Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
727/15.2T9TNV.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
ACUSAÇÃO PARTICULAR
SUSPENSÃO DA PRESCRIÇÃO
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 02/05/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A dedução de uma acusação particular não interrompe ou suspende o decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
A - Relatório:

Nestes autos de Inquérito que correu termos nos serviços do Ministério Público da Comarca de Setúbal, após ter sido proferida decisão em 31.10.2017 (cfr. folhas 172 a 175), julgando procedente a nulidade invocada pela assistente AA ..., por omissão de observância da segunda parte do n.º 4 do art. 246.º do Código de Processo Penal, o Ministério Público ordenou a notificação da assistente para, querendo, deduzir acusação particular contra a arguida, pela prática do crime de ofensa a pessoa coletiva, organismo ou serviço, previsto e punido pelos arts. 187.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 183.º e 188.º, n.º1, 1.ª parte, todos do Código Penal, pronunciando-se no sentido da inexistência de indícios suficientes – cfr. folhas 182.

Nessa sequência, a assistente AA..., deduziu acusação particular contra a arguida BB ... , imputando-lhe a prática dos factos descritos a folhas 187 a 191, suscetíveis de a fazer incorrer na prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa a pessoa coletiva, previsto e punido pelo art. 187.º do Código Penal.

O Ministério Público não acompanhou a acusação particular, nos termos do art. 285.º, n.º 4, do Código de Processo Penal (cfr. folhas 192).

A arguida BB ... veio requerer a abertura de instrução, pugnando para que seja proferido despacho de não pronúncia (cfr. folhas 213 a 215).

Por decisão instrutória de 15-05-2018 a Mmª. Juíza de Instrução lavrou despacho de não pronúncia da arguida.


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A assistente AA ..., não se conformando com a decisão de não pronúncia, interpôs recurso, concluindo:

1. E incoerente com os factos indiciariamente provados em 5), 6), 7) 8) e 9), revelando erro de julgamento, o vertido a fls 7 em 3.2.2. “Não resultam, porém, indiciariamente provados os seguintes factos: b) A arguida imputou à assistente a prática reiterada de facto desonesto, tipificado como contraordenação muito grave”.

2. O Tribunal não pode ignorar a qualificação jurídica dos factos. É, necessariamente, do conhecimento do Tribunal que a conduta imputada pela arguida à assistente configura contraordenação muito grave prevista no artigo 81.º, n.º 3, alínea f), do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, punível nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 22.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, na redação dada pela Lei n.º 89/2009, de 31 de agosto.

3. Esta contradição em que, por um lado se considera demonstrado que a arguida elaborou e subscreveu relatórios onde fez constar “Verificou-se que estava a ocorrer uma descarga de águas residuais provenientes da ETAR, ou de algum bypass à mesma, com uma carga fortemente poluente dos recursos hídricos” e “existem fortes indícios de existir uma ligação clandestina à saída da ETAR, no troço dos últimos 2m de betão, antes do efluente ser lançado na ribeira”, e por outro lado se considera não provado que a arguida tenha imputado à assistente a prática de facto desonesto tipificado como contraordenação muito grave, torna a decisão ininteligível. Estamos perante contradição insanável da fundamentação, que determina a nulidade da decisão instrutória, nos termos do artigo 410.º 2 b) do CPP.

4. No caso dos autos está em causa um crime de natureza particular, cujo procedimento criminal depende de acusação particular, nos termos do artigo 188.º 1 do Código Penal.

5. Porém, o Tribunal a quo decide questões sobre as quais não foi chamado a pronunciar-se, agindo como se a arguida estivesse acusada com a agravante prevista no artigo 183.º 1 b) aplicável ex vi do nº 2 alínea a) do artigo 187.º do Código Penal.

6. A perspetiva adotada na decisão recorrida, que julga como se a arguida estivesse acusada de ter agido quando “conhecia a falsidade da imputação”, inquina todo o processo decisório.

7. A decisão recorrida faz errada interpretação e aplicação do artigo 187.º do Código Penal. Erro este que se traduz na insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (e não provada).

8. IAo não apreciar a conduta da arguida à luz do artigo 187.º 1 do Código Penal, antes fazendo aplicar o 183.º 1 b) do mesmo diploma, a decisão recorrida nada diz quanto à não existência de fundamento para a arguida, em boa fé, reputar a afirmação verdadeira.

9. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é causa de nulidade nos termos do artigo 410.º 2 a) do Código de Processo Penal.

10. O Tribunal a quo colocou-se a si mesmo no lugar da arguida e decidiu como se se absolvesse a si próprio: “assim como ocorre com o juiz de instrução criminal que conclua pela existência de fortes indícios da prática de um crime em determinado momento processual, não se lhe pode simplesmente apontar, sem mais, que tal consubstanciaria uma ofensa da honra de um arguido, mesmo preso preventivamente, que depois venha a ser absolvido em julgamento (ainda que tal não seja processualmente querido, nem expectável)” (fls 9 e 10).

11. O entendimento expresso na decisão recorrida, segundo o qual a arguida merece o mesmo tratamento - quanto à irresponsabilidade pelas afirmações que produziu nos autos que elaborou e subscreveu - que a meretíssima juiz a quo – quanto às suas decisões em processos judiciais - é inconstitucional.

12. A decisão recorrida faz uma interpretação e aplicação inconstitucional da lei, designadamente do artigo 187.º do Código Penal, em violação do consagrado nos artigos 216.º 2 e 271.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

13. A interpretação do artigo 187.º do Código Penal, em conformidade com os artigos 216.º 2 e 271.º 1 da Constituição da República Portuguesa, prevê a condenação da arguida como autora material deste crime, pelos factos por que vem acusada e que estão demonstrados.

14. É inconstitucional o artigo 187.º do Código Penal, tal como interpretado e aplicado pela decisão recorrida, por violação dos artigos 216.º 2 e 271.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

15. Os factos provados em 3), 4), 5), 6) e 7) demonstram indiciariamente que a arguida afirmou e propalou factos inverídicos.

16. A decisão recorrida considerou provado “8) A assistente viu a sua credibilidade, prestígio e confiança abalados”.

17. Quanto à boa fé da arguida, o Tribunal a quo não se pronuncia, como era seu dever, o que conduz à nulidade da sentença.

18. A arguida não demonstrou nos autos ter fundamento para, em boa fé, reputar verdadeiras as afirmações que elaborou e subscreveu. Pelo contrário, dos autos resulta a prova dessa falta de fundamento, designadamente dos factos provados em 3), 4) e 9).

19. Só a inclusão do facto segundo o qual “a arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta é punida por Lei Penal” se harmoniza com os demais factos provados e se adequa ao caso dos autos.

20. Verifica-se a suficiência dos indícios recolhidos – estão verificados todos os elementos típicos do ilícito criminal previsto no artigo 187.º do Código Penal – pelo que deverá a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que pronuncie a arguida pelos factos por que vem acusada.


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O Digno Procurador-Adjunto do Tribunal recorrido apresentou resposta defendendo o decidido, com as seguintes conclusões:

1.ª Inexiste qualquer nulidade na decisão ora em crise, seja por contradição insanável na fundamentação da decisão instrutória, seja por erro de julgamento, seja por insuficiência de fundamentação para a matéria de facto fixada como indiciada e não indiciada, seja por qualquer inconstitucionalidade que apenas a assistente vislumbra.

2.ª Na verdade, como supra se expôs, por um lado a recorrente apenas faz ressaltar os factos que a beneficiam, sem atentar na realidade dos mesmos quando interpretados no verdadeiro contexto em que se inserem, sendo incindíveis dos factos eleitos pela assistente para que possa falar-se em silogismo judiciário lógico.

3.ª Ao “truncar” factos que pretende evidenciar, a recorrente tenta ultrapassar o que não é ultrapassável, através de verdadeiros sofismas.

4.ª A recorrente olvidou as supra evidenciadas exclusões da ilicitude e da culpa acima expostas e que aqui se reproduzem.

5.ª Assim, pelas razões invocadas pela assistente, dar-se-ia, sempre que qualquer agente de autoridade levantasse algum auto de notícia, quer por crime, quer por qualquer contra ordenação, uma reacção que não cumpriria a CRP o que originaria um vazio perene de aplicação dos direitos fundamentais de defesa, o que não se concebe.

6.ª Quanto à invocada inconstitucionalidade, também com base no que supra se expôs, ela simplesmente não existe, pelo que nem sequer se impugna face ao pouco ou nenhum interesse que revela.

7.ª A decisão sob recurso fez correcta interpretação da Lei e do Direito e, por isso, deve ser mantida nos seus precisos termos.


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Nesta Relação o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu mui douto parecer concluindo pela existência de prescrição e, no sentido da manifesta improcedência do recurso.

Observou-se o disposto no nº 2 do art. 417° do Código de Processo Penal.


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B - Fundamentação:

B.1 - São elementos de facto relevantes e decorrentes do processo, para além dos que constam do relatório, o teor do despacho recorrido que vai transcrito na parte relevante, a que se refere aos factos e sua motivação:

«(…)
3.2. Da Análise dos Indícios Recolhidos:
3.2.1. Com interesse para a decisão da causa, resultam suficientemente indiciados os seguintes factos:
1) A assistente desenvolve a sua atividade industrial de “Produção de Óleos Vegetais”, no concelho de Torres Novas.
2) A Câmara Municipal de Torres Novas deliberou, na reunião de 25.06.2002, “por unanimidade (seis votos) reconhecer o interesse público concelhio daquela unidade fabril”.
3) A assistente responde atualmente aos parâmetros de exigência no campo da qualidade, segurança, higiene e ambiente. Em resultado de grandes investimentos, a AA ..., obteve a certificação de qualidade ISSO 14001:2004 e ISSO 9001:2008, pela AJA Registrars Germany GmbH, e a certificação pela SGS, de acordo com a Norma B1 – Production Trade and Services – GMP+International, sendo estas as normas mais exigentes na sua atividade.
4) A AA ..., labora ao abrigo da Licença de Exploração Industrial n.º54-2006, dispõe de ETAR a que corresponde a Licença de Utilização de Recursos Hídricos n.º000559.2014RH5 e foi distinguida como “PME Líder”.
5) A arguida elaborou e subscreveu o Auto de notícia por contraordenação n.º60/15, datado de 31.08.2015, onde, além do mais, afirma: “Verificou-se que estava a ocorrer uma descarga de águas residuais provenientes da ETAR, ou de algum bypass à mesma, com uma carga fortemente poluente dos recursos hídricos” – com o esclarecimento que se remete, ainda, para todo o conteúdo daquele Auto de notícia, inserto a folhas 8 a 10, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
6) A arguida elaborou e subscreveu o Relatório n.º27/2015 – Fiscalização AA ..., datado de 05.09.2015, onde, além do mais, fez constar: “existem fortes indícios de existir uma ligação clandestina à saída da ETAR, no troço dos últimos 2m de betão, antes do efluente ser lançado na ribeira” – com o esclarecimento que se remete, ainda, para todo o conteúdo daquele Relatório, inserto a folhas 11 a 13, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
7) Os referidos documentos foram recebidos na Agência Portuguesa do Ambiente, instruindo o processo n.º558/10780.
8) A assistente viu a sua credibilidade, prestígio e confiança abalados.
9) Em 25 de setembro, a assistente dirigiu à APA – entidade à qual a arguida remeteu os ditos documentos da sua autoria e responsabilidade – um requerimento que ainda não obteve qualquer resposta, com o seguinte teor: “Os documentos remetidos por V.ªs Ex.ªs a esta empresa aludem à existência de uma ligação clandestina à saída da ETAR sob os últimos 2m de betão, que antecedem a descarga do efluente no leito da água. Assim, solicita-se a vossa presença urgente nestas instalações, com vista a proceder à demolição, supervisionada por V.ªs Ex.ªs, dos tais 2m de betão, de modo a que seja apurada a verdade dos factos”.

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3.2.2. Não resultam, porém, indiciariamente provados os seguintes factos:
a) À arguida é imputado o conhecimento de clientes e da população em geral, bem como a divulgação através de meios de comunicação social e de redes sociais, v.g. O Observador, Correio da Manhã, página de Facebook “Vamos salvar o Almonda”.
b) A arguida imputou à assistente a prática reiterada de facto desonesto, tipificado como contraordenação muito grave.
c) E fê-lo apesar de ter consciência da falsidade e da gravidade das suas afirmações.
d) A arguida sabia que faltava à verdade ao imputar a existência de “uma ligação clandestina” ou de um “bypass” à assistente, ao propor “fiscalização (…) de forma a confirmar os fortes indícios detetados”.
e) A arguida sabia que os factos que imputava à assistente não correspondiam à verdade.
f) A APA suspendeu cautelarmente a Licença de Utilização de Recursos Hídricos – Rejeição de Águas Residuais n.º000559/2014RH5, válida até 13.01.2024, em 24.09.2015, da assistente.
g) A arguida afirmou e propalou factos que sabia não corresponderem à verdade, ofensivos da credibilidade, prestígio e confiança da assistente.
h) A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta é punida por Lei penal.
3.2.3. Motivação da Decisão acerca da matéria de facto:
A prova produzida em sede de inquérito e de instrução foi apreciada segundo as regras de experiência comum e a nossa livre convicção.
Os factos descritos sob os pontos 1) a 9) relativos ao modo de funcionamento e à caracterização da sociedade-assistente foram decalcados pela assistente, nestes autos – cfr., a este propósito, os documentos insertos nos autos (cfr., designadamente, a certidão permanente de folhas 17 a 23, e a documentação disponibilizada pela A.P.A., a folhas 26 a 75), em coerência com o depoimento prestado pela legal representante da assistente, CC.., (a folhas 79).
Ninguém melhor do que a própria assistente poderá esclarecer o funcionamento e a atividade da assistente. Não existem razões objetivas para, nestes autos, se colocar em causa o assim alegado, nem a arguida o colocou em crise.
Por outro lado, é a próprio arguida, nas declarações que hoje prestou, quem confirmou a autoria do Auto de notícia de folhas 8 a 10 e do Relatório de folhas 11 a 13, afirmando que a sua intervenção foi motivada pelo exercício das suas funções na GNR, devido a várias denúncias quanto ao estado do Almonda, inclusivamente indicando a atividade da assistente como sendo a “causa”. A arguida esclareceu que tudo o que referiu, naqueles dois documentos, resultou da sua perceção no local, dos vários testes realizados e do resultado das análises à água. Afirma que não são factos inverídicos.
De facto, o Tribunal leu a totalidade do Auto de notícia e do Relatório em causa, verificando que a arguida deu conta da sua perceção no local, sendo até bastante cautelosa/cuidada na forma como expôs as hipóteses mais lógicas, utilizando expressões como “ou”, expressando eventuais questões mais controversas e requerendo, ela própria, uma fiscalização mais detalhada e profunda.
Daí não se pode extrair que a arguida agisse com o intuito de ofender e de prejudicar a assistente, antes pelo contrário. Do mesmo modo, não resulta demonstrado que a arguida tivesse praticado qualquer facto de modo a divulgar na população ou nos meios de comunicação social factos que eram do seu conhecimento – cfr., a este propósito, o disposto no art. 183.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código Penal (normativos que, de resto, não constam da qualificação jurídica descrita na acusação particular).
Por conseguinte, nenhum dos factos subjetivos descritos sob as alíneas a) a h) resultam indiciariamente demonstrados.
3.3. Das Disposições Legais aplicáveis:
Como acima se referiu, em causa nestes autos, está o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, previsto e punido pelo art. 187.º, n.º 1, do Código Penal.
Dispõe o n.º1 do art. 187.º do Código Penal (ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva) que:
«Quem, sem ter fundamento para, em boa-fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa coletiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias».
Com efeito, o bem jurídico protegido pela incriminação é «o bom nome (“a credibilidade, o prestígio e a confiança”) do organismo, serviço, pessoa coletiva, instituição ou corporação, seja ele dotado de autoridade pública ou não. A credibilidade, o prestígio e a confiança são expressões redundantes, cujo significado se identifica com o do bom nome da entidade abstrata (organismo, serviço, pessoa coletiva, instituição ou corporação). (…) O tipo objetivo consiste na difusão de factos falsos ou “inverídicos” sobre um organismo, serviço ou pessoa coletiva, instituição ou corporação, nacional ou estrangeira. (…) O tipo subjetivo admite qualquer modalidade de dolo» - cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição e da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, pp. 508 e 509.
As particulares circunstâncias do caso concreto convocam, também, a análise das funções desempenhadas pela arguida, enquanto O.P.C., quando elaborou e subscreveu o Auto de notícia de folhas 8 a 10 e o Relatório de folhas 11 a 13.
A função profissional da arguida impõe que documente a sua perceção, que analise indícios, sinais, suspeitas e relate em conformidade.
Em bom rigor, tal se impõe (e continuará a impor-se no futuro) a qualquer cidadão/pessoa que exerça funções de autoridade; assim como ocorre com o juiz de instrução criminal que conclua pela existência de fortes indícios da prática de um crime em determinado momento processual, não se lhe pode simplesmente apontar, sem mais, que tal consubstanciaria uma ofensa da honra de um arguido, mesmo preso preventivamente, que depois venha a ser absolvido em julgamento (ainda que tal não seja processualmente querido, nem expectável).
Deste modo, no caso concreto, está em causa a manifestação do exercício de função de polícia, sem que resulte demonstrado que a arguida tenha afirmado ou propalado factos inverídicos, nem que o tenha feito “sem ter fundamento para, em boa-fé, os reputar verdadeiros”.
Em face do exposto no ponto 3.2. da presente decisão, para o qual se remete e que aqui se dá por integralmente reproduzido, forçoso se torna concluir que não se mostram indiciariamente preenchidos os elementos típicos do crime em causa.
IV. Decisão:
Pelo exposto, e nos termos dos acima citados normativos legais, decido:
a) Não Pronunciar a arguida:
BB ..., a exercer funções no Comando-Geral da G.N.R., nascida em ..., natural de ..., (cfr. termo de identidade e residência de folhas 155);
Pela prática dos factos e do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, previsto e punido pelo art. 187.º, n.º1, do Código Penal, que lhe foram imputados na acusação particular deduzida nestes autos.
Custas a cargo da assistente (art. 515.º, n.º1, alínea a), do Código de Processo Penal); fixando a taxa de justiça no seu mínimo legal, dada a escassa complexidade da causa (art. 8.º, n.º2, do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa ao referido diploma legal).»
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O objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação – art.º 403, nº 1, e 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal - que, no caso, se resumem da seguinte forma:

- erro de julgamento e a contradição insanável da fundamentação nos termos do art. 410º, nº 2, al. b) do C.P.P., a gerar nulidade no entender da recorrente – conclusões 1 a 3;

- a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do art. 410º, nº 2, al. a) do C.P.P.a gerar nulidade no entender da recorrente – conclusões 7 a 9

- é inconstitucional o artigo 187º do Código Penal na interpretação dada pelo tribunal recorrido – conclusões 10 a 14;

- verifica-se suficiência dos indícios para imputar à arguida a prática de um crime p. e p. pelo artigo 187º do C.P. – conclusões 15 a 20.

Mas de uma questão prévia se impõe conhecer, a suscitada pelo Exmº PGA, da existência de prescrição do procedimento criminal.


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B.2 – Foi imputada à arguida pela acusação particular a prática de um crime de “ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva” previsto pelo artigo 187.º do C.P..

Tal crime é punível com pena abstracta máxima de 6 (seis) meses de pisão ou com pena de multa até 240 dias, só a primeira devendo ser considerada para efeito da quantificação do prazo prescricional (nº 4 do preceito citado). Face ao disposto na al. d) do nº 1 do artigo 118 do Código Penal o prazo de prescrição é de dois anos.

Os factos ocorreram em 31-08-2015, pelo que a prescrição sucederia em 31-08-2017.

Só assim não seria se tivesse ocorrido causa de interrupção ou suspensão do prazo prescricional. Percorridos os textos dos artigos 120º e 121º do C.P. na busca de causas de suspensão e interrupção do prazo prescricional, apenas três hipóteses se aproximam do caso dos autos.

Duas delas são as hipóteses previstas nos artigos 120º, nº 1, al. b) e 121º, nº 1, al. b) do C.P. Em ambos os casos dessas alíneas b) – um de suspensão, outro de interrupção do prazo prescricional - a causa suspensiva/interruptiva da prescrição pode ocorrer durante o tempo em que (b) o procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo.

Esta “acusação” prevista nas alíneas b) de ambos os preceitos tem que se entender como acusação pública e não pode incluir a acusação particular, já que a existência desta está contida na expressão “não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido”. Isto é, no caso de acusação particular só ocorre interrupção/suspensão da prescrição com a notificação da decisão instrutória.

A terceira hipótese é a causa de interrupção prevista na al. a) do artigo 121º do C.P., a constituição como arguido no processo.

E aí, como bem refere o Exmº PGA, existe uma clara diferença entre a “constituição como arguido” contida no artigo 121º e a assunção da qualidade de arguido por ter sido deduzida a acusação.


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B.3 – E para qualquer das hipóteses referidas - procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação e constituição como arguido – é necessáro ter presente que estas causas de suspensão e interrupção do prazo prescricional foram substancialmente alargadas, atribuindo-se agora dignidade interruptiva e/ou suspensiva a actos que não a tinham no Código Penal de 1982 aprovado pelo Dec-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro.

Aí e como se pode constatar relendo os artigos 119, nº 1, al. b) e 120º, nº 1, al. c) do então C.P. de 1982 a dignidade interruptiva e/ou suspensiva só era atribuída a actos judiciais, designadamente o despacho de pronúncia ou equivalente.


Artigo 119.º

(Suspensão da prescrição)


1 - A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:

b) O procedimento criminal esteja pendente, a partir da notificação do despacho de pronúncia ou equivalente, salvo no caso de processo de ausentes;


Artigo 120.º

(Interrupção da prescrição)


1 - A prescrição do procedimento criminal interrompe-se:

c) Com a notificação do despacho de pronúncia ou equivalente;

Será com a “alteração” ao Código Penal de 1995 - Decreto.Lei nº 48/95, de 15-03 – que o regime do instituto da prescrição se verá substancialmente alterado com a consagração de actos não judiciais com eficácia interruptiva.

É claro que se concretizou o risco, como afirmava o autor do projecto de Código Penal, Prof. Eduardo Correia, de atribuição a actos do Ministério Público de características “substancialmente judiciais” (in “Actas da Comissão Revisora do Código Penal”-Parte Geral I e II, Acta da 33ª Sessão, Edição AAFDL, pag. 233).

Mas se isso hoje, corridos 36 anos desde a vigência do Código Penal, já não susceptibiliza consciências porque houve um claro alargamento das funções do Ministério Público e uma policialização do inquérito, escandalizaria qualquer um que actos de particulares – como a dedução de uma acusação particular – fosse entendida como possibilitando interromper ou suspender o decurso do prazo prescricional.

E tal ocorre precisamente porque a dedução de uma acusação particular não está isenta de apreciações emocionais, presumivelmente inexistentes nas acusações públicas (com clara excepção para os casos de neo-criminalidade pós moderna), que sempre conduzem a apreciações erradas ou forçadas de institutos jurídicos tendo em vista a sujeição a julgamento do cidadão visado pelo particular.

E, no caso, isso verifica-se pois que a acusação particular deduzida foi, bem, recusada e o recurso interposto sempre seria manifestamente improcedente se não estivesse o procedimento – como está – prescrito. Apesar disso, da prescição sempre se dirá por respeito à invocação do ilustre mandatário da recorrente, que nenhum dos argumentos invocados tem a mínima possibilidade de convencimento.

Desde logo convém esclarecer que o artigo 410º do C.P.P não é aplicável ao despacho de pronúncia ou não pronúncia por ser norma reservada à sentença.

Depois, o artigo 410º do C.P.P. não determina a nulidade de actos, sim o reenvio por existência de vício de natureza factual.

Ainda, o erro de julgamento, se invocado, implica a impugnação factual e a sua demonstração, não bastando a invocação. O tribunal de recurso corrige vícios da decisão recorrida, não faz segunda apreciação.

Mais, a recorrente parece fazer assentar as suas conclusões 4 a 9 e 15 a 20 no entendimento de que é à arguida que incumbe a prova de que agiu em boa-fé e de que incumbia ao tribunal essa demonstração ou o seu contrário, quando é certo que o tipo penal é claro: “Quem, sem ter fundamento para, em boa-fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação, …”.

Ora, incumbe ao acusador fazer prova de tais factos, coisa que a recorrente não indiciou, sendo certo que os autos demonstram o acerto de actuação da arguida, cauteloso e factual.

Quanto à invocada inconstitucionalidade é claro que o raciocínio sai forçado entre as conclusões 10 e 11. Senão repare-se:

10. O Tribunal a quo colocou-se a si mesmo no lugar da arguida e decidiu como se se absolvesse a si próprio: “assim como ocorre com o juiz de instrução criminal que conclua pela existência de fortes indícios da prática de um crime em determinado momento processual, não se lhe pode simplesmente apontar, sem mais, que tal consubstanciaria uma ofensa da honra de um arguido, mesmo preso preventivamente, que depois venha a ser absolvido em julgamento (ainda que tal não seja processualmente querido, nem expectável)” (fls 9 e 10).

11. O entendimento expresso na decisão recorrida, segundo o qual a arguida merece o mesmo tratamento - quanto à irresponsabilidade pelas afirmações que produziu nos autos que elaborou e subscreveu - que a meretíssima juiz a quo – quanto às suas decisões em processos judiciais - é inconstitucional.

O raciocínio sai forçado na medida em que o argumento do tribunal recorrido expresso na conclusão 10ª é analógico e não de equiparação jurídica entre funções distintas. Dito de outra forma, o tribunal recorrido analisou comparativamente a situação em que se encontrava a arguida, oficial da GNR, com o dever de agir em conformidade com um ilícito verificado, com a mesmíssima situação em que se encontra um juiz com a obrigação e dever de agir em conformidade com um ilícito indiciado.

E, para efeitos jurídicos, a situação é equiparável em termos de inserção no direito penal e processual penal: dever de agir e de imputar, a quem os indícios apontarem, os factos ilícitos criminais ou contra-ordenacionais verificados. Não há aqui equiparações inconstitucionais: há simples raciocínio analógico e de apreciação de deveres funcionais e processuais penais.

É ainda no campo dos deveres de agir e de lavrar auto pela ocorrência que deve ser analisada a conduta da arguida, com vertente disciplinar, penal e processual penal.

Se não tivesse agido - e face ao que consta do auto e ao que se verificou posteriomente – seria seguramente passível de crítica (disciplinar, penal e processual penal), a sua conduta seria censurável se nada tivesse feito. Agindo cumpriu o seu dever.

E, face ao disposto no artigo 31.º, al. c) do Código Penal - exclusão da ilicitude – “o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade”, nomeadamente, não é ilícito o facto praticado “no cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem legítima da autoridade”.

E assim sendo é dever deste tribunal, como já foi o do tribunal recorrido, impedir que a Srª Oficial da GNR seja “punida” pela acção da assistente, por ter cumprido o seu dever.

Por tudo, o recurso sempre seria manifestamente improcedente mas, antes disso, o procedimento criminal está prescrito.


*

C - Dispositivo:

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em declarar prescrito o procedimento criminal.

Sem tributação vista a prescrição.

Notifique.

Évora, 05 de Fevereiro de 2019

(Processado e revisto pelo relator)

João Gomes de Sousa

António Condesso