Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
49/14.6T8FAR.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ABANDONO DE SINISTRADO
DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA
Data do Acordão: 06/16/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: ALTERADA
Sumário: I - A questão de saber se a Companhia de Seguros tem direito a ser ressarcida da totalidade dos montantes por si pagos ao lesado em virtude de acidente de viação seguido de abandono do sinistrado, pelo qual o condutor do veículo segurado foi o único responsável, ou se apenas tem esse direito quando do abandono resultem danos específicos ou o agravamento dos danos decorrentes do acidente, tem sido objecto de diferentes entendimentos na doutrina e jurisprudência.
II - Porém, o Supremo Tribunal de Justiça, pelo Acórdão n.º 11/2015, uniformizou jurisprudência, nos seguintes termos: “O direito de regresso da seguradora contra o condutor que haja abandonado dolosamente o sinistrado, previsto na parte final da alínea c) do artigo 19.º do DL n.º 522/85, de 31/12, não está limitado aos danos que tal abandono haja especificamente causado ou agravado, abrangendo toda a indemnização paga ao lesado com fundamento na responsabilidade civil resultante do acidente”.
III - Tendo presentes os valores de segurança e certeza do direito e o princípio da igualdade que os Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência visam potenciar, e apesar de no caso dos autos o acidente ter acontecido já após a vigência da alteração introduzida ao regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel pelo DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, consideramos que o seu sentido uniformizador deverá aplicar-se nos mesmos termos ao artigo 27.º, n.º 1, alínea d) deste diploma, que tem a mesma exacta redacção daquele indicado normativo.
IV - Porém, tratando-se da aplicação de uma clara sanção de natureza patrimonial ao condutor do veículo segurado, mesmo que situada no estrito domínio das relações civis, nunca poderá funcionar em termos puramente objectivos e automáticos pela mera verificação da factualidade objectiva resultante do referido artigo 27.º.
V - É, portanto, indispensável que o condutor que se encontra vinculado à obrigação de regresso tenha dado causa ao acidente - em qualquer uma das modalidades de responsabilidade civil: por factos ilícitos ou objectiva -, ou seja, que se verifiquem os pressupostos para que exista obrigação por parte da seguradora de satisfazer uma indemnização ao lesado; e que o condutor tenha actuado censuravelmente na prática do acto em que a seguradora alicerça directamente o respectivo direito; finalmente, importa ainda apreciar da adequação e proporcionalidade das consequências do exercício do direito de regresso por parte da seguradora, à gravidade da infracção praticada pelo condutor.
Decisão Texto Integral:




Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I – RELATÓRIO
1. AA - Companhia de Seguros, S.A., instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB, peticionando a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 83 764,61 (oitenta e três mil, setecentos e sessenta e quatro euros e sessenta e um cêntimos), acrescida de juros à taxa legal desde a citação, até efectivo e integral pagamento.
Em fundamento, alegou, em síntese, ter direito de regresso contra o réu, na qualidade de responsável do acidente de viação de que resultaram danos que veio a ressarcir junto do sinistrado CC, que aquele abandonou no local não lhe prestando auxílio.

2. Regularmente citado, o réu contestou, por excepção, invocando a prescrição do direito de regresso que a autora pretende fazer valer, e impugnou a factualidade alegada, invocando ter cumprido os deveres de auxílio do sinistrado e que o mesmo não correu perigo de vida, nem ocorreu agravamento do seu estado ou lesões sofridas, nem houve dificuldade acrescida na sua cura, em virtude do facto de se ter ausentado do local.

3. A autora respondeu à matéria de excepção alegada pelo réu, pugnando pela não ocorrência da prescrição e pela existência de nexo de causalidade entre o abandono do sinistrado e as lesões verificadas.


4. Foi dispensada a realização de audiência prévia, sendo proferido despacho saneador por escrito, fixando-se o valor da causa e procedendo-se à identificação do obcjeto do litígio e enunciação dos temas da prova, designando-se logo o dia para audiência de julgamento.

5. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi seguidamente proferida sentença que julgou a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou o réu ao pagamento da quantia de 8 376,46€, acrescida dos respectivos juros de mora, a contar do trânsito em julgado da sentença, absolvendo-o do demais pedido contra si formulado.

6. Inconformada, a autora recorreu da sentença proferida, encerrando as suas alegações com as seguintes conclusões:
«1ª – Resulta dos factos provados nestes autos, e já resultava da douta sentença proferida no processo comum singular que, com o nº 51/08.7GCLLE, correu os seus termos através do 2º Juízo Criminal do extinto Tribunal Judicial de Loulé, que o Réu foi o culpado do acidente e abandonou o sinistrado: através da referida sentença, o Réu foi condenado por um crime de ofensas corporais por negligência e por um crime de omissão de auxílio
2ª – Na verdade, “em consequência da colisão, o CC foi projetado para a berma direita, atento o seu sentido de marcha, caiu ao solo e aí ficou prostrado (11) “e que “O réu apercebeu-se da queda do CC, mas não saiu do carro, não imobilizou o veículo que conduzia, não cuidou e saber do seu estado, não lhe prestou auxílio e pôs-se em fuga” (12).
3ª – Provou-se também que o “CC encontrava-se gravemente ferido, devido aos ferimentos não conseguia levantar-se do chão para pedir socorro e só conseguiu ajuda cerca de quinze minutos mais tarde devido aos seus gritos de socorro que foram ouvidos por agricultores que se encontravam nas imediações, que o encontraram e chamaram o INEM” (13), que “O local onde ocorreu a colisão era um local ermo”(14) e que, em consequência do acidente o CC sofreu lesões e sequelas que lhe determinaram uma desvalorização mínima de 85%, com total perda da sua capacidade de trabalho de pedreiro e reduzida ou mesmo nula (15, 16 e 17).
4ª - Tratou-se pois de uma colisão muito violenta, num local ermo, que causou danos gravíssimos ao sinistrado e que só não foram maiores dado o caso e acaso de agricultores terem ouvido os seus gritos de o terem ido socorrer, enquanto o réu abandonava dolosamente o sinistrado.
5ª - Como consequência directa e necessária do acidente, a ora recorrente pagou 60.000,00 € de indemnização ao sinistrado e, ainda, 23.764,61 € de despesas médicas e medicamentosas, tudo num total de 83.764,61 €.
6ª – Entendeu, porém, a Mmª Juíz do Tribunal recorrido que o direito de regresso da seguradora não abrange todos os danos resultantes para o sinistrado, mas apenas os danos específicos do abandono ou agravados pelo abandono do sinistrado, tese com a qual a recorrente não concorda.
7ª – Entendemos que esta questão ficou solucionada pelo Supremo Tribunal de Justiça que no recente e douto Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 11/2015, publicado no Diário da República, 1ª Série – Nº 183 – de 18 de Setembro de 2015 - decidiu:
“O direito de regresso da seguradora contra o condutor que haja abandonado dolosamente o sinistrado, previsto na parte final da alínea c) do artº 19º do DL. 522/85, de 31/12, não está limitado aos danos que tal abandono haja especificamente causado ou agravado, abrangendo toda a indemnização paga ao lesado com fundamento na responsabilidade civil resultante do acidente “
8ª - Acresce que tendo-se o douto Acórdão debruçado sobre um acidente ocorrido ainda na vigência de Dec. Lei 522/85, por maioria de razão se aplicará ao artº 27º, nº 1, al. d) do Dec. Lei nº 291/2007.
9ª - Face a todo o exposto, deve o réu se condenado na totalidade da quantia peticionada de 83.764,61 €, e não apenas em 10% desse montante como foi decidido.
10ª – A douta sentença recorrida violou o disposto designadamente no artº 27º, nº 1, al. d) do Dec. Lei 291/2007, bem como o douto Acórdão citado.
11ª – Acresce que o Réu, ora recorrido, assinou uma confissão de dívida através da qual se declarava devedor à recorrente do montante de 83.764,61 €, montante que esta teve que despender em consequência do acidente dos autos e dos danos causados ao sinistrado.
12º - Para além do conteúdo da confissão, os factos provados e referidos nos pontos 26 e 27 da douta sentença demonstram sem margem para dúvidas que o Réu compreendeu, representou e assimilou tal confissão ficando até de apresentar um plano de liquidação à Autora.
13ª – Ora se, na sequência de uma confissão de dívida, o devedor declara que vai apresentar um plano de pagamentos, é porque tem consciência quer do conteúdo, quer das consequências da declaração.
14ª - A Mmª Juíz, porém, não atribuiu nenhum valor ou importância à confissão de dívida, posição de que também se discorda.
15ª - A confissão, designadamente a confissão extrajudicial, encontra-se regulada nos artºs 352º a 361º do C. Civil.
16ª - Diz expressamente o artº 358º, nº 2 do CC dispõe que “ A confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena”.
17ª – Ora, é reconhecido no ponto 23 dos factos provados que a pessoa que contactou o Réu, o mencionado DD, é referido como representante da Autora.
18ª - Face ao exposto, deve considera-se que a confissão mencionada é inteiramente válida, faz prova plena não só de que assiste o direito de regresso à A., mas também que esta tem direito de regresso sobre a totalidade do que pagou, ou seja, sobre os 83.764,61€.
19ª – Assim, também pela confissão de dívida o Réu deve ser condenado.
20ª – A douta sentença recorrida violou nomeadamente o disposto nos artºs 352º e 358º, nº 2 do C. Civil.
21ª – Deve, pois, ser revogada e substituída por douto Acórdão que condene o Réu nos termos peticionados».
7. Não foram apresentadas contra-alegações.

8. Observados os vistos, cumpre decidir.

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II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[3], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, evidentemente sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, vistos os autos, a primeira questão a apreciar no presente recurso consiste em saber se a seguradora ora autora tem direito a ser ressarcida da totalidade dos montantes por si pagos ao lesado em virtude do acidente de viação seguido de abandono do sinistrado, pelo qual o condutor do veículo segurado foi o único responsável, ou se apenas tem esse direito quando do abandono resultem danos específicos ou o agravamento dos danos decorrentes do acidente.
Sendo afirmativa a resposta à primeira parte da questão, torna-se inútil apreciar a segunda parte, bem como a invocada questão da confissão de dívida por parte do réu.
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III – Fundamentos
III.1. – De facto
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1. A autora exerce devidamente autorizada a actividade seguradora (artigo 1.º da petição inicial).
2. Através da apólice de seguro n.º 750762498 EE transferiu para a autora a responsabilidade civil decorrente de danos causados a terceiros relativos a acidentes de viação decorrentes da utilização do veículo de matrícula 00-00-QL (artigo 2.º da petição inicial).
3. Entretanto, a “AABB, S.A.” alterou a firma para “AA – Companhia de Seguros, S.A.” que, consequentemente, intenta a presente ação (artigo 3.º da petição inicial).
4. No dia 15 de julho de 2008, pelas 07,30 horas, na Estrada Agrícola, ocorreu um embate entre os veículos 00-00-QL (ligeiro de passageiros) e 00-CP-00 (ciclomotor), o primeiro conduzido pelo réu BB e o segundo por CC. (artigo 4.º da petição inicial).
5. O réu conduzia o “QL”, num sentido e o mencionado José Soromenho circulava em sentido contrário. (artigo 5.º da petição inicial).
6. A estrada encontrava-se em bom estado de conservação, tinha a largura de 3,10 metros, a faixa de rodagem era de sentido duplo e, atento o sentido de marcha do réu, descrevia uma curva para a direita, de visibilidade reduzida (artigo 6.º da petição inicial).
7. Ao entrar na curva mencionada, o réu ocupou toda a faixa de rodagem, designadamente a hemi-faixa esquerda, atento o seu sentido de marcha. (artigo 7.º da petição inicial).
8. Ao barrar a passagem ao ciclomotor que vinha em sentido contrário, a uma velocidade inferior a 30 Kms/hora, e junto à berma direita, o réu embateu com a parte frontal do veículo que conduzia na frente do ciclomotor. (artigo 8.º da petição inicial).
9. Indo posteriormente embater numa árvore existente na berma do lado esquerdo, atento o sentido em que seguia (artigo 9.º da petição inicial).
10. O “ QL “ seguia a mais de 70 Kms/hora e deixou um rasto de travagem de 23,30 metros. (artigo 10.º da petição inicial).
11. Em consequência da colisão, o CC foi projectado para a berma direita, atento o seu sentido de marcha, caiu no solo e aí ficou prostrado.
12. O réu apercebeu-se da queda do CC, mas não saiu do carro, não imobilizou o veículo que conduzia, não cuidou de saber do seu estado, não lhe prestou auxílio e pôs-se em fuga. (artigo 12.º da petição inicial).
13. O mencionado CC encontrava-se gravemente ferido, devido aos ferimentos não conseguia levantar-se do chão para pedir socorro e só conseguiu obter ajuda cerca de quinze minutos mais tarde devido aos seus gritos de socorro que, foram ouvidos por agricultores que se encontravam nas imediações, que o encontraram e chamaram o INEM. (artigo 13.º da petição inicial).
14. O local onde ocorreu a colisão era um local ermo, sem habitações nas redondezas e no qual não se conseguiam ligações por telemóvel, acrescendo que a estrada tinha pouco movimento. (artigo 14.º da petição inicial).
15. Em consequência do embate que sofreu e da queda, CC sofreu traumatismo de ambos os membros inferiores e do membro superior direito – fractura dos ossos distais do antebraço direito; deformidade com encurtamento e crepitação da perna esquerda; fractura da diáfise dos ossos da perna esquerda; deformação com crepitação e dor da mão direita; luxação metacarpo-cárpica do 2º e 3º raio. (artigo 20.º da petição inicial).
16. CC ficou com sequelas permanentes – calos ósseos exuberantes do corpo e terço proximal do 4º metacarpiano direitos, com impotência funcional para movimentos finos da mão direita, limitação da abdução do ombro e membro superior direito ao limite doloroso de 70%, cicatriz de 20 cms sobre o joelho esquerdo, com limitação dos movimentos da perna e joelho que dificultam a marcha, cicatriz de 12 cms sobre a crista tibial esquerda com zona de exuberante calo ósseo de consolidação viciosa do membro inferior esquerdo, com deformação ao nível do terço médio da perna, também agravando a capacidade de mobilização do membro inferior e marcha, desvio externo das falanges do dedo grande do pé direito e deformação da unha. (artigo 21.º da petição inicial).
17. As sequelas descritas determinaram-lhe uma desvalorização mínima de 85%, total perda da capacidade para o trabalho de pedreiro e reduzida ou mesmo nula capacidade para outra profissão. (artigo 22.º da petição inicial).
18. Ao abandonar o sinistrado e colocar-se em fuga o réu não permitiu que fossem imediatamente accionados os meios de socorro, contribuindo para o agravamento das lesões sofridas pelo CC (artigo 17.º da petição inicial)
19. Por virtude do embate em causa nos presentes autos, no âmbito do processo comum singular que correu termos sob o n.º 51/08.7GCLLE, do 2.º Juízo de Competência Criminal do extinto Tribunal Judicial foi proferida sentença proferida em 3/10/2011 e transitada em julgado em 27/10/2011 condenando o réu, aí na qualidade de arguido, BB, como autor material de um crime de ofensa à integridade física, praticado por negligência e um crime de omissão de auxílio, na pena única de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período (artigo 18.º da petição inicial).
20. No âmbito desse processo, o lesado CC, que tinha 60 (sessenta) anos à data do embate, deduziu pedido de indemnização civil do montante de € 115.000,00 (cento e quinze mil euros), mas acabou por celebrar um acordo pelo montante de € 60.000,00 (sessenta mil euros) – a título de indemnização pelos danos patrimoniais ainda não pagos e não patrimoniais (artigo 24.º da petição inicial).
21. Para além dos mencionados € 60.000,00 (sessenta mil euros), a autora suportou ainda todas as despesas emergentes do embate, designadamente com transportes, hospitalizações, honorários de médicos, demais despesas médicas e medicamentosas e período de baixa do lesado, que importaram no total de € 23.764,61 (vinte e três mil, setecentos e sessenta e quatro euros e sessenta e um cêntimos) - (artigo 25.º da petição inicial).
22. (não se reproduz nesta sede por se tratar da discriminação do valor referido na segunda parte do ponto anterior).
23. No âmbito de averiguações levadas a cabo pela autora, o seu representante DD, após preencher os espaços em branco, deu ao réu, para que o assinasse, o seguinte documento:
“Termo de confissão de Dívida
Para os devidos e legais efeitos, eu, BB, declaro-me devedor da AA – Companhia de Seguros, S.A. pelo montante de € 83.764,61 € suportados por esta entidade, por força do sinistro de viação da minha responsabilidade, perante terceiros lesados a que deu lugar ao Processo de Sinistro nº 08AU492496.
Mais proponho, como forma de pagamento, liquidar a verba de € - em prestações mensais no valor cada de €, incluídos os juros de mora, a pagar no dia 30 de cada mês, reconhecendo que o incumprimento da obrigação ora assumida implica o vencimento de todas as prestações.
Loulé, 14 de Junho de 2012
Assinatura” (parte do artigo 28.º e parte do artigo 34.º, ambos da petição inicial).
24. No documento intitulado “DECLARAÇÃO” que constitui fls. 41 pode ler-se o seguinte: “Depois de ler e confirmar o declarante vai assinar”.
25. O réu assinou os referidos documentos (parte do artigo 35.º da petição inicial)
26. Quanto ao montante das prestações mensais, o réu disse que atravessava algumas dificuldades, que iria pensar e que depois faria uma proposta concreta à autora (artigo 29.º da petição inicial).
27. No entanto, apesar das diligências posteriores efectuadas pela autora no sentido de acertar as prestações com o réu, este furtou-se sucessivamente a apresentar uma proposta de liquidação (artigo 30.º da petição inicial).
28. O réu foi citado para a acção em 23 de Setembro de 2014.
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III.2. – O mérito do recurso
III.2.1. – Responsabilidade civil
Na presente acção a Autora alegou factos tendentes a demonstrar a culpa efectiva e exclusiva do condutor do veículo cuja circulação havia segurado na produção do acidente objecto dos presentes autos, ocorrido no dia 15 de Junho de 2008.
Nos termos genéricos do artigo 342.º do Código Civil[4], também afirmados a propósito da matéria referente à responsabilidade civil, no artigo 487.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, ao autor (lesado) incumbe a prova dos factos constitutivos do direito invocado, no caso, “a culpa do autor da lesão”, apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso – n.º 2 do citado artigo 487.º do CC.
Conforme decorre dos fundamentos de facto supra descritos, a matéria de facto alegada pela autora relativamente à dinâmica do acidente logrou revelar-se provada em termos que determinaram a conclusão na sentença recorrida pela responsabilidade exclusiva do condutor do veículo seu segurado pela ocorrência do acidente, conclusão que não vem posta em causa no presente recurso.
Efectivamente não são discutidos em sede recursória os pressupostos da responsabilidade civil do condutor: o facto ilícito e, no caso, doloso a merecer condenação criminal; a existência dos danos; bem como o nexo de causalidade entre o facto ilícito e os danos provados.
Ora, nos termos do disposto no artigo 483.º do CC “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".
Concluindo-se, como se concluiu na sentença, pela culpa do lesante - condutor do veículo segurado na ré -, na produção do acidente, assenta-se igualmente na sua responsabilidade pelo ressarcimento dos danos dele emergentes, atento o disposto no referido preceito legal.
Nos termos do artigo 4.º do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico (…) deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, como no caso dos autos se verifica.
Assim, por força do contrato de seguro celebrado entre a tomadora do seguro e a seguradora e titulado pela apólice junta aos autos, a companhia de seguros é a responsável pela satisfação ao lesado dos danos emergentes do evento danoso decorrente de culpa exclusiva do condutor do veículo cuja circulação estava devidamente segurada, já que nos termos do artigo 64.º, n.º 1, alínea a), do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, as acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório, como acontece no caso dos autos.
Consequentemente, a ora Recorrente encontrava-se obrigada a satisfazer ao lesado os danos decorrentes do acidente de viação em causa, o que fez, pagando-lhe a quantia de 60.000,00€ a título de indemnização pelos danos patrimoniais ainda não pagos e por danos não patrimoniais, e suportou ainda todas as despesas emergentes do embate, designadamente com transportes, hospitalizações, honorários de médicos, demais despesas médicas e medicamentosas e período de baixa do lesado, que importaram no total de € 23.764,61.
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III.2.2. – Direito de regresso
Tendo efectuado o pagamento da indemnização ao lesado nos termos sobreditos, a Companhia de Seguros pretende agora por via desta acção exercer o direito de regresso contra o condutor do veículo em virtude de este ter abandonado o sinistrado no local do acidente, omitindo a devida prestação de auxílio, tendo peticionado o valor total que suportou.
Funda, portanto, o seu direito no artigo 27.º, n.º 1, alínea d), do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, de acordo com o qual, uma vez satisfeita a indemnização, a seguradora tem direito de regresso contra “o condutor, se não estiver legalmente habilitado, ou quando haja abandonado o sinistrado”.
A Mm.ª Juíza, depois de efectuar uma referência à discussão que esta matéria tinha vindo a gerar na doutrina e jurisprudência, ilustrando com acórdãos que assumiram cada uma das posições em confronto, - a saber: uma, que defende que o direito de regresso abrange todos os danos do acidente suportados pela seguradora e não apenas os danos específicos resultantes do abandono ou do agravamento dos danos em consequência desse facto; e, outra que considera que o direito de regresso, em caso de abandono do sinistrado pelo condutor, está limitado aos danos específicos do abandono, ou agravados pelo abandono, uma vez que os demais encontram-se abrangidos pelo contrato de seguro e nele se contêm -, aderiu na sentença recorrida, proferida em 14 de Setembro de 2015, a esta última posição «por considerar que é a que melhor se integra na unidade do sistema, pois que, sem deixar de apelar a valores de autorresponsabilização, solidariedade e respeito por terceiros, limita essa responsabilidade aos danos ou consequências gravosas não cobertas pelo seguro de responsabilidade civil, não isentando a seguradora dos danos cobertos pelo seguro. Assim, consideramos que o direito de regresso da seguradora está limitado aos danos específicos do abandono ou agravados pelo abandono do sinistrado».
Acontece que o Supremo Tribunal de Justiça[5], reunido em pleno das secções cíveis no dia 2 de Julho de 2015, pelo Acórdão n.º 11/2015, proferido no processo P.620/12.0T2AND.C1.S1, e publicado no Diário da República, 1.ª Série – N.º 183, de 18 de Setembro de 2015[6], escassos dias após a prolação da sentença recorrida, uniformizou jurisprudência, nos seguintes termos:
“O direito de regresso da seguradora contra o condutor que haja abandonado dolosamente o sinistrado, previsto na parte final da alínea c) do artigo 19.º do DL n.º 522/85, de 31/12, não está limitado aos danos que tal abandono haja especificamente causado ou agravado, abrangendo toda a indemnização paga ao lesado com fundamento na responsabilidade civil resultante do acidente”.
Efectivamente, no caso objecto desse acórdão a revista excepcional havia sido admitida por acórdão da competente formação, em virtude de ter por cumulativamente verificados os respectivos pressupostos (contradição jurisprudencial, ao nível do STJ, acerca da interpretação da norma em causa e relevância jurídica da questão), e, por despacho do Exm.º Conselheiro Presidente do STJ, nos termos do artigo 686.º, n.º 1, do CPC, foi determinado o julgamento ampliado da revista.
Conforme desse despacho decorre, foi reconhecido pelo Exm.º Conselheiro Presidente que o Supremo Tribunal de Justiça de há muito que se defronta com a controvérsia que constitui o assunto decidendo no objecto da presente revista, existindo decisões divergentes que não permitem considerar consolidado e estável o sentido da jurisprudência sobre a questão a decidir.
Pronunciaram-se no sentido de o direito de regresso da seguradora em caso de abandono do sinistrado abranger todos os danos emergentes do acidente, nomeadamente, os Acórdãos do Supremo Tribunal proferidos em 29.4.99 (revista 283/99), 24.5.2001 (revista 825/01), 27.9.2001 (revista 2198/01), 3.7.03 (revista 1272/03) e 13.10.2011 (revista 526/06). Mas pronunciaram-se no sentido de o mesmo direito de regresso, abranger apenas os danos acrescidos causalmente resultantes do facto do abandono, nomeadamente, os Acórdãos do Supremo Tribunal proferidos em 16.4.98 (revista 54/98), 16.12.99 (revista 787/99), 28.2.2002 (revista 192/02), 11.2.2003 (revista 74/03), 9.12.2004 (revista 2876/04), 29.11.2005 (revista 3380/05), 17.1.2006 (revista 2705/05), 30.5.2006 (revista 1219/06), 31.1.2007 (revista 4637/06), 15.3.2007 (revista 407/07), 1.7.2010 (revista 4006/04) e 3.4.2014 (revista 4525/11).
Considerando que não existe jurisprudência estável, torna-se provável a persistência de condições que não permitem fazer prevalecer uma das soluções em conflito. A segurança e a coerência aconselham, por isso, o julgamento ampliado da revista, estabelecendo precedente orientador susceptível de garantir a estabilidade da jurisprudência sobre a matéria em causa.
Do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência supra identificado, tirado por uma maioria a favor desse sentido de 18 Exm.ºs Juízes Conselheiros - para cujo texto remetemos, evitando repetição inútil -, constam exaustivamente os argumentos expendidos por quem defendia cada uma das posições referidas, e constam ainda as várias declarações de voto que espelham a divergência manifestada por 16 Exm.ºs Juízes Conselheiros relativamente ao sobredito sentido uniformizador. Ou seja, decorre do próprio Acórdão que continua a existir uma divisão muito significativa no nosso mais Alto Tribunal e argumentos muito importantes para defender a posição contrária à ali vertida, ou seja, a que consideraria que “o direito de regresso conferido à seguradora pelo artigo 19 alínea c) do D.L. 522/85, de 31/12, apenas abrange os danos derivados, concreta e directamente do abandono da vítima ou agravamento dos danos causados pelo acidente decorrentes desse abandono, e não a totalidade dos danos originados pelo acidente e que a seguradora indemnizou”, como consta, por exemplo, da declaração de voto do Exm.º Conselheiro Moreira Alves.
Como é sabido, ao contrário do que acontecia com o regime dos Assentos, que o artigo 2.º do Código Civil de 1966 integrava nas fontes normativas, os Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência não gozam de força vinculativa a não ser no âmbito do processo em que são proferidos, uma vez que do artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto que aprovou a Lei de Organização do Sistema Judiciário, decorre que os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores.
Não obstante, como sublinha o Exm.º Conselheiro Abrantes Geraldes, “o sistema tem convivido de forma salutar com a força persuasiva de tais arestos que é projectada pela conjugação de diversos factores: a solenidade do julgamento (Pleno das Secções Cíveis), a qualidade dos seus protagonistas e a valia da fundamentação, o que é demonstrado pelo generalizado respeito que as instâncias vêm demonstrando pelas soluções uniformizadoras que acabam por impor-se às polémicas jurisprudenciais que as precedem ou que procuram prevenir. (…)
Com efeito, malgrado a ausência de um efeito vinculativo extraprocessual, não seria coerente um sistema em que, admitindo uma tão solene forma de julgamento, não previsse mecanismos que lhe atribuíssem, ao menos, um carácter persuasivo.
Assim, ante a publicitação de uma solução uniformizadora emanada do Supremo, sem embargo de situações-limite em que outra solução seja justificada pelas circunstâncias, só uma incompreensível teimosia poderá justificar, na generalidade dos casos, o não acolhimento pelas instâncias da jurisprudência fixada (…) [s]aindo beneficiados com a resolução ou prevenção de querelas jurisprudenciais os valores da segurança e certeza do direito e também o princípio da igualdade perante a lei interpretanda, o incremento dessa actividade judicativa repercutir-se-á também, em termos mediatos, na redução da litigância, ante a perspectiva da previsível resposta a determinada questão jurídica que tenha sido objecto de uniformização jurisprudencial.
Através da uniformização de jurisprudência sai valorizada a competência que exclusivamente é atribuída ao Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, traduzida através de acórdãos com valor para-legislativo, ao mesmo tempo que, sanando ou prevenindo polémicas jurisprudenciais, potencia os factores da segurança e da certeza na aplicação do direito, contribuindo também para a maior eficácia e celeridade do sistema judiciário”[7].
Assim, tendo presentes os valores de segurança e certeza do direito e o princípio da igualdade que os Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência visam potenciar, e volvendo ao caso dos autos – reportado a acidente que aconteceu já após a vigência da alteração introduzida ao regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel pelo DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto[8] -, consideramos que, apesar de o citado Acórdão de Uniformização de jurisprudência se ter pronunciado sobre um acidente ocorrido ainda na vigência do artigo 19.º, alínea c), do DL n.º 522/85, de 31/12, o seu sentido uniformizador deverá aplicar-se nos mesmos termos ao artigo 27.º, n.º 1, alínea d) do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, que tem a mesma exacta redacção daquele indicado normativo.
Efectivamente, o direito de regresso por banda da seguradora contra o condutor que abandonou o sinistrado, foi definido pelo legislador no artigo 27.º do DL n.º 291/07, nos precisos termos em que já constava do texto do citado artigo 19.º do DL n.º 522/85, diferentemente do que ocorreu com o preceituado no tocante à condução sob efeito do álcool.
De facto, como se aduziu no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, “[s]aliente-se que esta previsão normativa, constando do texto do citado art. 19º, foi integralmente mantida no art. 27º do DL 291/07 (apesar de o legislador, ao editar este diploma, não desconhecer seguramente as dúvidas e controvérsias que a interpretação da referida norma já então suscitava na jurisprudência)…
Na verdade, dificilmente haveria forma mais inadequada de o legislador se exprimir, se pretendesse restringir o direito de regresso aos danos causados ou agravados especificamente em consequência do abandono doloso do sinistrado: efectivamente, o preceito, no seu sentido literal e imediato, parece pretender ligar o surgimento do direito de regresso ao simples facto do abandono da vítima, sem aludir minimamente à exigência de um qualquer nexo causal entre tal facto do abandono e os danos cujo ressarcimento fundaria a acção de regresso da seguradora”.
Reconhecendo - como afirmado na declaração de voto do Exm.º Conselheiro Paulo Sá -, que o argumento da manutenção pelo legislador do mesmo texto pode ser reversível, o certo é que no caso em apreço não deixa de impressionar porquanto, sendo já longas e conhecidas as divergências jurisprudenciais existentes sobre a interpretação da alínea c) do artigo 19.º, fácil teria sido ao legislador proceder à alteração desta alínea, como fez no caso da condução sob o efeito do álcool, clarificando a sua intenção.
Ora, até por comparação com o regime anterior, devemos notar, como salienta o Acórdão Uniformizador, que a evolução legislativa ocorrida na passagem do DL 522/85 para a actual lei do seguro obrigatório automóvel, parece fazer-se no sentido de (ao menos na literalidade dos preceitos) acentuar a vertente de objectividade no funcionamento dos pressupostos do direito de regresso atribuído à seguradora: assim, desde logo, no que respeita à condução sob influência do álcool e estupefacientes, o art. 27º al. c) do DL 291/07 prescreve agora que a seguradora tem direito de regresso contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos.
Esta alteração teve já reflexos na jurisprudência sobre a matéria, que se debruçou sobre acidente ocorrido após a entrada em vigor do DL n.º 291/2007, de que é exemplo o recente Ac. de 09-10-2014, proferido pelo STJ no P. 582/11.1TBSTB.E1.S1, em que se decidiu que: Não é exigível o nexo de causalidade entre a alcoolemia e os danos: à seguradora basta alegar e demonstrar a taxa de alcoolemia do condutor na altura do acidente, sendo irrelevante a relação de causa e efeito entre essa alcoolemia e o acidente, ou seja, os factos em que se materializa a influência do álcool na condução e que eram relevantes na vigência do DL nº 522/85, de 31-12, na interpretação do AUJ nº 6/2002.
Deste modo, ponderando que o elemento literal em nada favorece a interpretação restritiva ou correctiva do âmbito da norma, tanto mais que o legislador não viu necessidade de esclarecer a respectiva intenção na alteração efectuada ao regime do seguro obrigatório automóvel; que pode considerar-se que, de um ponto de vista funcional, à acção de regresso deva atribuir-se a natureza de sanção civil, “levando as finalidades de prevenção geral e de reforçada censura ético-jurídica de determinadas condutas estradais à personalização da responsabilidade do seu autor, apagando ou precludindo, no plano das relações internas entre seguradora e tomador/beneficiário do seguro, a garantia de cobertura dos riscos de circulação que normalmente decorreria da vigência do contrato”; concluímos nos termos já referidos pela aplicação do sentido em que a jurisprudência foi uniformizada relativamente à alínea c) do artigo 19.º do DL n.º 522/95, de 31-12. à norma hoje contida no artigo 27.º alínea d), do DL n.º 291/2007, considerando que o direito de regresso da seguradora contra o condutor que haja abandonado dolosamente o sinistrado, não está limitado aos danos que tal abandono haja especificamente causado ou agravado, mas abrangendo toda a indemnização paga ao lesado com fundamento na responsabilidade civil resultante do acidente.
Porém, como novamente no Acórdão Uniformizar se recorda, a aplicação, como acontece neste tipo de situação -, de uma clara sanção de natureza patrimonial ao condutor do veículo segurado, mesmo que situada no estrito domínio das relações civis, nunca poderá funcionar em termos puramente objectivos e automáticos pela mera verificação da factualidade objectiva resultante, no caso, do artigo 27.º, sendo indispensável que se efectue quanto à própria factualidade constitutiva do direito de regresso, um juízo de censura incidente sobre a conduta do agente e contemplando, por exemplo, a possível ocorrência de causas de exclusão da culpa.
No caso dos autos é, portanto, indispensável que o condutor que se encontra vinculado à obrigação de regresso tenha dado causa ao acidente - em qualquer uma das modalidades de responsabilidade civil: por factos ilícitos ou objectiva -, ou seja, que se verifiquem os pressupostos para que exista obrigação por parte da seguradora de satisfazer uma indemnização ao lesado; e ainda que o condutor tenha actuado censuravelmente na prática do acto em que a seguradora alicerça directamente o respectivo direito.
Finalmente, importa ainda atentar no princípio estruturante da adequação e da proporcionalidade, não podendo admitir-se em face do mesmo que infracções muito pouco relevantes no plano ético jurídico, cometidas em circunstâncias que justificariam um reduzido ou francamente atenuado juízo de censura, possam conduzir a drásticas perdas patrimoniais, que ponham em causa a sobrevivência económica do obrigado em via de regresso.
Nestes termos, ponderando a matéria de facto provada, da qual claramente decorre que o acidente se deveu a culpa exclusiva do condutor do veículo segurado na autora, ou seja, que por força do contrato de seguro esta estava constituída na obrigação de indemnizar o lesado – cfr. pontos 7 a 10; e que o abandono do sinistrado pelo condutor se deveu a facto doloso deste e fortemente censurável, já que o mesmo, sabendo que embatera num ciclomotor - o que desde logo potencia maior gravidade de danos para o tripulante deste -, num local ermo, sem habitações nas redondezas e no qual não se conseguiam ligações por telemóvel, acrescendo que a estrada tinha pouco movimento, e apercebendo-se da queda da vítima, não saiu do carro, não imobilizou o veículo que conduzia, não cuidou de saber do seu estado, não lhe prestou auxílio e pôs-se em fuga.
Desta sua actuação resultou que a vítima, que se encontrava gravemente ferida, e devido a tais ferimentos não conseguia levantar-se do chão para pedir socorro, só conseguiu obter ajuda cerca de quinze minutos mais tarde devido aos seus gritos de socorro que, foram ouvidos por agricultores que se encontravam nas imediações, que o encontraram e chamaram o INEM.
Consequentemente, no presente caso, são elevadas quer a gravidade da infracção quer a culpa do condutor, na modalidade de dolo, sendo adequado e proporcional que suporte as consequências do exercício do direito de regresso por parte da seguradora.
Nestes termos, procede o presente recurso, devendo o réu ser condenado na totalidade da quantia peticionada de 83.764,61 €, acrescida de juros à taxa legal, desde a citação - ocorrida em 23 de Setembro de 2014 - até integral pagamento, e não apenas em 10% desse montante como foi decidido.
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III.3. - Síntese conclusiva
- A questão de saber se a Companhia de Seguros tem direito a ser ressarcida da totalidade dos montantes por si pagos ao lesado em virtude de acidente de viação seguido de abandono do sinistrado, pelo qual o condutor do veículo segurado foi o único responsável, ou se apenas tem esse direito quando do abandono resultem danos específicos ou o agravamento dos danos decorrentes do acidente, tem sido objecto de diferentes entendimentos na doutrina e jurisprudência.
II - Porém, o Supremo Tribunal de Justiça, pelo Acórdão n.º 11/2015, uniformizou jurisprudência, nos seguintes termos: “O direito de regresso da seguradora contra o condutor que haja abandonado dolosamente o sinistrado, previsto na parte final da alínea c) do artigo 19.º do DL n.º 522/85, de 31/12, não está limitado aos danos que tal abandono haja especificamente causado ou agravado, abrangendo toda a indemnização paga ao lesado com fundamento na responsabilidade civil resultante do acidente”.
III - Tendo presentes os valores de segurança e certeza do direito e o princípio da igualdade que os Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência visam potenciar, e apesar de no caso dos autos o acidente ter acontecido já após a vigência da alteração introduzida ao regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel pelo DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, consideramos que o seu sentido uniformizador deverá aplicar-se nos mesmos termos ao artigo 27.º, n.º 1, alínea d) deste diploma, que tem a mesma exacta redacção daquele indicado normativo.
IV - Porém, tratando-se da aplicação de uma clara sanção de natureza patrimonial ao condutor do veículo segurado, mesmo que situada no estrito domínio das relações civis, nunca poderá funcionar em termos puramente objectivos e automáticos pela mera verificação da factualidade objectiva resultante do referido artigo 27.º.
V - É, portanto, indispensável que o condutor que se encontra vinculado à obrigação de regresso tenha dado causa ao acidente - em qualquer uma das modalidades de responsabilidade civil: por factos ilícitos ou objectiva -, ou seja, que se verifiquem os pressupostos para que exista obrigação por parte da seguradora de satisfazer uma indemnização ao lesado; e que o condutor tenha actuado censuravelmente na prática do acto em que a seguradora alicerça directamente o respectivo direito; finalmente, importa ainda apreciar da adequação e proporcionalidade das consequências do exercício do direito de regresso por parte da seguradora, à gravidade da infracção praticada pelo condutor.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar integralmente procedente o presente recurso, revogando a sentença recorrida na parte em que absolveu parcialmente o Réu BB do pedido, e condenando-o a pagar à Autora AA – Companhia de Seguros, SA, a quantia de € 83 764,61 (oitenta e três mil, setecentos e sessenta e quatro euros e sessenta e um cêntimos), acrescida de juros à taxa legal desde a citação, até efectivo e integral pagamento.
Custas pelo Réu, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi oportunamente concedido.
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Évora, 16 de Junho de 2016


Albertina Pedroso [9]


Elisabete Valente


Bernardo Domingos








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[1] Distribuído à ora Relatora em 10-05-2016.
[2] Relatora: Albertina Pedroso;
1.º Adjunto: Elisabete Valente;
2.º Adjunto: Bernardo Domingos.

[3] Doravante abreviadamente designado CPC.
[4] Doravante abreviadamente designado CC.
[5] Doravante abreviadamente STJ.
[6] Do qual constam as citações que efectuaremos em seguida, que não tenham outra menção.
[7] Uniformização de Jurisprudência, in Texto que segundo o autor serviria de base à intervenção programada no Colóquio realizado no Supremo Tribunal de Justiça, no dia 25-6-2015, disponível em http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/ager_MA_26301.pdf.
[8] Que transpôs parcialmente para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que alterou as Directivas n.ºs 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Directiva n.º 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis.
[9] Texto elaborado e revisto pela Relatora.