciado, mas tão co-autor de ume crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo art.º 254º, n.º 1, al. a) e previsto com pena de prisão até dois anos ou pena de multa.
Os arguidos são primários, jovens, encontrando-se internados no (...) por razões que em concreto e reputadas a tais pessoas se desconhecem quais sejam, ainda que tal instituição acolha jovens problemáticos.
A situação presente integra um contexto de alta especificidade, irrepetível, não se crendo que em concreto, se verifique, no caso presente perigo concreto, de repetição de factos similares, mesmo considerando as características pessoais do arguido (...), supra elencadas. Mais especifico e irrepetível é o contexto que determinou a conduta de ambos os arguidos, de ocultação do cadáver, pelo que também quanto a tal ilícito não vislumbramos perigo concreto de continuação da atividade criminosa. quanto aos demais perigos, de perturbação do inquérito e tranquilidade e ordem publicas, entendemos ambos verificados, ainda que quanto à perturbação do inquérito de forma mitigada, porquanto a maior parte da prova testemunhal foi produzida nos autos, conforme o revela a extensão da prova testemunhal elencada pelo Ministério Público, que não resume toda aquela produzida. Contudo, poderá ocorrer por parte dos arguidos alguma tentação de tentar influenciar e pressionar quem prestou declarações nos autos ou ainda não o tenha feito, no sentido de se adulterarem os conteúdos e sentidos das declarações prestadas ou das que o venham a ser. De igual modo, face ao contorno dos factos indiciariamente praticados e contexto em que ocorreram, resulta manifesto o perigo de perturbação da tranquilidade pública, tudo perigos a que alude o art.º 204º, als. b) e c)do C.PP, sendo que a nosso ver existe também algum perigo de fuga a que alude a al. a) de tal normativo legal, porquanto os arguido,s agora conscientes dos seus atos e consequências e não estando a coberto de uma qualquer esperança de a sua conduta passar despercebida e oculta, podem encetar a fuga da instituição onde se encontram, que abrange um terreno com 2 hectares e meio, em que é fácil a saída pela rede e em que os jovens internados podem livremente percorrer tal terreno de grande extensão ainda que estando visíveis, segundo as normas da instituição, perigo de fuga ainda que, algo mitigado, porquanto os arguidos são jovens e não têm capacidade financeira para se deslocarem sem meios próprios, para grandes distâncias da instituição que os acolhe.
O limite máximo das molduras penais dos ilícitos supra mencionados, seja homicídio a pedido cuja autoria foi praticada de forma indiciária por (...), seja o de profanação de cadáver, por ambos os arguidos praticada em co- autoria material não permite a aplicação de outra medida de coação que não seja a dos art.ºs 197º a 199º, frisando-se no caso presente que nem os arguidos têm capacidade financeira para prestar caução, nem se justifica a aplicação do art.º 199º do C.P.P.. Resta assim a aplicação da medida de coação de apresentação periódica, a que alude o art.º 198º do C.P.P., podendo os arguidos sair da instituição se acompanhados, conforme resulta dos autos, medida de coação, de forma diária, em horário que seja mais conveniente à instituição, a começar no dia de amanhã, quanto a ambos os arguidos, sendo que são próximas as molduras penais máximas correspondentes aos dois ilícitos, e os factos não justificam periodicidade diversa, medida que se aplica por outra não ser possível aplicar, conforme supra exposto, porquanto todas as demais pressupõem penas de prisão de máximo superior a três anos ou mais (Art.º 191º a 193º, 204º, als. a) e b) e 198º, todos do C.P.P.).
Cumpra o disposto no art.º 194º, n.º 9 do C.P.P.
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Proceda à libertação dos arguidos, com menção da hora da libertação.
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Remeta os autos, oportunamente, aos serviços do Ministério Público.
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Comunique a decisão aos legais representantes dos menores (na pessoa das aqui presentes) e bem assim ao (...), solicitando que diligenciem pela execução das medidas de coação aplicadas, mormente pelo acompanhamento dos arguidos, se necessário for.
Comunique ao Tribunal de Família e Menores da área de residência dos arguidos, para os fins tidos por convenientes.
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Comunique a decisão aos OPC da área de residência dos arguidos, solicitando informação quanto ao seu eventual incumprimento, sendo que a medida deverá ter início no dia de amanhã.


3. O Direito
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, as questões que foram submetidas à nossa apreciação são as seguintes:
- qualificação jurídica da factualidade indiciada e da participação do arguido (...);
- inadequação da medida de coacção decretada e sua substituição por prisão preventiva.

3.1. O recorrente insurge-se contra a integração da conduta do arguido (...) no crime de homicídio a pedido da vítima, p. e p. pelo art. 134º do C. Penal, defendendo que a mesma preenche a previsão típica do crime de homicídio qualificado p. e p. pelos arts. 131º, 132º nºs 1 e 2 als. e) e j) do mesmo diploma legal e, bem assim, que a conduta do arguido (...) não é inócua, contrariamente ao que foi considerado no despacho recorrido, devendo antes ser considerado que actuou como cúmplice.

Antes de mais, há que frisar que bulir com a qualificação jurídica dos factos, na fase de inquérito e perante um caso, como o presente, em que as motivações e o envolvimento psicológico dos intervenientes ainda não se encontram definidos com a clareza suficiente para se avançar uma tomada de posição que pode condicionar as decisões, de dedução de acusação, eventual decisão instrutória e decisões finais, é tarefa altamente arriscada. A mais elementar prudência e o bom senso aconselham a que não interfiramos com uma apreciação, feita pela Srª JIC, que teve os arguidos perante si e interrogou aquele que quis prestar declarações, quando essa apreciação, perante os elementos que constam dos autos, não se mostra, muito menos de forma flagrante, desajustada.
A discordância do MºPº recorrente pode, e em nosso entender deve, ser direccionada de forma muito mais profícua para a dedução de uma acusação que reflicta a forma como aprecia o acervo indiciário coligido nos autos, deixando para o julgamento, se a instrução não vier a ser requerida, a apreciação global, em condições ideais de imediação, dos meios de prova e as conclusões que através da sua produção seja possível alcançar.
Isto dito, vamos ainda assim analisar as objecções apresentadas pelo recorrente e que transmitem a clara impressão de que a conduta dos arguidos foi analisada pelos olhos de um adulto sem ter em devida conta, apesar do afirmado em contrário, de que também eles, tal como a vítima, vivenciavam o período já de si conturbado da adolescência, por todas as modificações ao nível físico e psíquico que caracterizam esta fase da vida, com as acrescidas dificuldades de não terem apoio sólido no meio familiar, viverem já nas franjas da criminalidade juvenil e se encontrarem institucionalizados.
No essencial, o recorrente ataca a subsunção jurídica dos factos à previsão típica do art. 134º do C. Penal com base na argumentação que de seguida vamos rever.
Em primeiro lugar, contesta que a vítima tenha formulado um pedido com as características exigidas por aquela norma, ou seja “sério, instante expresso”, para que a matassem. Que andava numa fase de desânimo, profundamente triste e revoltada, como era sabido pelos arguidos, mas que os pedidos que verbalizava naquele sentido não eram sérios e que por isso não lhes deviam ter acedido.
Ora, lidos os profusos depoimentos recolhidos nos autos, não é essa a impressão que deles se colhe.
Desde logo daqueles que provêm de adultos com cargos de responsabilidade na instituição onde arguidos e vítima se encontravam colocados: a vítima dizia que já tinha tentado o suicídio, que queria morrer e o seu discurso era todo em volta da vontade de cometer suicídio (cfr. depoimento de (…), Directora técnica do (...) ); a vítima estava muito triste, talvez em estado depressivo, sentia um forte sentimento de abandono, um estado de tristeza profunda, não queria ficar na instituição, tinha ideação suicida, automutilava-se com golpes nos braços, confidenciou que estava farto de sofrer e queria morrer, não tinha alegria na vida (cfr. depoimento da testemunha (...), psicóloga no mesmo Centro ).
Vários outros depoimentos, de menores que também se encontravam colocados no dito Centro, dão conta das verbalizações da vítima no sentido de que queria morrer mas que ainda não se tinha conseguido suicidar por não conseguir fazê-lo, de tentativas de se atirar do telhado, não consumadas por falta de coragem, da automutilação num dos braços através de cortes feitos com uma gillette, de pedidos dirigidos nomeadamente ao arguido (...) para que o matasse.
Sem se lograr discernir dos autos se este estado de coisas já vinha de trás e se perdurou por um período superior aos dias que precederam o homicídio, certo é que durante esse período a vítima repetiu várias vezes que queria morrer e até chegou a especificar a forma como pretendia que lhe fosse infligida a morte, em concreto através de enforcamento.
Assim, e em face dos indícios coligidos, cremos não merecer grandes reservas a conclusão de que a vítima fez pedido instante e expresso no sentido de que a matassem.
E que esse pedido reiterado tinha foros de seriedade, também não encontrámos razões para disso duvidar. A “ladainha” era sempre a mesma, consistente e não é o simples facto de na véspera se ter “acobardado” por ser de noite que retira seriedade ao seu pedido. Tenhamos em conta o estado de espírito da vítima, que dizia reiteradamente que queria morrer mas que não tinha coragem para se matar. Ou seja, queria o objectivo, mas o “caminho” para o alcançar causava-lhe temor, como, aliás, não é raro suceder com quem acalenta ideias suicidas. E note-se que, depois da “experiência” de perder os sentidos devido ao mata-leão por ela consentido e aplicado pelo arguido (...) no dia 13/10/2020, e depois da hesitação que fez abortar o planeado para a noite do dia seguinte e determinou uma reflexão mais profunda nessa noite, foi a vítima, à semelhança das duas ocasiões anteriores, quem foi procurar os arguidos e pedir-lhes para que executassem o plano traçado para lhe pôr fim à vida.
E nem se diga que a concreta forma como foi executado o homicídio desrespeitou ou divergiu de forma digna de nota do pedido feito pela vítima. Entre a morte por enforcamento e a morte por asfixia pela aplicação de um mata-leão a diferença não é grande e a vítima até já tinha tido um “ensaio” anterior, estando por isso mais ciente da forma como a situação se ia desenrolar, do que iria sentir e de como o seu corpo iria reagir, não havendo qualquer notícia de que tenha sido muito particular no sentido de que não aceitava morrer daquela forma e fazia questão de morrer pendurado numa corda.
Chama o recorrente à colação o depoimento prestado por (…), assistente social do referido Centro, para dele concluir que o arguido (...) conhecia o estado em que a vítima se encontrava e até havia sido advertido para não fazer o que ela pedia.
Sucede, porém, que desse depoimento não resulta claro se a conversa que teve com aquele arguido teve lugar antes ou depois do dia 15/10/2020. De facto, a testemunha afirmou que tal conversa ocorreu “em data precisa que não recorda, mas que acredita ter sido em outubro/2020” e questionada “sobre se consegue indicar se o (...) estava já desaparecido nesta data, disse que não se recorda se ele estava ainda no (…) ou não”. Da impossibilidade de situar essa conversa antes ou depois daquela data logo decorre a falência da argumentação do recorrente nela alicerçada.
Por outro lado, as condutas violentas, o sadismo dirigido a animais e o diagnóstico de psicopatia que terá sido feito ao arguido (...), factores assaz inquietantes como assinala o Exmº PGA, não invalidam que ele tenha agido a pedido da vítima, independentemente de poder ter retirado, ou não, prazer do acto que perpetrou, questão que terá de ser apreciada e tratada em outras instâncias.
E nem é rigorosamente exacto que, após o homicídio, os arguidos retomaram as suas rotinas diárias com toda a normalidade, existindo várias referências nos autos a comportamentos de um e de outro que denotam nervosismo e preocupação com a situação bem como receio de que fosse descoberto o que tinham feito.
Considera também o recorrente que a vítima se encontrava em grandes dificuldades e que manifestava sérias perturbações psicológicas e psiquiátricas, sendo tal situação conhecida de todos.
Convenhamos que quem pede a outrem que o mate está, regra geral, numa situação de grave perturbação psicológica, mesmo nos casos, diversos do presente, em que por detrás da mesma esteja um sofrimento ou uma condição física real. Então, se, para o preenchimento do tipo do art. 134º fosse exigível que a vítima estivesse no seu total são juízo, a previsão típica ficaria esvaziada… Além de que o sofrimento psíquico pode ser tão ou mais difícil de suportar que o sofrimento físico.
Sustenta, ainda, o recorrente que, pelo facto de ainda não ter feito 16 anos e por se encontrar num estado de perturbação psicológica e emocional, conhecida dos arguidos, não podia prestar consentimento válido para que a matassem.
No que toca a idade, e não constando da norma do art. 134º qualquer restrição a esse respeito, chama o recorrente à colação a norma do art. 38º nº 3 do C. Penal.
Da comparação entre a redacção originária do C. Penal de 1982 com a actualmente vigente constata-se que esta não manteve a exigência de que a vítima morta a seu pedido fosse “imputável” e “maior”.
Mas também cremos que não restam dúvidas de que sempre será imprescindível que a pessoa em causa tenha capacidade para entender a natureza e conteúdo do pedido e esteja plenamente consciente das consequências da sua aceitação. Só assim poderá formular um pedido com a seriedade requerida pela lei.
Esta questão levanta diversas outras que não encontram, para já, resposta nos elementos que se encontram nos autos e que provavelmente só poderão ser clarificadas recorrendo a perícias realizadas com base nos elementos colhidos pelas psicólogas do Centro, que tiveram contacto directo com a vítima.
E, se é certo que a vítima, nascida em 16/3/2005, tinha 15 anos e 7 meses na data em que o homicídio foi perpetrado e que se encontrava a vivenciar um quadro depressivo assaz grave, não é menos certo que a norma a que o recorrente se arrima não tem, no caso, aplicação, na medida em que os requisitos de fundo do consentimento nela previsto, constantes do seu nº 1, demandam que ele se refira a interesses jurídicos livremente disponíveis pelo seu titular e que o facto não ofenda os bons costumes. Ora, a vida – excepção feita a ataques do próprio titular e alguns ataques negligentes – não é livremente disponível, como resulta nomeadamente do facto de a lei punir o homicídio a pedido.[1]
Antes de concluirmos, porque afronta algumas dúvidas e perplexidades que este caso concita, porque se reveste de grande interesse e merece a nossa inteira concordância, permitimo-nos aqui transcrever parte do parecer elaborado pelo Exmº PGA:

Este crime e a forma como foi executado convoca várias reflexões contraditórias cuja dialéctica não é de fácil resolução.
Há um autêntico abismo a separar as duas posições em confronto e o que é curioso é que ambas partem, praticamente, da mesma factualidade, com alguns detalhes divergentes, mas cuja relevância integram dois mundos totalmente diferentes em termos de valoração ético-jurídica.
Na verdade, o cerne da divergência entre a Mmª JIC e o Ministério Público está no relevo que cada um atribui ao pretenso consentimento da vítima na produção do resultado típico.
A senhora Procuradora tem razão quando afirma que o consentimento, para se afirmar jurídico-penalmente relevante, tem de ser prestado por alguém maior de 16 anos – artº 38º nº 3 do CP -.
Isso é verdade mas não tem, na economia deste processo, relevância de maior uma vez que estamos na presença de bens jurídicos indisponíveis.
Isto é, o consentimento seria também juridicamente irrelevante se a vítima fosse um adulto.
O que importa, todavia, na análise que se impõe fazer para avaliar da maior ou menor relevância prática deste consentimento para, a partir daí, perscrutar as verdadeiras intenções dos arguidos ao levar a cabo o crime, é saber até que ponto essas intenções corresponderam ou não à vontade expressa, esclarecida e decidida da vítima ou se, pelo contrário, outros factores intervieram na motivação.
A Mmª JIC aderiu à tese que lhe foi apresentada pelos arguidos. O Ministério Público defende a existência de motivações completamente distintas, nomeadamente que os arguidos “actuaram movidos apenas pelo prazer que retiraram da sua prática e pela experiência de tirarem a vida a outra pessoa“ – sic.
Para além de desvalorizar os constantes apelos da vítima para obter auxílio de terceiros para atingir os seus propósitos, desconsiderando a seriedade de tais apelos, atenta a idade, a fragilidade psicológica decorrente do internamento que rejeitava, o estado depressivo da vítima e o facto de serem praticamente desconhecidos, o Ministério Público socorre-se de elementos adicionais, sobretudo no que concerne ao (...), para lhes imputar intenções completamente distintas das que alegaram em sua defesa e que se consubstanciariam em agir de acordo com o que lhes tinha sido pedido.
Que dizer?
Não negamos que os elementos disponíveis sobre a personalidade do arguido (...) são inquietantes.
Demonstra uma propensão para agir com violência e de forma desproporcionada às contrariedades que não pode ser olvidada nem menosprezada.
Mas isto só por si, com todo o respeito por opinião contrária, não nos parece suficiente para justificar um juízo de probabilidade alta em termos de excluir a versão dos factos defendida no despacho recorrido.
Se é verdade que a visão propugnada pelo Ministério Público é perfeitamente defensável – e é – não é menos verdade que a tese subjacente à decisão em crise também o é.
Isto é, qualquer das duas constitui, neste momento e com os dados disponíveis, hipóteses explicativas inteiramente plausíveis.
Não deixamos de revelar alguma dificuldade em reconhecer relevância ao consentimento prestado por um menor para a prática de um acto tão radical e que ofende em tão elevado grau o sentimento ético-jurídico da comunidade.
É óbvio que não pode ser relevante, pelo menos com as implicações que decorrem do artº 38º do CP. Mas essa é outra questão. O que se discute aqui e agora é, de um ponto de vista subjectivo, do ponto de vista da motivação dos arguidos para a realização dos factos ilícitos, que relevância assumiu tal consentimento.
Para nós, para a generalidade da comunidade jurídica, será irrelevante.
Mas para os arguidos será que o foi?
A responsabilidade penal e a culpa em direito penal regem-se por regras distintas de outros ramos de direito como, por exemplo, o direito civil.
Em direito penal a culpa, que se traduz em responsabilização penal, mede-se em função da capacidade do sujeito concreto em avaliar o desvalor da sua conduta no momento da prática do acto criminoso e de se determinar de acordo com a valoração que fez, ou que se impunha que fizesse.
E se isto é verdade para qualquer adulto, mais curial se torna na avaliação da culpa de um menor – não é pelo facto de serem penalmente imputáveis que os arguidos deixam de ser menores, com todo o quadro mental e axiológico próprio de um menor -.
Voltando aos nossos factos.
Temos dúvidas, nesta fase do processo e sem ter conhecimento directo das pessoas concretas que estamos a avaliar, em inclinarmo-nos para qualquer uma das teses em confronto.
Temos dificuldade em afirmar que os arguidos praticaram este crime por prazer em retirar a vida a um ser humano. Não conseguimos descobrir no processo factos inequívocos que indiciem isso. Também não é menos verdade que é muito preocupante a forma desinibida como se prestaram a executar um acto desta natureza.
Mas essa é uma outra questão, quiçá para dilucidar em julgamento.
Neste momento não estamos a elaborar sobre a existência deste ou de aquele crime, embora essa discussão seja de capital importância para a decisão do recurso. O que nos convoca é decidir se os arguidos deverão aguardar os termos ulteriores do processo em liberdade, como já estão há algum tempo, ou se deverão ficar em reclusão.
O que é que é necessário, do ponto de vista cautelar, determinar agora?
As medidas de coacção regem-se por três grandes princípios.
Necessidade, adequação e proporcionalidade – artº 193º do CPP -.
Admitindo que o Ministério Público tem razão – como já o dissemos, temos as nossas dúvidas, neste momento – a prisão preventiva até se poderia considerar necessária, pois tanto a Mmª JIC como o recorrente, admitem que algumas das circunstâncias do artº 204º do CPP ocorrem neste caso.
Já temos mais dúvidas em considerá-la adequada, mas admitamos que sim, face às exigências cautelares concretas – embora não seja seguro que outras medidas menos gravosas não lograssem atingir o mesmo fim -.
Quanto à proporcionalidade desta medida aqui sim, aqui as dúvidas são imensas. Repare-se, tudo depende do enquadramento jurídico dos factos como se referiu atrás.
Será legítimo, existindo fundadas dúvidas sobre a interpretação desta factualidade, partir de um determinado pressuposto fáctico-jurídico para, a partir daí, escolher a medida de coacção, optando pela mais gravosa prevista na lei?
Será inteiramente descabido – até por nos situarmos ainda numa fase interlocutória do processo onde não se dispõe de todos os elementos relevantes – fazer apelo ao princípio da dúvida fazendo-o funcionar, como não pode deixar de ser, a favor dos arguidos?
Não poderá ser essa a chave para a resolução, precária, do problema?
Pensamos que sim.
Finalmente também não será despiciendo o facto de sobre o evento já terem decorrido quase 8 meses. Será que não se terão atenuado as exigências cautelares que o caso requeria? Será que, encontrando-se os arguidos em liberdade cumprindo, tanto quanto se sabe, as medidas de coação decretadas, fará ainda sentido implementar medidas adicionais e extremamente gravosas, medidas que são apenas, frise-se, de natureza cautelar e não traduzem um juízo final sobre a sua culpa e a realidade dos factos?
Não se encontrarão já asseguradas todas as finalidades que se pretendem alcançar com as medidas de coacção?
Alguma se revelou ineficaz, inadequada ou insuficiente?
Não sabemos em concreto mas, a ausência de novas informações, fazem-nos presumir que não.

Em suma, de tudo quanto acima ficou exposto resulta, se não totalmente infundamentada, pelo menos, prematura e até temerária a alteração, neste momento da qualificação jurídica dos factos indiciados.

No que concerne à participação do arguido (...), tem total pertinência o que acima dissemos em relação ao prosseguimento dos autos. Independentemente de também a este respeito concordarmos com a argumentação aduzida pelo Exmº PGA no seu parecer ( no qual conclui que o arguido (...) é seguramente cúmplice, tendo auxiliado, material e moralmente, o arguido (...) ), tomar aqui posição a esse respeito não releva para o objectivo primordial do recurso que é alteração das medidas de coacção, funcionando a questão da qualificação jurídica dos factos indiciados como condição imprescindível para alcançar esse desiderato.
Dito de outra forma: não relevando para a alteração da medida de coacção determinar qual o grau de participação deste arguido no crime de homicídio, posto que não se encontram fundamentos nesta sede para alterar a subsunção dos factos ao crime p. e p. pelo art. 134º do C. Penal tal como efectuada pela Srª JIC, não se reveste de qualquer utilidade estar aqui a apreciar essa questão, que será dilucidada no momento próprio, nada impedindo o MºPº de defender o seu entendimento deduzindo acusação com base nele.

3.2. O recorrente também pugnou pela alteração da medida de coacção decretada, pretendendo que aos arguidos fosse aplicada a prisão preventiva.

Ora, a argumentação com que sustentou esta pretensão dependia estritamente do acolhimento daquela outra que fundamentava a alteração da qualificação jurídica dos factos indiciados.
E, não tendo procedido esta, também não pode ser alterada a medida de coacção, desde logo porque, como foi explicado no despacho recorrido, os limites máximos das molduras penais dos crimes que se consideraram indiciados não permitirem a aplicação de outras medidas de coacção para além da que foi decretada e de uma outra ( caução ) que os arguidos manifestamente não têm condições de prestar.


4. Decisão
Por todo o exposto, julgam improcedente o recurso, mantendo o despacho recorrido.
Sem tributação.

Évora, 21 de Setembro de 2021

Leonor Esteves
Breguete Coelho
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[1] Veja-se para maiores desenvolvimentos o tratamento desta questão no Código Penal Português de Maia Gonçalves, em anotação ao art. 38º.