Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
529/14.3T8STB-E.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: INSOLVÊNCIA
AUDIÊNCIA DO REQUERIDO
NULIDADE DA SENTENÇA
Data do Acordão: 07/15/2015
Votação: RELATOR
Texto Integral: S
Sumário: O art.17º-G, nº 4, do CIRE estipula que o administrador judicial provisório deverá emitir o seu parecer sobre se o devedor se encontra em situação de insolvência e, em caso afirmativo, requerer a insolvência do devedor, aplicando-se o disposto no art. 28.º, “com as necessárias adaptações”, sendo que esta última expressão não pode ser considerada, de todo, como inócua e, por isso, no caso em apreço, não poderá ser aplicado o art. 28º, “tout court”, ou seja, sem ser dada a possibilidade ao devedor que não concorde com tal pedido de insolvência de, previamente, ser ouvido e de, querendo, deduzir oposição ao mesmo e/ou apresentar plano de pagamentos e até de requerer a exoneração do passivo.
Sumário do Relator
Decisão Texto Integral: P. 529/14.3T8STB-E.E


Na sequência de Processo Especial de Revitalização em que é devedor (…), veio tal processo a ser encerrado por não ter sido possível o respectivo acordo com os credores.
Por isso, o Administrador Judicial Provisório requereu que, nos termos do artigo 17º-G, nº 4, do CIRE, seja apresentado à insolvência o referido devedor, por se encontrar impossibilitado de cumprir com as suas obrigações, preservando-se, no entanto, a faculdade legal deste último vir a apresentar o respectivo plano de pagamentos, para o que deverá aquele ser previamente citado para esse efeito, ao abrigo do disposto nos arts. 29º, nºs 1 e 2 e 253º do CIRE.
Foi então instaurado processo de insolvência, sendo que a Mm.ª Juiz “a quo”, de imediato e sem a audição do devedor, veio a proferir sentença, na qual declarou insolvente o devedor acima identificado, tendo por confessada a situação de insolvência do mesmo face ao Parecer do Administrador Judicial Provisório e ao estipulado nos arts. 17º-G, nº 4 e 28º do CIRE.

Porém, inconformado com tal decisão dela apelou o insolvente tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
A. Com a não aprovação do plano de recuperação em sede de processo especial de revitalização, o requerimento do administrador judicial provisório é equiparado à apresentação à insolvência pelo próprio devedor e a aplicação do disposto no artigo 280º do CIRE é efectuada, conforme decorre expressamente do nº 4 do citado artigo 17°-G, "com as necessárias adaptações".
B. As "necessárias adaptações" impõem a possibilidade de o devedor que não concorde com a declaração de insolvência deduzir oposição à mesma e/ou apresentar recurso.
C. Ou seja, apesar de ser equiparado a uma apresentação, certo é que não podem deixar de ser observados os formalismos legais inerentes ao pedido de insolvência por terceiros, designadamente os plasmados no art. 253º do CIRE, concedendo ao devedor a possibilidade de se pronunciar sobre tal pedido de insolvência.
D. Sucede que, nos presentes autos o aqui devedor nem sequer teve a possibilidade de apresentar oposição, tendo-se visto confrontado, desde logo, com a declaração de insolvência.
E. Salvo o devido e maior respeito, entende o aqui recorrente que não só deveria ter sido citado para apresentar oposição, como, inclusivamente, para, querendo apresentar plano de pagamentos e ainda requerer a exoneração do passivo, o que, no caso em apreço, lhe foi manifestamente negado.
F. O que, salvo o reiterado respeito, configura uma nulidade insanável e uma preterição crassa do princípio do contraditório, constitucionalmente consagrado.
G. De facto, e confrontado com a sentença proferida, o aqui recorrente, arguiu, desde logo, a nulidade da citação, porque a mesma não continha, a indicação da possibilidade de apresentar plano de pagamentos, tal como preceituado no art. 253º do CIRE.
H. Nulidade que viria a não ser reconhecida pelo Exmo. Sr. Juiz a quo, conforme despacho proferido a 30 de Outubro de 2014.
I. Dispõe o nº 1 do artigo 3° do CIRE: "é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas".
J. Note-se que a apreciação desta "impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas" tem de ser habilmente conjugada com o activo do devedor.
K. Analisando o passivo e o activo do devedor, verifica-se, sem qualquer margem para dúvida, ser este manifestamente superior àquele, senão vejamos:
L. Quanto ao passivo, analisada a lista provisória de credores nos autos do processo especial de revitalização, resulta o montante global de 144.917,63 €, sendo que tal montante se divide na essência por dois credores que representam cerca de 99% da totalidade do passivo, o Banco (…) (associado ao imóvel da propriedade do aqui recorrente) e o Banco (…) (associado a um leasing de um veículo).
M. Sendo certo que o crédito do Banco (…) está inclusivamente a ser cumprido pontualmente.
N. Já no que diz respeito ao activo, consta da sentença de declaração de insolvência que o mesmo é composto por um imóvel e um veículo automóvel, estando os dois avaliados no montante de 104.000,00.
O. Ora, sucede que, para além dos dois bens supra melhor identificados, não poderão ser desconsiderados os rendimentos do aqui recorrente.
P. De facto, e como consta da sentença ora em recurso, o aqui recorrente é jogador profissional de futebol e tem um contrato de trabalho que determina que para a época desportiva de 2014/2015 irá auferir o vencimento anual de 60.000,00 € e para a época desportiva de 2015/2016 irá auferir o vencimento anual de 70.000,00.
Q. Nos termos do art. 3°, nº 1, do CIRE é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
R. Nos dizeres de LUIS CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, "o que, verdadeiramente, releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciem a impotência para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos".
S. Face aos valores supra evidenciados e constantes já da própria sentença de insolvência do passivo, activo e rendimentos anuais do aqui recorrente, entendemos que não se verificam os pressupostos da declaração de insolvência.
T. A situação económica do requerente apresenta dificuldades, é certo, o que motivou a apresentação do processo especial de revitalização, mas não é de tal modo grave que justifique a sua insolvência.
U. Salvo o devido respeito por opinião diversa, não só o passivo do aqui recorrente não é demasiado alto, como o seu activo conjuntamente com os seus rendimentos se revelam mais do que suficientes para fazer face às suas responsabilidades.
V. Do exposto relativamente ao passivo do devedor e da análise dos documentos constantes dos autos verifica-se não existir qualquer impossibilidade de incumprimento das obrigações vencidas por parte do insolvente.
W. Sendo certo que a insolvência apenas terá sido decretada pelo facto de o tribunal, eventualmente sugestionado pelo parecer junto aos autos pelo Administrador Judicial Provisório, não ter analisado de forma cuidada os elementos constantes dos autos.
X. Sendo certo que, relativamente às dívidas existentes não existe qualquer impossibilidade de cumprimento por parte do devedor.
Y. Não se encontrando, desta forma, demonstrada nos autos a situação de insolvência do devedor aqui recorrente.
Z. Não tendo o aqui recorrente confessado ou aceitado a situação de insolvência.
AA. Ademais, um dos credores, o Banco (…), demonstrou inclusivamente a sua oposição à declaração de insolvência do aqui recorrente.
BB. Quanto ao plano de recuperação apresentado pelo aqui devedor, o mesmo não foi aprovado única e exclusivamente porque um dos credores votou contra.
CC. Note-se que os demais credores votaram favoravelmente o Plano ou nem sequer emitiram qualquer declaração de voto.
DD. Da simples não aprovação do plano por parte dos credores não resulta de forma imediata o estado de insolvência do devedor.
EE. Sendo que tal interpretação é manifestamente inconstitucional por crassa violação do princípio do contraditório.
FF. A não aprovação do plano no âmbito do processo especial de revitalização, terá de ser analisado casuisticamente, razão pela qual a lei determina a audição do devedor e dos credores previamente á elaboração do parecer por parte do Administrador Judicial Provisório.
GG. Não sendo esta, insiste-se, uma consequência directa a não aprovação do plano.
HH. De tudo quanto ficou exposto verifica-se não se encontrar demonstrada nos autos a situação de insolvência do devedor, não constando dos autos qualquer impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas nem qualquer insuficiência do activo em relação ao passivo.
II. Impondo-se, assim, a revogação da sentença dec1aratória da insolvência, com todas as consequências legais.
Sem prescindir, sempre se dirá o seguinte:
JJ. Pese embora o exposto, na hipótese – que apenas por mero dever de patrocínio se admite – de se entender encontrar-se o devedor em estado de insolvência, desde já se pugna pela nulidade da citação do aqui recorrente, na medida em que, da mesma, não constava a possibilidade de apresentação de uma proposta de plano de pagamentos ou sequer de requerer a exoneração do passivo restante.
KK. E não se diga, como consta no despacho que apreciou a nulidade da citação que se o devedor não logrou aprovar um plano em sede de processo especial de revitalização, menos logrará em sede de plano de pagamentos.
LL. Salvo o reiterado respeito, nada na lei impede que os credores votem de forma distinta em sede de processo especial de revitalização e em sede de processo de insolvência.
MM. Da mesma forma que nada na lei obriga a que o devedor apresente o mesmo plano e as mesmas condições de pagamento nas duas sedes supra referidas, o que poderá, indiscutivelmente, alterar o sentido de voto dos credores.
NN. Mais se enfatizando que esse seria precisamente o que iria acontecer no presente caso, já que no plano de pagamentos a apresentar, o mesmo contemplaria as condições de pagamento do crédito do credor (…) por aquele sugeridas, o que iria, obviamente, levar à aprovação inequívoca do Plano de pagamentos.
OO. O processo especial de revitalização foi criado para agilizar as negociações entre devedor e credores com vista à revitalização dos devedores, sendo que é inequívoco que o processo especial de revitalização não veio substituir o processo de insolvência.
PP. Em sede do processo de insolvência continuam a existir duas vias, a da liquidação e a da recuperação, INDEPENDENTEMENTE do processo ter sido precedido de processo especial de revitalização.
QQ. E salvo o elevado respeito, com a decisão ora em recurso e as omissões constantes da citação do devedor da declaração de insolvência, o Tribunal a quo está a impedir o devedor e os seus credores de optarem, em sede de processo de insolvência, pela via da recuperação, por via de plano de pagamentos, uma vez que se trata de uma pessoa singular.
RR. Conforme dispõe o art. 1º do CIRE, "o processo de insolvência é um processo de execução universal, que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado nomeadamente na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores".
SS. Ora, a recuperação é, como decorre, da leitura do primeiro artigo do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a via preferencial a adoptar em sede dos processos de insolvência.
TT. Via essa que por força da sentença de insolvência proferida nos termos constantes da mesma, bem como dos despachos de 22/10/2014 e de 30/10/2014 que se pronunciaram no sentido de não ser admissível a apresentação de plano de pagamentos, está totalmente VEDADA AO AQUI RECORRENTE.
UU. Sendo tal interpretação manifestamente contrária à lei e violadora do princípio constitucional de acesso à justiça, inconstitucionalidade que pelo presente recurso se argui e pretende ver reconhecida com as demais consequências legais.
VV. Sendo que o supra exposto em relação à possibilidade de apresentação de plano de pagamentos aplica-se igualmente à possibilidade de apresentação de pedido de exoneração do passivo restante, o qual se encontra igualmente vedado atendendo ao entendimento do Tribunal a quo.
WW. Neste sentido, entende o ora recorrente que, a omissão constante da sentença e da citação da mesma ao devedor, da possibilidade de apresentar plano de pagamentos e requerer exoneração do passivo restante configura uma nulidade.
XX. Nulidade essa que pelo presente se requer e pretende ver reconhecida com as demais consequências legais.
YY. Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser declarado procedente e em consequência ser a decisão de declaração de insolvência proferida pelo Tribunal da Primeira Instância ser revogada com as demais consequências legais.
ZZ. Sem prescindir e se tal não for doutamente entendido, Ser reconhecida a possibilidade do devedor apresentar plano de pagamentos e/ou exoneração do passivo restante.
AAA. Sem prescindir, Ser reconhecida a nulidade da sentença e da citação invocadas, tudo com as demais consequências legais.

Não consta dos autos que tenham sido apresentadas contra alegações ao recurso interposto pelo insolvente.
Atenta a não complexidade das questões a dirimir o relator irá fazer uso da faculdade que lhe é conferida pelas disposições conjugadas dos arts. 652º, nº 1, alínea c) e 656º, ambos do C.P.C., e apreciar essas questões jurídicas mediante decisão singular apenas por si proferida.

Cumpre apreciar e decidir:
Como se sabe, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635º, nº 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 4 do mesmo art. 635º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pelo insolvente, ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação das seguintes questões:
1º) Saber se a insolvência do devedor não podia ter sido decretada sem que o mesmo fosse citado para esse efeito, nomeadamente para, querendo, deduzir oposição e/ou apresentar plano de pagamentos, bem como requerer a exoneração do passivo, omissão essa que, além de violar o princípio do contraditório constitucionalmente consagrado, constitui também uma nulidade insanável que importa declarar;
2º) Saber se não está demonstrada a situação de insolvência do devedor, uma vez que não se apurou a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, nem qualquer insuficiência do activo em relação ao passivo.

Com o intuito de apreciar as questões suscitadas pelo recorrente importará saber, antes de mais, qual a factualidade apurada nos autos relativa ao pedido de declaração de insolvência do devedor.
Porém, da análise da decisão recorrida (cfr. fls. 7 a 11 deste Apenso) resulta claro e evidente que a mesma não especifica ou determina quaisquer factos em concreto que a justifiquem, sendo, por isso, tal decisão nula, nos termos do disposto na alínea b) do nº 1 do art. 615º do C.P.C. – sublinhado nosso.
Na verdade, convirá referir a esse propósito que, como é sabido «a lei não traça um conceito de nulidade de sentença, bastando-se com a enumeração taxativa de várias hipóteses de desconformidade com a ordem jurídica que, uma vez constatadas na elaboração da sentença, arrastam à sua nulidade» – cfr. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 4ª ed., págs. 46/47.
Esse elenco taxativo das causas de nulidade da sentença consta das alíneas a) a e) do nº 1 do art. 615º do C.P.C.
Ora, a alínea b) deste normativo comina a sentença de nula “quando [ela] não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
As decisões judiciais (sejam elas sentenças ou simples despachos) carecem de ser fundamentadas: assim o impõem, desde logo, o art. 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa e, ao nível da lei adjectiva ordinária, o art. 154º, nº 1, do C.P.C..
Especificamente no que à sentença diz respeito, o art. 607º, nº 3, do C.P.C., ao ocupar-se daquela parte da sentença que designa por “fundamentos”, impõe ao juiz o dever de “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes” – sublinhado nosso.
Porém, «para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito» – cfr. Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 2001, pág. 669; Antunes Varela, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., 1985, pág. 687; cfr., igualmente no sentido de que «a falta de motivação susceptível de integrar a nulidade de sentença é apenas a que se reporta à falta absoluta de fundamentos quer estes respeitem aos factos quer ao direito», Amâncio Ferreira, obra citada, pág. 48.

Por isso, «a motivação incompleta, deficiente ou errada não produz nulidade, afectando somente o valor doutrinal da sentença e sujeitando-a consequentemente ao risco de ser revogada ou alterada quando apreciada em recurso» – cfr. Amâncio Ferreira, ibidem.
«Para que haja falta de fundamentos de facto, como causa de nulidade de sentença, torna-se necessário que o juiz omita totalmente a especificação dos factos que considere provados, de harmonia com o que se estabelece no nº 3 do art. 659º (actual 607º), e que suportam a decisão» – cfr. Amâncio Ferreira, ibidem e Antunes Varela, obra citada, pág. 688 – sublinhado nosso.
Assim sendo, nos termos da referida alínea b) do nº 1 do citado art. 615º, resulta claro que a decisão só estará ferida de nulidade se estiver total e absolutamente desprovida de fundamentação, quer ao nível da descrição da factualidade dada como provada e não provada, quer ao nível do direito aplicado – sublinhado nosso.
Ora - como se extrai da decisão sob recurso proferida pelo tribunal “a quo” e junta a fls. 7 a 11 deste Apenso – tal decisão não concretiza, não descrimina, não enumera, nem, contém, quais os factos tidos por provados e não provados, nem tão pouco a respectiva fundamentação da factualidade apurada e não apurada, desrespeitando, desta forma, totalmente, o estipulado no art. 607º, nºs 3 e 4, do C.P.C. – sublinhado nosso.
Com efeito, a M.ma Juiz “a quo” limitou-se a dizer a tal respeito o seguinte:
- (…) tendo em consideração o Parecer do Administrador Judicial Provisório e o disposto no artigo 17º-G, nº 4 e 28º do CIRE, temos confessada a situação de insolvência pelo devedor – cfr. art. 28º do CIRE, dando-se, assim, por reproduzidos todos os factos elencados no parecer e bem assim os resultantes dos documentos juntos com o Processo Especial de Revitalização.
Além do efeito previsto no art. 28º do CIRE, atentou-se ainda em toda a prova documental apresentada nos autos.

Ora, da transcrição supra efectuada, resulta claro que a Mm.ª Juiz “a quo” não indicou quais são os factos em concreto (constantes do Parecer e/ou dos documentos juntos com o PER) que, no seu entendimento, justificam a sua decisão, no que tange à aplicação do Direito, sendo certo que constitui jurisprudência pacífica dos nossos Tribunais Superiores que, na sentença, a enumeração dos factos provados não pode ser feita por simples remissão para o conteúdo de documentos juntos aos autos – cfr., nesse sentido, entre outros, os Acs. da R.C. de 3/5/1994 e de 28/3/1995, respectivamente in BMJ 437, pág. 602 e BMJ 445, pág. 628, bem como o Ac. do STJ de 3/5/1995, in CJSTJ, Tomo 2º, pág.277 (sublinhado nosso).
Assim, face à omissão dos factos tidos por provados e não provados e respectiva análise crítica das provas (nomeadamente as constantes dos autos principais), que se verifica na decisão sob censura, não tem este Tribunal Superior quaisquer elementos (fácticos) que lhe permitam apurar da justeza e da bondade da decisão recorrida e, nomeadamente, para aferir da existência, ou inexistência, “in casu”, dos pressupostos para que seja decretada, ou não, a insolvência do devedor, ora apelante.
Daí que, atenta a já mencionada omissão de qualquer factualidade apurada na decisão recorrida, não permitindo a sua sindicância por este Tribunal Superior para apreciar, nomeadamente, a referida verificação (ou não) dos requisitos da situação de insolvência do devedor – e a consequente impossibilidade de o mesmo cumprir com as suas obrigações vencidas (cfr. art. 3º, nº 1, do CIRE) – forçoso é concluir que esta Relação terá, oficiosamente, de anular tal decisão, o que desde já se determina e que, aliás, lhe é permitido pelo estipulado na alínea c) do nº 2 do art. 662º do C.P.C. (cfr., nesse sentido, entre outros, o Ac. da R.L. de 1/7/99, CJ, 1999, Tomo 4º, pág. 90, por referência ao art. 712º, nº 4, do velho C.P.C.) – sublinhado nosso.

Por fim, sempre se dirá que, em situação totalmente similar e análoga à destes autos, pronunciou-se já o signatário – no mesmo sentido ao da presente decisão – no P. 1040/10.7TBABT.E1, da 2ª secção, desta Relação, por aresto datado de 2/12/2011, já devidamente transitado em julgado.
Em consequência, deverão os autos prosseguir os seus ulteriores termos na 1ª instância, com a prolação de nova decisão, na qual venha a ser fixada a matéria fáctica apurada e não apurada e respectiva fundamentação, bem como venha a ser efectuado (de novo) o respectivo enquadramento jurídico ao caso dos autos – sublinhado nosso.

Por outro lado, resulta ainda da análise dos autos que foi proferida sentença neste processo de insolvência sem que o devedor tenha sido previamente ouvido para se pronunciar sobre tal pedido, nomeadamente para, querendo, deduzir oposição e/ou apresentar plano de pagamentos, bem como requerer a exoneração do passivo.
Ora, tal omissão é expressamente levantada pelo apelante – como primeira questão do recurso por ele interposto – omissão essa que, no seu entendimento, viola o princípio do contraditório e constitui também uma nulidade insanável que importa seja declarada nesta Relação.
Assim – e apreciando de imediato tal questão suscitada pelo recorrente – importa dizer a tal respeito que a Mm.ª Juiz “a quo” entendeu aplicar ao caso em apreço o art. 28º do CIRE, por força do disposto no nº 4 do art. 17º-G, do mesmo diploma legal e, por via disso, proferiu, de imediato, sentença a declarar a insolvência do devedor sem que, previamente, este tenha sido ouvido para, querendo, se pronunciar sobre tal pedido.
Todavia, o citado nº 4 do art. 17º-G estipula que o administrador judicial provisório deverá emitir o seu parecer sobre se o devedor se encontra em situação de insolvência e, em caso afirmativo, requerer a insolvência do devedor, aplicando-se o disposto no art. 28.º, com as necessárias adaptações (sendo o PER apenso ao processo de insolvência) – sublinhado nosso.
No entanto, a expressão “com as necessárias adaptações” que o legislador inseriu em tal preceito não pode ser considerada, de todo, como inócua e, por isso, no caso em apreço, não poderá ser aplicado o art. 28º, tout court, ou seja, sem ser dada a possibilidade ao devedor que não concorde com tal pedido de insolvência de ser ouvido e de, querendo, deduzir oposição ao mesmo e/ou apresentar plano de pagamentos e até de requerer a exoneração do passivo.
Com efeito, não poderão aqui deixar de ser observados os formalismos inerentes ao pedido de insolvência feito por terceiros – pois o administrador judicial provisório é, manifestamente, um “terceiro” relativamente ao devedor, ora apelante – designadamente, concedendo-se ao devedor a possibilidade de o mesmo se poder vir a pronunciar sobre tal pedido de insolvência.
Assim sendo, constatando-se que, “in casu”, foi proferida sentença a declarar a insolvência do devedor, sem a sua audição prévia, haverá, inexoravelmente, a omissão de um acto que influi no exame e decisão da causa – o que constitui nulidade (cfr. art. 195º, nº 1, do C.P.C.) – omissão essa que viola também o princípio geral do contraditório, o qual tem consagração expressa na nossa lei processual civil e é também aplicável aos processos de insolvência – cfr. art. 3º, nº 3, do C.P.C. e 17º do CIRE.
Daí que, também pelas razões supra referidas, a sentença recorrida não se poderá manter, revogando-se a mesma em conformidade, anulando-se também todo o processado subsequente ao pedido de insolvência efectuado pelo administrador judicial provisório e determinando-se que o devedor, ora apelante, seja ouvido para, em 10 dias, querendo, deduzir oposição ao mesmo e/ou apresentar plano de pagamentos e até requerer a exoneração do passivo – cfr. arts.17º-G, nº 4, 28º, 29º, 30º, 236º e 253º, todos do CIRE (sublinhado nosso).
Deste modo, face à revogação da decisão sob censura, fica totalmente prejudicado o conhecimento da segunda questão suscitada pelo insolvente, ora apelante, no recurso ora em análise (isto é, saber se não está demonstrada a situação de insolvência do devedor, uma vez que não se apurou a impossibilidade de cumprimento das suas obrigações vencidas, nem qualquer insuficiência do activo em relação ao passivo).

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Sumário (art. 663º, nº 7, do C.P.C.):
- Da análise da decisão recorrida resulta claro que a Mm.ª Juiz “a quo” não indicou quais são os factos em concreto (constantes do Parecer e/ou dos documentos juntos com o PER) que, no seu entendimento, justificam a sua decisão, no que tange à aplicação do Direito, sendo certo que constitui jurisprudência pacífica dos nossos Tribunais Superiores que, na sentença, a enumeração dos factos provados não pode ser feita por simples remissão para o conteúdo de documentos juntos aos autos, pelo que tal decisão é nula, atento o disposto na alínea b) do nº 1 do art. 615º do C.P.C.
- O art.17º-G, nº 4, do CIRE estipula que o administrador judicial provisório deverá emitir o seu parecer sobre se o devedor se encontra em situação de insolvência e, em caso afirmativo, requerer a insolvência do devedor, aplicando-se o disposto no art. 28.º, “com as necessárias adaptações”, sendo que esta última expressão não pode ser considerada, de todo, como inócua e, por isso, no caso em apreço, não poderá ser aplicado o art. 28º, “tout court”, ou seja, sem ser dada a possibilidade ao devedor que não concorde com tal pedido de insolvência de, previamente, ser ouvido e de, querendo, deduzir oposição ao mesmo e/ou apresentar plano de pagamentos e até de requerer a exoneração do passivo.

Decisão:

Pelo exposto, decide-se julgar procedente o presente recurso de apelação e, em consequência, revoga-se a sentença proferida pelo tribunal “a quo” e anula-se também todo o processado subsequente ao pedido de insolvência efectuado pelo administrador judicial provisório, nos exactos e precisos termos já acima devidamente explanados.
Custas pela parte vencida a final.

Évora,15/7/2015
Rui Machado e Moura
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[1] Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).