Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
49/21.0GTEVR-C.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: ILÍCITO CRIMINAL
ELEMENTO SUBJECTIVO
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
CENSURABILIDADE
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. O dolo consiste no conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade. A doutrina conceptualiza-o, sintetizando que corresponde ao conhecimento (elemento intelectual) e vontade de realização do tipo objetivo de ilícito (elemento volitivo).
II. O seu elemento intelectual traduz a representação da realização do facto ilícito (a consciência psicológica, ou consciência intencional) das circunstâncias do facto que preenche um tipo de ilícito objetivo.
III. Por seu turno o elemento volitivo, ligado ao elemento intelectual, serve para indicar uma posição ou atitude do agente contrária ou indiferente à norma de comportamento. Supõe uma decisão de vontade do agente para a realização de um ilícito-típico, por via de uma ação (ou omissão do comportamento devido), sendo que é, especialmente, através do grau de intensidade desta relação de vontade que se diferenciam as várias formas de dolo. Mas consciência e vontade não podem ser vistos isoladamente, pois, só se pode querer aquilo que se conhece.
IV. A exigência do conhecimento da proibição ocorre sobretudo a nível do direito contraordenacional ou do direito penal secundário, relativamente a incriminações cuja carga axiológica é naturalmente menor ou mesmo axiológica neutra.
V. Mas em geral o sentido da ilicitude do facto ressalta da realização pelo agente da factualidade típica, agindo com o dolo requerido pelo tipo. Et pour cause, nestes casos carecerá de sentido questionar se o agente atuou conscientemente, se tinha pleno conhecimento da proibição, representando todas as circunstâncias do facto, e querendo, mesmo assim realizá-lo. Porque se não tinha isso terá necessariamente de lhe ser censurável (artigo 17.º/2 CP).
Decisão Texto Integral:
I – Relatório
a) No Juízo de Instrução Criminal ..., do Tribunal Judicial da comarca ..., a Mm.a Juíza de Instrução Criminal, em despacho liminar da fase de instrução, decidiu (entre o mais): «rejeitar, por inadmissibilidade legal, decorrente da falta de observância do estatuído no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal (ex vi do artigo 287.º n.ºs 1, alínea a), 2 e 3 do mesmo diploma), os requerimentos de abertura de instrução apresentados pela assistente AA (…) na parte respeitante aos arguidos BB e CC.»

b) Inconformada com essa decisão recorreu a assistente AA, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
« A - Este recurso tem como objecto o despacho de rejeição do requerimento de abertura de instrução por "inadmissibilidade legal (...)".
B - A Meritíssima Juíza de Instrução Criminal considera, no seu despacho de rejeição, que "( ... ) os requerimentos de abertura de instrução apresentados pelos dois assistentes não descrevem todos os factos que legitimam a aplicação de uma pena aos arguidos BB e CC no que concerne aos elementos subjectivos do tipo(. .. ) "(nosso sublinhado).
c - Com o devido respeito, entendemos que Meritíssima Juíza de Instrução nem se refere à totalidade do "elemento subjectivo". Nas suas próprias palavras refere que a assistente "Não imputa porém, ao identificado arguido o facto de o mesmo ter actuado ciente que a sua conduta era punida por lei penal".
D - Ou seja, a Sra. Juíza refere-se à consciência da ilicitude, tanto no caso do então Sr. BB como do … de Segurança CC. Tratando-se de um agente da Polícia de Segurança Publica, no exercício de funções de segurança e do próprio BB do qual depende a segurança rodoviária, teremos de reconhecer que a posição da Senhora Juíza é extraordinária.
E - No que concerne ao crime de homicídio por negligência grosseira e ao crime de condução perigosa no que ao arguido CC diz respeito, a Meritíssima Juíza de Instrução tem um discurso contraditório uma vez que reconhece o seguinte" No que se refere aos elementos subjectivos do primeiro e segundo dos referidos ilícitos (. .. ) refere a assistente que CC agiu com total e grosseira inobservância das precauções exigidas pelas regras da condução rodoviária e de forma livre e voluntária com o propósito concretizado de consentir naquelas condições de circulação, podendo e devendo ter previsto o perigo que daí poderia advir e que efectivamente causou a morte da vitima, tendo sido indiferente às consequências que dai decorreram. Não imputa, porém, ao identificado arguido o facto de o mesmo ter actuado ciente que ,a sua conduta era ptmida por lei penal. "(nosso sublinhado)
E - Como pode ver-se a Meritíssima Juíza, ao contrário daquilo que afirma, admite e até descreve que a assistente concretiza o elemento subjectivo dos referidos ilícitos.
F - Acresce ainda que, não se consegue compreender que a Meritíssima Juíza entenda que um … da PSP e … de Segurança não tenha consciência de que circular a 163km/h ocupando duas faixas de rodagem, ou seja, toda a via da ..., no sentido .../... é proibido e representa um perigo para toda a circulação rodoviária.
G - É de referir que no seu requerimento de abertura de instrução a assistente e1encou o elemento subjectivo, nomeadamente nos pontos 52, 80 e 81, que anteriormente são transcritos e que evitamos fazê-lo nestas conclusões, aliás, como se disse até a Meritíssima Juíza o transcreve.
H - Relativamente ao crime de omissão de auxílio, a Meritíssima Juíza de Instrução afirma: “(…) Porém omite por completo factos referentes ao elemento subjectivo do tipo, sendo certo que, estando perante um tipo doloso, se exige a representação de que o necessitado de auxílio corre risco de vida ou de lesão grave da sua saúde ou liberdade e a conformação ou indiferença perante essa situação de perigo, bem como a consciência de a conduta ser punida por lei penal".
I - Ora, como se pode verificar pelo requerimento de abertura de instrução, a assistente não suprime os factos referentes ao elemento subjectivo, uma vez que estão presentes nos números 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 54 e 58.
J - Para além de elencar o elemento subjectivo dos factos acima referidos - que não se transcreveram para evitar repetições - foi requerido o seguinte elemento probatório: "8. Requer-se ainda que seja notificado a Direcção do INEM de ... para identificar o operador de serviço no dia 18 de Junho de 2021 pelas 13hOO, que recebeu o telefonema comunicando o acidente, bem como para ser junto ao autos o relatório final do seu processo interno. O operador deverá ser ouvido quando puder ser identificado. "
L - Em suma, o arguido CC apercebeu-se da gravidade do acidente pelo que chamou a ambulância. No entanto, por duas vezes informou o local errado do acidente, bem sabendo que o DD se encontrava em sofrimento e necessariamente com a vida em risco. Em qualquer caso estamos perante um acidente, isto é, um evento que poderá causar actos [licitas negligentes e não dolosos.
M - Quanto à questão da consciência de a conduta ser punida por lei penal, parece-nos patético, mas repetiremos: o arguido CC era … do corpo de segurança do BB e é … da PSP.
N - No que diz respeito ao pedido de pronúncia do arguido BB, afirma a Meritíssima Juíza de Instrução que a deficiência factual ainda é mais grave.
O - Relembramos: a consciência é do agente e não dos factos. A consciência ou conhecimento, bem como a vontade, configuram a atitude do agente que determina a acção e não o resultado dessa mesma acção que se traduz em factos, ou seja, no elemento objectivo de qualquer tipo penal.
P - À semelhança dos outros factos, abster-nos-emos de transcrevê-los enunciando somente os números do RAI que contêm o elemento subjectivo: n.ºs 60, 61, 62, 63, 64, 65, 69, 70, 71, 76, 78 e 79, também anteriormente transcritos.
Q - Uma vez que os números acima referidos contêm claramente o elemento subjectivo - que não fórmulas juridicamente inconsistentes -, a Meritíssima Juíza de Instrução teve necessidade, uma vez mais, de basear toda a sua justificação no facto de não lhe ter sido imputado a circunstância de ter actuado ciente que a sua conduta era punida por lei penal.
R - Pelo que todas as afirmações que se seguem são tão evidentes que nos sentimos confrangidos em destacá-las uma vez mais:
a) o arguido BB era, à data dos factos, ...;
b) O BB é o responsável pela execução das políticas de segurança pública, de protecção e socorro, de imigração e asilo, de prevenção e segurança rodoviária e pela administração dos assuntos eleitorais (lei orgânica).
Pelo exposto, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido, e ordenando-se a abertura da instrução.»


c) Admitido o recurso o Ministério Público respondeu pugnando pela sua improcedência, sintetizando-se deste modo a sua posição:
A instrução requerida não é admissível porquanto a assistente quando não descreve no requerimento de abertura de instrução a totalidade dos factos que consubstanciam os crimes por cuja prática pretende a pronúncia dos arguidos;
Por essa razão a instrução ser rejeitada por inadmissibilidade legal, nos termos previstos no art. 287.º, n.º 3 do Código Processo Penal;
Não há lugar a convite aos assistentes para corrigir o requerimento de abertura de instrução;
Razão pela qual não assiste razão à recorrente, não merecendo o despacho recorrido qualquer censura, devendo manter-se integralmente a douta decisão recorrida.

d) Respondeu igualmente o arguido BB, dizendo, no essencial, que:
O requerimento de abertura de instrução não contém a descrição fáctica suscetível de integrar a tipicidade do crime imputado ao arguido, não lhe podendo ser imputado qualquer tipo criminal.
Não se imputam os elementos subjetivos do crime e por isso não existem, em concreto, «indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança», não podendo ser proferido despacho de pronúncia, nos termos do artigo 308.º do CPP.

e) Respondeu também o arguido CC, concluindo que:
II. No Recurso sob escrutínio, a assistente confunde dois planos distintos: o da discussão acerca da verificação (ou não) em concreto dos elementos típicos e o da sua da explicitação (ou não) no RAI apresentado, mas o que está em causa é apenas e só verificar se o RAI apresentado cumpre ou não as exigências legais vertidas nas supra referidas normas, nada mais.
III. O legislador é particularmente exigente em relação a esta peça processual pois que, estando em causa a pretensão de incluir no objecto do processo “factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação” (art. 287.º, n.º 1, b), do CPP), o mesmo deverá conter em si mesmo uma acusação alternativa.
IV. É o que decorre da remissão expressa que consta do artigo 287.º, n.º 2, do CPP para as alíneas b) e d) do artigo 283.º, n.º 3, do mesmo diploma.
V. É manifesto que o RAI apresentado pela Assistente não cumpre o que é exigido na referida norma, nomeadamente porque é omisso relativamente à narração dos elementos objetivos e subjetivos dos tipos legais de crime que a Assistente pretende imputar ao Arguido CC.
VI. O Tribunal de Instrução Criminal, na decisão recorrida, decidiu – e muito bem – que:
- quanto aos crimes de homicídio por negligência grosseira e de condução perigosa, o RAI “(n)ão imputa, porém, ao identificado arguido o facto de o mesmo ter actuado ciente que a sua conduta era punida por lei penal”;
e
- quanto ao crime de omissão de auxílio, refere que o RAI “omite por completo factos referentes ao elemento subjectivo do tipo”.
VII. Sem prejuízo da correcção deste raciocínio, entende o Arguido que a insuficiência do RAI na descrição dos elementos típicos não se fica por aqui, já que a referida insuficiência se estende também à descrição dos elementos objectivos dos três crimes imputados.
VIII. Analisado o RAI da Assistente (nomeadamente os respectivos artigos 33 e ss.) quanto aos crimes de homicídio por negligência grosseira e de condução perigosa (art. 53 do RAI), verifica-se que não é descrito qualquer facto atinente ao Arguido CC que possa subsumir-se à conduta típica descrita no artigo 137.º do CP (“matar outra pessoa por negligência”); não é descrito qualquer facto atinente ao Arguido CC que possa subsumir-se à conduta típica descrita no artigo 291.º do CP (“conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária (…)”); o Arguido não pode ser considerado autor imediato de qualquer das condutas típicas e a Assistente não descreveu factos susceptíveis de enquadrar a conduta do Arguido em qualquer forma de autoria do artigo 26.º; não cuida a Assistente de distinguir o tipo subjectivo do ilícito de homicídio do tipo subjectivo do ilícito de condução perigosa; não resulta do RAI a descrição cabal e completa dos elementos que compõem o tipo subjectivo dos dois ilícitos.
IX. Quanto ao crime de omissão de auxílio (art. 55 do RAI), os factos descritos reconduzem-se à “falsa indicação do local do atropelamento” (art. 54 do RAI), o que por si só não constitui conduta passível de integrar a estrutura típica da omissão de auxílio, tanto mais que reconhece a Assistente (cf. art. 35 do RAI) que o Arguido não omitiu qualquer comportamento devido, antes promoveu o socorro da vítima; por fim, o crime do art. 200.º do CP é um crime doloso e, como bem destaca o Despacho recorrido, inexiste qualquer referência ao elemento subjectivo deste tipo legal de crime.
X. No Recurso, a Assistente faz apelo ao entendimento de uma “pessoa de bom senso”, considerando incompreensível o raciocínio da Senhora Juíza (cf. ponto 2, pág. 3 do Recurso) quando, na verdade, o que está a pedir ao Tribunal é que leia o que não está escrito.
XI. Ora, como bem frisa o TRG no Acórdão de 2/11/2015, “O requerimento de abertura de instrução deve configurar, equivaler in totum a um despacho acusatório, com a descrição, narração factual bem apontada e delimitada e, bem assim, deve conter o elemento subjectivo da infracção, não sendo admissível em qualquer um dos elementos constitutivos a ideia de subentendimento.
XII. O RAI que não descreva cabalmente os factos imputados e a quem os imputa concretamente, de forma a que estes possam integrar os elementos objectivos e subjectivos dos tipos legais de crime que convoca, deve ser objeto de rejeição por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos conjugados dos artigos 287.º, n.ºs 2 e 3, e 283, n.º 3, al. b) e d), do CPP, precisamente nos termos já decididos nos presentes autos, não havendo lugar a convite ao Assistente para aperfeiçoar (Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça 7/2005).
XIII. Nem se diga que o Juiz de Instrução poderia ou deveria colmatar as lacunas do RAI pois que uma eventual decisão de pronúncia que descrevesse os factos não descritos pela Assistente sempre estaria ferida de nulidade, nos termos do artigo 309.º do CPP.
XIV. Não merece, assim, qualquer reparo o douto Despacho recorrido ao decidir que, face à falta dos requisitos legais do requerimento instrutório, é legalmente inadmissível a instrução, devendo o Recurso apresentado ser julgado improcedente.
Termos em que e nos melhores de direito que V. Ex.as doutamente suprirão, deverá o recurso interposto pela assistente ser julgado improcedente, assim se mantendo a douta decisão recorrida, não se admitindo a requerida abertura de instrução no que respeita ao arguido CC por inadmissibilidade legal da instrução.»

f) Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, por entender que o despacho recorrido respeitou o quadro normativo pertinente.

g) Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, nada se acrescentou.

h) Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.

II – Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo para a apreciação de questões de oficioso conhecimento e de que ainda se possa conhecer.
Na motivação do recurso a assistente AA manifesta a sua discordância face ao modo como a Mm.a Juíza de Instrução Criminal, no controlo liminar do requerimento de abertura de instrução (RAI), conheceu das matérias previstas nas als. b) e d) do § 3.º do artigo 283.º CPP. Mas não retomou o tema nas suas conclusões e como são estas que delimitam o objeto do recurso (artigo 412.º, § 1.º CPP), a única questão de que cumpre conhecer é a de saber se o requerimento de abertura de instrução da assistente AA, na parte em que imputa crimes aos arguidos BB e CC, contém os factos demonstrativos dos elementos objetivos e subjetivos dos respetivos ilícitos.

2. O despacho recorrido tem o seguinte teor (na parte relevante):
«No seu requerimento a assistente AA pugna pela prolação de despacho de pronúncia por forma a que:
- ao arguido EE seja imputada a prática – em co-autoria, na forma consumada e em concurso real – de um crime de homicídio por negligência grosseira, previsto e punido pelo artigo 137.º n.ºs 1 e 2 e 69.º n.º 1 alínea a) do CP; de um crime de condução perigosa, previsto e punido pelo artigo 291.º n.º 1 alínea b) do CP; de uma contraordenação, classificada como muito grave, prevista e punida pelos artigos 13.º, n.º 1, 3 e 4, 146.º, alínea h), por referência ao disposto nos artigos 145.º, alínea f), 138.º e 147.º, todos do Código da Estrada e de uma contraordenação, classificada como grave, prevista e punida pelos artigos 27.º, n.º 1, 2, alínea a), 2º, 145.º, n.º 1, alínea b), 138.º e 147.º, todos do Código da Estrada;
- ao arguido BB seja imputada a prática – em co-autoria, na forma consumada e em concurso real – de um crime de homicídio por negligência grosseira, previsto e punido pelo artigo 137.º n.º 2 do CP; de um crime de condução perigosa, previsto e punido pelo artigo 291.º n.º 1 alínea b) do CP e de um crime de omissão de auxílio, previsto e punido pelo artigo 200.º n.ºs 1 e 2 do CP; e
- ao arguido CC seja imputada a prática – em co-autoria, na forma consumada e em concurso real – de um crime de homicídio por negligência grosseira, previsto e punido pelo artigo 137.º n.º 2 do CP; de um crime de condução perigosa, previsto e punido pelo artigo 291.º n.º 1 alínea b) do CP e de um crime de omissão de auxílio, previsto e punido pelo artigo 200.º n.ºs 1 e 2 do CP;
Para o que indica diligências probatórias a realizar.
Alega a assistente – reproduzindo, no essencial, os factos constantes do despacho de acusação – que o arguido EE, com o comportamento adoptado, preencheu não só os elementos do tipo do crime de homicídio por negligência, esta no seu entender grosseira e não simples como consta do libelo acusatório, mas também os elementos do crime de condução perigosa, previsto e punido pelo artigo 291.º n.º 1 alínea b) do CP, discordando, assim, da subsunção jurídica adoptada pelo Ministério Público.
Mais alega que dos autos resulta indiciada a prática por CC quer do crime de homicídio por negligência grosseira, quer do crime de condução perigosa, ilícitos cuja pronúncia requer, na medida em que, sendo este o … da equipa de segurança pessoal do BB, tinha o dever de adoptar e de comunicar àquele um esquema de segurança que respeitasse as regras de segurança rodoviária, tendo, ao invés, adoptado – com a ocupação pelas duas viaturas utilizadas das duas faixas da autoestrada e a condução em velocidade excessiva – um esquema que colocava em perigo a circulação rodoviária dos utentes da via e que poderá ter impedido ou dificultado EE de se desviar da vítima de atropelamento. Mais refere que CC agiu com total e grosseira inobservância das precauções exigidas pelas regras da condução rodoviária e de forma livre e voluntária, com o propósito concretizado de consentir naquelas condições de circulação, podendo e devendo ter previsto o perigo que daí poderia advir e que, efectivamente, causou a morte da vítima, tendo sido indiferente às consequências que daí decorreram.
Relativamente a CC alega, igualmente, que o mesmo indicou à Linha de Emergência Médica (112) erradamente o sentido de circulação onde o atropelamento ocorreu (Sul/Norte ao invés de Este/Oeste, como de facto se verificava), informação que veio a reiterar, e que levou a que os mecanismos de socorro accionados não tivessem encontrado, no imediato, o local do acidente, tendo chegado ao mesmo mais de uma hora após o atropelamento da vítima. Mais refere que pela função que desempenhava o arguido deveria saber os pontos cardeais do sentido em que circulavam face ao traçado da ..., tendo com a sua conduta prejudicado o auxílio à vítima, donde também praticou o crime de omissão de auxílio.
No que concerne ao arguido BB alega a assistente que o mesmo, como ..., era o responsável máximo pela comitiva que se deslocava na ... e, por conseguinte, tinha por obrigação impor o cumprimento da lei e de todas as regras de circulação rodoviária, o que não fez por: ter permitido a circulação das viaturas a uma velocidade excessiva e a ocupação por duas delas das duas faixas de rodagem; ter contratado um condutor civil, ao invés de um condutor da PSP, não ter proporcionado formação adequada ao condutor escolhido e ter dificultado a sua comunicação com o … de Segurança impedindo-o de seguir na viatura em que circulava. Acrescenta que o mesmo tinha a obrigação e a capacidade de prever o perigo que tal situação representava para os demais utentes da via e para a segurança pública, bem como de representar as consequências daí advenientes e que o mesmo actuou de forma livre e voluntária e com o propósito concretizado de consentir na condução nas referidas condições.
(…)
Tal como resulta do disposto no artigo 286.º n.º 1 do Código de Processo Penal (CPP), a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Sendo a instrução uma fase jurisdicional, a actividade processual desenvolvida é, por isso, materialmente judicial e não policial ou de averiguações. Por isso, a instrução não é um complemento da investigação feita em inquérito, antes contempla a prática dos actos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final de submeter ou não a causa a julgamento. Nas palavras de Souto Moura, o juiz de instrução não prossegue uma investigação, nem se limitará a apreciar o arquivamento do Ministério Público a partir da matéria indiciária do inquérito. O juiz de instrução responde ou não a uma pretensão (SOUTO MOURA – Jornadas de Direito Processual Penal – O novo Código de Processo penal, CEJ, 1998, pág. 120). Pode, assim, afirmar-se que a insuficiência da investigação realizada pelo Ministério Público no inquérito é sindicada hierarquicamente por via da reclamação, enquanto que a errada valoração dos indícios colhidos na investigação é sindicada juridicamente por via da abertura de instrução (PINTO DE ALBUQUERQUE, Paulo – Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; Universidade Católica Editora, Lisboa, 2009, pág.751).
Nessa conformidade, dispõe o artigo 308.º n.º 1 do mesmo diploma que “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.”.
Estamos perante uma fase processual facultativa, dependente, por conseguinte, da apresentação de requerimento para o efeito (n.º 2 do artigo 286.º).
Conforme resulta do estatuído no artigo 287.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CPP a instrução pode ser requerida pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação, e pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, quanto a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
Todavia, a simples apresentação de requerimento para abertura de instrução não determina de forma automática que tal fase tenha lugar.
Com efeito, o artigo 287.º, depois de prever a possibilidade de ser requerida, nos moldes já avançados, a abertura de instrução, preceitua no seu n.º 2 que “O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283º.”.
Dispõe este último normativo que “A acusação contém, sob pena de nulidade: (…) b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o arguido neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; c) A indicação das disposições legais aplicáveis; (…)”.
Defendemos o entendimento de que a referência legal à “não sujeição do requerimento a formalidades especiais” deve ser entendida como reportada às questões meramente formais, como sejam, por exemplo, o uso de fórmulas rituais ou a alegação por artigos.
Já em termos substanciais, o requerimento de abertura de instrução tem de observar as seguintes condições:
- sintetizar as razões da discordância da acusação, por forma a possibilitar a fiscalização judicial da atividade do Ministério Público no inquérito;
- narrar os factos e indicar as normas jurídicas incriminatórias, uma vez que irá delimitar o objeto do processo; e
- especificar os meios de prova adequados, quer os que não foram devidamente valorados no inquérito, quer novos meios (de prova), a realizar em sede de instrução.
Do exposto decorre, no que ao requerimento apresentado pelo assistente concerne, que este terá, necessariamente, de descrever os factos concretos por referência ao tipo de ilícito que pretende imputar ao denunciado, sendo esses factos os que definem e limitam o objecto do processo e sobre os quais irá recair a decisão instrutória. Impõe-se, pois, por parte do assistente, a delimitação do thema decidendum da fase instrutória.
O que significa que, pese embora o requerimento de abertura de instrução apresentado, não seja uma acusação em sentido processual formal, o mesmo deve constituir uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objecto do processo e que fundamente a aplicação aos arguidos de uma pena (como bem referem o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.10.2006, processo n.º 06P3526, relator: Oliveira Mendes, www.dgsi.pt e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 27.04.2020, processo n.º 38/19.4GAAFE.G1, relator: Teresa Coimbra, www.dgsi.pt, entre outros). Em abono de tal conclusão, veja-se que o artigo 307.º do CPP determina que, encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia, podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução.
O requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente constitui, substancialmente, uma acusação alternativa que, dada a divergência com a posição assumida pelo Ministério Público, vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial. Após o despacho de arquivamento pelo Ministério Público, requerendo a abertura de instrução, o assistente deixa de ser colaborador e subordinado da actividade daquele e com ele entra em “conflito”, visando superar uma decisão que lhe é desfavorável.
A exigência da descrição dos factos no requerimento de abertura de instrução pelo assistente radica na circunstância de este, partindo de um despacho de arquivamento do inquérito, fixar o objeto do processo, dentro do qual se moverá a atividade do juiz de instrução, a quem é vedado alterar os factos alegados, fora das exceções previstas no artigo 303.º n.º 1 do CPP.
Por outro lado, o requerimento de instrução é a base factual dentro da qual se moverá o contraditório, o exercício do direito de defesa. Em última análise, o que está em causa é a garantia constitucional de defesa do arguido através do princípio, também constitucional, do contraditório, inerente àquele outro princípio e cuja efetividade implica uma definição clara e precisa do objeto do processo. Trata-se de uma decorrência do princípio do acusatório, consagrado no artigo 32.º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
A tal propósito veja-se que, tal como decorre do artigo 309.º n.º 1 do CPP, “a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução”, prevendo o artigo 303.º as consequências da alteração não substancial e substancial dos factos descritos em tal requerimento e constatadas em sede de instrução.
O mecanismo da alteração não substancial dos factos ou da alteração substancial dos factos, pressupõe que a conduta descrita no requerimento de abertura da instrução integre todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais a que alude o artigo 283.º n.º 3, alínea b), do CPP e, assim, que a conduta descrita seja típica. Sendo a conduta descrita atípica, a alteração dos factos constantes do requerimento não teria sequer por efeito a imputação de um crime diverso, uma vez que a conduta descrita não constituía qualquer crime por falta de elementos típicos nela descritos. Também a alteração da qualificação jurídica dos factos constantes do requerimento de abertura de instrução pressupõe que o assistente narrou todos os factos que constituem um crime.
Nessa conformidade, a falta de descrição, na acusação implícita no requerimento de abertura da instrução, de elementos objetivos ou subjetivos do crime, não pode ser integrada, durante a instrução, por recurso aos mecanismos previstos no artigo 303.º do Código de Processo Penal.
Dada a estrutura basicamente acusatória integrada pelo princípio da investigação judicial do nosso processo penal, de acordo com o princípio da vinculação temática, o tribunal está vinculado ao thema decidendum definido pela acusação (ou pela pronúncia), como forma de assegurar a plenitude da defesa, garantindo ao arguido que apenas tem que defender-se dos factos acusados, e não de outros, e que apenas por esses poderá ser condenado (conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.01.2021, processo n.º 8/19.2TRGMR.S2, relator: Sénio Alves, www.dgsi.pt).
Acresce que uma conduta humana só poderá punir-se se estiver prevista numa norma penal que descreva claramente a conduta proibida ou ordenada, acompanhada da cominação de uma pena. Está aqui implicado o princípio da legalidade, pelo que a descrição exigida para a peça acusatória e aos requisitos de abertura de instrução, deverá reporta-se a todos os factos (factos essenciais) de que dependa a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, quer dizer, todos aqueles que constituem os elementos de algum crime.
De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa, pelo que não constitui uma limitação efetiva do acesso do direito e aos tribunais. Saliente-se que, chamado a pronunciar-se sobre a eventual inconstitucionalidade das alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º do CPP, o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional a norma quando interpretada no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente os elementos ali mencionados, entendendo que o objecto da instrução tem de ser definido de uma maneira rigorosa, em ordem a permitir a organização da defesa, abrangendo tal definição a natarção dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 358/2004, processo n.º 807/2003, relator: Maria Fernanda Palma, Diário da República n.º 150, II Série, de 28.06.2004)
Quanto à exigência legal relativa à narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, é pacífico que a mesma se refere não só aos elementos objetivos, mas também aos elementos subjetivos do crime imputado, posto que a factualidade relevante, como factualidade típica, portadora de um sentido de ilicitude específico, só tem essa dimensão quando abarque a totalidade dos seus elementos constitutivos, não existindo crime e responsabilidade penal sem que todos eles se encontrem preenchidos (neste sentido pronuncia-se, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17.03.2015, processo n.º 1161/12.1GBLLE.E1, relator: Sérgio Corvacho, www.dgsi.pt).
Com efeito, nos termos do disposto nos artigos 9.º, 40.º e 71.º do Código Penal, é pressuposto da aplicação/determinação da sanção criminal, entre o mais, a verificação/apuramento do conhecimento e da vontade do agente na prática do ilícito e a culpa do agente do crime, a sua posição de contrariedade em relação ao direito, nos factos alegadamente praticados.
Aqui chegados, e para o que interessa à matéria em apreço, importa trazer à colação do decidido no Acórdão Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015, de 20.11.2014 (Diário da República n.º 18/2015, Série I de 27.01.2015) segundo o qual “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.”.
Ora, temos por entendimento ser de aplicar a doutrina fixada pelo referido aresto ao requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente (neste mesmo sentido, já se pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora 07.03.2017, processo n.º 65/14.8GBVVC.E1, Relator: Maria Leonor Botelho, www.dgsi.pt e o já citado Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17.03.2015).
Nessa conformidade, necessário se torna que exista uma descrição não só dos elementos objectivos do tipo, mas também de todos os elementos subjectivos dos crimes em relação aos quais se pretende a pronúncia, isto é, em relação aos elementos constitutivos do dolo, concretamente no que respeita aos elementos intelectual (representação dos factos), volitivo (vontade de praticar os factos) e emocional (consciência de estar a agir contra o direito). Assim sendo, “Num crime doloso da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo)” (neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30.09.2009, processo n.º 910/08.7TAVIS.C1, relator: Jorge Jacob, www.dgsi.pt).
No que tange à essencialidade destes elementos resulta do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2015 que: “10.2.4 Em conclusão: a acusação, enquanto delimitadora do objecto do processo, tem de conter os aspectos que configuram os elementos subjectivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido acima referido, englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), actuando, assim, conscientemente contra o direito. (…) De forma alguma será admissível que os elementos do dolo, quando não descritos na acusação, possam ser deduzidos por extrapolação dos factos objectivos, com «recurso á lógica, à racionalidade e à normalidade dos comportamentos, de onde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum» (Acórdão recorrido). (…) Ou seja: a exigida narração dos factos é a de todos os factos constitutivos do tipo legal de crime, sejam eles pertencentes ao tipo objectivo do ilícito, sejam ao tipo subjectivo e ainda, naturalmente, na sequência do que temos vindo a expor, os elementos referentes ao tipo de culpa. A factualidade relevante, como factualidade típica, portadora de um sentido de ilicitude específico, tem essa dimensão quando abarque a totalidade dos seus elementos constitutivos. Não existem puros factos não valorados, como vimos a propósito, nomeadamente, das teorias do objecto do processo, e a valoração específica que aqui se reclama, consonante com um tipo de ilícito, se alcança com a imputação do facto ao agente, fazendo apelo à representação do facto típico, na totalidade das suas circunstâncias, à sua liberdade de decisão, como pressuposto de toda a culpa, e, envolvendo a consciência ética ou dos valores, à posição que tomou, do ponto de vista da sua determinação pelo facto. Sem isso, não está definida a conduta típica, ilícita e culposa.”.
De acordo com o n.º 3 do artigo 287.º do CPP, o juiz de instrução pode e deve rejeitar o requerimento só e apenas nas situações aí previstas, ou seja, por extemporaneidade, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
No caso de o requerimento de abertura de instrução não conter a descrição fáctica suscetível de integrar a tipicidade do crime imputado ao arguido, será de concluir que este jamais poderá ser pronunciado, por não lhe poder ser imputado qualquer tipo criminal.
Significará isso que, nessas situações, a abertura da instrução não é admissível, legitimando a rejeição do respetivo requerimento?
Ainda que se tenha chegado a discutir na doutrina e na jurisprudência qual o caminho processual a seguir quando se constatassem deficiências no requerimento para a abertura de instrução, firmou-se a jurisprudência no sentido de que não deverá haver lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução quando este for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido (veja-se o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, de 12.05.2005, Diário da República, Série I-A, de 04.11.2005).
Posto isto, tal como tem sido entendimento maioritariamente defendido pela doutrina e pela jurisprudência, há que concluir que o requerimento de abertura de instrução do assistente que não descreva cabalmente os factos imputados, em termos de estes poderem integrar os elementos objetivos e subjetivos de um tipo de crime, deve ser objeto de rejeição por inadmissibilidade legal, nos termos conjugados dos artigos 287.º n.ºs 2 e 3 e 283.º n.º 3, alínea b), do CPP. Na verdade, se nos diz o artigo 283.º do CPP que a acusação deve observar o disposto nas alíneas b) e c) do nº 2, sob pena de nulidade - o requerimento que não observe o disposto na citada norma que impõe aquela descrição (ex vi do artigo 287.º n.º 2 in fine do mesmo diploma), é nulo.
No conceito de “inadmissibilidade legal da instrução”, haverá, assim, que incluir, além dos fundamentos específicos de inadmissão da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissão de actos processuais em geral, e não se podendo conhecer do requerimento de abertura de instrução não pode ser admitida a abertura da instrução, porque a lei não o admite, e consequentemente deve ser rejeitado por inadmissibilidade legal. Daqui decorre que a nulidade do requerimento de abertura de instrução constitui um dos casos de inadmissibilidade legal da instrução, fundamento do despacho de rejeição (neste sentido pronunciam-se, entre outros, os já citados Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.01.2021 e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17.03.2015 e, bem assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.03.2009, processo n.º 08P3168, relator: Arménio Sottomayor, www.dgsi.pt)
Revertendo ao caso em apreço,
(…)
Analisemos, primeiramente, o requerimento apresentado por AA.
Tal como já se consignou pretende a identificada assistente a pronúncia do arguido CC por forma a que lhe seja imputada a prática – em co-autoria, na forma consumada e em concurso real – de um crime de homicídio por negligência grosseira, previsto e punido pelo artigo 137.º n.º 2 do CP; de um crime de condução perigosa, previsto e punido pelo artigo 291.º n.º 1 alínea b) do CP e de um crime de omissão de auxílio, previsto e punido pelo artigo 200.º n.ºs 1 e 2 do CP;
No que se refere aos elementos subjectivos do primeiro e segundo dos referidos ilícitos (crime de homicídio por negligência grosseira e crime de condução perigosa) refere a assistente, que CC agiu com total e grosseira inobservância das precauções exigidas pelas regras da condução rodoviária e de forma livre e voluntária com o propósito concretizado de consentir naquelas condições de circulação, podendo e devendo ter previsto o perigo que daí poderia advir e que efectivamente causou a morte da vítima, tendo sido indiferente às consequências que daí decorreram. Não imputa, porém, ao identificado arguido o facto de o mesmo ter actuado ciente que a sua conduta era punida por lei penal.
Já relativamente ao terceiro dos ilícitos imputados (crime de omissão de auxílio) refere a assistente que, pela função que desempenhava, o arguido CC deveria saber os pontos cardeais do sentido em que circulavam face ao traçado da ..., tendo com a sua conduta prejudicado o auxílio à vítima, donde também praticou o crime de omissão de auxílio. Porém, omite por completo factos referentes ao elemento subjectivo do tipo, sendo certo que, estando-se perante um tipo doloso, se exige a representação de que o necessitado de auxílio corre risco de vida ou de lesão grave da sua saúde ou liberdade e a conformação ou indiferença perante essa situação de perigo, bem como a consciência de a conduta ser punida por lei penal.
Pretende, de igual forma, a assistente AA a pronúncia de BB pela prática – em co-autoria, na forma consumada e em concurso real – de um crime de homicídio por negligência grosseira, previsto e punido pelo artigo 137.º n.º 2 do CP; de um crime de condução perigosa, previsto e punido pelo artigo 291.º n.º 1 alínea b) do CP e de um crime de omissão de auxílio, previsto e punido pelo artigo 200.º n.ºs 1 e 2 do CP.
Ora, quanto a este arguido entendemos que a deficiência factual ainda é mais grave, na medida em que não só omite a imputação de factos susceptíveis de integrarem os elementos subjectivos do crime de homicídio por negligência grosseira e do crime de condução perigosa, não lhe imputado a circunstância de ter actuado ciente que a sua conduta era punida por lei penal (elemento intelectual do dolo), como também omite factos susceptíveis de integrarem os elementos objectivos e subjectivos do crime de omissão de auxílio, excepção feita ao facto de referir que o mesmo era responsável pela comitiva.
(…)
Pelo exposto, decide-se:
- rejeitar, por inadmissibilidade legal, decorrente da falta de observância do estatuído no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal (ex vi do artigo 287.º n.ºs 1, alínea a), 2 e 3 do mesmo diploma), os requerimentos de abertura de instrução apresentados pelas assistentes AA e Associação ... na parte respeitante aos arguidos BB e CC.»

3. O requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente AA tem o seguinte teor:
«AA, na qualidade de assistente, vem requerer a abertura de instrução (artigo 287.º, n. 1, alínea b) CPP) com o seguinte propósito:
a) obter a pronúncia d·:· condutor da viatura ...-...-24, EE, pele crime de condução perigosa previsto e punido pelo art. 291.°, n.? 1, al. b) do Código Penal em concurso real com o crime de homicídio por negligência grosseira )revisto e punido pelo art. 137.°, n,? 2 do CP, sendo certo que o arguido já foi acusado de homicídio por negligência nos termos do n.º 1, do art. 137-º CP;
b) obter a pronúncia em cc-autoria de BB, melhor identificado a fls. 1111 , ..., em concurso real, pelos crimes de condução perigosa, homicídio por negligência grosseira, omissão de auxílio nos termos dos artigos 26.°, 291.°, n.º 1, al, b), 137.°, n.º 1 e 2 e 200.° todos do Código Penal;
c) obter a pronúncia em co-autoria de CC, melhor identificado a fls. :54, em concurso real, pelos crimes de condução perigosa, homicídio por negligência grosseira, omissão de auxílio nos termos dos artigos 26.°, 291.°, n.º 1, al. b), 137.°, n.º 1 e 2 e 200.° todos do Código Penal;
porquanto resulta dos factos investigados e suficientemente indiciados na acusação:
1. No dia 18 de Junho de 2021, pelas 1 3hOO, EE conduzia o veiculo automóvel ligeiro de passageiros, com a matricula ...-...-24, na Autoestrada ..., no sentido Este/Oeste (.../...), integrando a comitiva que acompanhava a deslocação efectuada pelo Sr. BB - à escola da GNR em .... encontrando-se de regresso a ....
2. Na viatura conduzida por EE seguiam: FF:
GG e BB.
3. A comitiva transitava da seguinte forma:
3.1. O 1.º veículo na faixa de rodagem mais à esquerda. que transportava o Sr. BB­, o motorista EE, o oficial de ligação da GNR ao MAI FF e o assessor GG.
3.2. O 2.º veículo na faixa de rodagem mais à direita, conduzido por HH, e que transportava o … da segurança CC e II;
3.3. O 3.º veículo na faixa de rodagem da esquerda. atrás do veiculo referido em 3.1, que transportava o condutor JJ e KK.
4. A comitiva circulava fora das condições de serviço urgente de interesse público, pelo que não fazia uso da sinalização legalmente imposta para o efeito.
5. Nessa data/hora, o tempo encontrava-se seco, c visibílidade no local era boa e não existia encadeamento.
6. Nessa altura, por volta do quilometro 77,000 da ..., estavam a ser realizados trabalhos de corte de vegetação e remoção de residuos na berma direita da ..., no sentido .../....
7. A realização destes trabalhos estava a ser efectuada por DD; LL; MM e NN, trabalhadores da empresa A... S.A., contratada pela ... para o efeito.
8. Todos os trabalhadores envergavam botas de protecção (com biqueira de aço) e vestuário de alta visibilidade (colete reflector e calças com faixas reflectoras).
9. A actividade em causa estava devidamente sinalizada por veiculo de protecção que, no taipal de trás, dispunha do sinal de trabalhos na estrada e, como complemento, dispunha ainda do sinal de obrigação de contornar obstáculos à esquerda e de duas luzes rotativas.
10. Esta viatura de sinalizição, encontrava-se a cerca de 100m/150m do local de realização dos trabalhes.
11. Ao quilómetro 77,600, da ..., pelas 13h08, DD encontrava-se no separador central e iniciava a travessia da faixa de rodagem em direcção à berma do lado direito no sentido .../....
12. Nesse momento, o veículo conduzido por EE seguia na via da esquerda da faixa de rodagem à velocidade de cerca de 163km1h.
13. Atenta a velocidade que imprimia ao veiculo e ao posicionamento do mesmo na via, EE não conseguiu parar atempadamente a viatura, nem desviar suficientemente a trajectória, apesar ter visto o peão a atravessar a faixa de rodagem, tendo embatido com a parte frontal esquerda do veiculo no hemicorpo direito de DD; projetando-o para a vala central (separador central), dentro dos rails de protecção.
14. Como consequência directa e necessária do embate, DD sofreu as seguintes lesões internas: infiltraçao hemorrágica anterior direita, na região do tórax, extensa laceração da aorta descendente, pulmão esquerdo parcialmente colapsado, infiltração hemorrágica subjacente aos focos de contusão descritos, da parede anterior e posterior, com hematoma pélvico, laceração dos músculos relo abdominais direitos, no terço distal, hemo peritoneu com solução de continuidade da parede abdominal por ferida extensa, laceração do reta, com conteúdo fecal disperso na cavidade pélvica, laceração das paredes da bexiga e das paredes da próstata com fratura da sínfise púbica, com conteúdo vesical disperso na cavidade pélvica, fratura dos ossos ilíacos, dos ramos ileopúbicos e isquiopúbicos, com múltiplos fragmentos ósseos avulso, bilateralmente, com desarttculucãa sacroillaca .bilateral, fratura acetabular com projeção da cabeça femoral na cavidade pélvica à esquerda.
15. Tais lesões traumáticas toraco-abdaminais-pélvicas constituíram causa necessária e adequada da morte de DD.
A ..., ao quilómetro 77,600, configura-se como uma curva suave, com boa visibilidade, composta por duas vias de circulação no mesmo sentido, com marcas horizontais separadoras de vias, cada uma com li largura de 3,5m, apresentando a berma direita 2, 60m, a berma esquerda 1,10 m e, no lado marginal à faixa de rodagem existe um eixo separador central do lado esquerdo e talude do lado direito.
17. No local do acidente, o pavimento encontrava-se em bom estado de conservação e apresentava-se seco e regular.
18. No percurso efetuado pela viatura conduzida por EE não existia intensidade de trânsito, nem EE pretendeu ultrapassar viaturas que circulassem à sua frente (até por inexistência das mesmas), pelo que a opção de conduzir pela faixa de rodagem da esquerda é inteiramente injustificada.
19. A velocidade imprimida por EE ao ... que conduzia ultrapassava, em mais de 40kmlh, o máximo legalmente estipulado para a circulação em autoestradas.
20. Neste caso, trata-se de uma autoestrada onde decorriam obras devidamente sinalizadas, pelo que a velocidade a que o veículo deveria circular tem de ser aferida em função destas circunstâncias particulares.
21. EE agiu de forma livre e voluntário com o propósito concretizado de conduzir o veículo automóvel nas descritas condições, isto é, animado de velocidade superior ao limite legal imposto para o local e para as circunstâncias concretas (obras no local devidamente sinalizadas).
22. EE circulava ainda, durante todo o percurso efectuado, na via da esquerda da faixa de rodagem, em função de um esquema de segurança com viaturas "desenquadradas", completamente inadequado, ostensivo e colocando em perigo todos os demais utentes da autoestrada.
23. Com a conduta descrita, EE agiu com total e grosseira inobservância das precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidados impostos pelas regras de condução estradal essenciais para uma circulação rodoviária segura, o que podia e devia ter feito e que era capaz de adoptar.
24. O acidente de viação e as suas consequências ficaram a dever-se à circunstância de EE conduzir com manifesta falta de cuidado e de atenção aos deveres de respeito pelas obrigações legalmente impostas de circular na via mais à direita e dentro dos limites de velocidade.
25. Pelo que e fattispecie do crime de condução perigosa está preenchida com o excesso de velocidade e a condução na faixa de rodagem da esquerda, como expressamente se prevê na parte final da al, b), do n.º 1, do art. 291.º do CP.
26. Quando a lei enuncia as manobras de condução perigosa nesta alínea b) do art. 291.0 do CP, quer dizer, exactamente, que o condutor não deve efectuar tais manobras, pois tem o dever de prever que elas representam um perigo concreto para a circulação rodoviária.
27. Como é obvio, não deve o intérprete interrogar-se sobre se o condutor previu ou não que o perigo poderia resultar de um peão na faixa de rodagem, de um veículo ou até de um animal. A enunciação legal - por oposição a uma mera fórmula genérica - significa, exactamente, que, pela sua intrínseca perigosidade, tais manobras exigem que o condutor preveja o perigo que a sua concretização inevitavelmente representa.
28. EE agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
29. Andou mal a Senhora Procurador quando arquivou a acusação quanto ao crime de condução perigosa, pois verificam-se todos os elementos do tipo previsto no art.º 291.°, n,º 1, al. b) do CP.
30. Nem, em nossa opinião e com todo o respeito, resulta dos acórdãos mencionados na acusação qualquer coisa em contrário do que ficou dito.
31. Da acusação também resulta com toda clareza que a conduta de EE preenche os elementos do tipo de homicídio por negligência grosseira, previsto e punido pelo n.º 2 do art. 137.° CP, e não apenas o de homicídio por negligência previsto e punido no n.º 1 do mesmo artigo.
32. Verífíca-se, pois, um erro de subsunção da Senhora Procuradora que importa ser corrigido em sede de instrução.

Responsabilidade criminal de CC
Da investigação levada a cabo no inquérito e da acusação resulta ainda que:
33. CC era o … da equipa de segurança pessoal do BB.
34. Tinha, pois, o dever de comunicar ao BB o esquema de segurança adotado e a sua inadequação e risco para as circunstâncias, aconselhando antes um dispositivo que respeitasse as regras de segurança rodoviária.
35. Por outro lado, foi o CC que às 13h08 ligou para a linha de emergência médica 112, através do número de telemóvel ....
36. Informou o operador do CODU ... que era um atropelamento na ..., situado ao Km 77,700; sentido SUL/NORTE, com projecção da vitima (fls. 291).
37. Reiterou esta informação quando o operador lhe telefonou para se certificar do local do atropelamento.
38. Por isso, foram accionados a VMER de ... e os Bombeiros Voluntários ... e induzidos em grave erro, pela inconcebível informação reiterada por alguém que deveria saber instintivamente os pontos cardeais e o traçado da ..., até pela função que desempenha e pela missão de que estava incumbido nesse dia.
39. Os veículos de socorro andaram perdidos na autoestrada até por volta das 13h37, como consequência da informação prestada pelo CC.
40. Só às 13h37, é que o elemento da GNR ... em patrulha, OO, desfez telefonicamente (...) o erro provocado pelo CC. Ou seja, indicou que o acidente tinha sido no sentido ESTE/OESTE (.../...) e não no sentido SUL/NORTE.
41. Em virtude dessa falsa ir formação os meios de socorro chegaram ao local bem mais de uma hora após o atropelamento.
42. O CC, «... … de segurança, perspectivou e concretizou com a anuência do BB todo o trajecto e esquema de segurança entre ... e ..., pelo que tinha obrigação de saber o sentido em que circulavam.
43. O esquema de seguranl;a utilizado pela comitiva de nove elementos era inutilmente ostensivo e susceptível de pôr em perigo toda a circulação rodoviária, como sucedeu.
44. Deve notar-se que as viaturas "desenquadradas" ocupavam as duas faixas de rodagem na autoestrada apesar de nada o justificar, como a Senhora Procuradora realça e muito bem, no despacho de acusação.
45. Entre ... e ... há apenas uma faixa de rodagem em cada sentido.
46. Logo, as viaturas da comitiva não podiam circular . 'desenquadradas " como circulavam na autoestrada.
47. E nem por isso a segurança pessoal do BB deixou de ser cumprida.
48. Também este facto contribui para reafirmar que a ocupação das duas faixas de rodagem era inadequada, revelando uma ostentação de poder, uma grosseira violação de todas as regras de circulação e indiferença ao perigo que tal esquema representava para t040s os outros utenres da via.
49. CC agiu de forma livre e voluntária com o propósito concretizado de consentir na velocidade a que toda a comitiva circulava e na posição em que circulavam duas das viaturas pela faixa do lado esquerdo.
50. A posição da viatura em que seguia o CC, na faixa de rodagem da direita, terá porventura impedido ou dificultado o condutor EE de efectuar o desvio suficiente para a direita de modo a evitar o atropelamento, pelo eventual e instintivo receio de colisão com a viatura que seguia à sua direita, "desenquadrada" das outras duas viaturas que seguiam pela faixa do lado esquerdo.
51. Numa palavra: a velocidade e o ostensivo e desadequado esquema de segurança, deram causa ao atropelamento anteriormente descrito que causou a morte ao DD, por grosseira imprudência do CC, que tinha obrigação de ter previsto o perigo que isso representava para os demais utentes da via e de ter chamado a atenção para a desnecessidade de tal velocidade e de tal posicionamento das viaturas.
52. Com a conduta descrita CC agiu com total e grosseira inobservância das precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidado impostos pelas regras de condução rodoviária e que a lei tem como essenciais para a segurança do tráfego; CC podia e devia ter previsto esse perigo, mas foi indiferente às consequências que o seu esquema de "segurança" poderia causar e efectivamente causou.
53. Pelo que se constituiu como cc-autor dos crimes de condução perigosa e homicídio por negligência grosseira, previstos e punidos pelos artigos 291.°, n.º 1, b) e 137.°, n.º 1 e 2, todos do CP.
54. Com a falsa indicação do local do atropelamento, reiterada pelo menos uma vez, CC prejudicou um auxílio eventualmente valioso ao DD. Em bom rigor pode dizer-se até que tal ignorância é absolutamente intolerável em alguém que exerce a função do CC.
55. Pelo que a sua conduta preenche os elementos do crime de omissão de auxilio previsto e punido pelo art. 200.°, n.º 2 do CP
56. Neste sentido teremos de dizer que a Senhora Procuradora andou mal ao não ter constituído o CC.
57. Pelo que deveria ter deduzido acusação pelos crimes anteriormente mencionados.
58. Na verdade, a responsabilidade do CC resulta evidente das várias inquirições efectuadas bem como da descrição da "cronologia ocorrência" do INEM (fls. 270 e ss),
59. Concluímos, pois, que a Senhora Procuradora adoptou uma perspectiva inadequadamente restritiva na interpretação dos factos e nas subsunções legais, de que resultou uma acusação incompleta quanto aos agentes responsáveis pela morte do DD.

Responsabilidade criminal de BB
Da investigação levada a Gabo no inquérito e da acusação resulta ainda que:
60. BB, na qualidade de ..., era o responsável máximo pela comitiva que se deslocou a ....
61. Tinha obrigação de impor o cumprimento da lei e de todas as regras de circulação rodoviária.
62. Pelas funções que desempenhava, tutelando designadamente as forças de segurança, não poderia permitir violacões tão grosseiras a todas as regras de circulação rodoviária.
63. Pela mesma razão tinha a obrigação de prever, mais do que ninguém na comunidade, o perigo que representava para os demais utentes da via, a ocupação das duas faixas de rodagem da ... e e. velocidade totalmente desadequada das três viaturas, nomeadamente daquela em que circulava.
64. Tinha obrigação, mais do que ninguém na comunidade, de impedir o ostensivo esquema de segurança, quer pela posição das viaturas quer pela velocidade a que circulavam.
65. Apesar de tudo isto e das suas responsabilidades, o BB nem
sequer ficou no local do acidente.
66. Nem sequer se aproximou da vítima atropelada pela viatura em que seguia.
67. O seu comportamento é eticamente reprovável e juridicamente condenável.
68. De resto, se há alguma coisa em que a sociedade portuguesa esteve de acordo, posteriormente a este acidente, foi na condenação da atitude e do comportamento do BB.
69. Nas diligências que a Senhora Procuradora fez após o despacho de Dezembro do Senhor Procurador Coordenador, ficámos ainda mais esclarecidos quanto a quem tinha o efectivo domínio do facto, ainda que indirecto, entre as pessoas que compunham a comitiva do então BB: Assim:
a) Foi opção do senhor BB não seguir as regras do manual de segurança quando contratou um condutor civil em detrimento de um condutor da PSP;
b) Foi opção irresponsável do senhor BB em não proporcionar formação adequada ao condutor que escolheu e que o serviu durante mais de uma década.
c) Foi opção do Senhor BB afastar o … de segurança CC da viatura em que circulava, dificultando assim a comunicação com o … de Segurança.
70. Tudo isto indicia claramente e aprofunda de forma ética e juridicamente muito relevante, a negligência grosseira que caracterizou o comportamento de BB na deslocação a ....
71. O BB agiu de forma livre e voluntária com o propósito concretizado de consentir na velocidade a que toda a comitiva circulava e no facto juridicamente intolerável de duas dessas viaturas circularem na faixa de rodagem do lado esquerdo, de forma totalmente injustificável, ao ponto de a viatura em que seguia ter atropelado mortalmente o DD.
72. Ao contrário das veredas estreitas que a Senhora Procuradora quer percorrer em termos pretensamente teóricos, o BB não era guardião do DD. Enquanto ... ele era o garante máximo da segurança rodoviária e do correspondente interesse público, como é bom de ver.
73. Nessa medida, e de acordo com a teoria que a Senhora Procuradora procura reproduzir ele deveria assumir um comportamento que garantisse a segurança do DD e de todos os utentes da via pública. O que não fez, mas poderia e deveria ter feito porque era capaz disso bem como de representar as eventuais consequências da sua negligência manifesta.
74. No que à co-autoria diz respeito, o art. 26.º do Código Penal recebe a teoria do dominio do facto, como é aceite unanimemente.
75. A teoria do domínio do facto permite que o sistema jurídico acolha nos seus princípios, valores e normas, as exigências éticas da própria comunidade que o direito é desenhado para servir.
76. Por tudo quanto ficou anteriormente exposto, pode afirmar-se com segurança que o BB tinha o domínio mediato do facto, enquanto alta entidade que poderia determinar toda a composição, atitude e comportamento da comitiva que se deslocou a ..., como auxiliar dos seus afazeres …...
77. Ele fê-lo, de resto, mas no mau sentido quando impediu o … de segurança de seguir na sua viatura.
78. O condutor EE e o Sr. CC, enquanto … de segurança pessoal do Sr. BB integravam-se numa organização hierárquica bastante rígida da qual o BB é indiscutivelmente o responsável máximo.
79. Por isso, o BB tinha o dever de prever que as condições e circunstâncias em que a comitiva seguia, pela velocidade e pela posição das viaturas, poderiam causar perigo para a segurança individual de todos 05 utilizadores da via e até para a segurança pública.
80. Pelas funções que desempenhava, pela sua idade, experiência e até pela sua profissão, o CC deveria também ter previsto que a velocidade e a posição das viaturas poderiam ocasionar acidentes e colocavam em risco toda a circulação rodoviária.
81.Todavia, o CC também nada fez, quer com referência aos restantes membros da comitiva ministerial quer chamando à atenção do Sr. BB para a inadequação de tal esquema de segurança no local e nas circunstâncias anteriormente descritos.
82. Por tudo o quanto ficou anteriormente descrito, EE, enquanto condutor da viatura que atropelou DD, tinha o dominio imediato do facto e poderia, justificadamente, recusar-se a circular a uma velocidade inadequada e proibida por lei bem como a ocupar a faixa de rodagem do lado esquerdo, visto saber que também este facto é proibido por lei e susceptível de causar perigo aos restantes utentes da via.
Face ao exposto: devem ser pronunciados em co-autoria (art. 26.º do CP), na forma consumada e em concurso efectivo:
1. EE:
a) Pelo crime de homicídio por negligência grosseira, previsto e punido pelo art. 137.º, n.º 1 e 2, e 69,°, n.º 1, a) todos do Código Penal;
b) Pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo art. 291.º n.º 1, al. b), do Código Penal;
c) Pela contraordenação, classificada como muito grave, prevista e punida pelo art. 13.º, n.º, 3 e 4, 146.°, h), por referência ao disposto no art. 145.°, f), 138.° e 147.° do Código da Estrada;
d) Pela contraordenação, classificada como grave, prevista e punido pelo art.º 27.º, n.º 1, 2,, al. a), 2.º, 145.º, n.º 1, al. b), 138.° e 147.°, todos do Código da Estrada.

2. CC:
a) Pelo crime de homicídio por negligência grosseira, previsto e punido pelo art. 137.º, n.º 1 e 2 do Código Penal;
b) Pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo art. 291.°, n.. 1, al, b) do Código Penal;
c) Pelo crime de omissão de auxílio previsto e punido pelo art. 200.º, n.º 1 e 2 do Código Penal

3. BB:
a) Pelo crime de homicídio por negligência grosseira, previsto e punido pelo art. 137.º, n.º 1 e 2 do Código Penal;
b) Pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo art. 291.º, n.º 1, al. b) do Código Penal;
c) Pelo crime de omissão de auxílio previsto e punido pelo art. 200.º, n.º 1 e 2 do Código Penal.»

4. Apreciando
Importa verificar que se no RAI se contém os factos demonstrativos dos elementos subjetivos dos ilícitos imputados aos arguidos BB e CC.
Sustenta a recorrente que o RAI contém os factos relativos aos elementos subjetivos dos crimes imputados aos arguidos, concretamente nos pontos 52, 80 e 81 (relativamente aos ilícitos de homicídio negligente e condução perigosa de veículo rodoviário); 35 a 41, 54 e 58 relativamente à omissão de auxílio, com referência ao arguido CC; e nos pontos 60 a 65, 69 a 71, 76, 78 e 79 relativamente aos mesmos crimes imputados ao arguido BB.
Mas o Ministério Público e os arguidos BB e CC sustentam, na linha do despacho recorrido que o RAI não contém os factos relativos aos tipos de crime que lhes foram imputados.
Vejamos, então.
Os elementos objetivos constituem a materialidade do crime e emergem da descrição da ação empreendida ou omitida e produtora de uma modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos. Já as dimensões do elemento subjetivo traduzem a atitude interior do agente na sua relação com o facto material.
O Código Penal não define o dolo do tipo, apenas cada uma das formas em que ele se analisa (artigo 14.º CP). Mas a doutrina conceptualiza-o, sintetizando que corresponde ao conhecimento (elemento intelectual) e vontade de realização do tipo objetivo de ilícito (elemento volitivo).
O dolo consiste, pois, no conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade.
O seu elemento intelectual traduz a representação da realização do facto ilícito (a consciência psicológica, ou consciência intencional) das circunstâncias do facto que preenche um tipo de ilícito objetivo. Visa que «o agente conheça tudo quanto é necessário para uma correta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à ação intentada».[1]
Por seu turno o elemento volitivo, ligado ao elemento intelectual, serve para indicar uma posição ou atitude do agente contrária ou indiferente à norma de comportamento. Supõe uma decisão de vontade do agente para a realização de um ilícito-típico, por via de uma ação (ou omissão do comportamento devido), sendo que é, especialmente, através do grau de intensidade desta relação de vontade que se diferenciam as várias formas de dolo. Mas consciência e vontade não podem ser vistos isoladamente, pois, só se pode querer aquilo que se conhece.
Os problemas em redor do elemento intelectual do dolo não são novas na jurisprudência dos tribunais criminais.
Mas a imputação pela assistente do crime de homicídio com negligência grosseira aos arguidos BB e CC não é dolosa, mas antes negligente. O dolo cinge-se aos crimes de omissão de auxílio e de condução perigosa de veículo rodoviário.
Ora, no concernente à negligência dispõe o artigo 15.º CP, que: «age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, representa como possível a realização de um facto correspondente a um tipo de crime, mas atua sem se conformar com essa realização, ou não chega sequer a representar a possibilidade de realização do facto.»
A negligência consiste, pois, na violação de um dever objetivo de cuidado a que se está obrigado e se é capaz para evitar a produção do facto injusto, distinguindo-se entre as situações em que o agente prevê como possível a produção do resultado lesivo mas crê, por leviandade ou incúria, na sua não verificação (negligência consciente) e aquelas em que o agente, podendo e devendo prever aquele resultado e cabendo-lhe evitá-lo, nem sequer concebe a possibilidade da sua verificação (negligência inconsciente).
Traduz-se na omissão de uma precaução reclamada pela prudência, cuja observância teria evitado o facto correspondente ao tipo de crime.[2]
Na recorrente linguagem dos penalistas[3], a violação do dever objetivo de cuidado pode consistir na violação de um dever de cuidado externo – o que sucederá quando o agente cumpriu o dever de informar-se sobre a situação em causa e, ainda assim, agiu, caso em que representou o resultado mentalmente a conduta tipicamente perigosa (negligência consciente - artigo 15.º, al. a) do Código Penal); ou na violação de um dever de cuidado interno – sentido em que haverá de concluir-se quando o agente não cumpriu como devia o dever de se informar e agiu, caso em que nem sequer representou mentalmente aquela conduta (negligência inconsciente - artigo 15.º, al. b) do Código Penal).
Com efeito, contrariamente ao que sucede nos crimes dolosos, em que é a vontade do agente que se liga ao resultado obtido ou frustrado, nos crimes negligentes a relevância da vontade subjetiva advém da comparação com o padrão normativo.
O dever de cuidado está, normalmente, associado ao exercício de uma atividade lícita, mas suscetível, pela sua perigosidade, de produzir resultados não desejados pelo ordenamento jurídico, afetando, deste modo, determinados bens tutelados pela lei penal.
E é justamente o que acontece no crime de homicídio por negligência (artigo 137.º CP).
Os critérios geralmente reconhecidos para identificar a existência da violação de um dever objetivo de cuidado são, como refere Figueiredo Dias[4]:
- a violação de normas jurídicas de comportamento;
- a violação de normas de tráfego correntes em certos domínios de atividade (as leges artis);
- a violação do chamado «modelo-padrão», diferenciado de acordo com o tipo de atividade em causa.
A exigibilidade desse dever ao agente, tal como a capacidade do mesmo para acatar o dever (dever subjetivo de cuidado), deverá ser apreciada em concreto, segundo as circunstâncias.
Na respetiva valoração deve atender-se, não a um critério definido simplesmente com base no conceito do homem médio, mas, antes de mais, a «um critério subjetivo e concreto, ou individualizante, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e as capacidades do agente. Se for de esperar dele que respondesse às exigências de cuidado objetivamente imposto e devido – mas só nessas condições - é que, em concreto, se deverá afirmar o conteúdo de culpa próprio da negligência e fundamentar, assim, a respetiva punição»[5].
Comecemos por assinalar que relativamente ao crime de omissão de auxílio (artigo 200.º, § 1.º CP) - que a assistente imputa aos arguidos BB e CC), que nenhum (rigorosamente nenhum) facto se alega no RAI que possa integrar os elementos constitutivos do respetivo ilícito penal.
São elementos constitutivos deste crime, os seguintes:
- A verificação de caso de grave necessidade (i. e. risco ou perigo iminente de lesão grave de algum dos bens jurídicos protegidos – provocado por desastre, acidente, calamidade pública, situação de perigo comum ou outra situação idêntica);
- A falta de prestação do auxílio necessário à remoção do perigo (seja por ação pessoal, seja promovendo o socorro por terceiro);
- O dolo genérico, em qualquer das modalidades prevista no artigo 14.º (bastando-se com a representação de que o necessitado de auxílio corre risco de vida ou de lesão grave da sua saúde ou liberdade).
Pressupondo-se a perceção pelo agente da atualidade e idoneidade de um determinado acontecimento constitutivo de ameaça à integridade dos bens jurídicos tutelados (o perigo concreto); a possibilidade fáctica de o agente poder prestar o auxílio que é necessário; e a incapacidade da vítima, para por si só afastar o perigo iminente de lesão importante dos bens jurídicos, revelada pela existência de sinais apreensíveis por qualquer pessoa, da necessidade urgente de atuação na prestação do auxílio (caso de grave necessidade).
A assistente/recorrente refere nas suas alegações de recurso que esses elementos constam dos pontos 35 a 41, 54 a 58, 69 a 71, 76, 78 a 81. Mas não constam. Nesses pontos a assistente refere-se à responsabilidade do arguido BB, enquanto dirigente de toda a comitiva. Acrescentando que ele teve «o propósito e consentir na velocidade a que a comitiva circulava». E que CC prestou ao INEM uma «falsa indicação do local do atropelamento»! (ponto 54 do RAI). E ainda que «deveria também ter previsto que a velocidade e a posição das viaturas poderiam ocasionar acidentes e colocavam em risco toda a circulação rodoviária. Todavia [este] também nada fez, quer com referência aos restantes membros da comitiva ministerial quer chamando à atenção do Sr. BB para a inadequação de tal esquema de segurança no local e nas circunstâncias anteriormente descritos.»
Isto é a assistente sustenta a sua tese na descrição (malévola) de um erro manifesto (notório) na comunicação de CC com o INEM. Erro esse que ela própria reconhece (ponto 54). Nunca assinalando o caráter intencional da alegada «informação falsa». E nada mais.
Ora as referências dos pontos citados não integram conduta passível de integrar a estrutura típica do ilícito típico de omissão de auxílio (artigo 200.º, § 1.º CP), seja na sua vertente objetiva seja na sua dimensão subjetiva (dolo)[6].
Mas sendo assim as coisas relativamente ao crime de omissão de auxílio, o mesmo já não sucede relativamente aos crimes de homicídio negligente (artigo 137.º CP) e de condução perigosa de veículo rodoviário (291.º CP), imputados aos arguidos BB e CC.
Relativamente aos crimes de homicídio por negligência, imputados a BB e a CC, como coautores, a omissão dos deveres de cuidado impostos pelas circunstâncias emerge, de modo deficiente embora (pelas referências excrescentes a elementos do dolo [!] e a menção à senhora procuradora) - mas suficiente[7] - dos pontos 71, 73 e 79 do RAI relativamente ao arguido BB e dos pontos 49 a 52 do RAI relativamente ao arguido CC.
E no respeitante aos crimes de condução perigosa de veículo rodoviário, imputados também a BB e a CC, como coautores, importará referir que neste caso estamos perante um crime de perigo concreto, caracterizado justamente pela exigência de verificação de um concreto pôr-em-perigo, face à previsão no tipo de ilícito da criação de perigo para a vida ou para a integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado. No que especialmente concerne ao dolo da ação (aí se compreendendo as manobras e tarefas materializadas na condução de veículo automóvel), mas também relativamente ao dolo de perigo, o narrado nos pontos 49 a 52 e 71 e 73 do RAI se mostra suficiente.
É certo – como assinala a Mm.a Juíza de Instrução Criminal - que o RAI não consta o habitual «bordão» sintetizador do elemento intelectual do dolo: «sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei» (a consciência da ilicitude). Só que os tipos de ilícito dolosos em análise (condução perigosa de veículo rodoviário) têm uma carga axiológica que inexoravelmente determina que a falta de consciência da ilicitude é censurável ao agente, e que, que por isso mesmo, ele não deixará de ser responsabilizado mesmo se a afirmação daquele facto se não vier a provar (artigo 17.º CP).
Para bem se compreender este ponto importará ter presente o artigo 17.º CP, que se reporta justamente aos crimes mala in se, i. e. aos crimes cuja ilicitude se presume conhecida de todos os cidadãos, sendo-lhes exigível tal conhecimento. Neste contexto, como ensina Figueiredo Dias[8], «o conhecimento da proibição legal, que não é exatamente equivalente a “consciência da ilicitude” será de exigir em certos casos em que a relevância axiológica de certos comportamentos é muito pouco significativa ou não está enraizada nas práticas sociais e em que, portanto, o conhecimento dos elementos do tipo e a sua realização voluntária e consciente não é suficiente para orientar o agente de acordo com o desvalor comportado pelo tipo de ilícito. Por isso, o desconhecimento desta proibição impede o conhecimento total do substrato de valoração e determina uma insuficiente orientação da consciência ética do agente para o problema da ilicitude. Por isso, em suma, neste campo o conhecimento da proibição é requerido para a afirmação do dolo do tipo […])»
A exigência do conhecimento da proibição ocorre sobretudo a nível do direito contraordenacional ou do direito penal secundário, relativamente a incriminações de menor carga axiológica ou de carga axiológica neutra. Equaciona-se que possa cogitar-se também ao nível de algumas incriminações do direito penal primário, relativamente a ilícitos típicos virados para a tutela de bens jurídicos cuja consciência ainda se não encontra suficientemente interiorizada na consciência dos membros da comunidade.[9] Nestes casos fará todo o sentido exigir o conhecimento da proibição como forma de realização do dolo do tipo.
Mas em geral o sentido da ilicitude do facto ressalta da realização pelo agente da factualidade típica, agindo com o dolo requerido pelo tipo. Et pour cause, nestes casos (em que o ilícito de condução perigosa de veículo rodoviário se insere) carecerá, pois, de sentido questionar se o agente atuou conscientemente, se tinha pleno conhecimento da proibição, representando todas as circunstâncias do facto, e querendo, mesmo assim realizá-lo. Porque se não tinha isso terá necessariamente de lhe ser censurável.
Quer-se dizer: no respeitante aos crimes relativamente aos quais a ilicitude é de todos conhecida, por integrar o conhecimento normalmente exigível do homem comum (como sucede com o crime de condução perigosa de veículo rodoviário), não é necessário alegar a consciência da ilicitude, por ela estar pressuposta.
Nestes casos o que deveras releva para que o agente se livre de punição, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do CP, é a prova do facto que integre a inconsciência dessa realidade jurídica.
Assim, mesmo que não alegada a consciência da ilicitude - ou alegando-se que ela se não prove, essa falta não releva, pois, como já referido, pode ocorrer condenação na mesma, em decorrência do que se dispõe no § 2.º do artigo 17.º CP.
Este Tribunal da Relação de Évora vem reafirmando[10] esta mesma ideia - de que não é necessário utilizar uma «fórmula» genérica e abstrata do dolo -, uma vez que o elemento relevante do dolo, no contexto de ilícitos de proeminente carga axiológica é a inconsciência da ilicitude (ou seja, a afirmação de facto negativo relativamente à consciência da ilicitude).
As circunstâncias que possam revelar que a falta de consciência não pode ser censurada ao agente é que releva, na medida em que tal exclui a sua culpa e, por essa via, a respetiva responsabilidade criminal (artigo 17.º, § 1.º CP).
Em abono da sua tese, a Mm.a Juíza recorrida invoca o Acórdão Uniformizador da Jurisprudência n.º 1/2015, que refere: «a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»
Sucede que a interpretação normativa que se afirma no citado acórdão uniformizador da jurisprudência, não resolve a questão aqui em equação.
Para bem se compreender a conclusão tirada neste aresto uniformizador deverá atentar-se na globalidade da sua, aliás proficiente, fundamentação. Mormente no que nele se refere no § 6.º do ponto 10.2.3.1, sobre a consciência da ilicitude, afirmando-se que ela se coloca no plano dogmático a um nível diferente da avaliação do dolo na realização do facto típico, porque tem a ver com a questão da relevância do erro sobre a ilicitude ou sobre a proibição. Acrescentando-se que, não se tratando de caso em que se possa afastar a censurabilidade do ato, o facto praticado sem consciência da ilicitude é equiparável ao praticado com essa consciência.
E para ilustrar essa ideia faz-se uma menção expressa à excelente síntese tirada noutro acórdão do mesmo Supremo Tribunal[11], no qual se faz luz sobre a controvérsia aqui instalada, na circunstância a propósito (dir-se-ia, enfaticamente) do crime de homicídio, do seguinte modo: «a consciência da ilicitude está implícita no conhecimento do próprio facto, sendo impensável que alguém, provido de razão, desconheça que a lei proíbe e pune o homicídio.»
Ora, o mesmo se dirá (como já se afirmou supra), pela igualdade de razão, do crime de condução perigosa de veículo rodoviário.
Em suma: o sentido interpretativo fixado no acórdão uniformizador citado na decisão sob recurso não se aplica à omissão na acusação (ou em libelo que tenha a mesma função – como o RAI do assistente) dos factos integradores do conhecimento da ilicitude, quando o relevo axiológico dos crimes em causas for inquestionável – como é aqui manifestamente o caso.
Afigurando-se-nos, pois, que o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente AA relativamente aos arguidos BB e CC, ressalvada a imputação do crime de omissão de auxílio, nos termos sobreditos, não sofre da deficiência que lhe foi apontada, o que compromete a decisão de rejeição da abertura de instrução relativamente aos crimes de homicídio por negligencia (artigo 137.º, § 1.º e 2.º CP) e de condução perigosa de veículo rodoviário (artigo 200.º, § 1.º e 2.º CP).
Razão pela qual, nesta parte, tal decisão se não poderá manter, devendo, antes, quanto a ela, admitir-se o requerimento rejeitado.

III – Dispositivo
Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
a) Conceder parcial provimento ao recurso interposto pela assistente AA, revogando-se o despacho recorrido na parte em que que não recebeu o requerimento de abertura de instrução relativamente aos arguidos BB e CC, quanto aos crimes de homicídio por negligencia (artigo 137.º, § 1.º e 2.º CP) e de condução perigosa de veículo rodoviário (artigo 200.º, § 1.º e 2.º CP), admitindo-se a instrução respetiva.
b) Sem custas (artigo 515.º, § 1.º, al. b) CPP a contrario).

Évora, 10 de janeiro de 2023

J. F. Moreira das Neves (relator)

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

_________________________

[1] Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 3.ª ed., 2019, Gestlegal, p. 410.

[2] Neste sentido cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 2019 (3.ª ed.), Gestlegal, pp. 1011.

[3] Hans-Heirich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, 1993, Bosch, 4.ª ed., pp. 524 ss.

[4] Jorge de Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra ed. 2001, pp.359 ss.

[5] Jorge de Figueiredo Dias, Pressupostos da Punição e Causas que Excluem a Ilicitude e a Culpa, in Jornadas de Direito Criminal, Lisboa, 1983, pp. 71.

[6] Anota-se, porém, que conforme expressa e convincentemente se reconhece no acórdão do Tribunal Constitucional, de 17 de maio de 2017 (acórdão 246/2017, proc. 880/2016, Cons. José António Teles Pereira), a rejeição liminar da acusação por insuficiente descrição de um elemento típico, não impede a validade de uma nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo-se a omissão da descrição do referido elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes, sem violação do princípio ne bis in idem.

[7] Deste modo dando cumprimento à exigência do Estado de Direito, traduzida no princípio fundamental do favorecimento do processo, enquanto forma de realização do direito à tutela jurisdicional efetiva.

[8] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Gestlegal, 2.ª ed., pp. 363/364.

[9] Neste sentido Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Gestlegal, 3.ª ed., p. 426.

[10] Neste sentido tem decidido este Tribunal da Relação. Cf. acórdãos de 10jan2017, proc. 20/16.3PTFAR.El, Desemb. Sérgio Corvacho; de 26jun2018, proc. 80001/15.8TDLSB.E1, Desemb. Sérgio Corvacho; de 19dez2018, proc. 219/18.8GCSLV.E1, Des. Renato Barroso; de 12mar2019, proc. 251/15.3GESTB.E1, Desemb. António João Latas; de 26out2021, proc. 89/98.0TBELV.E1, Desemb. Beatriz Marques Borges; de 24mai2022, proc. 1194/20.4T9STR.E1, Desemb. Maria Margarida Bacelar; de 11out2022, proc. 431/18.0PBRLV.E1, Desemb. João Carrola. Também no Tribunal da Relação do Porto cf. acórdão de 12jul2017, proc. 833/15.3SMPRT.P1, Desemb. Maria Dolores da Silva e Sousa; de 13jun2019, proc. 333/16.4T9VFR.P2, Desemb. Maria Dolores da Silva e Sousa; de 26mai2021, proc. 46/19.5PEMTS.P1, Desemb. José Carreto.

[11] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, julgado a 7out1992, proc. 042918, Cons. Noel Pinto.