Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
145/13.7GAMCQ.E1
Relator: MARIA LEONOR ESTEVES
Descritores: REVOGAÇÂO DE SENTENÇA ABSOLUTÓRIA
ESCOLHA E MEDIDA DA PENA
AC.FIXAÇÃO DE JURISP. N.º 4/2016
REMESSA DOS AUTOS À 1.ª INSTÂNCIA
Data do Acordão: 07/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I – O acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/2016 “não abrange os casos em que o tribunal de primeira instância não procedeu ao apuramento e fixação dos factos necessários à determinação da pena.”

II – Nesses precisos casos, os autos devem ser devolvidos à 1ª instância para que desenvolva as diligências pertinentes com vista a apurar a factualidade relativa às condições de vida, comportamento e personalidade do arguido, a fim de lhe permitir a subsequente prolação de decisão condenatória.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1.Relatório

Na secção criminal – J1 da instância local de Portimão da comarca de Faro, em processo comum com intervenção do tribunal singular, foi submetido a julgamento o arguido S., devidamente identificado nos autos, tendo no final sido proferida sentença, na qual se decidiu absolvê-lo do crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143º nº1 do C. Penal, cuja prática lhe vinha imputada.

Inconformado com a sentença, dela interpôs recurso o MºPº, pugnando pela sua revogação e substituição por decisão que condene o arguido pela prática daquele crime, para o que apresentou as seguintes conclusões:

1- O presente recurso é interposto da douta sentença proferida pela qual o arguido foi absolvido da prática, como autor material, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido 143º, nº 1 do Código Penal.

2- O mesmo recurso é interposto porque o Ministério Público entende que parte da factualidade dada como não provada deveria ter sido dada como provada;

3- Com base nas declarações do ofendido e testemunha prestados na audiência de julgamento deveriam ter sido dados como provados os factos 2 a 4 (indicados nos factos não provados) - artigo 412º nº 3 alínea b) do Código de Processo Penal);

4- Face ao teor de tais depoimentos, não pode naturalmente a ora recorrente conformar-se com o julgamento da matéria de facto efectuado pelo Tribunal a quo.

5- Por conseguinte, a recorrente requer a V. Exas. se dignem a dar como provados tais factos com base no depoimento daquela testemunha/ demandante.

6- Discorda o Ministério Público quanto à forma como o Tribunal valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência de julgamento, pese embora a valoração seja livre de harmonia com o preceituado no artº 127 do Código Penal a mesma não pode ser arbitrária.

7- Salvo o devido respeito, entendemos que o Tribunal fez uma incorrecta apreciação da matéria de facto produzida perante si em audiência.

8- Consideramos que a prova produzida se mostrava adequada para condenar o arguido pelo crime de que vinha acusado na douta acusação e que ao decidir em contrário, não fez o Tribunal uma boa apreciação da prova;

10 – Entende o Ministério Público que face aos factos dados como provados, bem como aqueles que o deveriam ter sido com base nos depoimentos supra-indicados, deveria o Tribunal ter condenado o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples previsto e punido no artº 143º, nº 1 do Código Penal, devendo o douto Tribunal da Relação revogar a douta sentença, e condenar o arguido por aquele ilícito;

11- Entendemos que a Mmª Juiz ao absolver o arguido violou o artº 127 do Cod. Penal e o artº 143º, nº 1 do Código Penal.

12- Tendo incorrido com a decisão proferida também em erro de julgamento.

13- Pelo exposto, a ora recorrente requer a V. Exas, se dignem proceder à alteração do julgamento e dar como provados, os factos que foram dados como não provados pela douta sentença, números 2 a 4, requerendo-se, consequentemente, a condenação do arguido.

O recurso foi admitido.

Na resposta, o arguido defendeu a manutenção da sentença recorrida e a improcedência do recurso, concluindo como segue:

1ª - O depoimento do queixoso foi inconsistente, parcial e não credível;
2ª- O depoimento do queixoso não foi corroborado pela única testemunha presencial da alegada agressão, JJ;

3ª- Nem a versão dos factos apresentada pelo queixoso foi confirmada através da prova testemunhal, ou de quaisquer outros meios de prova,

4ª- nem a descrição do comportamento que diz que teve a testemunha presencial, JJ, foi pela mesma confirmada;

5ª- As lesões alegadamente sofridas pelo queixoso não foram inteiramente corroboradas pelo relatório de perícia legal, que teve lugar logo dois dias depois;

6ª- Não enferma a decisão recorrida de qualquer imprecisão, contradição ou erro, quer quanto à matéria de facto quer quanto à aplicação do direito pelo que não poderia a Mm juiz “ a quo” ter decidido de forma diversa do que fez, absolvendo o arguido/recorrente

Nesta Relação, o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no qual - considerando que o conjunto probatório constituído pelo depoimento prestado pelo ofendido, que parece ser credível, corroborado pelo da testemunha JJ e pelo relatório de perícia médica de fls. 66-68, deveria ter levado o tribunal recorrido a que, segundo as regras da experiência e livre convicção, considerasse como provados os pontos 2. e 4. que foram considerados como não provados - se pronunciou no sentido da procedência do recurso e consequente revogação e substituição da sentença recorrida nos termos pretendidos pelo recorrente.

Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., sem que tenha sido apresentada resposta.

Colhidos os vistos, foram os autos submetidos à conferência.

2.Fundamentação

Na sentença recorrida foi apenas considerado como provado o seguinte facto:

1. No dia 19 de Outubro de 2013, pelas 10h30m, no interior do “Intermarché”, sito em Monchique, o arguido, ao avistar Ian, trocou palavras com este, tendo ambos discutido em voz alta.

Foi considerado não se ter provado nenhum outro facto com relevo para a decisão da causa, designadamente que:

2. Nessa ocasião o arguido agarrou o pescoço de Ian, atirando-o ao solo, desferindo de seguida vários murros que o atingiram na cabeça e na face.

3. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, Ian sofre escoriação no pescoço e dor nas zonas atingidas, que lhe determinaram 2 dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho.

4. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, com o intuito de causar lesões corporais no ofendido, o que conseguiu, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

A motivação da decisão de facto foi explicada como segue:

Sendo certo que, salvo quando a lei disponha diferentemente, a prova, nos termos do art.º 127.º do CPP, deve ser apreciada, no seu conjunto, segundo as regras da experiência e segundo a livre convicção do julgador, foram os seguintes os meios de prova nos quais o Tribunal fundou a sua convicção quanto à factualidade apurada:

a) Declarações do arguido: que, exercendo o seu direito de silenciar a respeito dos factos, apenas esclareceu sobre a sua situação pessoal, o que, por coerente, foi valorado.

b) Depoimento da testemunha AF: funcionária do Intermarché, a qual se encontrava de serviço, na caixa, na data dos autos, e que esclareceu ter-se apercebido de uma confusão junto à entrada da loja, entre duas pessoas, que falavam em voz alta. Nada mais soube esclarecer por nada mais ter presenciado, uma vez que os factos se deram quando a mesma estava a atender clientes. A testemunha depôs de modo que não suscitou reservas a respeito da sua isenção, porém, o seu depoimento não assumiu grande relevo para o apuramento dos factos.

c) Depoimento da testemunha JJ: cliente do supermercado dos autos o qual, no dia em causa, quando ali se deslocou, deparou-se com uma confusão, tendo ainda chegado a ver o ofendido caído no chão e o arguido debruçado sobre aquele. Não presenciou, porém, qualquer agressão (e o que presenciou não é suficiente para assumir como demonstrados os factos narrados na acusação). Acrescentou ainda que se aproximou de ambos, tendo tocado nas costas do arguido, que logo se ergueu, aproveitando o outro para se levantar, afastando-se dali. A testemunha depôs de modo coerente e sem suscitar dúvidas a respeito da sua isenção, tendo sido valorado o seu depoimento para o apuramento dos factos.

d) Depoimento da testemunha Ian: ofendido, o qual apresentou uma versão dos factos segundo a qual, na data em apreço, quando se encontrava no interior do supermercado dos autos, a levantar dinheiro na máquina ATM existente junto à entrada, sentiu-se ser agarrado por alguém que aparecera por trás de si, e que lhe agarrou o pescoço - o arguido - acusando-o de andar a dizer a todos que lhe tinha roubado o seu cão. De seguida empurrou-o para o chão, sentou-se em cima de si e desferiu-lhe 2 ou 3 murros na cara, com ambas as mãos, tendo-se depois o ofendido conseguido defender dos restantes socos com que o arguido ainda o tentou atingir. O arguido só parou de o agredir quando surgiu um senhor mais velho, que o tirou de cima de si, puxando por ele, pelo que acabou por se levantar. Ainda conseguiu retirar o dinheiro levantado da máquina ATM, e dirigiu-se, em seguida, ao interior da loja para comprar os croissants que o haviam levado até ali. Mais esclareceu que, em consequência da actuação do arguido ficou com marcas de arranhões e hematomas nos olhos, tendo apresentado queixa na GNR nesse mesmo dia. Ora, este depoimento não foi confirmado por qualquer das testemunhas inquiridas. Na verdade, a funcionária da caixa limitou-se a esclarecer ter havido uma confusão entre dois senhores, mas apenas se apercebeu de uma discussão entre ambos, nada mais tendo presenciado. E o cliente que entretanto apareceu no local, não viu qualquer agressão, já só tendo visto o ofendido no chão e o arguido debruçado sobre o ofendido (debruçado, note-se, não sentado de pernas abertas sobre o tronco do ofendido, como este descreveu), o que é manifestamente insuficiente para dar por confirmada a versão do ofendido. Ademais, disse a testemunha que se limitou a tocar nas costas do arguido, pelo que não o puxou ou afastou do ofendido (sendo certo que muito dificilmente se conceberia sequer tal hipótese, pois que o tribunal teve oportunidade de constatar a debilidade física desta testemunha, que tem já 80 anos de idade…). Ou seja, nem o que o ofendido disse que a testemunha fez foi, pela mesma, sequer confirmado. Por outro lado, as próprias lesões que o ofendido afiançou ter sofrido em consequência da conduta do arguido não foram inteiramente corroboradas pela prova pericial junta aos autos, o que não se pode deixar de estranhar, à luz das regras da experiência. Com efeito, se tivesse sido atingido com socos, como afirmou, ao ponto de ter ficado com hematomas nos olhos, como disse ter ficado, não se concebe como não existiam sequer quaisquer vestígios desses hematomas, aquando do seu exame pela médica legista, realizado logo dois dias após os factos… Por outro lado, não se pode deixar de estranhar que, depois de ter sido tão fortemente agredido, o ofendido, não obstante, ainda tivesse tido tempo para recolher o dinheiro levantado do ATM, quando estas máquinas estão programadas para recolher o dinheiro prontamente se não for levantado num curto período de tempo. Ou seja, ou tudo se passou em velocidade “ninja”, ou as coisas não se passaram foi como o ofendido contou. E, na verdade, quando tudo isto vem conjugado com mal entendidos que se arrastam entre ambos desde há alguns anos (as suspeitas de que o arguido se teria apoderado do cão do ofendido; negócios que o ofendido teria intermediado e que não se concretizaram por aparente culpa do arguido sem saber das razões para tal; e quantias em dinheiro que o arguido insistia em emprestar ao ofendido contra a sua vontade (?!), mas que, afinal, sempre acabara por aceitar uma quantia, a título de empréstimo, só para testar o arguido, quantia essa que, de todo o modo, como nunca foi reclamada, também nunca devolveu), não existem fundamentos para considerar o seu depoimento, sobretudo quando desacompanhado de outros meios de prova suficientes e cabais, como credível, pois que a versão dada pelo ofendido apresenta inconsistências relevantes e o seu depoimento suscitou reservas a respeito da sua isenção. Face ao exposto, o depoimento desta testemunha não é suficiente para dar como provados os factos narrados na acusação.

e) Depoimento da testemunha Joanne: amiga do arguido desde há cerca de 5 anos, a qual abonou em favor da personalidade do arguido, a quem sempre conheceu como sendo uma pessoa calma, leal e com princípios morais elevados, o que foi valorado.

f) Prova pericial: Relatório da perícia de avaliação do dano corporal de fls 66 a 68 (que concluiu que a lesão observada aquando do exame, realizado dois dias após os factos, e que consistia num vestígio de escoriação com 5mm de comprimento na parte lateral direita do pescoço, que determinou um período de 2 dias de doença, ainda que sem afectação da capacidade de trabalho).

g) Documentos: CRC do arguido.

Os factos dados como não provados resultam da insuficiência da prova produzida em audiência, já que o arguido se remeteu ao silêncio, e a versão do ofendido, que apresenta inconsistências, não foi corroborada por outros meios de prova, não sendo, ademais, o seu depoimento isento e imparcial, e, portanto, credível.

3. O Direito

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, as questões essenciais que foram suscitadas reconduzem-se ao erro de julgamento.

O recorrente considera que os pontos 2. a 4. dos factos não provados foram incorrectamente julgados, indicando como prova que impunha decisão diversa os depoimentos do ofendido e da testemunha JJ que, em seu entender, não foram correctamente apreciados de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova. Pretende que os factos impugnados sejam considerados como provados e que, em consequência o arguido seja condenado pelo crime cuja prática lhe foi imputada.

Tendo sido suficientemente observados, com o complemento do que se retira da motivação do recurso, os requisitos formais indicados no nº 3 do art. 412º do C.P.P. para a impugnação ampla da matéria de facto, começamos por lembrar que, tal como vem sendo repetidamente frisado nas decisões dos tribunais superiores acerca do âmbito e finalidades do recurso da matéria de facto, que este não é um novo julgamento, mas apenas um remédio jurídico destinado a detectar e corrigir erros de julgamento, mormente aqueles que o recorrente tenha concretamente apontado, que “não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida, e o tribunal de recurso em matéria de exame crítico das provas apenas está obrigado a verificar se o tribunal recorrido valorou e apreciou correctamente as provas”[3], que “o Tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova pode exibir perante si”[4], que não serve como meio para substituir uma convicção plausível e com adequado suporte probatório por outra convicção, ainda que igualmente plausível e possível, que a existência de versões contraditórias, e até de contradições no seio da mesma versão não é necessariamente impeditiva da formação de uma convicção segura, nada impedindo que esta se firme numa delas ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível e só se justificando a aplicação do princípio in dubio pro reo quando e na estrita medida em que, após a produção de prova, subsistam dúvidas razoáveis (não uma qualquer dúvida subjectiva ) e inultrapassáveis[5], e, enfim, que a decisão da matéria de facto só pode ser alterada nos casos em que tenha sido produzida prova que aponte inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância ( ou seja, quando a “impõe”, e já não quando apenas a “permite” ) e já não naqueles em que o tribunal recorrido, que beneficiou da imediação e da oralidade, alicerçou a sua convicção em meios de prova permitidos e explicitou devidamente o percurso seguido na sua formação sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1ª instância tem suporte na regra estabelecida no art. 127º do C.P.P.[6], escapando a qualquer censura.

Transitando agora para os recortes do caso concreto, e feito o confronto entre a argumentação em que o recurso vem sustentado e a motivação da decisão de facto oferecida na sentença recorrida, com conferência integral da gravação da prova na parte relevante para os pontos alvo de impugnação, resulta à evidência, adiantamo-lo já, que assiste inteira razão ao recorrente nas críticas que alinhou.

De facto, e desde logo, as razões indicadas pela julgadora como impeditivas da formação com a certeza exigível para uma condenação ou não colhem de todo ou resultam de uma apreciação muito redutora dos factos.

Vejamos em detalhe que razões foram essas, centrando-se a nossa apreciação nos depoimentos prestados por JJ e pelo ofendido, sendo estas as únicas testemunhas que prestaram esclarecimentos relevantes acerca da factualidade objecto do julgamento, já que o arguido se remeteu ao silêncio, a testemunha AF afirmou ter-se apenas apercebido de uma confusão mas não ter visto exactamente o que se passava por não ter ângulo de visão do local onde se encontrava e por ter pessoas à sua frente, e a testemunha Joanne foi meramente abonatória.

Assim, temos que o tribunal recorrido desconsiderou o depoimento do ofendido por o mesmo se mostrar desacompanhado de outros meios de prova suficientes e cabais e por a versão por ele apresentada apresentar inconsistências relevantes, o que suscitou reservas a respeito da sua isenção.

Mas a verdade é que estas conclusões não correspondem ao que resulta da leitura concatenada de todo o acervo probatório, feita à luz das regras da experiência comum.

Em primeiro lugar, não é certo que o depoimento do ofendido não encontre apoio bastante e suporte de verosimilhança em outros meios de prova. Desde logo no depoimento da testemunha JJ, que foi considerado como coerente e inteiramente credível, mas que tem mais cambiantes do que aqueles que o tribunal recorrido demonstrou ter apreendido. É certo que esta testemunha, octogenária, afirmou, repetidamente aliás, não ter visto qualquer agressão, tendo apenas visto uma situação “um bocado confusa”, encontrando-se um homem deitado e o outro (o arguido) debruçado sobre ele, mas a situação causou-lhe tanta estranheza que foi impelido a intervir pela sua consciência ( “A consciência disse-me para intervir” ), acrescentando que “pensei que poderia ser algum conflito entre eles” e que “ qualquer coisa ali havia, mas no entanto não vi ninguém fazer mal um ao outro”. Aproximou-se então e tocou nas costas do arguido (ou pôs-lhe a mão no braço, como admitiu quando adiante assim lhe foi perguntado), tendo-se este levantado enquanto que o ofendido aproveitou para fugir, não tendo visto se este tinha alguma lesão até porque ele “escapou, desapareceu”. O arguido pediu-lhe desculpa, “pensaria que eu era alguma coisa do hipermercado e então ficámos a falar”, mas ele não lhe contou o que se tinha passado, acrescentando “Não, nem quero que contem”.

Ora, se resulta evidente que esta testemunha, até pela sua provecta idade e debilidade física, não se quis envolver nem tomar partido num conflito cuja origem ignora e de cujos precisos contornos não se terá apercebido, certo é que do seu relato também resulta que ele se apercebeu de que alguma situação muito fora do normal - já de si não é normal encontrar pessoas caídas no chão de um hipermercado, e tanto mais quando se trata de duas pessoas e para mais ainda em posições de contacto físico entre elas - se estava a passar, pois de outra forma nem se compreenderia o imperativo de consciência que o fez intervir. Além disso, que o ofendido estava contrafeito por debaixo do arguido – estivesse este inclinado ou debruçado sobre ele, para o efeito pouco importa, sendo perfeitamente possível que não estivesse imóvel e possa ter mudado de posição – também se infere do facto de ele ter fugido ou escapado logo que o arguido se levantou, gesto que lhe permitiu (porque até esse momento estaria certamente constrangido pelo arguido a permanecer no chão) aproveitar a oportunidade para dele se afastar. Ademais, todo o comportamento do arguido ao ser abordado pela testemunha, levantando-se de imediato e pedindo-lhe desculpa, tudo permitindo concluir que o fez porque pensou que seria algum funcionário do hipermercado que o estaria a chamar a atenção, é sintomático. Só sente necessidade de pedir desculpa quem errou, quem se comportou de forma inaceitável tendo em conta as concretas circunstâncias de tempo e de lugar.

Não subsistindo dúvidas, até pela credibilidade que o relato desta testemunha mereceu, que ofendido e arguido se encontravam no chão do hipermercado, o ofendido deitado de costas e o arguido numa posição superior, seja sobre ele seja inclinado ou debruçado sobre ele, cabe então perguntar o que sucedeu para que ficassem em posição tão insólita. Pergunta que o tribunal recorrido nem se colocou, muito menos resolveu, dando de barato que o simples facto de ambos se encontrarem no chão não basta para inferir que houve uma agressão, o que, visto isoladamente, é certo, mas já assim poderá não ser se nos questionarmos sobre o que levou a que os dois se encontrassem no chão.

O arguido nada esclareceu porque usou do direito ao silêncio, consentindo implicitamente que a prova fosse valorada sem o contributo que para esse efeito poderia prestar, e a testemunha José também nada de concreto soube dizer sobre o que se passou antes de já os ter visto no chão. Excluídas hipóteses mais ou menos remotas que não foram minimamente ventiladas – como sejam a de uma queda ou de ter sido um terceiro a derrubá-los aos dois ou a um deles estando o outro inclinado a ajudá-lo a levantar-se –, a única explicação plausível, lógica, conforme com as regras da experiência comum, encontra-se precisamente no relato feito pelo ofendido, de que o arguido lhe agarrou o pescoço por de trás e o puxou com força, fazendo com que perdesse o equilíbrio e tombasse no chão. Versão que ganha foros de credibilidade acrescida se, para além do comportamento do arguido que foi relatado pela testemunha José quando esta o abordou, tivermos em linha de conta que entre os dois existiam conflitos anteriores que há vários anos tinham levado ao corte de relações, aguçados por recentes suspeitas e diz-que-disse em torno do desaparecimento de um canídeo. E nada do que o tribunal recorrido chama à colação para procurar justificar a descredibilização do depoimento do ofendido é decisivo para o efeito, como a seguir se verá.

A discrepância entre os depoimentos do JJ e do ofendido no que concerne à abordagem que o primeiro fez ao arguido, se se limitou a tocar-lhe nas costas ou se o puxou, afastando-o deste, pode ter várias explicações que não menorizam a credibilidade de qualquer dos depoimentos, sendo de notar que o ofendido é estrangeiro e, embora tenha sido acompanhado e por vezes auxiliado por intérprete, teimou em falar português, evidenciando aqui e além um imperfeito domínio da língua portuguesa. Além disso, há que notar que entre a data dos factos e a realização do julgamento mediaram 2 anos, sendo natural que o decurso do tempo tenha tido reflexos na frescura da memória do sucedido. E depois, o que o ofendido disse textualmente quando foi perguntado a respeito do modo como o conflito terminou, como conseguiu sair de baixo do arguido, foi que “Um senhor, eu conheço há muitos anos, um senhor mais velho da vila, que deu testemunho, tirou o sr. Stefan de mim, acho que ele disse qualquer coisa, não pode fazer isso aqui, mesmo com Intermarché cheio de pessoas”. Ora, a expressão sublinhada não significa necessariamente que a testemunha tenha puxado o arguido, fazendo com que ele saísse de cima do ofendido, bem podendo apenas traduzir a percepção do ofendido de que foi devido à abordagem da testemunha JJ ao arguido que este, ao levantar-se, o libertou. Não tendo o tribunal sequer cuidado de esclarecer devidamente de que forma o ofendido considerou que a referida testemunha tirou o arguido de si, a interpretação que fez dessa expressão extrapola os limites do razoável.

Quanto ao facto de a prova pericial, referente a exame realizado 2 dias após a ocorrência, apenas mencionar uma escoriação no pescoço e (queixas de) dores nas zonas atingidas, quando o ofendido referiu ter sido atingido por socos e ter ficado com hematomas nos olhos – o que levaria a crer que terá sido uma agressão muito violenta quando, curiosamente, e em laia de justificação para não ter ido receber tratamento médico, o ofendido até desvalorizou as consequências que dela advieram, afirmando que, para além de ter ido ao GML, depreende-se que por indicação da GNR, a questão “ficou por aí, não foi muito grave para mim, só o choque” -, admite-se que possa existir uma zona de dúvida entre a evidência e o relato. Mas este até pode mostrar-se afectado, ainda que sem o propósito de faltar à verdade, pela perspectiva de quem sentiu na pele o que se passou, sendo frequente, e compreensível, que quem está no epicentro da crise hiperbolize os seus efeitos. Ou pode ter acontecido que o arguido tenha efectivamente desferido socos, mas que estes não tenham tido grande intensidade ou não tenham atingido o ofendido em cheio, causando-lhe apenas dores, ou tenham simplesmente falhado o alvo.

Como quer que seja, e sendo certo que a credibilidade de um depoimento não tem de ser total, podendo haver partes do relato que não se mostrem plausíveis ou por qualquer razão não sejam convincentes, admitimos que, porque a prova pericial apenas suporta parte do que o ofendido afirmou enquanto apenas compatibiliza o apertão no pescoço com a escoriação e a queda forçada com as dores, a dúvida quanto à parte sobrante (de que o arguido desferiu vários murros que atingiram o ofendido na cabeça e na face) tenha sido acertadamente resolvida a favor do arguido.

O argumento relativo à recolha do dinheiro levantado do ATM também não impressiona, tanto mais que o tribunal não cuidou de esclarecer junto do ofendido em que fase concreta esse levantamento se encontrava quando ele foi puxado pelo arguido, nem de o confrontar, caso o dinheiro ainda estivesse a sair da máquina, com o facto de, segundo afirmou, ainda o ter ido buscar quando se conseguiu libertar do arguido, nem mesmo de averiguar qual o concreto funcionamento da máquina em questão, se de uma vulgar ATM se tratava, nem mesmo quanto tempo durou o envolvimento de arguido e ofendido no chão. Enfim, e ainda que no relato do ofendido quanto a este particular alguma incongruência se detectasse tal não implicaria que se pusesse em causa a descrição que fez da forma como foi agarrado e derrubado pelo arguido, podendo quando muito lançar dúvidas sobre a forma como afirmou ter feito o levantamento de dinheiro na ATM.

Finalmente, o facto de existirem conflitos anteriores entre arguido e ofendido, que o tribunal recorrido considerou como motivo para duvidar da isenção do segundo, tem o reverso da medalha, que no caso se apresenta como muito mais significativo, e que é precisamente trazer para a lógica dos relacionamentos interpessoais o comportamento do arguido, emprestando-lhe uma motivação. Aliás, esse comportamento surge como perfeitamente plausível quando se mostra inserido na conflitualidade prévia, exacerbada pelas suspeitas de envolvimento no desaparecimento do canídeo do ofendido que este, voluntaria ou involuntariamente, estaria a lançar sobre o arguido.

Desmontadas as frágeis razões que o tribunal recorrido indicou para se refugiar na dúvida e demonstrada que foi a ausência de suporte de razoabilidade dessa dúvida, temos de concluir que, tal como sustentado pelo recorrente, e excepção feita à parte final do ponto 2. dos factos não provados, a prova produzida - em concreto, os depoimentos prestados pelo ofendido e pela testemunha JJ e complementados pelo relatório da perícia de avaliação do dano corporal, a fls. 66-68, lidos conjugadamente e à luz das regras da experiência comum – impunha decisão diversa, também no que concerne à factualidade integradora do elemento subjectivo do crime na medida em que a mesma se infere inquestionavelmente da forma como a agressão foi perpetrada.

Em decorrência, a matéria de facto deve ser alterada nos seguintes moldes:

- aos factos provados acrescentam-se 3 pontos, com a seguinte redacção:

2. Nessa ocasião o arguido agarrou o pescoço de Ian, atirando-o ao solo.
3. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, Ian sofre escoriação no pescoço e dor nas zonas atingidas, que lhe determinaram 2 dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho.

4. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, com o intuito de causar lesões corporais no ofendido, o que conseguiu, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

- nos factos não provados mantêm-se um único, com a seguinte redacção:

a) Na ocasião referida em 2., já com o ofendido no solo, o arguido desferiu-lhe vários murros que o atingiram na cabeça e na face.

Alterada a decisão da matéria de facto, cumpre determinar os respectivos reflexos na decisão da matéria de direito.

E o primeiro é, desde logo, o de que não se pode manter a decisão absolutória uma vez que, face à factualidade agora definitivamente estabilizada, se mostram inquestionavelmente preenchidos todos os elementos típicos do crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143º nº 1 do C. Penal, cuja prática vinha imputada ao arguido, e que, aliás, foram analisados em detalhe na sentença recorrida que, nessa parte, integralmente acompanhamos sem necessidade de fastidiosas repetições.

O segundo é o de que, decidida a condenação do arguido, que havia sido absolvido na 1ª instância, há que proceder à determinação da medida da pena, operação que o AUJ nº 4/2016[7] cometeu ao tribunal da relação. Mas será assim em qualquer dos casos, mesmo naqueles, como o presente, em que a sentença recorrida nada menciona em relação a comportamento, antecedentes criminais e condições pessoais e económicas do arguido, circunstâncias cujo apuramento a absolvição não demandava (cfr. nº 2 do art. 128º e nº 1, a contrario, do art. 369º do C.P.P.), mas que agora a condenação torna necessário indagar uma vez que se revestem de relevo, as duas primeiras para a escolha da pena e todas elas para a determinação da respectiva medida concreta (arts. 70º e 71º do C. Penal)?

Coloca-se, assim, a questão de saber qual o procedimento a adoptar perante essa lacuna e a jurisprudência acima aludida, em concreto se a matéria de facto “em falta” deve ser apurada por este tribunal ou se os autos devem ser devolvidos à 1ª instância para o efeito e subsequente prolação de decisão condenatória.

Na resposta a esta questão acompanhamos inteiramente a posição expressa pelo ora Adjunto, Des. António João Latas, em texto escrito mas (ainda) não publicado, que gentilmente nos cedeu, e que de seguida se transcreve:

1.
Em casos como o presente [em que foi revogada a sentença absolutória proferida pelo tribunal recorrido – que não apurou e fixou factos relativos à vida pessoal e personalidade do arguido - decidindo-se agora, em substituição, verificarem-se os elementos constitutivos do crime de que foi absolvido e, consequentemente, haver lugar à sua condenação do arguido como autor desse mesmo crime], temos entendido que o processo deve ser devolvido à 1ª Instância para que continue aí a deliberação sobre a determinação da pena a que se reporta o art. 369º do CPP, com eventual reabertura da audiência, nos termos do art. 371º do CPP, para apuramento e eventual discussão dos factos necessários, com subsequente determinação da medida da pena a aplicar.

No entanto, face ao dispositivo e fundamentação do recente AFJ 4/2016, do STJ, colocou-se-nos a questão de saber se a fixação de jurisprudência nele decidida abrange os casos, como o presente, em que o tribunal de primeira instância não apurou e fixou factos relativos à situação pessoal do arguido, necessários à escolha e determinação concreta da medida da pena, o qual é diferente das situações processuais verificadas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, podendo enunciar-se esquematicamente as três hipóteses verificadas, nos seguintes termos:

- 1. O tribunal de julgamento absolvera o arguido de todos os crimes pelo qual foi julgado e, face ao disposto no art. 369º do CPP, não apurou e fixou os factos necessários para a determinação da pena (situação verificada no presente acórdão)

- 2. O tribunal de julgamento absolvera o arguido de todos os crimes pelo qual foi julgado mas, não obstante o disposto no art. 369º do CPP, apurou e fixou os factos necessários para a determinação da pena a aplicar ao arguido (situação do acórdão recorrido, do TRG);

- 3. O tribunal de julgamento absolvera o arguido de alguns dos crimes pelos quais foi julgado, condenando-o por outros, e, face ao disposto no art. 369º do CPP, apurou e fixou os factos necessários para a determinação da pena ou penas que aplicou (situação do acórdão fundamento, do TRC).

Ora, apesar de, numa primeira leitura, aquele Dispositivo e partes da fundamentação do AFJ 4/2016 parecerem apontar para que na fixação de jurisprudência se encontrem abrangidos todos os casos em que, revogando decisão absolutória da 1ª instância, a relação concluir pela condenação do arguido, uma leitura mais circunstanciada impõe-nos a conclusão de que aquela fixação de jurisprudência não abrange os casos em que o tribunal de primeira instância não procedeu ao apuramento e fixação dos factos necessários à determinação da pena - e é justamente o que se verifica nos presentes autos.

2.
São as seguintes as razões que nos conduzem àquela conclusão.

Em primeiro lugar, uma leitura da fixação de jurisprudência que considerasse nela abrangida os casos em que o tribunal de primeira instância não apurou todos os factos necessários à determinação da sanção, sempre se mostraria desconforme com os pressupostos do acórdão de fixação de jurisprudência concretamente verificados, pois em nenhum dos casos a que se reportam os acórdãos em oposição o tribunal de 1ª instância deixara de apurar os factos necessários à determinação da pena, pelo que a fixação de jurisprudência com tal amplitude decidiria questão de direito que não foi apreciada ou decidida pelos acórdãos das relações em oposição.

No acórdão recorrido (Ac R.G. de 06.05.2013, proc. 93/02.6TAPTB.G1, acessível em dgsi.pt), apenas relativamente a uma das arguidas que fora absolvida em 1ª instância (Paula G.) foi ordenado o reenvio para determinação da pena, descrevendo-se relativamente a ela diversos factos relevantes para a determinação da pena, sob os nºs 38 a 46 da factualidade provada, sem que se mencione em passo algum do acórdão recorrido que aqueles factos eram insuficientes para o efeito.

Relativamente ao acórdão fundamento (Ac RC de 19.09.2012), diz-se no AFJ 4/2016: «No acórdão fundamento, estava em causa a prática de vários crimes de furto e de um crime de condução de veiculo sem habilitação legal, tendo o arguido sido condenado por esse e por alguns crimes de furto; interposto recurso pelo Ministério Público para o Tribunal da Relação de Coimbra, veio este Tribunal a revogar em parte a decisão recorrida, condenando o arguido por outros crimes de furto de que tinha sido absolvido e aplicando as penas correspondentes, reelaborando também o cúmulo jurídico. Conforme se diz ainda na fundamentação do AFJ 4/2016, «Nessa decisão, aprovada por maioria com voto do presidente da secção e voto de vencida da Senhora Desembargadora adjunta, considerou-se expressamente que “ao tribunal ad quem, ao reexaminar a causa, tal como lhe assiste a faculdade de passar de uma decisão condenatória para uma absolutória, assistir-lhe-á́ a de passar de uma decisão absolutória para uma decisão condenatória e, neste ultimo caso, dispondo dos necessários elementos, fixar a espécie e medida da pena”».

Ou seja, no caso a que respeita o acórdão fundamento o arguido havia sido condenado por alguns dos crimes pelos quais foi julgado e foi absolvido por outros, sendo relativamente à revogação de alguns destes que o T.R. de Coimbra - dispondo dos elementos factuais necessários para fixar a espécie e medida da pena, máxime os descritos sob os nºs 85 e 86 da factualidade provada (vd o citado Ac TRC de 19.09.2012 em www.dgsi.pt) - decidiu proceder à determinação da pena e não devolver o processo ao tribunal de 1ª instância.

A oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento verifica-se, pois, na parte em que, dispondo ambos de factos suficientes para a determinação da pena, o acórdão recorrido entendeu caber ao tribunal de 1ª instância proceder à determinação da pena e o acórdão fundamento considerou que competia ao tribunal da relação proceder a essa mesma operação. Nada dizendo este acórdão quanto à solução a seguir caso não dispusesse de factos suficientes, o que se verifica igualmente quanto ao acórdão recorrido, nada permite concluir que existiria oposição de julgados entre ambos os acórdãos caso os respetivos tribunais de 1ª instância tivessem deixado de apurar os factos necessários à determinação da sanção. Pelo contrário, poderá mesmo dizer-se que tanto o acórdão recorrido como o acórdão fundamento entenderão que nessas hipóteses o processo deve ser devolvido à primeira instância, pelo que não existiria sequer oposição de julgados que conduzisse à fixação de jurisprudência com o referido objeto.

Em segundo lugar, apenas são feitas referências explícitas aos casos em que o tribunal de primeira instância não apurou todos os factos necessários à determinação da sanção na fundamentação do AFJ, a qual detém apenas valor doutrinário ou argumentativo, devendo o objeto da fixação de jurisprudência constar do Dispositivo do acórdão, conforme cremos ser entendimento comum. No entanto, o Dipositivo do AFJ 4/2016 não refere textualmente que a fixação de jurisprudência abrange os casos em que o tribunal de primeira instância deixou de apurar os factos pessoais necessários para a determinação da sanção, sendo certo que a remissão para as disposições legais citadas naquele Dispositivo não tem inequivocamente esse sentido, pois envolve alguma indeterminação e ambivalência, na medida em que os preceitos citados tanto podem referir-se à definição do objeto da fixação de jurisprudência, como à fundamentação do decidido ou mesmo a finalidade diversa, como sucederá com a referência ao art. 368º, que respeita à questão da culpabilidade.

Em terceiro lugar, a leitura mais ampla da fixação de jurisprudência contraria o que resulta dos termos da declaração do senhor conselheiro Manuel J. Braz, (“Concordo com a jurisprudência proposta. Mas não com parte da fundamentação”), que é igualmente adotada pelo senhor conselheiro Francisco Manuel Caetano, e da designação com que a mesma foi integrada no Acórdão, pois só a consideração de que aquela declaração se reporta à fundamentação do acórdão e não à decisão nele proferida, explica que seja ali designada de Declaração de voto e não de voto de vencido.

O mesmo se diga relativamente à declaração do senhor conselheiro Raúl Borges “ (Voto o acórdão de acordo com a posição assumida em 09.11.2011 no processo 43/09.9PAAMD.L1.S1)”, pois também neste acórdão considerou-se, explicitamente, que o poder de substituição da decisão recorrida não abarca a escolha da espécie e fixação da medida da pena (…) se a decisão em exame não contiver os elementos necessários para a determinação da medida da pena, cuja ausência se poderá explicar em virtude da decisão absolutória em 1.ª instância fazer esquecer essa indagação, conduzindo à verificação do vício previsto no art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP.” – vd ponto VI do sumário; itálico nosso.

Em quarto lugar, afigura-se-nos que uma leitura mais ampla da fixação de jurisprudência poderia pôr em causa a reserva de lei da AR consagrada em matéria de processo penal no artigo 165º al. c) da CRP, por se traduzir numa alteração significativa do regime legal dos recursos em processo penal, através de decisão do STJ proferida fora dos pressupostos da fixação de jurisprudência propriamente dita, quanto a esta matéria específica, e com a especial força vinculativa que resulta dos artigos 445º e 446º, do CPP. Na verdade, independentemente da questão estrita da separação de poderes, a atribuição inovadora de competência às relações para julgar e decidir factos novos em via de recurso, mesmo que se tratasse de recurso a ser julgado em conferência, parece longe de poder dispensar o debate transparente, participado e aprofundado que a reserva de lei permite, pois, com todo o respeito, é passo que o legislador certamente não dará sem sopesar bem vantagens e desvantagens, mesmo no plano da política legislativa, dadas as implicações de tal opção em diversos pontos dos modelos de julgamento e de recurso.

Por último, sempre fica em aberto a questão de saber em que medida a determinação da pena em primeira mão pelas relações, na sequência de recurso interposto pelo MP ou pelo assistente de sentença totalmente absolutória de arguido, não viola efetivamente o princípio constitucional das suas garantias de defesa, maxime o seu direito ao recurso, caso se consolide no nosso ordenamento positivo a inadmissibilidade de recurso para o STJ de algumas das decisões das relações que apliquem pena a arguido absolvido em primeira instância do crime ou crimes pelos quais foi sujeito a julgamento.

Falamos em absolvição total contrapondo-a à absolvição do arguido em 1ª instância por apenas alguns dos crimes pelos quais foi sujeito a julgamento, pois nessas hipóteses de prévia condenação do arguido em 1ª instância por alguns dos crimes que lhe vinham imputados, sempre entendemos não haver lugar à devolução dos autos à primeira instância, por tal não ser imposto pelo regime processual de determinação da sanção nem pelo princípio do duplo grau de jurisdição, cabendo ao tribunal de recurso proceder à determinação da nova pena.

Na verdade, quando o arguido é julgado por vários crimes e foi absolvido só por alguns deles, isso significa que das deliberações e votações do tribunal de julgamento sobre a questão da culpabilidade resultou dever ser aplicada ao arguido uma pena ou medida de segurança – a correspondente aos crimes em que foi condenado -, pelo que o tribunal de julgamento deve concluir o procedimento legalmente previsto para a determinação da sanção nos artigos 369º e 371º do CPP, independentemente do número e espécie de penas a aplicar, mostrando-se assim previamente cumprido o regime processual aplicável mesmo que o arguido só venha a ser condenado em primeira mão na relação, por algum dos crimes.

Por outro lado, também a exigência de um segundo grau de jurisdição se mostra respeitada nesses casos, pois no caso de recurso contra decisão só parcialmente absolutória, o arguido pode efetivamente pronunciar-se sobre os factos (já) apurados e os considerandos tecidos pelo tribunal de julgamento, com relevância para a determinação da sanção, contrariamente ao que sucede nos casos de absolvição total. Nestes casos, o tribunal de julgamento não apurou sequer os factos que apenas relevem para a determinação da sanção, ou, mesmo que tal se verifique, não teceu quaisquer considerações na sentença sobre a relação entre eles e os critérios para determinação da pena, o mesmo sucedendo em regra com os recursos do MP ou do assistente, que não têm que pronunciar-se sobre a escolha ou medida da pena a aplicar no caso de o arguido vir a ser condenado em via de recurso e raramente o fazem.

Daí entendermos, como referido, que nos casos em que o arguido é condenado em primeira instância por todos ou alguns dos crimes (como sucedeu no acórdão fundamento), não há lugar à devolução dos autos à 1ª instância, pois desde que tenha sido aplicada pelo menos uma pena ou medida de segurança teve já lugar o procedimento a que se reportam os arts 369º e 371, do CPP, ao mesmo tempo que o 2º grau de jurisdição se mostra suficientemente assegurado, como vimos, tudo se passando no tribunal de recurso em termos semelhantes aos verificados quando este apenas decide pena diferente ou medida mais grave para a pena antes aplicada em primeira instância.

Sendo consensual o nosso entendimento relativamente à questão acima enunciada, só nos resta concluir no sentido de que os autos devem ser devolvidos à 1ª instância para que desenvolva as diligências pertinentes com vista a apurar a factualidade relativa às condições de vida, comportamento e personalidade do arguido, a fim de lhe permitir a subsequente prolação de decisão condenatória em conformidade com o que acima expusemos.

4. Decisão
Por todo o exposto, julgam procedente o recurso e, em consequência, revogam a sentença recorrida e determinam

a) que a decisão da matéria de facto seja alterada nos termos supra discriminados;

b) que o arguido seja condenado, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º nº 1 do C. Penal, cujos elementos típicos a factualidade dessa forma alterada preenche; e

c) que os autos sejam devolvidos à 1ª instância para que se indaguem os factos, relativos ao circunstancialismo de vida pessoal, comportamento e personalidade do arguido, com interesse para a determinação da medida da pena, e, subsequentemente, aí seja proferida decisão condenatória de acordo com o ora decidido.

Sem tributação.

Évora, 5 de Julho de 2016

Maria Leonor Esteves
António João Latas

_________________________________________________
[1] (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).

[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.

[3] cfr. Ac STJ 7/6/06, proc. 06P763.

[4] cfr. Ac. RC de 3/10/00, CJ., ano 2000, t. IV, pág. 28

[5] Há que ter em devida conta que o princípio dubio pro reo não implica que todas as dúvidas devam ser resolvidas em favor do arguido; de facto, a imposição que dele dimana não cobre qualquer dúvida subjectiva, mas única e exclusivamente as dúvidas insanáveis, razoáveis e objectiváveis.

Conforme faz notar Cruz Bucho, “Notas sobre o princípio “in dubio pro reo”, CEJ, Comunicação apresentada em 6/5/98, numa sessão de Direito judiciário subordinada ao tema “A produção e valoração da prova”, a págs. 11 e 16, “A dúvida deve ser insanável, irredutível, irreparável, inultrapassável, invencível. Quer isto dizer que a falha no esclarecimento definitivo dos factos não pode ficar a dever-se a uma deficiente procura dos meios de prova (…) a dúvida só pode considerar-se razoável se for “a doubt for which reasons can be given”.

Também Cristina Líbano Monteiro, “Perigosidade de Inimputáveis e ‘In Dubio Pro Reo”, pág. 51, afirma que “a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir ‘pro reo’ tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária”.

[6] O princípio acolhido nesta norma implica que no processo penal, em regra (com algumas excepções, nomeadamente as que respeitam aos arts. 84º, 169º, 163º e 344º do C.P.P., integradas no princípio da prova legal ou tarifada), o julgador não se encontra vinculado à valoração das provas de acordo com regras rígidas, sendo livre de eleger aquelas às quais reconheça relevância e credibilidade para alicerçar a sua convicção, contanto que na respectiva apreciação tenha na devida conta as regras da experiência comum. Mas, como faz notar Maia Gonçalves (CPP anot., 17ª ed., pág. 354), dando conta da orientação uniforme da doutrina (e seguida igualmente pela jurisprudência), a livre apreciação da prova “não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica”.

Assim, se a apreciação da prova é discricionária, esta discricionariedade tem limites, decorrentes do dever de perseguir a chamada "verdade material", de tal sorte que a apreciação há-de ser racional, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo.

A efectivação desse controlo implica que a apreciação da prova esteja sujeita ao dever de fundamentação que, no âmbito do processo penal, constitui uma das garantias constitucionais de defesa do arguido consagradas no nº 1 do art. 32º da C.R.P., e que é acrescido em relação ao dever geral estabelecido no nº 5 do art. 97º do C.P.P., encontrando-se concretizados na norma do nº 2 do art. 374º deste diploma os conteúdos exigidos para a fundamentação da sentença penal.

[7] D.R., 1ª s., 22/2/16, que é a seguinte:
Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal.