Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1184/08.5TBCTX.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: DEFEITOS NA OBRA
CADUCIDADE DO DIREITO À ELIMINAÇÃO DO DEFEITO
Data do Acordão: 12/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Ao demolir e ao iniciar a construção de um alpendre que correspondia ao vício de construção então detectado, o vendedor de um imóvel assume um comportamento concludente de reconhecimento espontâneo de defeitos, que não gera novo prazo de caducidade, ficando o direito definido sujeito às disposições que regem a prescrição.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº 1184/08.5TBCTX.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo de Competência Cível do Cartaxo – J1
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório:
Na presente acção de condenação proposta por (…) e (…) contra (…) e (…), os Autores vieram interpor recurso da sentença final.
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Os Autores pediram a condenação dos Réus no pagamento do custo da reparação dos defeitos de construção da moradia (no valor de € 12.260,00 acrescido de IVA), no pagamento de quantia mensal não inferior a € 600,00 por cada mês de privação de uso e habitação desde Maio de 2007 a final Agosto de 2008, no pagamento da quantia de € 5.000,00 a título de danos não patrimoniais, juros sobre as referidas quantias. *
Os Autores alegaram para o efeito ter adquirido um imóvel para habitação aos Réus e que, logo após a entrega, o mesmo apresentava diversos defeitos, que repararam por sua conta e custo e que, além do mais, isso os privou do uso da referida residência e lhes causou diversos incómodos.
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Os Réus apresentaram articulado de contestação, onde admitiram que venderam aos Autores o prédio misto identificado mas não foram eles os construtores da moradia nele implantado e que celebraram um contrato de empreitada com a sociedade “(…) – Construções, Lda.” e que o técnico responsável da obra foi (…).
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Os Autores suscitaram o incidente de intervenção de terceiro de “(…) – Construções, Lda.” e de (…), que foi deferido.
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O chamado (…) contestou a acção, aderindo à contestação dos Réus, acrescentando ainda que, enquanto director técnico da obra, cumpriu todas as obrigações técnicas a que está vinculado por efeito do previsto no Decreto-Lei nº 555/99, de 16/12.
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Foi apresentado requerimento de ampliação de pedido, o qual foi deferido.
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Realizado o julgamento, o Tribunal «a quo» decidiu:
I – Absolver os Réus (…) e (…) dos pedidos contra si formulados.
II – Condenar “(…) – Construções, Lda.” no ressarcimento aos Autores da quantia de € 9.432,42 despendida na reparação de defeitos na construção.
III – Condenar, solidariamente, “(…) – Construções, Lda.” e (…) no pagamento da quantia de € 5.000,00 aos Autores a título de indemnização por danos não patrimoniais.
IV – Absolver os chamados do mais peticionado.
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Os recorrentes não se conformaram com a referida decisão e as suas alegações continham as seguintes conclusões:
«I – A decisão recorrida faz, salvo o devido respeito, uma errada interpretação e aplicação dos artigos 331º, nº 2 e 916º, nº 3, do Código Civil ao julgar caducado o direito dos Autores em exigirem a eliminação dos defeitos e a correspondente indemnização contra os vendedores e o técnico responsável da obra.
II – Provado ficou que a moradia foi entregue aos Autores em 11/04/2007 e os defeitos foram denunciados em meados de Maio de 2007.
III – O que significa portanto que, ainda não havia decorrido o prazo de 5 (cinco) anos de que os Apelantes dispunham para o exercício desse direito, nem sequer se havia esgotado o prazo de 1 (um) ano, a partir da denúncia.
IV – Para além disso, resultou confessado pelos próprios vendedores na sua contestação que as reparações foram levadas a cabo por estes e que os mesmos reconheceram assim a sua culpa ao mandarem reparar parte das deficiências encontradas da moradia.
V – O que se traduz num reconhecimento concreto, preciso e inequívoco dos defeitos que não oferece quaisquer dúvidas, impedindo definitivamente a verificação da caducidade do direito invocado pelos Autores.
VI – Quanto aos defeitos supervenientes o artigo 918º do Código Civil manda aplicar as regras gerais do não cumprimento.
VII – Assim, relativamente aos segundos defeitos, estamos perante uma situação de cumprimento defeituoso de um contrato de compra e venda, imputável aos vendedores, que não ilidiram a presunção de culpa que sobre si recaía, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 799º e 342º, nº 2, ambos do Código Civil.
VIII – Provou-se ainda que o Arquitecto (…) foi o autor do projecto de arquitectura e ao mesmo tempo o técnico responsável da obra.
IX – Sendo por isso mesmo solidariamente responsável pelo ressarcimento dos danos causados aos Apelantes verificados que se mostram os pressupostos da responsabilidade extracontratual por factos ilícitos decorrentes da violação culposa dos seus deveres no exercício da actividade a que estava obrigado.
X – De facto da prova produzida resultou assente não ter sido feita a ligação da laje do alpendre à estrutura da casa, conforme estava previsto no projecto de estabilidade.
XI – Não há pois dúvida nenhuma de que ocorreu um erro técnico na execução imputável ao Arquitecto não só porque não acautelou a colocação das sapatas e respectivas fundações à profundidade necessária, como também não executou (ou mandou executar) a referida ligação, não cumprindo assim o projecto de estabilidade, incorrendo desse modo em responsabilidade civil perante os Autores em consequência dos evidenciados erros de construção.
XII – Mais resultou provado dos pontos 26 e 28 da sentença recorrida que a moradia se tornou inabitável, e, em consequência, os Autores ficaram impossibilitados de usar o imóvel, designadamente, pelo perigo e risco de derrocada do alpendre e ainda pela falta de apoios estruturais ao nível da varanda, o que sucede desde meados do ano de 2007.
XIII – A privação do direito de uso e fruição integrado no direito de propriedade configura, por si só, uma desvantagem económica que se reflecte necessariamente no valor do mesmo.
XIV – Se como se refere na decisão recorrida, os Autores não lograram provar a frustração efectiva do arrendamento do imóvel, lograram, pelo menos, provar os danos emergentes resultantes da impossibilidade de habitar na moradia, nos termos do artigo 564º, nº 1, do Código Civil.
XV – Essa privação constitui um facto gerador da obrigação de indemnizar, uma vez que impede o seu dono do exercício dos direitos inerentes à propriedade, isto é, de usar, fruir e dispor do bem, nos termos consentidos pelo artigo 1305º do Código Civil.
XVI – Posto isto, ainda que não tenha provado, em concreto, o prejuízo relativo à privação do uso da moradia por parte dos Apelantes afigura-se-nos não se encontrar afastado o direito a serem indemnizados considerando o valor locativo mensal do imóvel, o qual deveria ter sido fixado equitativamente pelo Tribunal «a quo», nos termos do artigo 566º, nº 3, do Código Civil.
XVII – No caso sub judice resultou provado do ponto 20 da sentença recorrida que «por via dos defeitos referidos os Autores ficaram impedidos de se mudar para o prédio referido em 1 desde Maio de 2007».
XVIII – Tendo ficado igualmente provado que aquela moradia representava para os Apelantes um projecto de vida e um esforço financeiro que ainda mantêm ao continuarem a assumir o pagamento do empréstimo contraído junto da Caixa Geral de Depósitos para aquisição do imóvel, no montante de € 125.000,00.
XIX – Mais se acrescenta que não possuindo a moradia as mínimas condições de habitabilidade, nunca poderiam os Autores dar sequer o imóvel de arrendamento. Aliás, no caso em apreço, o dano não se traduz no facto de os Apelantes terem deixado de arrendar o imóvel devido aos defeitos da obra, pois que a construção em causa não se destinava ao arrendamento, mas sim a sua habitação própria e permanente.
XX – Do exposto conclui-se que os Autores têm direito a serem ressarcidos dos danos consubstanciados na privação do uso da moradia mediante o pagamento de uma indemnização correspondente ao seu valor locativo mensal a ser contabilizado desde Maio de 2007 e até à completa remoção dos defeitos que a impedem de habitar, em montante a fixar segundo juízos de equidade, ou, se assim se não entender, em quantia que se vier apurar em sede incidente de liquidação.
XXI – Pelo que, ao decidir da forma como o fez, o Tribunal «a quo», salvo o devido respeito, violou o disposto nos artigos 331º, nº 2, 342º, nº 2, 483º, 497º, 564º, nº 1, 566º, nº 3, 799º, 916º, nº 3, 918º e 1035º, todos do Código Civil.
Nesta conformidade deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada a sentença recorrida na parte que julgou caducado o direito dos Autores em exigirem a eliminação dos defeitos e a correspondente indemnização contra os vendedores e o Arquitecto (…), bem como na parte que não lhes reconheceu o direito de serem indemnizados pela privação do uso da moradia, substituindo-a por outra que condene solidariamente os Réus e o identificado chamado em tais pedidos e nos termos supra descritos, mantendo-se, em tudo o mais, o decidido, assim se fazendo Justiça!».
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Houve lugar a resposta que afirma que, perante a factualidade provada e face à sua fundamentação fáctica e jurídica, o recurso deve ser julgado improcedente.
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Observados os vistos legais, foi admitido o recurso. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do NCPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Analisadas as alegações de recurso, a questão que se suscita neste recurso é apurar se ocorreu erro de direito na interpretação das normas relativas à caducidade e à aplicação do regime de responsabilidade civil relativamente à privação do direito de uso.
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III – Factos com interesse para a decisão da causa:
3.1 – Matéria de facto provada[1]:
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1 – Por escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca, datada de 11/04/2007, os Réus venderam aos Autores em comum e partes iguais, pelo preço de € 125.000,00, o prédio misto sito em Vale de (…), freguesia de (…), Concelho do Cartaxo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo sob o nº (…) da freguesia de (…), e a Caixa Geral de Depósitos concedeu aos Autores empréstimo da quantia de € 125,000,00 que os Réus se confessaram devedores tendo sido constituída hipoteca sob tal prédio para garantia do pagamento da quantia emprestada.
2 – Em 15/03/2007 foi inscrita a aquisição pelos Autores do prédio referido em 1) por compra e na mesma data inscritas hipotecas voluntárias sobre o mesmo a favor da Caixa Geral de Depósitos.
3 – Em meados de Maio de 2007, o alpendre do alçado principal do imóvel referido em 1) abateu, deslocando-se do corpo do edifício.
4 – E o pavimento de tal alpendre apresentava zonas ocas, desníveis e inclinações.
5 – E as vigas entre as colunas de tal alpendre apresentavam-se inclinadas e em risco de desmoronamento.
6 – Em meados de Maio de 2007, as paredes da cave do prédio referido em 1) apresentavam marcas de infiltração e de salitre, na zona em que tais paredes se encontram abaixo do nível do solo.
7 – Em meados de Maio de 2007 a casa do gás estava deslocada e desgarrada do edifício principal.
8 – Em meados de Maio de 2007 o muro de vedação encontrava-se fissurado e abatido em diversos locais.
9 – O alpendre referido em 3) foi construído sem fundações, com os pilares directamente assentes no solo, sem viga ou sapata a suportá-los.
10 – Em Outubro de 2007, os Réus mandaram demolir o alpendre referido em 3).
11 – E mandaram construir novo alpendre com os pilares assentes em viga de suporte.
12 – Em 25 de Fevereiro de 2008, os Autores remeteram aos Réus para a morada do seu domicílio, carta registada onde chamam a atenção para o ritmo lento das obras de remoção dos defeitos.
13 – Tal carta não foi levantada pelos Réus e foi devolvida aos Autores.
14 – Em 26 de Março de 2008, os Autores remeteram aos Réus, para a morada do seu domicílio, carta registada onde comunicam que face à inércia dos Réus em procederem às necessárias reparações, iriam levá-las a efeito por sua iniciativa, tendo com tal finalidade, pedido três orçamentos a outras tantas empresas de construção.
15 – Tal carta não foi levantada pelos Réus e foi devolvida aos Autores.
16 – Foram apresentados aos Autores três orçamentos.
17 – Dos referidos orçamentos, o mais barato foi o apresentado pela empresa “(…) – Materiais de Construção Civil, Lda.”, no valor global de € 12.260,00, acrescido de IVA.
18 – Os Autores adjudicaram à empresa (…) a empreitada de remoção dos defeitos no alinhamento do ripado e telhas do alpendre, colocação de cumeeiras, alinhamento do beirado do alpendre e de toda a casa, reboco do alinhamento do tecto do alpendre, reparação de pilares, colocação de grades nos vãos, pintura das paredes, refazer do passadiço à volta da casa, remate dos muros com pilares e vigas de travamento.
19 – O pai do Autor pagou à empresa (…) a quantia de € 9.432,42 pela remoção de defeitos.
20 – Por via dos defeitos referidos os Autores ficaram impedidos de se mudar para o prédio referido em 1 desde Maio de 2007.
21 – O que lhes causou frustração, desmotivação e desencanto.
22 – Para construção do prédio referido em 1), os Réus celebraram contrato de empreitada com a sociedade “(…) – Construções, Lda.” (empreiteiro).
23 – A “(…) – Construções, Lda.” executou a construção da moradia referida em 1).
24 – Aquando de outorga da escritura de compra e venda, os Autores tinham conhecimento do referido em 22) e 23).
25 – A varanda da habitação apresenta fissuras.
26 – A varanda está a desligar-se do edifício por falta de apoios estruturais.
27 – Tais fendas são responsáveis pelo arrancar das forras em pedra das portas e janelas.
28 – Tais fendas impedem o uso da habitação.
29 – O projecto de estabilidade prevê as fundações do alpendre e do alçado lateral com início ao mesmo nível das do piso inferior, o que não foi feito.
30 – O projecto de estabilidade prevê a ligação da laje do alpendre à estrutura da casa, o que não foi feito.
31 – O referido em 11 foi feito com a viga de suporte a cerca de 2,5 metros de profundidade face ao nível do chão do rés-do-chão.
32 – O responsável técnico da obra visitava a obra a cada 15 dias, em média.
33 – Após o deslocamento do telheiro, o responsável técnico da obra foi à obra e mandou fazer novas fundações para o telheiro, tendo feito uma sapata contínua aos 5 pilares, e mandou refazer os pilares e o telheiro.
34 – Após o segundo descolamento, ainda disse ao autor como arranjar o telheiro (acrescentando linha de telha para encostar à casa e reparando o chão) – o que não foi feito;
35 – A casa do gás e o muro não constam do projecto.
36 – Em meados de 2010 o alpendre (varando do alçado principal) começou a descolar da casa, abrindo fendas que causaram o arrancar das forras em pedra das portas e janelas.
37 – Os Autores comunicaram estes defeitos aos Réus por carta registada com aviso de recepção datada de 31/10/2011, recebida em 11/11/2011.
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3.2 – Matéria de facto não provada:
i) O muro de vedação referido em 8 foi construído sem fundações.
ii) A casa do gás referida em 7 foi construída sem fundações.
iii) Aquando de outorga da escritura de compra e venda os RR. sabiam do referido em i e ii.
iv) Em meados de maio de 2007 o passadiço com cerca de um metro de largura que rodeia a casa, estava descolado do edifício.
v) O alpendre apresentava desnível do telhado.
vi) E da placa do tecto.
vii) E as telhas mal assentes.
viii) E os telhões das esquinas mal rematados.
ix) E as tamancas (telhas de ligação à parede) mal rebocadas.
x) E a sanca torta e desnivelada.
xi) E as meias canas do beiral tortas e desniveladas.
xii) E a alheta torta e desnivelada.
xiii) O passadiço foi construído sem fundações.
xiv) Os Autores pagaram à empresa referida em 27) o preço de € 12.260,00 pela remoção dos defeitos.
xv) Os Autores ficaram impedidos de se mudar para o prédio desde Maio de 2007 até Agosto de 2008.
xvi) A renda mensal de uma moradia com 4 quartos, 2 salas, 2 casas de banho e garagem na cave, na localidade onde se situa o prédio, ascende mensalmente a € 600,00.
xvii) Logo que souberam do referido em 3, os Réus contactaram o empreiteiro que se dispôs a executar a reparação.
xviii) Em final de Novembro de 2007, o empreiteiro iniciou as obras que vieram a prolongar-se até Março de 2008 devido às abundantes chuvas desse inverno.
xix) Quando estava quase terminada a obra, os Autores, invocando que havia um desnível de 1 cm entre as duas extremidades do beirado, exigiram que este fosse totalmente desmontado.
xx) O empreiteiro ainda rectificou o beirado mas perante as exigências dos Autores abandonou a obra.
xxi) Quando tal ocorreu, para que a obra do alpendre ficasse concluída, faltava colocar algumas telhas no beirado, fazer os remates respectivos, fixar os gradeamentos e pintar a fachada.
xxii) Informados do abandono da obra pelo empreiteiro, os RR contrataram um pintor e este, por sua vez, incumbiu um pedreiro de fazer os remates em falta.
xxiii) No dia em que este pedreiro se apresentou na obra, e antes de começar a trabalhar, os Autores ordenaram-lhe que se fosse embora.
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IV – Fundamentação:
4.1 – Da caducidade:
Há venda de coisa defeituosa sempre que a coisa vendida sofrer vícios ou carecer de qualidades abrangidas no artigo 913º[2] do Código Civil.
O defeito material tanto pode ser inerente à própria coisa, como a uma desconformidade ao contrato ou ainda à sua execução. Nesta dimensão, sempre que o bem vendido não tem a qualidade, explicita ou implicitamente assegurada, a prestação é defeituosa [3] [4] [5] [6].
No leque de opções legais conferidas ao adquirente é reconhecido o direito à anulação do contrato (artigo 905º do Código Civil) ou à redução do preço (artigo 911º), bem como a possibilidade de ser indemnizado pelos prejuízos sofridos (artigos 908º e 909º do mesmo diploma legal).
Para além do direito à anulação por erro ou dolo, o regime da venda de coisa defeituosa confere, ainda, ao comprador os direitos à reparação ou substituição da coisa (artigo 914º), à indemnização em caso de simples erro (artigo 915º), ao cumprimento coercivo ou à indemnização respectiva (artigo 918º) e à garantia de bom funcionamento (artigo 921º).
Perscrutada a matéria de facto apurada verifica-se que o imóvel padecia de diversos vícios construtivos que impediam a sua normal utilização e, assim, em sede de recurso, a questão principal a apurar reside na definição e na concretização do prazo de caducidade aplicável à relação jurídica estabelecida entre as partes.
A caducidade tem por objectivo evitar o protelamento do exercício de certos direitos por lapsos de tempo dilatados, levando-os a que se extingam pelo decurso do prazo fixado. Neste campo prevalecem considerações de certeza e de ordem pública, no sentido de ser necessário que, ao fim de certo tempo, as situações jurídicas se tornem certas e inatacáveis. Estão em causa prazos peremptórios de exercício do direito.
A determinação do prazo de caducidade do direito de acção do comprador destinado a exigir do vendedor a reparação de defeitos do imóvel vendido, na falta de previsão legal expressa nesse sentido, obtém-se a partir das regras contidas nos artigos 916º[7] e 917º[8] do Código Civil relativas aos prazos de denúncia e de caducidade da acção de anulação por simples erro na compra e venda e coisas defeituosas.
Por isso, para que o vendedor possa ser responsabilizado pelo cumprimento defeituoso e seja reconhecido o direito ao comprador à eliminação dos defeitos é indispensável que este tempestivamente proceda à sua denúncia nos termos do dispositivo acima referido e, caso os mesmos não sejam suprimidos, a competente acção deverá ser interposta no prazo fixado no artigo 917º do Código Civil.
De forma pacífica no domínio doutrinal e jurisprudencial sobressai o entendimento que os direitos conferidos ao comprador antevêem o recurso a três tempos procedimentais articulados entre si:
1) O prazo de denúncia dos defeitos que, no caso de imóveis, é de um ano a contar do conhecimento dos mesmos, por força do disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 916º ou, na hipótese de empreitada de imóvel destinado a longa duração, da disciplina consignada nos nºs 2 e 4 do artigo 1225º[9], ambos do Código Civil.
2) O prazo de exercício do direito (eliminação dos defeitos, redução do preço, resolução do contrato, indemnização) é de seis meses a contar da denúncia atempada dos defeitos, nos termos do nº 2 do artigo 917º do Código Civil. No caso da coisa vendida ser um imóvel, o prazo é de um ano por via do disposto no nº 3 do citado preceito ou na hipótese do vendedor de imóvel destinado a longa duração que o tenha construído, modificado ou reparado, nos termos do nº 4 do artigo 1225º do mesmo diploma.
3) O limite máximo da garantia legal é de cinco anos sobre a data da entrega da coisa vendida, independentemente da data do conhecimento dos defeitos e da sua denúncia, como decorre dos artigos 916º, nº 3, parte final e 1225º, nº 4, do Código Civil.
Ao assumir correctamente que na situação vertente o vendedor não foi o construtor do imóvel, a sentença recorrida afirma que «o comprador apenas dispõe do prazo do artigo 917º do Código Civil (seis meses) para exercer contra ele (vendedor) o direito de acção para obter a eliminação de defeitos que afectem o prédio urbano adquirido.
Ora, no caso dos autos, o imóvel foi entregue em 11/04/2007, os defeitos foram denunciados em meados de Maio de 2007 e a acção foi proposta a 05/08/2008».
Porém, como resulta da simples leitura do estabelecido no nº 3 do artigo 916º do Código Civil, o prazo para o exercício do direito de acção é de um ano e não de seis meses. Com efeito, o Decreto-Lei nº 267/94, de 25 de Outubro, aditou um número 3 ao artigo 916º do Código Civil, que alargou os prazos da denúncia dos defeitos para um ano depois deles conhecidos e cinco anos depois da entrega, caso a coisa vendida seja um imóvel.
E, na intenção legal, conforme resulta do preâmbulo do diploma, pretendeu-se inovar alargando o prazo para a denúncia dos defeitos e, bem assim, o período dentro do qual a denúncia é admissível, nos casos do contrato de compra e venda a que se refere o artigo 916º, no respeitante a imóveis.
O prazo de caducidade de um ano inicia-se após a denúncia dos respectivos defeitos e a contagem opera a partir do momento em que a declaração de denúncia se torna eficaz, ou seja quando é recebida pelo vendedor ou empreiteiro, consoante os casos, ou quando este não a recebe por razões a ele imputáveis.
E a partir destas premissas o Juízo Local do Cartaxo conclui que o direito dos Autores de pedirem a eliminação dos defeitos e de serem civilmente ressarcidos a título indemnizatório por parte dos Réus (…) e (…) se encontra caducado.
Todavia, não é exactamente assim no que toca aos defeitos inicialmente detectados e oportunamente denunciados aos vendedores. Na verdade, existe uma causa impeditiva da caducidade que deveria ter sido ponderada ao abrigo do disposto no artigo 331º, nº 2[10], do Código Civil.
Sobre esta matéria pronunciam-se Vaz Serra[11], Pires de Lima e Antunes Varela[12], Jacinto Rodrigues Basto[13], António Menezes Cordeiro[14], Júlio Gomes[15] e Ana Filipa Morais Antunes[16], entre outros.
A caducidade só é detida pela prática, dentro do prazo legal ou convencional, do acto a que a lei ou uma convenção atribuam efeito impeditivo[17]. Contudo, a lei admite que o reconhecimento por parte do seu beneficiário corresponde a uma causa impeditiva.
Ana Filipa Morais Antunes afirma que o reconhecimento só será impeditivo se tiver o mesmo efeito que teria a prática do acto sujeito a caducidade e se ocorrer antes de esgotado o prazo respectivo[18].
Como asseveram Pires de Lima e Antunes Varela se o vendedor reconhece espontaneamente estes defeitos, o reconhecimento torna certa a situação, tornando-se desnecessária a denúncia[19]. Se se trata do prazo de proposição de uma acção judicial, na óptica de Vaz Serra o reconhecimento «deve ser tal que torne o direito certo e faça as vezes da sentença, porque tem o mesmo efeito que a sentença pela qual o direito fosse reconhecido [20] [21].
O reconhecimento do direito, por parte daquele contra quem deva ser exercido, para ter eficácia impeditiva da caducidade tem de ser concreto, preciso, sem margem de vaguidade ou ambiguidade[22]. Ou, noutra formulação, deve apresentar-se como um reconhecimento concreto com valor idêntico ao do acto impeditivo, que torne desnecessária a sua exigência por meios judiciais[23].
E condensados os factos é de concluir que a conduta inicial dos Réus reveste o carácter de reconhecimento concreto dotado das referidas características exigidas pelo número 2 do artigo 331º do Código Civil e isso afastava indubitavelmente a necessidade de recurso a Tribunal relativamente ao conjunto de vícios construtivos até então detectados, sendo que foi a impaciência dos Autores quanto ao tempo da realização das obras de reparação que determinou o recurso a juízo.
Na realidade, como se pode ler na matéria de facto apurada, o alpendre foi construído sem fundações, com os pilares directamente assentes no solo, sem viga ou sapata a suportá-los (ponto 9). E em Outubro de 2007, após terem sido interpelados pelos Autores nesse sentido, os Réus mandaram demolir o alpendre em causa e construíram novo alpendre com os pilares assentes em viga de suporte (pontos 10 e 11). Mais ficou assente que, em 25 de Fevereiro de 2008, os Autores remeteram aos Réus para a morada do seu domicílio, carta registada onde chamam a atenção para o ritmo lento das obras de remoção dos defeitos (ponto 12) e, de seguida, por não ter sido introduzida uma maior velocidade na reparação, foi proposta a presente acção.
Isto é, existe uma coincidência qualitativa total entre a pretensão de reparação dos defeitos e o pedido inicialmente formulado quanto à eliminação dos vícios construtivos e assim a conduta prosseguida pelos vendedores tem de ser entendida como um acto de reconhecimento voluntário que impediria a caducidade do direito de acção.
Na sua sempre actual lição Vaz Serra advoga que o reconhecimento não é interruptivo, uma vez que inutiliza o tempo já decorrido, nem determina o início de um novo prazo de caducidade; antes, torna o direito estável e subtrai-o definitivamente à caducidade[24].
Este raciocínio é completado por Aníbal de Castro que defende que o impedimento corresponde à efectivação do direito, não gera novo prazo, ficando o direito definido sujeito às disposições que regem a prescrição[25]. Idêntico entendimento é perfilhado por Pires de Lima e Antunes Varela[26], Júlio Gomes[27] e Ana Filipa Morais Antunes[28].
No entanto, caso não se perfilhasse do entendimento que a partir do reconhecimento aquilo que é aplicável é o regime da prescrição e se optasse por uma visão mais restritiva que contemplasse a sujeição do exercício do direito a novo prazo de caducidade – como transparece da leitura do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/11/2005[29] –, o resultado final seria o mesmo e conduziria à responsabilização dos Réus, por via da interacção entre os prazos em discussão.
Havendo impedimento da caducidade com o reconhecimento concludente por parte dos Réus da existência dos defeitos no imóvel, quanto muito, sem conceder, o prazo de ano para a propositura da acção contar-se-ia a partir do momento e, assim, na medida, em que as obras de demolição e de reconstrução se iniciaram em Outubro de 2007, à data da propositura da acção não se mostrava extinto o prazo para o direito ser legalmente exercido.
Porém, a solução mais certeira é aquela que conduz a que no caso dos direitos disponíveis como sucede no regime da venda de coisas defeituosas, sendo o prazo de caducidade fixado por lei, o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deve ser exercido, impede a caducidade, por aplicação da disciplina contida no artigo 331º, nº 2, do Código Civil.
Em suma, por força da aplicação da lição de Vaz Serra, entendemos que, ao demolir e ao iniciar a construção de um alpendre que correspondia ao vício de construção então detectado, o vendedor de um imóvel assume um comportamento concludente de reconhecimento espontâneo de defeitos, que não gera novo prazo de caducidade, ficando o direito definido sujeito às disposições que regem a prescrição.
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Importa agora apreciar a matéria dos vícios supervenientes e da respectiva relação com o prazo de caducidade.
No contexto da compra e venda, defeito oculto é aquele que, não sendo conhecido do comprador, pode ser legitimamente ponderado em momento futuro. No âmbito da previsão encontram-se os vícios cuja verificação não era detectável através de um exame diligente, isto é que não era reconhecível pelo bonus pater famílias ou por cidadão dotado de normal diligência. Em contraposição, defeito aparente é aquele que é detectável mediante um exame diligente, de que o comprador se poderia ter apercebido usando de normal diligência[30].
Aos vícios supervenientes sobrevindos após a celebração do contrato de compra e venda e antes da entrega da coisa, como de resto, à venda de coisa futura ou de coisa genérica, a lei manda aplicar as regras relativas ao não cumprimento das obrigações, por força do estabelecido no artigo 918º[31] do Código Civil.
Se o defeito é imputável ao vendedor aplicam-se as regras sobre o não cumprimento (artigos 798º e seguintes, por remissão do artigo 918º), se o defeito não é imputável ao vendedor aplicam-se as regras sobre o não cumprimento não imputável (artigos 790º e seguintes, por remissão do artigo 918º)[32].
Todavia, esta estatuição apenas se aplica aos vícios preexistentes ou contemporâneos da conclusão do contrato e anteriores à entrega da coisa, caso em que a lei faculta ao adquirente a garantia editícia. E do conspecto factual apurado não é possível retirar que os vícios são genéticos ou contemporâneos à construção e à venda mas é indiscutível que o respectivo conhecimento ocorreu após a entrega da coisa, o que afasta a aplicação do normativo em causa (artigo 918º) e remete as partes para o regime geral.
Contudo, mesmo que fosse aplicável a disciplina do não cumprimento, ainda assim, por não existir qualquer regra específica sobre o momento da possível realização do direito, a regra relativa ao tempo de exercício contida no artigo 916º do Código Civil continuaria a ser aplicável.
O Tribunal «a quo» entendeu que estava caducada a hipótese de propositura da acção. Ficou assim escrito que «no que respeita ao segundo desligamento do alpendre, verificados os defeitos em meados de 2010, denunciados por carta registada datada de 31/10/2011 e recebida em 11/11/2011 e pedida a ampliação do pedido (exercício direito de acção) em 13/11/2013».
E, deste modo, ao não promoverem a ampliação do pedido no prazo de um ano, com base no regime da venda por coisas defeituosas e no relacionamento entre o conjunto de normas aplicáveis a este contrato e o pedido e a causa de pedir que fundamentam a presente acção, os Autores perderam o direito a solicitarem a reparação e direitos conexos relacionados com o descolamento do alpendre.
Deste modo, neste segmento, por força do não exercício tempestivo do direito nos moldes que lhe são facultados pelo regime da venda das coisas defeituosas, ocorreu a preclusão da possibilidade de exercício do direito à reparação de defeitos.
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Quanto ao arquitecto (…) não se verificam os pressupostos que viabilizam a respectiva condenação, sem embargo da possível efectivação do direito de regresso, que espoletou o incidente de intervenção provocada.
Neste ponto, como salienta José João Abrantes[33], «a moderna configuração dos contratos sinalagmáticos assenta na ideia de interdependência entre obrigações que deles reciprocamente emergem para ambas as partes. O respeito pela intenção destas no momento da sua celebração, pretendendo efectuar uma troca de prestações, e a justiça comutativa supõem que o devedor de cada uma dessas obrigações só possa ser compelido a executá-la se o devedor da outra também cumprir. Por isso, a lei cria um vínculo de interdependência entre tais obrigações, tendo em vista precisamente a realização daquela ideia de justiça comutativa».
Todavia, no caso concreto, ainda que se pudesse concluir que existem vícios cuja origem possa ser assacada ao autor do projecto de arquitectura e igualmente técnico responsável da obra, do ponto de vista contratual, não foi estabelecido qualquer acordo entre os adquirentes do imóvel e os responsáveis técnicos pela elaboração do projecto e respectiva fiscalização. Com efeito, estes serviços foram contratualizados por outrem, ao abrigo de um contrato de empreitada, estando assim excluída por via directa o recurso às regras do regime da compra e venda de coisas defeituosas para solucionarem o litígio. As regras da compra e venda têm uma limitação subjectiva que limita a responsabilidade ao vendedor ou, se for o caso e a factualidade apurada assim o evidenciar, admite-se como possível, a imputação dos defeitos ao vendedor.
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4.2 – Da privação de uso:
Os Autores requereram o pagamento de uma indemnização pelos danos patrimoniais decorrentes da privação de uso do imóvel em causa nos presentes autos, exigindo aos Réus a satisfação de uma indemnização no valor de € 600 (seiscentos euros) por cada mês em que estiveram privados de utilizar a habitação negociada.
A propósito do dano como pressuposto da responsabilidade civil refere Menezes Leitão[34] que entre os danos patrimoniais se inclui a privação do uso das coisas, como sucede no caso de alguém ser inibido por facto de outrem da utilização de um pertence seu, concretizando que o «simples uso constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano».
Uma corrente jurisprudencial firma entendimento[35] [36] que a privação do uso de bens próprios «é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário (ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira o direito a utilizá-lo) de exercer os poderes correspondentes ao seu direito e que o cálculo da correspondente indemnização (…) há-de ser efectuado com base na equidade, por não ser possível avaliar “o valor exacto dos danos” (nº 3 do artigo 566º do Código Civil)».
Em contraponto existe jurisprudência[37] que perfilha a tese que «a mera privação do uso (…), independentemente da demonstração de factos reveladores de um dano específico emergente ou de um lucro cessante, é insusceptível de fundar a obrigação de indemnização, no quadro da responsabilidade civil».
O convocado aresto datado de 08/05/2013 acaba por realizar a síntese das posições jurisprudenciais mais relevantes, esclarecendo que «para uns, o dano da mera privação do uso não é indemnizável; para que a privação seja ressarcível, terá de fazer-se prova do dano concreto e efectivo, isto é, da existência de prejuízos decorrentes directamente da não utilização do bem; para outros, a simples privação do uso, só por si, constitui um dano indemnizável, mesmo que nada se prove a respeito da utilização ou destino que seria dado ao bem. Ainda mais recentemente, surgiu uma tese diferente, que pode considerar-se intermédia: se, por um lado, afirma que não basta a simples privação do uso do bem, também não exige a prova de danos concretos e efectivos; será essencial a alegação e prova da frustração de um propósito real, concreto e efectivo de proceder à sua utilização».
Cremos que esta última solução, aquela que apela ao prejuízo abstracto correspondente à privação da utilização, é a que melhor se adequa aos fundamentos teóricos e práticos que reclamaram a introdução deste tipo de ressarcimento de dano no ordenamento jurídico nacional.
Pese embora se refira à privação de uso de veículo, por existir uma identidade valorativa comum, a proposta axiológica hermenêutica de Abrantes Geraldes é aplicável à situação judicanda. Este autor assinala que a privação durante um determinado período origina «a perda das utilidades que o mesmo era susceptível de proporcionar e se essa perda não foi reparada mediante a forma natural de reconstituição, impõe-se que o responsável compense o lesado na medida equivalente»[38]. Salientando que «a falta de prova de despesas causalmente realizadas depois do sinistro não determina necessariamente a ausência de prejuízos, os quais não deixam de ser representados pelo desequilíbrio de natureza material correspondente à diferença entre a situação que existiria e aquela que é possível verificar depois de se constatar a efectiva privação do uso de um bem»[39]. Concluindo, designadamente, mesmo nos casos em que não exista prova da intenção lucrativa, que «não está afastada a ressarcibilidade dos danos, tendo em conta a mera indisponibilidade do bem, sem embargo de, quanto aos lucros cessantes, se apurar que a paralisação nenhum prejuízo relevante determinou, designadamente, por terem sido utilizadas outras alternativas menos onerosas e com semelhante comodidade, ou face à constatação de que o veículo não era habitualmente utilizado»[40].
Estas posições concorrem com outra que assenta na ideia de que a avaliação do dano deve ser feita em função de parâmetros de necessidade, oportunidade e adequação. Nesta linha surge jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[41], que sustenta que «podem, porém, configurar-se situações da vida real em que o titular não tenha qualquer interesse em usar a coisa, não pretende retirar dela as utilidades ou vantagens que a coisa lhe podia proporcionar (o que até constitui uma faculdade inerente ao direito real de propriedade), ou pura e simplesmente, não usa a coisa.
Em situações como estas, se o titular se não aproveita das utilidades que o uso normal da coisa lhe proporciona, também não poderá falar-se de prejuízo ou dano decorrente da privação ilícita do uso, visto que, na circunstância, não existe uso, e, não havendo dano, não há, evidentemente, obrigação de indemnizar. Com a óbvia ressalva que, numa hipótese com a presente, não é admitido o ressarcimento dos prejuízo ocorridos ou dos lucros cessantes, por os mesmos não existirem e, assim, neste nível de avaliação, a compensação monetária a arbitrar destina-se exclusivamente a garantir a perda da utilidade durante determinado período de tempo.
Por isso, competindo ao lesado provar o dano ou prejuízo que quer ver indemnizado, não chega alegar e provar a privação da coisa, mostrando-se ainda necessário alegar e provar que usava normalmente a coisa, isto é, que dela retirava as utilidades (ou algumas delas) que lhe são próprios e que deixou de poder usá-la, em virtude da privação ilícita (…)
Aliás, a prova de tal circunstancialismo de facto (isto é, do uso normal da coisa), em muitos casos concretos poderá advir de simples presunções naturais ou judiciais a retirar pelas instâncias da factualidade envolvente».
Neste domínio e em face da situação concreta, entendemos que a privação do uso de uma coisa, inibindo o proprietário ou detentor de exercer sobre a mesma os inerentes poderes, constitui uma perda patrimonial que deve ser considerada, tudo se resumindo à detecção do método mais adequado para a quantificação da indemnização compensatória[42].
O artigo 1305º do Código Civil confere ao proprietário os direitos de uso e fruição da coisa. De maneira que, estando provado que os Autores estiveram impedidos de fruir dos seus bens, assiste-lhes o direito de formularem o correspondente pedido de indemnização, como forma de reparar os prejuízos decorrentes daquela privação.
E cabe aqui a utilização de presunções judiciais que estão associadas a critérios de normalidade social e que reflectem na utilização comum dos bens com relevo constitucional, como é o caso do direito à habitação.
Neste horizonte valorativo, a privação do uso de um prédio que inibe o proprietário de exercer sobre a mesma os inerentes poderes que lhe são legalmente confiados constitui uma perda patrimonial que deve ser considerada, desde que se demonstre a frustração de um propósito real, concreto e efectivo de proceder à sua utilização, como sucede na hipótese do requerente ficar impedido de habitar um imóvel destinado à instalação da casa de morada de família.
Esta privação do uso constitui um dano de natureza patrimonial, indemnizável nos termos do artigo 483º do Código Civil. Neste domínio, a decisão recorrida considerou que «considerando os factos dados como provados e, bem assim, os dados como não provados, restam-nos que os Autores efectivamente se viram provados da possibilidade de habitar a casa que havia adquirido por a mesma apresentar defeitos desde meados de 2007 e até Outubro de 2007 (data da reconstrução do alpendre).
Quanto ao demais tempo de impossibilidade de habitação, verificando-se demonstrada a não atempada denuncia dos defeitos do segundo alpendre (que também impedem os A. de habitarem a casa) e não demonstrada a frustração efectiva do arrendamento do imóvel, fica inviabilizado o recurso à equidade para determinação da indemnização pela privação do uso».
Por força da exposição prévia, apenas concordamos com o que foi dito quando implicitamente é afastada a possibilidade da utilização do valor locativo de um imóvel como parâmetro indemnizatório. Todavia, estamos perante um dano que não está necessariamente alocado à questão da denúncia atempada dos defeitos, por a matéria se situar fora da esfera de previsão das normas que se reportam à estrita aplicação do regime da venda de coisas defeituosas.
Neste conspecto, na reparação do dano decorrente da privação de uso é assim de recorrer à equidade para se fixar o valor indemnizatório[43] [44]. Seguindo a lição de Claus Canaris[45] o direito equitativo não se compadece com uma construção apriorística. Antes emerge do “facto concreto”, como elemento da própria compreensão do direito [rectius, um direito de resultado], em que releva a força criativa da jurisprudência, verdadeira law in action, com o imprescindível recurso ao “pensamento tópico” que irá presidir à solução dos concretos problemas da vida.
Como afiançam Pires de Lima e Antunes Varela[46] são «razões de conveniência, de oportunidade, principalmente de justiça concreta, em que a equidade se funda». A equidade é assim a justiça do caso concreto, flexível, humana, independentemente de critérios normativos fixados na lei, devendo, o julgador ter em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida[47] [48].
Julgar segundo a equidade, não é todavia, decidir arbitrariamente, mas é, assim, decidir ex aequo et bono. Desta sorte, tendo em conta a justiça do caso concreto, analisada à luz dos parâmetros atrás enunciados e dos factos que foram apurados (factos 20[49], 26[50] e 28[51]), entendemos que para ressarcir «a natureza e a extensão dos danos»[52] é justo e equilibrado atribuir uma indemnização no valor de € 2.500 (dois mil e quinhentos euros), a prestar pelos Réus (…) e (…) aos Autores (…) e (…). Sobre a referida quantia vencem juros, à taxa legal, contados desde a data da emissão da presente decisão até integral pagamento.
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V – Sumário:
1. No caso dos direitos disponíveis como sucede no regime da venda de coisas defeituosas, sendo o prazo de caducidade fixado por lei, o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deve ser exercido, impede a caducidade, por aplicação da disciplina contida no artigo 331º, nº 2, do Código Civil.
2. Ao demolir e ao iniciar a construção de um alpendre que correspondia ao vício de construção então detectado, o vendedor de um imóvel assume um comportamento concludente de reconhecimento espontâneo de defeitos, que não gera novo prazo de caducidade, ficando o direito definido sujeito às disposições que regem a prescrição.
3. A privação do uso de um prédio que inibe o proprietário de exercer sobre a mesma os inerentes poderes que lhe são legalmente confiados constitui uma perda patrimonial que deve ser considerada, desde que se demonstre a frustração de um propósito real, concreto e efectivo de proceder à sua utilização, como sucede na hipótese de ficar impedido de habitar um imóvel destinado à instalação da casa de morada de família.
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar parcialmente procedente o recurso interposto, revogando-se a sentença recorrida e, em consequência, decide-se:
i) Condenar “(…) Construções, Lda.” e os Réus (…) e (…) no ressarcimento aos Autores da quantia de € 9.432,42 despendida na reparação de defeitos na construção (alterando assim os pontos I e II da decisão anteriormente tomada).
ii) Condenar os Réus (…) e (…) no pagamento de uma indemnização no valor de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), a título de privação de uso do imóvel em causa, acrescida de juros vencidos após a data da notificação da presente decisão até integral pagamento (modificando assim, em parte, o ponto IV da decisão do Tribunal recorrido).
iii) Manter no mais o anteriormente decidido.
Custas a cargo dos apelantes e dos apelados na proporção do respectivo decaimento, nos termos do disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 07/12/2017
José Manuel Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel Matos Peixoto Imaginário

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[1] Ficou consignado na sentença que os factos descritos em 28 a 35 se provaram ao abrigo do artigo 5º, nº 2, do Código de Processo Civil.
[2] Artigo 913º (Remissão):
1. Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.
2. Quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria.
[3] Baptista Machado, Acordo negocial e erro na venda de coisas defeituosas, in Obra Dispersa, vol. I, Scientia Juridica, Braga 1991.
[4] Ferreira de Almeida, Texto e enunciado na teoria do negócio jurídico, vol. I, Almedina, Coimbra 192.
[5] Romano Martinez, Cumprimento defeituoso – Em especial, na venda e na empreitada, Almedina, Coimbra 1994
[6] Nuno Manuel Pinto Oliveira, contrato de compra e venda – Noções fundamentais, Almedina, Coimbra 2007, págs. 232-240.
[7] Artigo 916º (Denúncia do defeito):
1. O comprador deve denunciar ao vendedor o vício ou a falta de qualidade da coisa, excepto se este houver usado de dolo.
2. A denúncia será feita até trinta dias depois de conhecido o defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa.
3 - Os prazos referidos no número anterior são, respectivamente, de um e de cinco anos, caso a coisa vendida seja um imóvel.
[8] Artigo 917º (Caducidade da acção):
A acção de anulação por simples erro caduca, findo qualquer dos prazos fixados no artigo anterior sem o comprador ter feito a denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses, sem prejuízo, neste último caso, do disposto no n.º 2 do artigo 287.º
[9] Artigo 1225º (Imóveis destinados a longa duração):
1 - Sem prejuízo do disposto nos artigos 1219.º e seguintes, se a empreitada tiver por objecto a construção, modificação ou reparação de edifícios ou outros imóveis destinados por sua natureza a longa duração e, no decurso de cinco anos a contar da entrega, ou no decurso do prazo de garantia convencionado, a obra, por vício do solo ou da construção, modificação ou reparação, ou por erros na execução dos trabalhos, ruir total ou parcialmente, ou apresentar defeitos, o empreiteiro é responsável pelo prejuízo causado ao dono da obra ou a terceiro adquirente.
2 - A denúncia, em qualquer dos casos, deve ser feita dentro do prazo de um ano e a indemnização deve ser pedida no ano seguinte à denúncia.
3 - Os prazos previstos no número anterior são igualmente aplicáveis ao direito à eliminação dos defeitos, previstos no artigo 1221.º
4 - O disposto nos números anteriores é aplicável ao vendedor de imóvel que o tenha construído, modificado ou reparado.
[10] Artigo 331º (Causas impeditivas da caducidade):
1. Só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do acto a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo.
2. Quando, porém, se trate de prazo fixado por contrato ou disposição legal relativa a direito disponível, impede também a caducidade o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido.
[11] Prescrição extintiva e caducidade, Boletim do Ministério da Justiça nº 107, págs. 228-231 e 231-235.
[12] Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição revista e actualizada (reimpressão) (com a colaboração de Henrique Mesquita, Coimbra Editora, Coimbra 2010, págs. 295-296.
[13] Notas ao Código Civil, vol. II, Lisboa 1988, pág. 100.
[14] Tratado de Direito Civil – Parte Geral. Exercício Jurídico, Tomo v, Almedina, Coimbra 2015, págs. 257-258
[15] Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa 2014, págs. 780-781.
[16] Prescrição e caducidade, Anotação aos artigos 296º a 333º do Código Civil (o tempo e a sua repercussão nas relações jurídicas, Coimbra Editora, Coimbra 2008, págs. 177-181.
[17] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil – Parte Geral. Exercício Jurídico, Tomo v, Almedina, Coimbra 2015, pág. 257.
[18] Obra citada, pág. 178.
[19] Obra citada, pág. 296.
[20] Prescrição Extintiva e Caducidade, nº118, in Boletim do ministério da Justiça nº 107.
[21] Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 107º, pág. 24.
[22] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/02/2004, in www.dgsi.pt.
[23] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/01/1981, in BM.J nº 303, pág. 191, cujo sumário também está disponível em www.dgsi.pt.
[24] Prescrição extintiva e caducidade, BMJ 107, págs. 232-233 e 234.
[25] A Caducidade, 3ª edição melhorada e actualizada, Livraria Petrony (Herdeiros), Lisboa 1984, pág. 120-121.
[26] Obra citada, pág. 296.
[27] Obra citada, pág. 781, ao adoptar a posição assumida por Ana Filipa Morais Antunes.
[28] Obra citada, pág. 178, quando afirma que impedida a caducidade e estabilizado o direito, não fica, no entanto, o direito imune às regras da prescrição, que lhe serão, em princípio, aplicáveis.
[29] No referido aresto que está disponível em www.dgsi.pt pode ler-se que «o prazo de um ano para a Autora intentar a acção judicial (art.º 1225, nº 3, Código Civil) conta-se a partir da denúncia, mas havendo impedimento da caducidade com o reconhecimento por parte da Ré da existência dos defeitos no imóvel (art.º 331º, nº 2, Código Civil) o prazo inicia-se a partir desse outro momento.
Fixando a Autora uma data limite para a reparação dos defeitos só a partir dela se conta tal prazo».
[30] Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/02/91, CJ XVI-I-161, do Tribunal da Relação do Porto de 17/11/92, CJ XVIII-V-224, do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/06/2012.
[31] Artigo 918º (Defeito superveniente):
Se a coisa, depois de vendida e antes de entregue, se deteriorar, adquirindo vícios ou perdendo qualidades, ou a venda respeitar a coisa futura ou a coisa indeterminada de certo género, são aplicáveis as regras relativas ao não cumprimento das obrigações.
[32] Nuno Manuel Pinto Oliveira, Contrato de Compra e Venda – Noções fundamentais, Almedina, Coimbra 2007, pág. 300.
[33] Excepção do não Cumprimento do Contrato no Direito Civil Português, pág. 39.
[34] Direito das Obrigações, Almedina, vol. I, 5ª edição, pág. 333.
[35] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/05/2013, in www.dgsi.pt.
[36] No mesmo sentido os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 05/07/2007 e de 10/09/2009, in www.dgsi.pt.
[37] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/11/2009, in www.dgsi.pt.
[38] Indemnização do Dano da Privação do Uso, Almedina, Coimbra 2001, pág. 34.
[39] António Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 47.
[40] Autor e obra citadas, pág. 54.
[41] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/11/2011, in www.dgsi.pt.
[42] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15/12/2011, in www.dgsi.pt.
[43] Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 01/07/2014 e de 27/03/2013, in www.dgsi.pt.
[44] A este propósito, pode consultar-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/11/2011, in www.dgsi.pt: a indemnização por privação do uso, deve corresponder, regra geral, ao custo do aluguer de uma viatura de idênticas características, mesmo que o lesado não tenha recorrido ao aluguer de um veículo de substituição, uma vez que bem pode acontecer que não tenha possibilidades económicas, operando-se o ressarcimento, em última análise, segundo critérios de equidade (artigo 566º, nº3, do Código Civil).
[45] O Pensamento Sistemático e o Conceito de Sistema na Ciência do Direito.
[46] Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição revista e actualizada (com a colaboração de Henrique Mesquita), Coimbra Editora, Coimbra 2010, pág. 56.
[47] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/12/98, in CJ STJ, Ano VI, I, 6.
[48] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., Coimbra Editora, pág. 474.
[49] (20) Por via dos defeitos referidos os Autores ficaram impedidos de se mudar para o prédio referido em 1 desde Maio de 2007.
[50] (26) A varanda está a desligar-se do edifício por falta de apoios estruturais.
[51] (28) Tais fendas impedem o uso da habitação.
[52] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16/12/2014, in www.dgsi.pt.